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O Erro de Apontar Falhas nos Outros

Por que você repara no cisco que está no olho do seu irmão, e não se dá conta da viga que está em seu próprio olho? (Mateus 7:3, NVI)

Suponho que sete em cada dez dos que leem estas palavras enfrentam algum tipo de dificuldade com relação a um outro indivíduo da espécie humana. Seja alguém no trabalho ou no lar, seja o patrão ou o funcionário, sejam as pessoas com quem se divide a casa ou aquelas em cuja casa se habita, sejam sogros, pais ou filhos, seja a esposa ou o marido — alguém está dificultado sua vida mais do que o necessário nestes últimos dias. Nós não costumamos mencionar estas dificuldades (especialmente as domésticas) para estranhos. Porém, às vezes fazemos isso. Um colega nos pergunta por que estamos tão mal-humorados, e a verdade se revela.

Nessas ocasiões, o colega geralmente diz: “Mas por que você não conversa com ela? Por que você não se abre com sua esposa (ou seu marido, ou seu pai, ou sua filha, ou seu chefe, ou seu proprietário do imóvel ou seu inquilino)? As pessoas costumam ser razoáveis. Você só precisa fazer com que elas enxerguem as coisas sob o ângulo certo. Explique de uma maneira sensata, tranquila, amigável.” E nós, independentemente do que respondamos, lá no fundo pensamos com tristeza: “É porque ele não conhece fulano.” Nós conhecemos. Nós sabemos como é absolutamente impossível fazer com que ele dê lugar à razão. Nós já tentamos até cansar; ou, então, nunca tentamos por estar cientes, desde o início, de que seria em vão. Sabemos que, se procurarmos “nos abrir com fulano”, uma das seguintes coisas acontecerá: ou haverá “drama”; ou fulano nos olhará com completo espanto e dirá: “Não faço a mínima ideia do que você está falando”; ou (o que talvez seja a pior alternativa) fulano concordará conosco e prometerá mudar de atitude — porém, no dia seguinte, será exatamente o mesmo de antes.

Você sabe que qualquer tentativa de conversar com essa pessoa será frustrada pela antiga e fatal falha existente no caráter dela. Além disso, ao olhar para trás, você se lembra de como todos os seus planos sempre foram frustrados por essa falha fatal — pelo incurável ciúme, ou pela preguiça, ou pelo melindre, ou pela confusão, ou pelo autoritarismo, ou pela irritabilidade, ou pela inconstância de fulano. Até certa idade, você talvez tenha nutrido a ilusão de que alguma felicidade externa — uma melhoria na saúde, um aumento no salário, o fim da guerra — resolveria sua dificuldade. Mas agora você sabe que não é assim. A guerra acabou, e você percebe que, mesmo se as outras coisas acontecessem, fulano ainda seria fulano, e você continuaria enfrentando o mesmo problema de sempre. Mesmo se ficasse milionário, seu marido continuaria sendo opressor, sua esposa continuaria sendo implicante, seu filho continuaria bebendo ou sua sogra continuaria morando com você.

É um grande passo entender que é assim que as coisas funcionam e enfrentar o fato de que, mesmo se todos os fatores externos contribuíssem, a verdadeira felicidade ainda dependeria do caráter das pessoas com quem temos de viver — e não podemos modificar o caráter delas. Agora vem a questão. Ao passar por isso, temos, pela primeira vez, um vislumbre de como deve ser para Deus. Afinal, naturalmente, é a este tipo de coisa (de certa forma) que o próprio Deus se opõe. Ele providenciou um mundo belo e abundante para as pessoas viverem. Ele lhes deu inteligência para entender como este mundo pode ser usado e consciência para saber como ele deve ser usado. Deus idealizou as coisas de que as pessoas necessitam para a vida biológica (comida, bebida, descanso, sono, exercício) de modo a serem prazerosas. E, após tudo isso, vê todos os seus planos sendo arruinados — assim como nossos pequenos planos são arruinados — pela perversão delas. Tudo aquilo que ele lhes deu para que fossem felizes é transformado em ocasião para brigas, ciúmes, excessos, acúmulos e idiotices.

Talvez você diga que a situação é muito diferente para Deus, pois Ele poderia, se quisesse, alterar o caráter das pessoas, ao passo que nós não temos este poder. No entanto, esta diferença não é tão profunda quanto poderíamos imaginar a princípio. Deus estabeleceu como regra para si que não modificaria o caráter das pessoas à força. Ele pode fazer isso e o fará somente se elas o permitirem, verdadeiramente limitando, deste modo, seu poder. Às vezes, nós nos perguntamos por que Ele fez isso ou até mesmo gostaríamos que ele não o tivesse feito. Mas, ao que tudo indica, Ele acha que vale a pena. Ele prefere ter um mundo de seres livres, com todos os riscos que isto implica, a um mundo de pessoas que agem corretamente como máquinas pelo simples motivo de serem incapazes de agir de outra maneira. Quanto mais conseguimos imaginar como seria um mundo de seres automáticos perfeitos, mais, creio eu, enxergamos a sabedoria dele.

Eu afirmei que, quando todos os nossos planos são arruinados pelo caráter das pessoas com as quais temos de lidar, estamos, “em certo sentido”, vendo como esta situação deve ser para Deus. Mas apenas em certo sentido. Há dois aspectos em que o ponto de vista de Deus é muito diferente do nosso. Em primeiro lugar, Ele vê (como você) que todas as pessoas em sua casa ou no seu trabalho são, em graus variados, inadequadas ou difíceis; mas, ao olhar para essa mesma casa, essa mesma fábrica ou esse mesmo escritório, Ele vê mais uma pessoa com o mesmo problema — uma pessoa que você mesmo não vê. Refiro-me, é claro, a você mesmo. Este é o grande passo seguinte na sabedoria: perceber que você também é exatamente esse tipo de gente. Você também tem uma falha fatal em seu caráter. Todas as esperanças e planos dos demais foram frustrados repetidas vezes pelo seu caráter, assim como suas esperanças e planos foram arruinados pelo caráter deles.

Não é bom, de modo algum, minimizar essa realidade com uma confissão geral e vaga, do tipo: “É claro, eu sei que tenho falhas.” É importante perceber que há uma falha realmente fatal em você, algo que provoca nos demais o mesmo sentimento de desespero gerado pelas falhas deles. E ela é quase certamente algo que você desconhece — assim como aquilo que os anúncios chamam de “halitose”: todos notam, menos o próprio indivíduo. Mas por que, talvez você me pergunte, os outros não lhe contaram? Acredite em mim: eles tentaram contar muitas vezes, mas você não conseguiu “aceitar”. Talvez uma boa medida daquilo que você chama de “implicância”, “mau humor” ou “estranheza” da parte deles seja apenas tentativas de fazê-lo ver a verdade. Além disso, você não conhece a fundo nem mesmo as falhas de que já tem consciência. Você diz: “Admito que perdi a cabeça ontem à noite”, mas os outros sabem que você sempre faz isso; que é, de modo geral, alguém mal-humorado. Você diz: “Admito que bebi muito sábado passado”, mas todos os demais sabem que você é um bêbado habitual.

Esse é um aspecto em que o ponto de vista de Deus difere do meu. Ele vê o caráter de todos; eu vejo o de todos, exceto o meu. Porém, a segunda diferença é esta: Ele ama as pessoas apesar de suas falhas. Ele não deixa de amá-las. Ele não as abandona. E não venha me dizer: “Para Ele é fácil, pois não tem de conviver com elas.” Ele tem, sim. Ele está tanto dentro quanto fora delas. Ele está com elas de modo muito mais íntimo, próximo e incessante do que jamais poderemos estar. Cada pensamento vil na mente das pessoas (e na nossa), cada momento de maldade, inveja, arrogância, ganância e presunção confrontam seu amor paciente e intenso e entristecem seu espírito mais do que o nosso.

Quanto mais pudermos imitar Deus em ambos esses aspectos, mais progresso faremos. Devemos amar mais o indivíduo que nos causa problema e aprender a olhar para nós mesmos como pessoas exatamente iguais. Alguns consideram mórbida a atitude de estar sempre pensando nas próprias falhas. Isso seria bem verdade se a maioria de nós conseguisse parar de pensar nas próprias falhas sem imediatamente começar a pensar nas falhas dos outros. Infelizmente, gostamos de pensar nas falhas dos outros; e, no sentido apropriado da palavra “mórbido”, este é o prazer mais mórbido do mundo.

Nós não gostamos de receber limites, mas sugiro uma forma de limite que deveríamos impor a nós mesmos: devemos abster-nos de pensar sobre as falhas dos outros, a menos que nossos deveres como professor ou pai tornem necessário fazê-lo. Sempre que esses pensamentos impróprios surgirem, por que não simplesmente afastá-los e pensar, em vez disso, em nossas próprias falhas? Afinal, neste caso, com a ajuda de Deus, é possível fazer algo. De todas as pessoas inadequadas em sua casa ou em seu trabalho, existe apenas uma que você pode melhorar muito. Esse é o fim prático do qual devemos partir. E é melhor que o façamos. Teremos de lidar com isso algum dia e, quanto mais adiarmos a tarefa, mas difícil será começar.

Qual é a alternativa, afinal? Vemos com clareza que nada, nem mesmo Deus com todo o seu poder, pode fazer alguém realmente feliz enquanto o indivíduo continuar sendo invejoso, egoísta e maldoso. Tenha certeza de que há algo dentro de nós que, a menos que seja alterado, é capaz de tirar do alcance de Deus o poder de evitar que sejamos eternamente infelizes. Enquanto este algo permanecer aqui, não poderá haver céu para nós, da mesma maneira que não pode haver bons aromas para alguém resfriado nem música para o surdo. Não é uma questão de Deus nos “mandar” para o inferno. Em cada um de nós, há algo crescendo que, em si mesmo, será o inferno a menos que seja arrancado pela raiz. O assunto é sério. Coloquemo-nos nas mãos dele de uma vez por todas — hoje mesmo, agora mesmo.


Extraído de God in the Dock: Essays on Theology and Ethics (Cap. 18). William B. Eerdmans Publishing Company, EUA,1970 (em português: Deus no Banco dos Réus. Vida Melhor Editora S.A., RJ, Brasil, 2018.)

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