O batismo — quem o torna válido?

O historiador Johnson observou que no período pós-apostólico ocorreu que, junto com a Bíblia, “os sacramentos… perdiam seu significado se administrados fora da Igreja.” Um “sacramento” fundamental era o do batismo.

Inicialmente, entre os Estudantes da Bíblia do tempo de Russell, não havia qualquer problema por alguém ter sido batizado enquanto filiado com uma das várias denominações cristãs. A única questão era quanto a se a pessoa entendera o significado do batismo e se este tinha sido por imersão.1 Isso continuou assim por mais sete décadas. Em época mais recente, A Sentinela (em inglês) de 1° de julho de 1955 (página 412) afirmou que só seria necessário novo batismo se “o batismo anterior não tivesse sido em símbolo de dedicação”, ou se não tivesse sido por imersão.

Um ano depois, em A Sentinela de 1° de janeiro de 1957, a posição foi revertida. Ela dizia (pág. 12):

BATIZADO PELA SEGUNDA VEZ

Muitas vêzes se faz a pergunta se a pessoa, já batizada numa cerimônia realizada por algum outro grupo religioso, deve ser batizada novamente, ao chegar ao conhecimento acurado da verdade e fazer sua dedicação a Jeová. Por causa daquilo que já dissemos, existe agora razão impelente para também dizermos: Sim, a pessoa precisa ser batizada novamente. É óbvio que, por quaisquer de tais sistemas religiosos, a pessoa, em realidade, nunca foi batizada “em o nome do Pai, e do Filho, e do espírito santo”, porque se tivesse sido batizada assim, teria apreciado a autoridade e o cargo de tais verdadeiras Autoridades Superiores. E, se anteriormente se tivesse dedicada a Jeová, a pessoa se teria separado de tais sistemas babilônicos que desonram a Deus, antes de permitir que a batizassem. De modo que o ato de ser batizado não é a coisa importante, mas, antes, aquilo que o ato simboliza é o elemento de importância.

Porém, uns seis meses depois,  apareceu uma “Pergunta dos Leitores” que especificava as condições para rejeitar como inválidos todos os batismos “fora da organização” — mesmo que tivesse sido por imersão. Agora se dizia que a data limite para a possível validade de tais batismos era o ano de 1918. Por quê? Porque “desde 1918 E. C. … Jeová Deus, acompanhado do Mensageiro do Pacto, veio ao templo e rejeitou a cristandade.” [Veja A Sentinela de 1° de novembro de 1957, pág. 290.] Se a pessoa tivesse sido imersa em símbolo de dedicação a Deus e a Cristo antes dessa data, e tivesse também deixado sua anterior denominação e se filiado à organização Torre de Vigia antes de 1918, ficava a cargo da consciência da pessoa decidir se um novo batismo era necessário ou não. Para todos os outros a posição firme era:

Portanto, agora que a chamada para sair da Babilônia está sendo claramente feita, se alguém tiver ouvido tal chamada e, apesar disso, ainda permanecer numa parte religiosa da Babilônia antitípica e fôr imerso em tais grupos religiosos, sua imersão não é válida. Sua decisão “não pode ter sido uma dedicação de fazer a vontade de Deus, porque, citando-se o parágrafo 14, “a pessoa se teria separado de tais sistemas babilônicos que desonram a Deus, antes de permitir que a batizassem.” 

A pessoa tinha de se rebatizar. O assunto foi resolvido definitivamente porque as palavras do “parágrafo 14” de A Sentinela resolveram assim. Aparentemente, não havia necessidade de evidência bíblica. No período pós-apostólico, o batismo “perdia seu significado se praticado fora da Igreja”, isto é, fora dos domínios da autoridade religiosa. A mesma posição era agora assumida pela organização das Testemunhas de Jeová com relação a qualquer batismo não realizado dentro de seus domínios.

Lá em 1955 A Sentinela (em inglês) tinha dito:

Um cristão… não pode ser batizado em nome da pessoa que está fazendo a imersão, nem em nome de qualquer homem, nem em nome de qualquer organização, mas em nome do Pai, do Filho e do espírito santo. Isto mostra, entre outras coisas, que o cristianismo não é uma questão denominacional… 3

Nos discursos feitos antes da cerimônia de batismo, era costume o orador lembrar aos batizandos que “vocês não estão simbolizando a dedicação a uma obra, ou a dedicação a uma organização, mas sua dedicação a uma pessoa — Jeová Deus”.4 Algo parecido dizia A Sentinela de 1° de junho de 1967 (página 340):

Não nos dedicamos a uma religião, nem a um homem, nem a uma organização. Não, dedicamo-nos ao Soberano Supremo do Universo, o nosso Criador, o próprio Jeová Deus. Isto torna a dedicação uma relação muito pessoal entre nós e Jeová….

Em 1942, as duas perguntas feitas aos batizandos eram estas:

(1) Crê em Jeová Deus, o Pai, que “a salvação pertence a Jeová”, e que Cristo Jesus é seu Filho, em cujo sangue os pecados são lavados, e por meio de quem lhe vem a salvação de Deus?

(2) Confessou, portanto, seus pecados a Deus, pedindo-lhe a purificação por Cristo Jesus, e afastou-se, portanto, do pecado e do mundo, consagrando-se sem reservas a Deus, para fazer sua vontade?5

Essencialmente, estas perguntas estavam próximas em conteúdo das declarações de Pedro e de outros do período apostólico, quando conclamavam as pessoas: “Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para remissão dos vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo.”6

Em 1956 e (com pequenas variações) por muitos anos depois disso as perguntas apresentadas no batismo das Testemunhas de Jeová eram estas:

(1) Reconheceu-se, perante Jeová, como pecador que necessita de salvação, e reconheceu perante Êle que esta salvação procede Dêle, o Pai, por intermédio do seu Filho, Cristo Jesus?

(2) À base desta fé em Deus e na sua provisão de salvação, dedicou-se a Deus, sem reserva, para fazer doravante a sua vontade conforme lhe é revelada por êle, mediante Cristo Jesus e por intermédio da Bíblia, sob a iluminação do espírito santo?7

Sem qualquer explicação bíblica que justificasse uma mudança importante nestas perguntas básicas, que as pessoas devem responder de modo afirmativo para habilitar-se ao batismo, A Sentinela de 1º de junho de 1985 (página 31) alistou estas como as perguntas a serem respondidas por todos os candidatos ao batismo:

A primeira pergunta é:

À base do sacrifício de Jesus Cristo, arrependeu-se dos seus pecados e dedicou-se a Jeová para fazer a vontade dele?

A segunda é:

Compreende que a sua dedicação e o seu batismo o identificam como uma das Testemunhas de Jeová, em associação com a organização de Deus, dirigida pelo espírito dele?

Respondendo com um sim a estas perguntas, os batizandos estão na condição correta de coração para se submeterem ao batismo cristão. 

A Sentinela de 15 de abril de 1987 (página 12) dá esta estranha explicação do motivo desta mudança, dizendo: “Recentemente, as duas perguntas feitas aos batizandos foram simplificadas, para que esses batizandos possam responder com plena compreensão do que está envolvido em entrar numa relação íntima com Deus e sua organização terrestre.” Esta suposta “simplificação” só fez uma coisa: exigir de cada batizando uma declaração de submissão e obrigação a uma organização terrestre. Quando lemos as Escrituras Cristãs vemos que o fator crucial para validar o batismo era que, em todos os casos, os que davam esse passo “cressem no Senhor Jesus” como o Messias de Deus, seu Redentor capaz de salvá-los.8 Eles eram “batizados em Cristo Jesus”.9 Isto era bastante “simples” para que as pessoas pudessem compreendê-lo, e de fato o compreendiam num só dia, em poucas horas. Não há nada de apostólico no palavreado “carregado” do assunto, pois os apóstolos jamais expuseram a idéia de uma “organização terrestre”, a qual, como claramente demonstramos, refere-se a nada mais que uma estrutura de autoridade humana.

Cristo tinha dito aos seus discípulos para batizarem pessoas “em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo”.10 A segunda pergunta do batismo da organização das Testemunhas de Jeová na verdade substitui o Espírito santo de Deus pela “organização dirigida pelo espírito”. Enquanto o Espírito  recebe menção simbólica, encontramos mais uma vez a situação em que a organização se apropria de uma função divinamente designada. Ela passa claramente a ideia de que o Espírito santo de Deus não opera na pessoa que se batiza senão em conexão com a organização Torre de Vigia. Não destaca o fato de que a pessoa que é batizada será daí em diante dirigida pelo Espírito de Deus, mas ressalta, em vez disso, a “organização dirigida pelo espírito”. Parece incrível que a revista A Sentinela chame isso de “simplificação” das perguntas que eram feitas anteriormente. Fala de “uma relação íntima com Deus”, mas torna isso sem sentido quando envolve a organização terrestre no assunto, criando não uma relação com Deus, mas uma relação íntima “com Deus e sua organização terrestre”. Enquanto Jesus falou apenas sobre o “Pai, o Filho e o Espírito Santo”, a organização ousa colocar-se neste quadro sagrado, como parte indispensável dele. Isto equivale a um servo dizer às pessoas que elas podem manter contato e relacionamento com o amo desde que o servo sempre esteja presente também, atuando como intermediário, portavoz, gerente, intérprete das decisões. Essa atitude só pode ser chamada de arrogante.

Por 19 séculos as pessoas foram batizadas sem que o batismo delas fosse antecedido por tais palavras. Por mais de cem anos os associados com a Torre de Vigia foram batizados sem essas palavras. Será que as pessoas não entenderam corretamente o que representava o batismo delas? Por que, depois de mais de 100 anos, tornava-se agora necessária esta “simplificação” para que as pessoas tenham “plena compreensão” do significado do batismo delas?

Creio que a alteração de 1985 demonstra a preocupação de que as pessoas reconheçam seus vínculos formais com a organização, seu compromisso com ela como uma autoridade religiosa acima delas, e portanto, a aceitação implícita de que ela os governa, bem como o direito dela de designar “tribunais eclesiásticos para “julgar” os que ela achar que violaram suas regras e normas.

Depois da década de 1980, um bom número de pessoas simplesmente deixou de associar-se com a organização das Testemunhas sem fazer qualquer comunicado formal de dissociação. Embora continuassem a viver em boa moral, se posteriormente dissessem ou fizessem alguma coisa que manifestasse não estarem de pleno acordo com algum ou todos os ensinos e normas da organização, seriam facilmente abordadas pelos anciãos, interrogadas, e muitas vezes intimadas a uma “audiência judicativa”. Alguns declararam que não viam razão para comparecer a essa audiência, que não se consideravam sujeitos à autoridade eclesiástica da organização. Alguns até providenciaram que um advogado enviasse uma carta ao corpo de anciãos declarando sua posição e solicitando que não fossem submetidos a mais investigações, interrogatórios ou intimações. Praticamente em todos estes casos, o departamento jurídico da Sociedade Torre de Vigia despachou para a pessoa (ou para o advogado, se houvesse) um volumoso pacote na forma de súmula legal, apresentando farta evidência do êxito obtido pela organização nos tribunais em casos relacionados, e citando numerosos processos em apoio ao seu direito de atuar como governo “religioso” e “tribunal eclesiástico” em relação aos batizados pelas Testemunhas. Em essência, a matéria diz que a pessoa ou pessoas envolvidas têm apenas duas alternativas: comparecer à “audiência judicativa” ou se dissociar formalmente. Como exemplo, a matéria cita uma decisão da Suprema Corte dos EUA, a qual, entre outras coisas, diz:

O direito de organizar associações religiosas voluntárias, em apoio à expressão e disseminação de qualquer doutrina religiosa, e de criar tribunais para atuar em decisões quanto a questões controvertidas de fé, dentro da associação, e para exercer o governo eclesiástico de todos os membros individualmente, congregações e funcionários dentro da associação geral, é indisputável. Todos os que aderem a tal corpo o fazem com a aceitação implícita deste governo, e são obrigados a submeter-se a ele.

O “direito” mencionado é o direito legal que tem um “governo eclesiástico” de atuar da maneira descrita. Dessa forma, a súmula enviada pelo advogado da Sociedade Torre de Vigia enfatiza o fator “legal” quando resume o assunto deste modo:  

Tradução:

C. Relação entre a congregação e seus membros. É axiomático que a essência do relacionamento de uma sociedade religiosa com seus membros é considerado, pelos tribunais, como sendo o acordo entre as partes e, de modo geral, uma profissão de fé, a adesão à doutrina da sociedade religiosa e a submissão a seu governo. (76 C.J.S. 755, seção 11) Tendo uma das partes voluntariamente consentido em tornar-se membro de uma congregação, sujeita-se ela, por este meio, às normas e procedimentos existentes na referida congregação e não pode negar-lhes a existência. Todos os que por si próprios se filiam a tal organização religiosa de modo voluntário, fazem isso com o reconhecimento implícito desse governo e estão obrigados a submeter-se a este. Ex rel. do Estado, Morrow v. Hill, 364 N.E. 2° 1156 (Ohio 1977), Watson v. Jones, 80 E.U. 679, 729 (1872), 13 Wallace 679.

Uma vez que seus clientes não se dissociaram da congregação, então, em virtude da lei, deram seu reconhecimento implícito à direção desta, sujeitando-se às normas e aos procedimentos existentes e estão legalmente obrigados a submeterse a ela. O governo teocrático da congregação ao qual seus clientes se submeteram inclui especificamente o Corpo Governante das Testemunhas de Jeová, sua agência legal, conhecida como Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados de Nova York, Inc., e todos os seus representantes devidamente designados, inclusive os anciãos da congregação com a qual estão associados. As normas e os procedimentos aos quais seus clientes se submeteram incluem o arranjo das comissões judicativas conforme detalhado acima.

Ao objetar a serem investigados e “julgados” pelos anciãos, alguns dos que se afastaram argumentaram que no período pré-1985, quando foram batizados, eles ‘se dedicaram a Deus e não a uma organização’. As perguntas modificadas agora dizem claramente ao batizando que ele está se comprometendo numa “dedicação e batismo” que ‘o identificam como uma Testemunha de Jeová, em associação com a organização de Deus, dirigida pelo espírito dele.’ Isto garante, sem dúvida, que lhe foi cassado qualquer direito “legal” de dizer que não está sujeito ao governo da organização e a seus tribunais eclesiásticos. Pelo menos para o departamento jurídico da organização isto, sem dúvida, “simplifica” as coisas. É uma triste evidência da preocupação com a autoridade, que uma organização religiosa se aproveite do passo sagrado e tão pessoal do batismo como ocasião para garantir sua autoridade sobre a vida da pessoa que se batizou.

NOTAS

1 – Recordo de meu tio, Fred Franz, quando já vice-presidente da Torre de Vigia, comentar comigo que, se o batismo dele na Igreja Presbiteriana tivesse sido por imersão (em vez de aspersão) ele o teria considerado ainda válido.

2 – A Sentinela de 1° de novembro de 1957, pág. 291.

3 – A Sentinela (em inglês) de 1° de julho de 1955, página 411.

4 – Lembro que este ponto era até incluído nos esboços fornecidos pela organização aos oradores que proferiam os discursos de batismo.

5 – A Sentinela (em inglês), de 1° de outubro de 1942, página 302.

6 – Atos 2:38, ARA; 1 Pedro 3:21, 22.

7 – A Sentinela de 1º de janeiro de 1957, páginas 12 e 13.

8 – Atos 16:31-33; veja também Atos 2:36; 8:5, 12, 27-38; 9:1-20; 10:34-48; 11:16, 17; 18:8; 19:3-5.

9 – Romanos 6:3; Gálatas 3:27.

10 – Mateus 28:19, ARA.

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Imagem em destaque: Apostila Nossa Vida e Ministério Cristão, agosto de 2016 (Christian Congregation of Jehovah’s Witnesses – EUA), pág. 2

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