Pode o Homem Cristão Usar Barba?

Introdução

A relevância dessa pergunta se deve à postura da liderança das Testemunhas de Jeová quanto a isso ao longo dos anos. Rigorosamente falando, jamais existiu uma proibição explícita de os homens entre as Testemunhas de Jeová usarem barba. A orientação da liderança contra isso sempre foi apresentada de maneira indireta, limitando-se a declarações vagas sobre barba, histórias sobre homens que removeram a barba depois de se converterem e à ausência completa de imagens de Testemunhas usando barba nas publicações da organização. Em vez de ser aplicado por uma proibição direta do Corpo Governante, o posicionamento foi adotado pelos homens em geral como resultado da pressão do grupo. Este padrão remonta à época de Rutherford.

As ilustrações nas publicações da organização jamais mostram barba nas Testemunhas de Jeová dos dias modernos. A imagem a seguir mostra uma típica congregação composta por homens barbeados e usando gravata:

Por outro lado, se pessoas “do mundo” são representadas numa luz negativa, não é incomum que algum homem usando barba apareça no cenário:

A liderança da organização também usa imagens que induzem os leitores a adotar o conceito deles de maneira subliminar. Embora algumas ilustrações do “Novo Mundo” incluam personagens de tempos passados usando barba, isto só se aplica aos recém-ressuscitados. Depois, à medida que eles “aprendem os requisitos de Deus”, já aparecem barbeados, como mostram os seguintes exemplos:

Brochura Boas Notícias de Deus Para Você! (2012), pág. 13.
Revista A Sentinela de 1° de junho de 2013, pág. 15.

Um breve histórico

Uma publicação da organização da década de 1960 disse o seguinte:

Nos anos recentes, em muitos países a barba comprida ou cabelos compridos no homem atraem de imediato a atenção e podem, na mente da maioria, qualificar tal pessoa indesejavelmente como parte dos extremistas ou dos rebeldes contra a sociedade. Os ministros de Deus desejam evitar causar uma impressão que desviaria a atenção de seu ministério ou que impediria que alguém desse ouvidos à verdade. Sabem que as pessoas observam os verdadeiros cristãos de forma mui crítica e que, em grande medida, julgam a inteira congregação e as boas novas pela aparência do ministro como representante da congregação. (A Sentinela de 1° de janeiro de 1969, pág. 30)

Esta diretriz da organização de evitar o uso da barba por ser um sinal de ‘rebeldia contra a sociedade’ levou muitos a presumir que esse conceito da liderança começou durante a era hippie, na década de 1960. A verdade, porém, é que o tabu já tinha começado muito antes disso, com Joseph Franklin Rutherford, o segundo presidente da organização Torre de Vigia (ele foi presidente de 1917 a 1942). A aparência bem barbeada de Rutherford e a imposição dessa mesma aparência sobre outros irmãos foi uma das maneiras de distanciar a religião da liderança de Russell.

Muitos não aceitaram Rutherford como líder legítimo da organização e há evidência de que Rutherford sentiu-se incomodado com irmãos que usavam barbas, imitando Russell. Isto fica claro com base neste incidente ocorrido lá em 1923, que foi relatado no Anuário das Testemunhas de Jeová de 1975, pág. 97:

Mais equipamento, porém, fazia-se necessário. Por esse motivo, o irmão Balzereit solicitou a permissão do irmão Rutherford para a compra duma rotativa. O irmão Rutherford viu a necessidade e concordou, mas com uma condição. Notara que, com o decorrer dos anos o irmão Balzereit deixara crescer uma barba bem similar à do irmão Russell. Seu exemplo logo foi seguido, pois havia outros que também queriam se parecer com o irmão Russell. Isto poderia dar origem a uma tendência para a adoração de criaturas e o irmão Rutherford desejava impedir tal coisa. Assim, em sua seguinte visita, aos ouvidos de todos da família da Casa da Bíblia, disse ao irmão Balzereit que ele poderia comprar a rotativa, mas apenas com a condição de que raspasse a barba. O irmão Balzereit concordou com tristeza e, depois foi ao barbeiro. Nos próximos dias houve vários casos de confusão de identidades, e algumas situações engraçadas, porque o “estranho” às vezes não era reconhecido por seus colegas de trabalho.

A foto que segue mostra uma celebração de Natal na sede da organização Torre de Vigia em 1920. Nela, pode-se ver alguns homens usando barba:

Já esta foto – posterior a 1923 – mostra a última celebração de Natal feita na sede em Betel em 1926, e tanto Rutherford como todos os demais homens aparecem bem barbeados:

O abandono do uso da barba também foi amplamente influenciado pela moda. As barbas foram comuns da década de 1850 até a década de 1920. A prevalência do barbeamento se alinha com o lançamento do primeiro aparelho de barbear descartável da Gillette em 1903, e depois do barbeador elétrico, patenteado pela primeira vez em 1930. Foi durante esse período que os seguidores da organização também passaram a se barbear.

As barbas foram reintroduzidas na moda pela contracultura na década de 1950 e depois pelos hippies na década de 1960. É compreensível que os líderes da organização durante esse período estivessem cautelosos com o fato de os seus seguidores parecerem alinhar-se com estes grupos. Porém, na década de 1970, as barbas também se tornaram comuns no mundo dos negócios.

A liderança das Testemunhas de Jeová relacionou a mudança dos seus seguidores para uma aparência bem barbeada com essa mudança da moda:

Com a queda do Império Romano, no entanto, a barba predominou novamente por mais 1.000 anos até a segunda metade do século 17, quando fazer a barba entrou na moda de novo. O estilo imberbe prevaleceu em todo o século 18. Mas daí, de meados do século 19 até o final dele, o vento começou a mudar de direção. É por isso que fotografias retratam C. T. Russell, primeiro presidente da Sociedade Torre de Vigia (EUA), e seu concristão W. E. Van Amburgh usando barba bem aparada — segundo o estilo da época —, digna e própria para o período em que viviam. No início do século 20, no entanto, fazer a barba tornou-se popular outra vez e isso perdura até o dia de hoje na maioria dos países. (Despertai! de 22 de janeiro de 2000, pág. 24)

O que o artigo da Despertai! não menciona é que depois de as barbas se terem tornado uma parte comum e aceitável da moda, a liderança das Testemunhas de Jeová continuou a desencorajar os homens da organização de usarem, sem qualquer razão, a não ser o conceito ultrapassado deles.

Embora seja verdade que a popularidade da barba diminui e aumenta, este raciocínio não justificava colocar sobre isso um tabu total, já que a barba é perfeitamente aceitável na sociedade corporativa ocidental. Usar barba nunca foi exclusivamente um sinal de adesão ao movimento hippie ou de rebeldia contra a sociedade; elas sempre foram usadas por homens da realeza, políticos, estadistas, ícones públicos internacionais e líderes da indústria. O tabu entre as Testemunhas de Jeová nada mais era que um resquício das inseguranças de Rutherford e do conceito ultrapassado do Corpo Governante americano.

As representações de personagens bíblicos nas publicações

Durante décadas, era muito comum os homens dos tempos bíblicos serem retratados sem barba nas publicações da organização, conforme mostram os exemplos que seguem:

Livro “A Verdade Vos Tornará Livres” (1946 em português), págs. 81 e 122. (Note-se que antes de ser expulso do paraíso, Adão aparece imberbe. Só depois de expulso é que ele é retratado usando barba.)

Entre 1930 e 1968, as ilustrações nas publicações das Testemunhas de Jeová chegaram ao ponto de apresentar o próprio Jesus barbeado e com cabelo curto:

“Testemunha Fiel de Deus” em Light – Book II (Luz – Livro 2), escrito por Rutherford em 1930, pág. 161.
Livro “Está Próximo o Reino” (1953, em português), pág. 7
Livro Filhos (1941), o último livro escrito por Rutherford, pág. 193. Na imagem, Jesus é o único imberbe. Todos os acusadores dele são retratados usando barba.
Livro Do Paraíso Perdido ao Paraíso Recuperado (1958), pág. 141 (Apenas Jesus e o “bom” ladrão são retratados imberbes. O outro ladrão, que zombou de Jesus, é o único que aparece usando barba. Era nítida a tendência de desqualificar o uso da barba, por sempre associar isso com homens maus e desaprovados por Deus.)

Foi só em 1968 que a liderança das Testemunhas de Jeová finalmente reconheceu que Jesus usava barba:

A evidência bíblica é o testemunho mais fidedigno que se pode encontrar nesta questão, e uma recente revisão criteriosa do que ela diz indica que Jesus deveras tinha barba comprida. (A Sentinela de 1° de maio de 1968, em inglês, pág. 286 [em português: 1° de janeiro de 1969, pág. 28).

Deve-se perguntar: Por que a evidência bíblica e o espírito santo levaram o Corpo Governante à conclusão oposta ao introduzir “nova luz” contra a barba de Jesus em 1930, e com raciocínio muito elaborado? A resposta é óbvia: Isso não foi direção do espírito santo, e sim manipulação da interpretação da Bíblia, para fazê-la se adequar à agenda da liderança da organização na época.

Um tabu sem qualquer base bíblica

As idas e vindas da barba de Jesus são um exemplo de como a liderança das Testemunhas de Jeová manipula seletivamente as informações em proveito próprio. Uma informação que apareceu numa “Pergunta dos Leitores” da revista A Sentinela de 15 de agosto de 1954, pág. 511 (não teve tradução em português) foi detalhada para provar que Jesus não tinha barba, mas a revista de 1968, citada acima, num nível semelhante de detalhamento, inverteu o assunto, reconhecendo que Jesus tinha barba.

As Escrituras são forçadas a ter o significado que eles quiserem. Um bom exemplo disso é como a liderança das Testemunhas usou o Levítico 19:28 para argumentar que uma tatuagem é inadequada para um cristão, mas ignorou o versículo 27, que diz que é errado raspar a barba. Esses versículos dizem:

Não raspem o cabelo dos lados da cabeça, nem aparem a barba de forma a desfigurá-la. Não façam cortes no corpo por causa de uma pessoa morta, nem façam tatuagem em vocês. (TNM, 2013)

Sobre isso eles disseram:

Significativamente, a Lei mosaica proibia o povo de Deus de se tatuar. Levítico 19:28 relata: “Não vos deveis fazer cortes na carne em prol duma alma falecida e não deveis fazer tatuagem em vós. Eu sou Jeová.” … O veto a tatuagens ainda é sério e dá o que pensar, apesar de os cristãos hoje não estarem mais debaixo da Lei mosaica. (Despertai! de 22 de setembro de 2003, pág. 26)

Embora afirme que Levítico 19:28 é significativo quando os cristãos decidem não fazer tatuagens, o versículo 27 é tratado como irrelevante quando a liderança da organização orienta os seguidores a cortarem a barba.

A exigência da liderança das Testemunhas de raspar a barba vai contra a sua linha habitual de raciocínio por trás de outras doutrinas. Se seguissem o raciocínio usado para explicar por que as Testemunhas de Jeová não podem comemorar aniversários, cortar a barba seria proibido, com base no seguinte:

Os homens deixam crescer a barba naturalmente, sendo o desígnio de Deus.

A Bíblia fornece o exemplo dos homens israelitas e cristãos usando barba, como um guia para seguirmos hoje.

A Lei Mosaica proibia as pessoas de se barbearem (Levítico 19:27), destacando os sentimentos de Deus contra os homens estarem barbeados.

Barbear-se é uma moda afeminada e andrógina de inspiração homossexual.

O barbear tem raízes pagãs. Provavelmente foi praticado pela primeira vez por sacerdotes egípcios e depois promovido por Alexandre, o Grande. (Veja wikipedia.org/wiki/Shaving)

Durante os tempos cristãos, os cristãos usavam barbas, enquanto os romanos pagãos, como Pôncio Pilatos, que autorizou a crucificação de Jesus, eram barbeados. (A Sentinela de 15 de setembro de 2005, pág. 10).

Atualização (dezembro de 2023)

Para surpresa de muitos, num pronunciamento postado no site oficial da organização JW.org no dia 15 de dezembro de 2023, o Corpo Governante das Testemunhas de Jeová finalmente liberou o uso da barba entre os homens da organização. Isso pôs fim a um tabu que já durava 100 anos.

No decorrer desse pronunciamento, apresentou-se um vídeo histórico que começou citando fatos bem conhecidos: que os personagens da antiguidade citados na Bíblia, incluindo o próprio Jesus, usavam barba, e o mesmo era o caso entre os Estudantes da Bíblia do tempo de Russell (1870-1916), e jamais houve qualquer questão sobre isso.

Cenas do vídeo

Pouco depois, o vídeo deu um salto no tempo, da época da Primeira Guerra Mundial para a década de 1960, fazendo declarações genéricas de que nessa época “o uso de barba começou a ser associado com pessoas que estavam se rebelando contra as autoridades” e que usar barba era “mal visto”. A ideia foi a mesma de sempre: induzir o ouvinte a acreditar que era por isso que os homens entre as Testemunhas de Jeová não usavam barba. Não se menciona que o tabu já tinha começado muito antes, lá na década de 1920, durante a presidência de Rutherford e que, embora seja verdade que “as nossas publicações não falassem muito sobre esse assunto”, o pouco que elas apresentavam graficamente era sempre no sentido de desencorajar o uso da barba entre os homens Testemunhas de Jeová (por exemplo, por associar sutilmente o uso da barba com homens maléficos e inimigos de Deus, conforme exemplificado acima).

Em seguida afirmou-se no vídeo que “com o passar do tempo o uso de barba se tornou mais comum em alguns países e não era mais associado com rebeldia” e que “recentemente o uso de barba se tornou mais comum em ainda mais países”. Essas referências a “passar do tempo” e “recentemente” também são bem genéricas; outra desinformação. Nada se apresenta para provar que foi assim que ocorreu. E, mais uma vez, também não se informa ao ouvinte que, ainda que estas duas declarações fossem verdadeiras, a liderança da organização continuou mantendo exatamente a mesma política de oposição ao uso da barba até o momento dessa liberação, e com base na mesma alegação de que isso estava ‘associado com rebeldia’.

Em outras palavras, enquanto houve (se é que houve) alguma mudança para melhor no “conceito do mundo”, o conceito da liderança da organização sobre o assunto permaneceu estático, atrelado à ideia de Rutherford, de cem anos atrás. E os homens entre as Testemunhas de Jeová, por mais desejo que tivessem, abstinham-se de usar até mesmo uma barba bem aparada (como essa mostrada na foto a seguir, que também aparece no vídeo), não porque achassem que isso ‘refletiria negativamente’ na pregação deles, e sim porque todos eles sabiam que o uso de qualquer tipo de barba era mal visto por sua liderança religiosa e havia toda uma pressão do grupo para se adequarem ao padrão. Os poucos homens que tiveram a coragem de escrever cartas à sede central da organização, nos Estados Unidos (ou às filiais em seus países) indagando sobre o assunto, receberam sempre a mesma resposta, desencorajando-os de fazer isso.

Da mesma forma, os homens que são Testemunhas de Jeová que decidirem usar barba a partir desse momento farão isso, não por terem concluído por si mesmos, da noite para o dia, que isso nada tem que ver com “rebeldia”, ou que não traz qualquer reflexo negativo em sua pregação na ruas, ou guiando-se por seu próprio entendimento da Bíblia. Não, eles só farão isso porque o Corpo Governante, “depois de muitas orações”, ‘esclareceu’ o assunto e disse que “não é contra os irmãos usarem barba”, já que “a Bíblia não diz que é errado usar barba”, isso “é um assunto de decisão pessoal” e agora um homem que usar barba não pode ser ‘julgado’ desfavoravelmente por ninguém, nem impedido de exercer algum “cargo designado” na igreja.

O excessivo controle do comportamento é uma característica dos regimes totalitários. Isso também se faz presente em religiões autoritárias, ou que utilizam coerção persuasiva. Esse controle excessivo que vai além, ou mesmo contra, os exemplos bíblicos, traz à mente vários textos:

1 Coríntios 4:6, 7: “Não vão além das coisas que estão escritas”, a fim de que não fiquem cheios de orgulho, tomando o partido de um contra o outro. Pois quem torna você diferente dos outros?

Lucas 22:25, 26: “Os reis das nações dominam sobre elas, e os que têm autoridade sobre elas são chamados de ‘benfeitores’. Vocês, porém, não devem ser assim.”

Mateus 15:6-9: “Assim vocês invalidaram a palavra de Deus por causa da sua tradição. Hipócritas! Isaías profetizou apropriadamente a respeito de vocês, quando disse: ‘Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está muito longe de mim. É em vão que continuam a me adorar, pois ensinam as regras de homens como doutrinas.’”

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