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A “Vida Após a Morte” no Conceito Bíblico – Parte 5

Smith, Ralph L. Old Testament Theology: Its History, Method, and Message. Broadman & Holman Publishers, Nashville, TN, EUA, 1993. (Em português: Teologia do Antigo Testamento, Edições Vida Nova, São Paulo, SP, Brasil, 2001)

Os estudiosos com freqüência contrastam a perspectiva hebraica com a perspectiva grega que entende a natureza humana como uma dicotomia (corpo/alma, espírito/carne) ou tricotomia (corpo/alma/espírito), com as várias partes opostas uma à outra. A perspectiva grega na verdade é de Platão, de que o ser humano é composto de duas partes: a razão, que é a parte imortal, e a sensualidade, que é mortal. A vontade, energia ou coragem é a combinação das duas partes e constitui a alma. Entre as duas está o lado ativo da natureza humana, que Platão chama “espírito”. O espírito, em si mesmo, não é mau, como os sentidos e apetites. Entretanto, o espírito como tal não é inteligente e está sujeito à paixão cega. Ele se encontra em um nível inferior ao da razão, apesar de estar a serviço da mente para ajudar a domar os desejos da natureza inferior…

A perspectiva de Aristóteles era diferente da de Platão. Ele ensinava que a alma era o princípio vital do corpo e que nem um nem outro podiam existir sem o outro. O corpo só existe e vive para a alma, e a alma é real apenas à medida que anima algo. De acordo com Aristóteles, “é tão impossível sentir, desejar, querer sem os órgãos do corpo como é andar sem pés ou fazer uma estátua do nada”. Aristóteles dizia que a alma é para o corpo o que cortar é para o machado. Assim como é impossível cortar sem um machado, a função constitutiva da alma é inseparável do corpo, Dessa forma, a perspectiva “grega” do ser humano que separa e opõe os vários aspectos da natureza humana na verdade é a de Platão. A perspectiva do Antigo Testamento é radicalmente distinta

Existe vida após a morte? Desde tempos imemoriais as pessoas têm enterrado seus mortos de maneiras que indicam sua crença na continuação da existência após a morte. Muitos filósofos têm apoiado a ideia de um desejo universal da extensão da vida do além-túmulo. Immanuel Kant disse que essa esperança “nasce do sentimento, que existe no peito de todo ser humano, de que o que é temporal é inadequado para atender e satisfazer as exigências da sua natureza”.

Platão argumentou em favor da imortalidade da alma com base em que a verdadeira essência da alma era o espírito perceptivo da pessoa. O espírito humano seria parte dos arquétipos ou conceitos gerais eternos das coisas. Esses conceitos gerais são imperecíveis. Se o espírito ou alma das pessoas é parte desses conceitos, a alma deve ser imperecível. Platão fazia distinção entre alma e corpo. Pannenberg disse que a antropologia moderna retirou esse conceito comum de que alma e corpo representam duas esferas completamente diferentes da realidade…

O Antigo Testamento não faz uma apresentação sistemática ou organizada da vida após a morte. E preciso reunir partes e pedaços ou lampejos da verdade sobre esse assunto de vários pontos do Antigo Testamento e estudá-las juntas. De forma alguma os estudiosos e leitores do Antigo Testamento concordam quanto à interpretação de muitas passagens que podem estar relacionadas com a vida após a morte.

Em termos gerais, concorda-se em que a “doutrina” da vida após a morte desenvolveu-se muito lentamente no Antigo Testamento. F. B. Huey disse: “O desenvolvimento histórico da doutrina da vida após a morte pode ser explicado pelo fato de que a doutrina da ressurreição do corpo, o pináculo da fé, só foi delineada plenamente na época do Novo Testamento. Israel teve de desvencilhar-se dos acréscimos pagãos para chegar à doutrina da ressurreição, processo que levou muitos anos”.

Várias razões podem explicar a lentidão de Israel para desenvolver uma doutrina da vida após a morte. Ideias sobre morte e vida futura tinham um papel importante nas religiões dos vizinhos pagãos de Israel: egípcios, cananeus e babilônios. As ideias deles sobre morte e vida futura eram erradas e enganosas. Eles faziam da morte um deus e divinizavam algumas pessoas quando morriam. O culto aos mortos tinha grande influência na vida de muitos povos no antigo Oriente Próximo, e a ideia de um deus que morre e ressuscita estava ligada intimamente ao culto da fertilidade com sua glorificação do sexo. Consultar os mortos era proibido em Israel (Lv 19.31; 20.6, 27; Dt 18.10; 2Rs 21.6; 23.24). Todo o âmbito da morte era impuro no Antigo Testamento (Lv 11.24; Nm 19.11).

A lentidão de Israel em desenvolver um conceito satisfatório da vida após a morte pode-se explicar pela forte ênfase na “personalidade coletiva” em vez de no “individualismo puro”, no conceito unitário da humanidade em vez da dicotomia de corpo e alma, ou na importância dada à vida aqui e agora e não na vida do além.

Bruce Vawter observou que, por excluir a necromancia e a superstição e desencorajar a consulta aos mortos, Israel viu-se levado a analisar o sentido da existência terrena em uma profundidade e grau aparentemente sem paralelo no pensamento dos seus contemporâneos. A literatura de sabedoria de Israel destaca uma moralidade elevada, um materialismo sadio e reverência pela dignidade do corpo. Sem uma ênfase forte “neste mundo”, é improvável que a doutrina profética da justiça social tivesse sido forte. “Quando se dá tanto valor á vida, é inevitável que se considere a vida longa a maior das bênçãos (SI 21,4)”.

Onde começa a ideia da vida após a morte no Antigo Testamento? Alguns escritores consideram as referências à “árvore da vida” e à “árvore do conhecimento do bem e do mal” (Gn 2.46-3.24) evidências de uma ideia de vida após a morte. Mas nelas certamente não há referência alguma à ressurreição. Em vez de referir-se à vida após a morte, as árvores no jardim do Éden podem representar uma maneira de evitar a morte. O “traslado” de Enoque em Gênesis 5.24 teve grande influência sobre passagens posteriores do Antigo Testamento; contudo, não se pode basear uma doutrina geral da vida após a morte no arrebatamento de Enoque. Mais uma vez, não há referência alguma à ressurreição aqui. Quando Davi disse que, ao morrer, iria estar com seu filho falecido (2Sm 12.23), pode ter dito não mais do que já se dissera sobre “reunir-se aos pais” no túmulo ou no Sheol (Gn 25.8, 17; 35.29; 49.33; Nm 20.24; 27.13; Jz 2.10)…

O Antigo Testamento relata três casos de ressuscitação. Os primeiros dois são dos filhos das viúvas, ressuscitados por Elias e Eliseu, e o terceiro foi de um homem não identificado cujo corpo fora jogado no túmulo de Eliseu, onde entrou em contato com o corpo deste (1Rs 17.17; 2Rs 4.29; 13.21). Até onde sabemos, todas essas pessoas morreram de novo.

Muitos estudiosos fazem do exílio na Babilônia uma linha divisória entre conceitos religiosos mais antigos e mais avançados no Antigo Testamento. O colapso da nação mudou a ênfase em Judá da nação para o indivíduo. Questões de sofrimento e justiça se tomaram mais prementes. O que antes fora um brilho esporádico na escuridão, ou uma esperança na vida após a morte expressa momentaneamente, havia-se tomado “a convicção inabalável de que, o que fosse que acontecesse ao justo nesta vida, a coisa que lhe era mais importante, sua comunhão com Deus, jamais lhe seria tirada, nem nesta vida nem na vida futura”…

Apesar de esses e outros salmos (veja 16.10, 11) parecerem prever a possibilidade de o justo passar a eternidade no céu na presença do Senhor, essa perspectiva “do outro mundo” nunca tomou o lugar do pensamento de que o futuro estava relacionado à vida na terra. Eichrodt disse: “No Antigo Testamento, o aspecto fundamental da esperança de que a história traria a consumação da soberania de Deus e o estabelecimento do seu reino sobre Israel, não foi substituído por um deus de salvação no outro mundo para o indivíduo justo, desvinculado de qualquer relação com as coisas da terra”.

Wheeler Robinson disse que temos de procurar em outro lugar e não no Sheol a possibilidade de avanço real no conceito do destino humano. A nova esperança brota da crença na continuação da vida na terra, “não debaixo dela, nem mesmo acima dela”. G. A. Cooke, em seu comentário de Ezequiel 37 e 47.1-12, disse: “De acordo com as ideias do Antigo Testamento sobre um futuro abençoado, o ser humano não é trasladado para morar com Deus, mas Deus vem morar com ele, e sua presença transforma tudo em céu“…

No Antigo Testamento, a palavra definitiva sobre a vida após a morte é “ressurreição”. O termo técnico traduzido por ressurreição, tehiyat hammetim, não ocorre no hebraico bíblico, mas é atestado quatro vezes na Mishná e 41 no Talmude. Ele é bastante comum na literatura hebraica do período intermediário e consta de todos os dicionários de hebraico moderno. Apesar de “ressurreição” não se encontrar no Antigo Testamento, a ideia é expressa com o uso de oito verbos: hãyi (“viver”), qüm (“surgir”), heqis (“despertar”), lãqah (“tomar”), ‘ãlâ (“subir”), süb (“voltar”), ‘ãmad (“ficar de pé”) e ne‘or (“levantar”)…

Quase 20 passagens do Antigo Testamento podem ter relação com a ressurreição, na forma fmal do texto (Dt 32.39; 1Sm 2.6; 1Rs 17.22; Jó 14.12; 19.25-27; Sl 1.6; 16.10; 17.15; 49.15; 71.20; 73.24; 88.10; Is 26.14, 19; 53.11; 66.24; Ez 37.10; Dn 12.2; Os 6.2). Essas passagens não provam uma crença antiga na ressurreição em Israel, segundo Sawyer, mas uma teologia do Antigo Testamento baseada na forma final do texto teria de incluir uma seção substancial sobre o assunto. Essas passagens não são apenas vagas antecipações do Novo Testamento, mas “expressões claras da fé no poder de Deus, que pode criar do pó e da decadência do túmulo uma nova raça humana, onde a vida reta não termina em sofrimento e a justiça prevalece“.

– págs. 251, 252, 368-370, 374-376 (da edição em português).

New Testament Theology [A Teologia do Novo Testamento], George Bradford Caird e L. D. Hurst (editor), 1994:

Depois de sua conversão, Paulo aceitou o relato da Igreja primitiva sobre o que havia acontecido com Jesus no Domingo de Páscoa e rapidamente incorporou isso à estrutura de sua teologia. Ele acreditava que quando Cristo deixou o túmulo, o corpo físico dele foi transformado em um corpo espiritual ou glorioso (Filipenses 3:21), assim como uma semente plantada no solo morre e recebe um corpo novo (1 Cor 15:36-38). Assim também o cristão deve passar por uma transformação futura. Em 1 Coríntios, isto é vislumbrado como ocorrendo de repente, “num momento, num abrir e fechar de olhos” (1 Cor. 15:52). Um quadro ligeiramente diferente do processo surge na segunda carta, onde Paulo assegura aos seus leitores que a vida cristã é uma transfiguração constante na semelhança de Cristo. Esta metamorfose prossegue através de uma renovação diária da natureza interior, ainda que a aparência exterior esteja em declínio (2 Cor. 4:16). Alguns intérpretes modernos ficariam mais felizes se, nesse momento, Paulo tivesse afirmado que a casca externa é liberada e deixa o eu interior desimpedido da fraqueza dela. Mas o judeu não acreditava que os seres humanos consistem de uma alma imortal sepultada por algum tempo num corpo mortal. O que acontecia com o corpo acontecia com a pessoa. Se existe a vida eterna, então este humilde corpo de humilhação deve ser mudado como foi o de Cristo.

– pág. 267.

Enciclopédia Mirador (Encyclopaedia Britannica do Brasil), edição impressa, 1994:

Do orfismo e do pitagorismo, herdou Platão, do ponto de vista religioso, o dualismo que o caracteriza. A alma pertence à esfera divina, ao mundo das Ideias e da Formas, confundindo-se com estas. É, portanto, eterna, imortal, indestrutível. “O corpo é a prisão da alma”, ensina Platão. A alma corresponde, assim, no platonismo antigo, a uma entidade oposta à existência corpórea, e a sua encarnação só pode vir a dar-se pela “queda”, Phaidros (Fédro).

No neoplatonismo, a alma é por natureza imortal, mesmo que tenha sido criada, isto é, não tenha tido preexistência desde a eternidade. Essa concepão dualista, característica do pensamento grego desde Homero, quando não se cogitava, ainda, de nenhuma distinção metafísica ou teológica, contrasta com a doutrina ensinada pelos profetas hebreus, como W. Robinson sintetizou: “a personalidade humana era um corpo animado e não uma alma encarnada.” A influência do platonismo sobre o pensamento cristão dos primeiros séculos, foi, porém, muito forte, e predominou sobre a influência hebraica, prevalecendo na teologia cristã ao longo dos tempos. A patrística foi quase totalmente dominada pela síntese platônica que, afinal, se tornou parte integrante da doutrina e prática, pregação e liturgia, bem como da hinologia cristãs.

… O pensamento bíblico não oferece nenhuma base para uma concepção tricotômica ou dicotômica do homem. Na Bíblia, a alma não corresponde a uma parte do ser humano, mas ao homem em sua manifestação de ser vivo, não no sentido biológico, simplesmente, porque a alma é a vida humana como vida individual de um sujeito consciente e voluntário (cf. Mt 10:28; 16:26; Lc 12:19, 20).

No esforço de redescobrir o verdadeiro e original sentido do vocabulário bíblico, principalmente a partir da extraordinária obra de Kittel, os exegetas e teólogos modernos têm sublinhado que, nas Escrituras, tanto do Antigo como do Novo Testamento, o homem é concebido como uma unidade de tal natureza que, dependendo do ponto de vista pelo qual é ele considerado, tanto pode ser chamado soma (corpo), como psyche (alma) ou sarx (carne) ou pneuma (espírito), sendo que nenhum desses termos se refere jamais a uma só parte do homem, mas a este como um todo.

Volume 2, pág. 404 (Verbete “Alma”).

No judaísmo antigo é incerta a condição dos mortos no sheol (lugar obscuro, caverna situada por debaixo dos oceanos, fechada por portas |Jó 10,21; 26,5; 38|). Primitivamente, pensava-se que os mortos permaneciam para sempre separados de Deus, incapazes de louvá-lo. Mais tarde, admite-se que Deus pode libertar do sheol os justos; a morte seria finalmente vencida. Nos últimos livros do Antigo Testamento esboça-se a doutrina do juízo final e da ressurreição dos mortos. Uma vasta literatura apocalíptica se desenvolve a partir do século I a.C. Os livros de Enoc, o quarto livro de Esdras, a Assunção de Moisés apresentam alguma teoria apocalíptica no meio de um emaranhado de elucubrações fantásticas que influenciaram a primitiva literatura cristã e o islamismo.

– Volume 8, pág. 4012 (Verbete “Escatologia”).

RESSURREIÇÃO

Conceituação. A ideia de ressurreição faz parte do patrimônio ideológico e cultural da humanidade. Deve ter provindo da reflexão humana diante da morte e da observação dos ciclos da natureza. As antigas religiões do Oriente Próximo são ricas em mitos de ressurreição (Átis, Tamuz, Osíris, etc.).

Judaísmo. Em que pese a popularidade antiga desse mito, parece que os israelitas somente em época bastante tardia (durante o exílio) começaram a se interessar por ele. Neste caso, a fé na ressurreição dos mortos não esteve diretamente ligada aos ciclos da natureza, mas à experiência religiosa do povo com um Deus todo-poderoso, doador de vida. Liga-se também às promessas feitas por Deus de restauração da liberdade do povo e da dádiva de uma vida eterna. É por isso que a expectativa não se irá restringir apenas à ressurreição de Davi (Ez 34, 23, 31), mas abrangerá todas as almas (Ez 37,1-14). Há, no entanto, certa reserva nos livros do Antigo Testamento, pelo menos até o aparecimento do movimento apocalíptico, quando as ideias de ressurreição se tornam exuberantes. Fala-se num juízo final com a pressuposição de que haveriam de voltar à vida tanto os bons como os ímpios. Foi nesse clima espiritual que surgiu o cristianismo.

– Volume 18, págs. 9824, 9825 (Verbete “Ressurreição”).

Alister E. McGrath (Ed.), The Blackwell Encyclopedia of Modern Christian Thought (Enciclopédia do Pensamento Cristão Moderno de Blackwell), Blackwell Publishing, Cambridge, Inglaterra, 1995:

Não há qualquer conceito de uma alma imortal no Antigo Testamento, nem o Novo Testamento alguma vez chama a alma humana de imortal.

– pág. 101.

Das Kommen GottesChristliche Eschatologie, Jürgen Moltmann,Gütersloher Verlagshaus Alemanha, 1995 (Em inglês: The Coming of God: Christian Eschatology, Fortress Press, Minneapolis, EUA, 1996. Em português: A Vinda de Deus: Escatologia CristãUnisinos, Rio Grande do Sul, Brasil, 2003):

A imortalidade da alma é uma opinião – a ressurreição dos mortos é uma esperança. A primeira é uma confiança em algo imortal no ser humano, a segunda uma confiança no Deus que chama à existência coisas que não existem, e faz os mortos viverem. Confiando na alma imortal, aceitamos a morte e, de certo modo, a antecipamos. Confiando no Deus criador da vida, esperamos pela superação da morte: “Engolida foi a morte pela vitória” (1 Co 15,54) e por uma vida eterna em que a “morte não mais existirá” (Ap 21,4). A alma imortal pode até saudar a morte como “amiga”, porque esta a redime do corpo terreno; para a esperança da ressurreiçãoa morte é “o último inimigo” (1 Co 15,26) do Deus vivo e das criaturas do seu amor.

– pág. 82.

What Do Jews Believe? – The Spiritual Foundations of Judaism [Em Que Creem os Judeus? – As Fundações Espirituais do Judaísmo], David S. Ariel, 1995:

“Na Torá não há qualquer ideia de corpo e alma como dois aspectos distintos e diferentes de um ser humano. Um homem ou uma mulher viva é visto como um ser orgânico unificado, descrito em hebraico como nefeshNefesh refere-se à vida humana em geral e ao caráter humano em particular. Segundo a Bíblia, o primeiro humano, Adão, foi criado como um ser vivo (nefesh chayah). Gênesis descreve a criação real de Adão como o ato singular de trazer tudo dele à existência de uma só vez: “E Jeová Deus passou a formar o homem do pó do solo e a soprar em suas narinas o fôlego da vida [nishmat chayim], e o homem veio a ser uma alma vivente.” (Gênesis 2:7) A palavra hebraica nefesh é também usada para se referir aos sentimentos e experiências humanas. Esta é a maneira como ela é usada no versículo “Você não deve oprimir um estrangeiro, pois você conhecer os sentimentos [nefesh] do estrangeiro” (Êxodo 23:9).

A Bíblia usa também o termo ruah (espírito) e neshamah (fôlego) para descrever a vida humana. Ruah refere-se ao espírito ou fôlego, o poder que vem de fora do corpo e causa a vida como sua manifestação visível. No livro de Jó, Deus é descrito como a fonte da vida e da vitalidade humana: “Em cuja [isto é, de Deus] mão está a vida [nefesh] de todo ser vivente, e o espírito [ruah] de toda a humanidade” (Jó 12:10). A Bíblia usa neshamah como um sinônimo para o organismo humano vivo: “E Jeová Deus passou a formar o homem do pó do solo e a soprar em suas narinas o fôlego de vida [nishmat chayim], e o homem veio a ser uma vida alma vivente.” (Gênesis 2:7)

Não há qualquer diferenciação, porém, entre o corpo, nefeshruah e neshamah na Bíblia. Todos eles referem-se à vida, respiração, sentimento humano sendo criados por Deus. O ser humano é um ser monista ou unificado consistindo de uma natureza integrada. Não há qualquer noção na Bíblia de algum dualismo ou dupla natureza – tal como corpo e alma – no ser humano. A Bíblia não contém qualquer menção de uma alma separada.

– págs. 53, 54.

The Doctrine of Humanity [A Doutrina da Humanidade], Charles Sherlock (Downers Grove, Illinois, EUA: Intervarsity Press, 1996):

… O vocabulário aqui [em 1 Tessalonicenses 5:23] é certamente ‘tripartido’ – corpo, alma, espírito – mas a ênfase está na santificação da pessoa inteira, e isso na futura vinda de Cristo. No pensamento popular, o ponto em que se faz uma distinção nítida entre corpo e alma é a afirmação de que o corpo não sobrevive à morte, e as pessoas sentem que algo mais deve fazê-lo. O texto…  ensina que todo aspecto do ser humano deve ser preservado para a vinda de Cristo, o que contradiz a razão para dividir os seres humanos. Paulo é livre para falar do ser humano a partir de diferentes aspectos, mas evita qualquer obscurecimento da realidade unitarista que encontramos em Cristo, vendo-o como se estivesse voltado para um cumprimento maior em Cristo, não para a divisão.

… O texto [de Hebreus 4:12] é ainda mais claro sobre as questões: se uma divisão estrita entre corpo e alma for defendida, então deve-se fazer uma divisão entre juntas e medula! O ponto óbvio é que o evangelho de Cristo encontra o seu caminho para o próprio âmago do nosso ser, nosso “coração”. Para falar da obra efetiva do evangelho nos pecadores, usa-se o vocabulário da divisão. Mas não há pensamento algum de que isso reflita nossa verdadeira natureza. É o pecado que nos separa de Deus e traz o sentido de divisão para dentro de cada um de nós. Portanto, não é nossa natureza material como tal e sim a natureza corrompida que provoca a distinção comum entre corpo, alma, mente ou espírito.

– pág. 218.

New Bible Dictionary [Novo Dicionário da Bíblia], D. R. W. Wood, A. R. Millard, J. I. Packer, D. J. Wiseman, I. Howard Marshall, editors, 3ª Edição, 1996:

“Uma instância específica do repúdio hebraico ao dualismo é a doutrina bíblica do homem. O pensamento grego e, em conseqüência, muitos sábios judeus e cristãos helenizantes, consideravam o corpo como uma prisão da alma: sōma sēma ‘o corpo é um túmulo’. O objetivo do sábio era conseguir a libertação de tudo o que é corporal e, dessa forma, libertar a alma. Mas, para a Bíblia o homem não é uma alma em um corpo, e sim uma unidade corpo/alma; tanto é que, mesmo na ressurreição, embora a carne e o sangue não possam herdar o reino de Deus, ainda teremos corpos (1 Cor. 15:35 em diante).”

– pág. 284.

“Os gregos encaravam o corpo como um empecilho para a verdadeira vida e ansiavam pelo tempo em que a alma se libertaria de seus entraves. Eles tinham um conceito de vida após a morte em termos da imortalidade da alma.”

– pág. 1010.

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Four Views of Hell [Quatro Conceitos do Inferno], William Crockett e Stanley N. Gundry (editores), [Clark Harold Pinnock], Zondervan, Grand Rapids, MI, EUA, 1996:

A Bíblia não ensina a imortalidade natural da alma; ela aponta para a ressurreição do corpo como a dádiva de Deus para os crentes. Só Deus tem imortalidade (1 Tim. 6:16), mas graciosamente concede a vida corporificada ao seu povo (1 Cor. 15:21, 50-54, 2 Tim. 1:10) Deus nos dá vida e Deus a tira. Não há nada na natureza da alma humana que requeira que ela viva para sempre. A Bíblia ensina o condicionalismo: Deus criou os humanos mortais com uma capacidade para a vida eterna, mas ela não é possessão inerente deles. A imortalidade é uma dádiva que Deus nos oferece no evangelho, não uma possessão inalienável. A alma não é uma substância imortal que deve ser colocada em algum lugar se ela rejeitar a Deus. Se uma pessoa por fim rejeita Deus, não há nada na antropologia bíblica que contradiga o que Jesus claramente ensinou – Deus destruirá os ímpios, corpo e alma, no inferno. Uma vez que isso seja entendido, uma pessoa é livre para ler o que a Bíblia diz sobre o inferno de forma natural e direta.

A doutrina grega da imortalidade afetou indevidamente a teologia neste ponto – um bom exemplo da helenização irregular da doutrina cristã. A ideia de que as almas são naturalmente imortais, porém, distorce a interpretação dos textos bíblicos sobre o inferno. Ela requer virtualmente que uma pessoa estenda a experiência de destruição ao tormento consciente infinito. Presumivelmente, o conceito tradicional da natureza do inferno foi originalmente edificado da seguinte maneira: As pessoas misturaram sua crença no julgamento divino após a morte (que é bíblica) com sua crença na imortalidade da alma (que não é bíblica) e concluíram (incorretamente) que a natureza do inferno deve ser tormento eterno consciente. A lógica só seria impecável se a segunda premissa não fosse falsa. Naturalmente, pode ser que Deus ainda dê a imortalidade aos ímpios e exija que a experimentem num eterno tormento ardente. Meu argumento não descarta isso, embora seja um problema explicar por que Ele faria isso.

Estes dois primeiros pontos (a exegese das Escrituras e a doutrina não bíblica da imortalidade de todas as almas) se pertencem e sugerem mutuamente que os ímpios não serão torturados para sempre. A Bíblia adverte contra a perda absoluta no inferno e tem a hipótese antropológica para apoiar essa possibilidade. A ortodoxia precisa endireitar sua antropologia.

– págs. 148, 149.

“Christianity and The Survival of Creation” [O Cristianismo e a Sobrevivência da Criação], Wendell Berry. The New Religious Humanists [Os Novos Religiosos Humanistas], Gregory Wolfe, The Free Press, 1997:

“O teste crucial provavelmente é Gênesis 2:7, que dá o processo pelo qual Adão foi criado: “O Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego de vida; e o homem foi feito alma vivente.” A minha mente, assim como a da maioria das pessoas, foi profundamente influenciada pelo dualismo, e eu posso entender como as mentes dualistas lidam com este versículo. Eles concluem que a fórmula para a criação do homem é: homem = corpo + alma. Mas essa conclusão não pode ser derivada, exceto por violência, de Gênesis 2:7, que não é dualístico. A fórmula dada em Gênesis 2:7 não é homem = corpo + alma; a fórmula lá é alma = pó + fôlego. Segundo este versículo, Deus não fez um corpo e colocou uma alma dentro dele, como uma carta dentro dum envelope. Ele formou o homem do pó; daí, por soprar seu fôlego nele, Ele fez o pó viver. O pó, formado como homem e feito viver, não incorporou uma alma, ele tornou-se uma alma. “Alma” aqui refere-se a uma criatura completa. A humanidade é, assim, apresentada a nós, em Adão, não como uma criatura de duas partes distintas temporariamente coladas juntas, e sim como um mistério único.”

– pág. 253.

The Death of Death – Resurrection and Immortality in Jewish Thought [A Morte da Morte – A Ressurreição e a Imortalidade no Pensamento Judaico], Neil Gillman, Jewish Lights Publishing, EUA, 1997. (A capa acima é da edição de 2000.):

O QUE ACONTECE NA MORTE?

Por grande parte dos últimos dois milênios, o mundo ocidental, incluindo os judeus, tem caracterizado a morte como a separação entre a alma e o corpo. Este conceito deriva-se originalmente da filosofia grega, certamente de Platão e possivelmente da religião órfica de meados do sexto século [A.C.]. No diálogo de Platão, Fédon, situado nas horas que antecederam o suicídio de Sócrates, este caracteriza a morte como “a separação entre a alma e o corpo” e prossegue dizendo

E estar morto é a conclusão desta [separação]; Considerando que a alma existe em si mesma, e é libertada do corpo e o corpo é libertado da alma, o que é isso senão a morte?

Por mais que este conceito de separação entre a alma e o corpo tenha se tornado parte da concepção do Judaísmo sobre a vida após a morte, ele não é, de modo algum, o conceito bíblico.

A antropologia bíblica nada sabe deste perfil dualista da pessoa humana, que afirma que a pessoa humana é um composto de duas entidades, um corpo material e uma alma espiritual ou não-material. No pensamento grego, a alma é uma entidade distintiva que preexiste à vida da pessoa, entra no corpo ao nascer, separa-se do corpo na morte e continua a existir em algum reino supernal [superior].

A Bíblia, em contraste, retrata cada ser humano como uma entidade única, revestida em carne moldada do solo, que é animada ou vivificada por uma centelha ou impulso vital, chamado variadamente de ruahnefeshneshamah ou nishmat hayyim.

Na tradição posterior, esses termos passaram a ser entendidos como sinônimos da “alma” grega. Mas esta identificação não se encontra na Bíblia. O termo “nefesh” significa pescoço ou garganta (como em Jó 41:13), ou sangue vital (como em Levítico 17:10-11). Por extensão, significa um ser humano vivo, já que se refere às duas características que fazem uma pessoa viver: respiração e sangue. Quando Êxodo 1:5 enumera a progênie de Jacó como “setenta nefesh”, isto significa simplesmente setenta pessoas, não setenta “almas” desencarnadas.

Na Bíblia, o termo neshamah também significa respiração (como em 1 Reis 17:17) e, novamente por extensão, uma pessoa viva. O último versículo do Salmo 150 não quer dizer que todas as almas desencarnadas louvarão ao Senhor, e sim que “tudo o que respira” – todos os seres viventes – farão isso. Além disso, Jó 34:14, 15 identifica neshamah com ruah. Ruah pode significar “vento” ou “fôlego”.

Seu fôlego [ruah] parte;
Ele volta ao pó;
Naquele dia, seus planos se acabam em nada. (Salmo 146: 4)

A morte é entendida como o “sair” do ruah, ou o semelhante “sair” da nefesh (como em Gênesis 35:18), ou como Deus “tirar” a nefesh (como em 1 Reis 19:4) ou o neshamah (como em Jó 34:14).

É precisamente essa noção de que algo “sai” do corpo na morte que permitiu à tradição posterior identificar esse “algo” com a alma de Platão. Porém, no contexto bíblico, o que deixa a pessoa não é uma entidade distinta, e sim aquela centelha vivificante que inicialmente tinha dado vida à carne moldada do solo, em primeiro lugar. A chave para a compreensão de todos estes trechos é o relato da criação da pessoa humana em Gênesis 2:7:

O Senhor Deus formou o homem do pó da terra. Ele soprou em suas narinas o fôlego de vida [nishmat hayyim], e o homem tornou-se um ser vivo [nefesh hayyah].1

Se, no momento da criação, o torrão de pó se tornou um ser vivo quando Deus soprou o fôlego de vida “em [dentro]” suas narinas, então a morte ocorre quando esse mesmo fôlego de vida “sai” do corpo. Identificar esse fôlego de vida com o que mais tarde seria chamado de “alma” seria atribuir-lhe uma identidade distinta que incluiria a autoconsciência. Mas, simplesmente não existe nada disso nos textos bíblicos. Aqui, a referência é mais a uma centelha impessoal que, por fim, simplesmente se dissipa.

A única antecipação bíblica significativa dessa doutrina posterior pode ser encontrada no Eclesiastes, que é comumente entendida como refletindo uma visão de mundo helenística. Em Eclesiastes 12:7, o típico “sair” do ruah se torna um “retorno a Deus”:

E o pó retorna à terra
Como era,
E o fôlego de vida [ruah] retorna a Deus
Que o deu.

Este texto é claramente uma extensão de Gênesis 2:7. Ele distingue entre o pó do solo e a vida. Cada um retorna ao lugar de onde veio: O pó (ou corpo) ao solo e o fôlego vital para Deus. Esta referência, incomum na Bíblia, ao “retorno a Deus” do ruah pode fazer eco ao conceito grego de que o ruah é uma entidade que vem de Deus e que na morte “retorna” para algum “lugar”. Se esta interpretação for precisa, Eclesiastes representa um meio-caminho entre o conceito bíblico característico e a antropologia mais dualista da tradição posterior. Contudo, é igualmente provável que o texto simplesmente esteja recapitulando o conceito no Gênesis de que a vida foi soprada no pó por Deus, e que, na morte, ela simplesmente retorna a Deus.

Na Bíblia, então, a morte ocorre quando o fôlego vital, que originalmente fez a pessoa viver, deixa o corpo e se dissipa. Ele não tem qualquer identidade distintiva, nem vai ou retorna para qualquer lugar específico

Que a morte de cada ser humano é final, que Deus não tem poder sobre o nosso destino após a morte, é o testemunho esmagador da Bíblia. Mas, quando a era bíblica chegou ao fim, entraram duas doutrinas nos escritos judaicos que deram uma reviravolta nessa crença. Uma delas – que em algum momento no futuro Deus ressuscitará pelo menos alguns corpos humanos de suas sepulturas – é enunciada em três trechos bíblicos breves, mas notáveis. A segunda – que o corpo humano é mortal, mas que todo ser humano possui uma alma que se separa do corpo na morte e goza de uma existência contínua com Deus – não está na Bíblia. Mas ela é explícita em uma série de livros escritos por judeus, aproximadamente entre o século II AEC e o século II EC, comumente referido como o período intertestamental.

Estas duas doutrinas por fim acabaram se fundindo e formando o núcleo de uma doutrina judaica da vida após a morte, que se tornou canônica no judaísmo desde a era do Talmude até o alvorecer da modernidade.

Somente três passagens bíblicas afirmam explicitamente que Deus retornará pelo menos alguns mortos à vida. Duas delas estão em Isaías e a terceira está em Daniel…

INFLUÊNCIA CULTURAL OU DESENVOLVIMENTO INTERNO

Porém, investigar as fontes de onde o autor de Daniel extraiu [o conceito da ressurreição] envolve ir além de descobrir textos bíblicos anteriores ou contemporâneos que ele possa ter lido. É formular uma pergunta ainda mais básica: De onde veio a ideia de ressurreição? Como ela entrou na cabeça desses autores originalmente? Qual é a sua procedência?

Uma abordagem quase intuitiva a essas questões é verificar a literatura das culturas em torno do Israel bíblico em busca de algum indício da presença desse conceito, e depois presumir que ele foi posteriormente transmitido a Israel. Acerca da vida após a morte, duas culturas antigas do Oriente Próximo poderiam se qualificar como a fonte do pensamento bíblico: Egito e Pérsia. O antigo Egito, que acreditava que os mortos viviam no reino de Osíris, desenvolveu elaborados ritos funerários para preparar os mortos para a viagem até este reino. O problema aqui é que esses textos egípcios são significativamente mais antigos do que o material bíblico, de modo que nenhum de seus detalhes corresponde ao relato bíblico e não há uma maneira clara de rastrear o processo de transmissão. Por fim, e o que é mais importante, esses textos não falam de uma ressurreição: Eles simplesmente afirmam que os mortos continuam a desfrutar de uma forma de existência no mundo inferior.

Uma influência persa é mais provável. Os textos zoroastristas estão mais próximos do período da Bíblia (do nono ao segundo século AEC), eles falam sobre ressurreição e, assim como na Bíblia, seu contexto amplo é de julgamento. Além disso, a partir de meados do quinto século AEC, judeus viveram entre os persas. Se este for um caso de influência cultural, o candidato provável seria  o Zoroastrismo.

Todavia, é igualmente concebível que não houve aqui influência cultural alguma, que a ideia de ressurreição evoluiu dentro de Israel como um desenvolvimento completamente natural de conceitos profundamente enraizados na religião bíblica desde o princípio. Se, de fato, Deus criou o mundo e a humanidade em primeiro lugar, se Deus é a força suprema cujo poder se estende por toda a natureza e história, se Deus pode enviar Israel para o exílio e depois resgatá-lo novamente (da escravidão egípcia e no tempo de Ciro), se Deus pode renovar o ciclo natural a cada ano, se Deus pode, como se promete em Isaías 66, criar “um novo céu e uma nova terra”, então por que Deus não poderia erguer seres humanos da sepultura? Por que Deus não poderia, nas palavras de Isaías 25:8, “destruir a morte para sempre”? Por que o poder de Deus sobre o destino de alguém deveria acabar com a morte? Por que a morte é mais poderosa do que Deus?

– págs. 75-77, 83, 84, 96, 97.

Immortality or Resurrection? A Biblical Study on Human Nature and DestinySamuelle Bacchiocchi, Biblical Perspectives, EUA, 1997 (Em português: Imortalidade ou Ressurreição? – Uma Abordagem Bíblica Sobre a Natureza Humana e o Destino Eterno UNASPRESS, São Paulo, Brasil, 2007):

“Partir e estar com Cristo”. Ao escrever aos filipenses, Paulo diz: “Desejo partir e estar com Cristo, o que é muito melhor; contudo, é mais necessário, por causa de vocês, que eu permaneça no corpo.” (Fil. 1:22-23). Os dualistas consideram este texto como uma das mais fortes provas de que, por ocasião da morte, a alma dos salvos entra imediatamente na presença de Cristo. Por exemplo, Robert Morey afirma: “Este é o trecho mais claro no Novo Testamento que fala do crente indo estar com Cristo no céu após a morte. Este contexto trata do desejo de Paulo de deixar esta vida terrena para uma vida celestial com Cristo. Não há qualquer menção ou alusão à ressurreição neste trecho.”

O problema fundamental dessa interpretação é o fato de não se reconhecer que a declaração de Paulo, “Meu desejo é partir e estar com Cristo” é uma afirmação relacional e não antropológica. O que quero dizer com isso é que esta é uma declaração da relação que existe e continua entre o crente e Cristo através da morte, não uma declaração da “condição” do corpo e da alma entre a morte e a ressurreição.

Helmut Thielicke aponta corretamente que o Novo Testamento não se preocupa com uma “condição” que existe entre a morte e a ressurreição, e sim com uma relação que existe entre o crente e Cristo através da morte. Este relacionamento de estar com Cristo não é interrompido pela morte porque o crente que dorme em Cristo não tem consciência da passagem do tempo. Conforme diz Thielicke: “A remoção de um senso de tempo significa para os que são despertados que a longa noite da morte é reduzida a um ponto matemático, e eles são assim convocados para fora da vida completada”.

As tentativas de extrair da declaração de Paulo o apoio para a crença no trânsito da alma para o céu por ocasião da morte são injustificadas porque, conforme observa com razão Anderson, “Paulo não pensou que a questão do status da pessoa entre a morte e a ressurreição era uma questão que precisasse ser considerada.” A razão é que, para Paulo, os que “morrem em Cristo” estão “dormindo em Cristo” (1 Cor. 15:18; 1 Tes. 4:14). A relação deles com Cristo é de imediatismo, porque eles não têm qualquer consciência da passagem do tempo entre sua morte e a ressurreição. Eles experimentam o que pode ser chamado de “tempo eterno”. Porém, para os que continuam vivendo no tempo cronológico ligado à Terra há um intervalo entre a morte e a ressurreição. O problema é que não podemos sincronizar o relógio do tempo eterno com o do nosso tempo cronológico. É a tentativa de fazer isso que levou a especulações e infelizes controvérsias sobre o chamado estado intermediário.

Ao expressar seu desejo de “partir e estar com Cristo”, Paulo não estava fazendo uma exposição doutrinária do que acontece na morte. Ele está simplesmente expressando seu anseio de ver o fim de sua atribulada existência e estar com Cristo. Ao longo dos séculos, cristãos fervorosos expressaram o mesmo desejo, sem necessariamente esperar serem conduzidos à presença de Cristo no momento de sua morte. A declaração de Paulo deve ser interpretada com base nos claros ensinamentos a respeito do tempo em que os crentes se unirão a Cristo.

– págs. 170, 171 (notas de rodapé omitidas).

James D. G. Dunn, The Theology of Paul The Apostle, W. B. Eerdmans Publishing Co., Grand Rapids, MI, EUA e Cambridge, Inglaterra, 1998 (A Teologia do Apóstolo Paulo, James D. G. Dunn, Editora Paulus, São Paulo, Brasil, 2003):

Psyche e Pneuma

O único outro par de palavras que requer certa atenção é psyche, “alma” e pneuma no sentido de “espírito (humano)”. Paulo usa pouco os dois termos, mas o seu emprego tem certa importância para a nossa apreciação da sua antropologia e a maneira como Paulo concebia a interface entre o divino e o humano.

Paulo usa psyche apenas 13 vezes, 4 delas em Romanos. Isso se encontra em notável contraste com o uso regular do termo no grego clássico e de nefesh no AT (756 vezes). Como em tantos outros aspectos, aparece clara aqui a diferença entre a antropologia hebraica e a grega. Pois no uso do grego clássico a psyche é “o núcleo essencial do homem que pode ser separado do seu corpo e não participa da dissolução do corpo”Aqui está a origem do conceito de “imortalidade da alma”, como existência contínua de uma parte interior, oculta da pessoa humana após a morteNo pensamento hebraico, ao contrário, nefesh denota toda a pessoa, o “nefesh vivo” de Gn 2,7.*

Nota: BDB, nefesh 4. Notável aqui é o fato de que nefesh pode ser usado em relação a uma pessoa morta pouco após a morte, enquanto o cadáver ainda tem as características distintivas da pessoa (Ver Jacob, TDNT 9.620-21).

O uso de Paulo reflete claramente a mortalidade hebraica típica. Psyche denotando a pessoa é clara em muitas passagens. Em outros lugares o sentido desloca-se para “vida”, ou psyche como foco da vitalidade humana.

O número de usos de pneuma significando espírito humano em Paulo é incerto, pois em muitas passagens não é claro se a referência é ao Espírito divino ou ao espírito humano. De qualquer modo, é significativo que o número de referências ao Espírito (Santo) supera em muito o das referências ao espírito (humano). A inferência imediata que se pode razoavelmente tirar é que para Paulo o evangelho não trata de espiritualidade inata esperando por libertação, mas do Espírito divino que age a partir de fora sobre a pessoa e nela. Mais pertinente ao assunto, o espírito é evidentemente aquela dimensão da pessoa humana por meio da qual ela se relaciona mais diretamente com Deus. Daqui passagens como Rm 1,9 (“Sirvo a Deus em meu espírito”) e 8,16 (“o Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar”), a analogia entre o Espírito de Deus e o espírito humano em 1Cor 2,11, e a idéia de que a pessoa “que se une ao Senhor constitui com ele um só espírito” (1Cor 6,17), sem falar das referências ambíguas indicadas acima. Houve mesmo uma opinião persistente de que para Paulo o espírito humano é apenas uma manifestação do Espírito divino. Isso poderia bem refletir a influência do pensamento hebraico. E embora isso não fosse incompatível com a antropologia estóica (e posteriormente gnóstica) em particular, marca outras diferenças entre o pensamento caracteristicamente hebraico e helenístico no sentido de que é o pneuma que é a dimensão mais alta (ou mais profunda) da pessoa e não o nous.

Tal como ocorreu com os dois pares antropológicos anteriores, também aqui há evidentemente uma sobreposição de significado nas respectivas faixas de uso de psyche e pneuma. Isso reflete as origens dos dois termos no uso grego e hebraico, mas no uso desenvolvido de Paulo a influência é predominantemente da antropologia hebraica. Pois os dois termos (psyche/nefesh e pneuma/ruah) exprimem uma identificação original de “sopro ou hálito” como a força vital. Nas Escrituras hebraicas a sobreposição é evidente em numerosos textos. Mais notável é Gn 2,7: “Deus insuflou nas suas narinas um hálito (nesamah) de vida e o homem se tornou um nefesh vivente”, pois nesamah e ruah são sinônimos próximos (p. ex., Jó 27,3; Is 57,16). Mas no intervalo entre o uso mais antigo e Paulo tornou-se mais clara uma distinção, com pneuma denotando mais a dimensão do ser humano direcionada para Deus, psyche mais limitada à força vital em si. Não é necessário tentar refazer tal desenvolvimento. O resultado é suficientemente claro no uso do próprio Paulo, o que é suficiente para nós aqui. Cito mais uma vez 1Cor 15,44-46, mas também 2,13-15. Pois em 15,44-46 psyche e psychikos denotam claramente a pessoa viva, mas limitada à existência corporal presente (ao contrário de soma pneumatikon, o corpo espiritual). E em 2,14 a pessoa psychikos é por definição pessoa que é incapaz de receber ou apreciar as coisas do pneuma.

Onde essa observação pode ser de maior relevância é na percepção de que para Paulo o ser humano é mais que “alma”. Psyche não é suficiente para descrever as profundezas do indivíduo. As pessoas existem em e se relacionam com dimensões maiores da realidade e não apenas a psíquica. No fim de um século que aprendeu a apreciar as introspecções de Freud e Jung, a antropologia de Paulo pode-nos trazer uma lição salutar. A lição seria a de advertir-nos contra a idéia de que a psyche pode revelar tudo o que há de importante sobre a vida interior de uma pessoa. Paulo, mais uma vez em linha com a herança judaica, também fala do espírito humano, uma profundeza ainda maior ou uma realidade mais alta da pessoa. Além disso, ele permite concluir e ensina que é só funcionando nesse nível e abrindo o espírito humano ao Espírito divino que o ser humano pode ser completo. Finalmente, este é um aspecto importante da sua teologia e do seu evangelho — como veremos…

O processo da salvação tem meta e fim. Paulo não tinha a idéia da existência como um ciclo repetitivo de nascimento e renascimento. A vida humana culmina na morte, seja como vitória do pecado e da morte, seja como derrota e destruição do pecado e da morte. Com exceção de uns poucos favorecidos (só Enoc e Elias nos vêm à mente) o processo tinha que ser realizado totalmente. O fato da morte do próprio Jesus deixara isso claro: se ele morreu, então ninguém podia escapar da morte. A ressurreição de Jesus era tão central para o evangelho porque a boa nova incluía o fato e a promessa do triunfo sobre a morte. Assim também em relação aos principais aspectos do início da salvação na vida humana. A justificação só será completa na justificação (vingança) final. A participação em Cristo só alcançará o seu fim na transformação completa dos crentes na imagem de Deus em Cristo. A obra será concluída quando a glória perdida e a imagem desfigurada pela desobediência humana estiverem totalmente renovadas (2Cor 3,18; 4,4.6). A salvação não era, e não podia ser, completa nesta vida. A realização da esperança está além dos confins da existência presente: “se temos esperança em Cristo somente para esta vida, somos os mais dignos de compaixão de todos os homens” (1Cor 15,19); a esperança cristã refere-se ao que ainda não pode ser visto (Rm 8,25); ela “vos está reservada nos céus” (Cl 1,5).

Tudo isso constatamos e sublinhamos em vários pontos das páginas precedentes. Mas não poderíamos terminar esta seção sem reunir os vários aspectos e ênfases da esperança de salvação completa de Paulo. Como ocorre com sua esperança na parusia (§12), os elementos individuais são suficientemente claros. Como estão relacionados entre si é menos claro.

O elemento mais óbvio é o que segue de §18.5, a ressurreição do corpoA importância dessa esperança estava de modo especial no fato de muitos aspectos da teologia de Paulo se encontrarem reunidos nela. Ela é a conseqüência imediata da cruz e ressurreição (1Cor 15), é parte integrante do evangelho (15,12-19) e confirma que a vitória sobre a morte é central no evangelho (15,21-22.26.54-57). Ela resolve para sempre a tensão entre carne e corpo (15,42-54). Completa o desígnio de Deus ao criar a humanidade pela renovação da imagem de Deus na humanidade ressuscitada (15,45-49). É a conseqüência final do processo de renovação interior e decadência externa (2Cor 4,16-5,5). Inclui a renovação da criação como um todo (Rm 8,19-23). E tudo se tornou possível pela ressurreição de Cristo como “primogênito” e protótipo: ressurreição “com Cristo” (2Cor 4,14), corpo de ressurreição conformado com o seu corpo glorioso, e pela atividade do Espírito de Deus, as primícias do Espírito apenas como o começo da colheita dos corpos ressuscitados (Rm 8,23).

Sobre este assunto o paragrafo mais intrigante que Paulo compôs deve ser 2Cor 5,1-5:

Sabemos, com efeito, que, se a nossa morada terrestre, esta tenda, for destruída, teremos no céu um edifício, obra de Deus, morada eterna, não feita por mãos humanas. Tanto assim que gememos pelo desejo ardente de revestir por cima da nossa morada terrestre a nossa habitação celeste — o que será possível se formos encontrados vestidos, e não nus. Pois nós, que estamos nesta tenda, gememos acabrunhados, porque não queremos ser despojados da nossa veste, mas revestir a outra por cima desta, a fim de que o que e mortal seja absorvido pela vida. E quem nos dispôs a isto foi Deus, que nos deu o penhor do Espírito.

A passagem, evidentemente, é o clímax de unidade maior de exposição (2Cor 4,16-5,5). Contem grande número de questões não resolvidas de exegese, particularmente em 5,2-4. Mas sua função mais óbvia é expressar a confiança de Paulo (4,16) de que o presente processo de decadência (“natureza exterior”) e renovação (“natureza interior”) culminará na transformação no corpo de ressurreição (4,17- 5,4), da qual o Espírito já é a primeira prestação e a garantia (5,5). Portanto, na sua afirmação básica, a esperança é a mesma de 1Cor 15,53-54, embora aqui a ressurreição apareça sob a imagem de vestir outra veste (2Cor 5,2.4).*

*[NOTA:] Apesar de N. Walter, “Hellenistische Eschatologie bei Paulus? Zu 2 Kor. 5.1-10”, ThQ 176 (1996) 53-64, a ausência de soma (“corpo”) em 2Cor 5,1-5 (contrastar 1Cor 15,35- 44) não tem significação, como confirma o texto posterior de Rm 8,11.23. Ver também Penna, “The Apostle’s Suffering: Anthropology and Eschatology in 2 Corinthians 4.7-5.10”, Paul 1.232-58 (particularmente 246-54), que nota a ausência de qualquer referencia a “alma”, indicando que qualquer eco de uma concepção helenística mais dualista dificilmente é mais que isso; e acima §3.2.

Se devemos falar de desenvolvimento no pensamento de Paulo — Paulo agora pensando num “estado intermediário” (entre morte e parusia), quando anteriormente esperava estar vivo na parusia (1Cor 15,51-52) — é questão discutível. Tudo o que precisamos notar é a possibilidade de que Paulo pensava num estado intermediário (“nus”, “despojados”, 5,3-4) em que o gemer causado pela tensão já-ainda não (Rm 8,23) poderia continuar além da morte e até a parusia (2Cor 5,2.4). Mas, de qualquer maneira, Paulo pensa num estado incompleto no processo da salvação, que só pode ser resolvido pelo novo corpo de ressurreicao.*

*[NOTA]: Daqui a impossibilidade de traduzir a esperança de Paulo numa crença “na imortalidade da alma”; ver também O. Cullmann, Immortallity of the Soul or Resurrection of the Dead? The Witness of the New Testament [Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? – O Testemunho do Novo Testamento] (Londres: Epworth, 1958).

O outro aspecto claramente exposto da expectativa escatológica de Paulo é o juízo final. Já observamos que esta convicção fazia parte da herança judaica de Paulo. Também que a cristologia paulina da exaltação abrangia plenamente a ideia de Cristo exercendo a função de Deus (atuando como seu representante?) nesse juízo final. Aqui devemos apenas observar que Paulo não considerava os crentes isentos desse juízo final. “Todos nós teremos de comparecer perante o tribunal de Cristo, a fim de que cada um receba a retribuição do que tiver feito durante a vida no corpo, seja para o bem, seja para o mal” (2Cor 5,10).

– págs. 109-111, 552-555.

Nuevo Diccionario Ilustrado de la Biblia [Novo Dicionário Ilustrado da Bíblia], Wilton M. Nelson, (Nashville, TN, EUA: Caribbean Editorial), 1998:

ALMA Termo que no Antigo Testamento é tradução do substantivo hebraico nefesh, o qual por sua vez é derivado do verbo nafash (respirar, refazer-se). Aparece cerca de 755 vezes no Antigo Testamento com significados bem variados.

Talvez o significado original de nefesh tenha sido “garganta” (canal da respiração) ou “pescoço”, como o acadiano napishtu, pois este sentido é preservado em textos do Antigo Testamento, como Sal. 69:1 e Jon. 2:7. Daí vem o sentido de “fôlego” de vida (→ Espírito), como em Jó 41:21 (“aliento”, RV). Assim, em hebraico, a morte é frequentemente expressa por “exalar a nefesh” (Jer. 15:9, BJ). Uma vez que a respiração é sinal de vida, a alma (“sopro”) é considerada como o princípio da vida (Gen 35:18). Além disso, “fazer voltar a nefesh” significa fazer reviver (1 Reis 17:21 em diante); salvar a nefesh de uma pessoa é salvar a sua vida (Sal. 72:13 em diante).

A nefesh (“vida”) da carne está no sangue → (Lev. 17:11). Num sentido mais amplo, nefesh pode definir um ser vivo na totalidade de sua existência, seja animal (Gen. 1:20, 21, 24, “seres”) ou humano (Exo. 1:5; “pessoas”). Neste sentido usa-se nefesh para denotar a ação de amar a si mesmo: amar como a sua nefesh significa “como a si mesmo” (1 Sam. 18:1). Às vezes nefesh também designa um cadáver, talvez eufemisticamente (Lev. 21:1; “morto”).

Em contraste com o pensamento filosófico grego (Platão, por exemplo), é notável que o Antigo Testamento jamais fala da imortalidade da alma. Pelo contrário, diz-se que a nefesh morre (Num. 23:10; Jui. 16:30, donde nefesh é traduzida como “eu”). A nefesh não é algo distinto do corpo que desce para o → SEOL, e sim o ser humano completo (Sal. 16:10; 30:3). Os habitantes do Seol não são chamados de “almas” nem de espíritos, e sim de “mortos” (refaim em Sal. 88:10; metim em Isaías 26:14, 19). Hoje em dia é comum reconhecer muitas provas no Antigo Testamento para a doutrina da sobrevivência humana após a morte, mas estas provas levam mais diretamente a um ensino sobre a pessoa completa e não a alma no sentido platônico.

É notável que, além da vida física, todas as funções psíquicas são atribuídas à nefesh. Por exemplo, os pensamentos são atribuídos à nefesh (Est. 4:13, VM), bem como ao →  CORAÇÃO e ao → ESPÍRITO. Em 2 Reis 9:15 é traduzido por “vontade”. A nefesh é a sede do amor (Gen. 34:3) e do ódio (Sal. 11:5), da tristeza (Sal. 42:6) e da alegria (Sal. 86:4). Ela sente fome (Sal. 107:9) e sede (Pro. 25:25), mas também busca a Deus e anseia por Ele (Sal. 42:1, 2; 103:1 em diante).

Assim, na psicologia do Antigo Testamento, a nefesh tem uma função muito semelhante à do → ESPÍRITO. Porém, nefesh significa sobretudo, a vida, enquanto que “espírito” indica força ou poder.

No Novo Testamento a “alma” é a tradução comum do grego psyche que por sua vez deriva do verbo psycho ( “soprar”), e aparece mais ou menos cem vezes.

Psyche (assim como nefesh) às vezes significa “ser vivente”, e pode referir-se a um animal (Apo. 16:3, “ser vivo”) ou a uma pessoa (Rom. 13:1, “pessoa”; cf. o plural em Atos 7:14; 27:37). Com o pronome possessivo, psyche também pode significar “eu mesmo” (Mat. 12:18; João 12:27, “minha alma”).

Psyche muitas vezes denota a vida física (Mat. 6:25), e é praticamente sinônimo de “corpo vivo” (por. ex. em Mar. 8:35-37, onde “alma” tem o significado de “vida”). Talvez seja a conotação “físico-animal” do substantivo psyche o que determina em certas ocasiões o uso do adjetivo psychikos (1 Co 15,44, “animal”; compare o  v 46 com 2:24, “natural”).

Psyche também pode indicar o princípio da vida, o qual, ligado ao corpo, é um aspecto do ser humano completo (Mat. 10:28; Atos 20:10, BJ: “sua alma está nele”). Como princípio da vida, psyche é a sede dos pensamentos (Atos 4:32; Fil. 1:27), das emoções (Mar. 14:34; João 12:27) e dos atos da vontade (Efe. 6:6, BC e Taizé; compare com Col. 3:23).

Por fim, como princípio da vida, psyche indica em alguns textos a sede de uma vida que transcende a vida terrena. Este uso, muito parecido com o de alguns filósofos gregos (Platão, por exemplo), tem certa base em algumas declarações de Jesus (Mat. 10:28, 39; Mar. 8:35-37), mas se desenvolve nos escritos posteriores (Heb. 6:19; 10:39; 13:17; 1 Ped. 1:9, 22; 2:11, 25). “Alma” chega a significar, inclusive algo imortal, distinto do corpo (Apo. 6:9; 20:4). Porém, a necessidade da → RESSURREIÇÃO corporal (Rev. 20:4 em diante) não é negada.

Seria muito arriscado interpretar 1 Tes. 5:23 como um ensinamento da tricotomia grega (compare com Heb. 4:12); isto é mais diretamente um modo de enfatizar a pessoa completa (“todo o vosso ser”) como objeto da santificação (Deut. 4:6; Mar. 12:30).

Bibliografia:

P. Van Imschoot, Teologia del Antiguo Testamento [Teologia do Antigo Testamento], Ediciones Fax, Madri, 1969, págs. 351-378, 386 em diante.

 

IMORTALIDADE (em grego, athanasia). Termo usado na literatura e mitologia gregas e que se tornou popular na época de Sócrates (470-399 AC) e Platão (427-347 AC). Era aplicado aos deuses gregos, a quem se atribuía a qualidade de ser imortal. Para os gregos este conceito não só tinha uma conotação temporal, como também significava sobretudo a participação do indivíduo na glória dos deuses. Por esta razão todo grego buscava a divinização como meta de sua vida.

Originalmente este termo nunca se referiu ao que hoje se entende por imortalidade da → ALMA. Foi com o surgimento da escola platônica que este conceito se converteu em dogma.

No Antigo Testamento não se encontra um termo equivalente a imortalidade; porém, o conceito de sobrevivência após a → MORTE  é claro. A ideia da imortalidade no pensamento hebraico surge do conhecimento do Senhor, o Deus vivo dos hebreus, e sua relação com os homens e, portanto, com a morte. O homem afirma sua sobrevivência post mortem pela certeza da eternidade de Deus. O Antigo Testamento não cessa de enfatizar essa qualidade de Deus frente aos outros deuses (Sal. 18:46; 42:2; 84:2; 96:5s; 106:28ss; 115:3-8; Jer. 10:11; 23:36; Ose. 1:10). O senhorio de Deus sobre a morte é claramente demonstrado na vida de Enoque (Gen. 5:24) e Elias (2 Reis 2:10, 11), aos quais Deus arrebatou para não experimentarem a morte. Do exposto, fica claro que o Antigo Testamento mostra um desenvolvimento gradual do conceito de imortalidade dentro do pensamento hebraico. Nos períodos intertestamentário e neotestamentário, existiam três correntes:

Na literatura mais antiga (Gen. 15:15; 25:8; 37:35; 49:29) surge a ideia de uma sobrevivência parcial (uma projeção ou sombra vaga). A personalidade humana não perecia inteiramente, mas continuava a existir passivamente em uma região escura denominada → SEOL. Faltava-lhe o “fôlego de vida” (Gen. 2:7) e ela permanecia em uma solidão existencial, sem relacionamento com Deus e com os outros homens (Jó 3:13; 10:21s; 17:11-16; 26:5s; Sal. 88:11s, 94:17, 115:17). Porém, ainda não havia surgido a ideia de retribuição no além-túmulo; as recompensas e punições são recebidas nesta vida (Deut. 7:12, 13).

Na literatura sapiencial (Jó, Salmos, Eclesiastes) surge o clamor por justiça dos justos ansiavam à beira da morte e não tinham experimentado a alegria da bênção divina. É manifesto que a vida terrena é insuficiente para recompensar os justos e punir os ímpios, e daí surge a ideia de uma inter-relação Deus-justo. O justo não se preocupa com o que acontece depois da morte, a não ser sua comunhão com Deus; ele está convicto de que a morte não pode destruí-lo. Mais ainda, surge a ideia de um retorno à vida, uma → RESSURREIÇÃO (Jó 19:26; Sal. 17:15; 36:8ss; 73:24). O injusto, por outro lado, está condenado a uma morte eterna (Sal. 49 e 73).

Estas ideias se acentuaram ainda mais depois da catástrofe política do povo judeu durante o cativeiro, quando o conceito individualista de retribuições e punições tornou-se mais popular e os conceitos de imortalidade e ressurreição atingiram sua maturidade (Isa. 24:21; 25:8; 26:19; 27:13; 53:8, 10; Eze. 37; Dan. 12:2; Ose. 6:1ss). Esta nova ênfase encontra-se mais difundida nos livros extracanônicos (confira 2 Mac. 7:9ss; As Parábolas de Enoque, Baruque e o Testamento dos Doze Patriarcas). Nesta linha continuaram os que se mantiveram no pensamento judaico tradicional, segundo o qual não era possível dividir a personalidade humana em corpo e almaNunca → ALMA (nefes) nem → Espírito (ruach) significaram entidades capazes de existir isoladas do corpo após a morte. O Antigo Testamento resistiu à influência da religião cananéia que celebrava ritualmente o constante retorno à vida de um deus que simbolizava a natureza. Contudo, estudos recentes na literatura de → UGARIT revelam semelhanças linguísticas e literárias fascinantes com os nossos Salmos, especialmente em torno dos conceitos de imortalidade, paraíso, ressurreição e ascensão (confira Sal. 1; 17; 23; 30; 49; 73; 91).

Por outro lado, aparece o pensamento judaico-alexandrino, carregado de filosofia greco-platônica, e o conceito da imortalidade se desenvolve impregnado da ideia dualista da pessoa (corpo e alma). Uma vez que a alma é imaterial, invisível e eterna (já que existe antes do corpo), ela não pode experimentar a destruição. O corpo, por ser visível, finito e material, está destinado à destruição. Esta linha de pensamento se manifesta sobretudo na literatura apócrifa (Sabedoria de Salomão 3:1ss; 9:15; e 4 Mac.), donde o conceito da imortalidade da alma aparece como dogma.

A outra linha de pensamento, apoiada pelos → SADUCEUS, era mais radical e rigorosa: não há imortalidade, porque o homem não sobrevive além da morte (Mar. 12:18).

O Novo Testamento reafirma a imortalidade de Deus (1 Tim 6:16). Quanto ao homem, tanto o ensinamento de Jesus (Mat. 7:14; 18:8s; 19:17; 22:23ss; Luc. 16:24; João 11:23ss) como o de Paulo (Rom. 6:22; 2 Cor 5:4) enfatizam a → VIDA além-túmulo, especialmente para os que creem em Cristo. Entretanto, esta vida não é atribuída à imortalidade do homem, e sim à → RESSURREIÇÃO do corpo, a qual Deus vai realizar em virtude da ressurreição de Jesus Cristo (1 Cor. 15, passim). A palavra athanasia aparece duas vezes em 1 Cor. 15:53s, mas só como sinônimo de incorruptibilidade (→ MORTE).

Bibliografia:

M. Garcia Cordero, Teologia de la Biblia [Teologia da Bíblia],  I, BAC, Madri, 1970, págs. 288s, 479, 510-524, 528. P. van Imschoot, Teologia del Antiguo Testamento [Teologia do Antigo Testamento], Fax, Madri, 1969, págs. 386-424.

– Verbetes “Alma” e “Imortalidade”

Facing Hell: The Story of a Nobody, An Autobiography [Encarando o Inferno: A História de um João-Ninguém, Uma Autobiografia], John William Wenham, Carlisle, Inglaterra: Paternoster Press, 1998:

Imortalidade da Alma

Há, assim, uma grande carga de material que prima facie [à primeira vista] sugere a destruição como o fim definitivo dos condenados. O conceito tradicional obtém a maior parte de sua plausibilidade de uma crença de que o ensino de nosso Senhor sobre Geena tem de ser atrelado a uma crença na imortalidade da alma. Um fogo ardente destruirá qualquer criatura viva, a menos que essa criatura seja imortal. Se o homem é feito imortal, toda a nossa exegese deve mudar. Mas será que ele é? De Gênesis 3 em diante, o homem parece ser realmente mortal; é-nos dito claramente que só Deus tem a imortalidade (1 Tim. 6:16); a imortalidade é algo que os que fazem o bem buscam (Rom. 2:7); a imortalidade para o crente foi trazida à luz pelo evangelho (2 Tim. 1:10) – ele ganha a imortalidade (ao que parece) quando ganha a vida eterna e se torna participante da natureza divina; a imortalidade é finalmente vestida na última trombeta (1 Cor. 15:53). Não, dizem os tradicionalistas, Deus ao fazer o homem o fez imortal, para que ele viva, não só além da morte, mas também além da segunda morte, para todo o sempre. Os fogos do inferno continuarão a infligir dor em pessoas que não podem ser consumidas.

Alguns reconhecem que só Deus é inerentemente imortal e que Ele poderia, se quisesse, aniquilar qualquer coisa que Ele fez, incluindo seres humanos. Mas Ele tanto quis que todos os que creem se tornassem participantes da natureza divina e assim se tornassem imortais, como também quis que os que rejeitassem o convite evangélico não morram, mas continuem vivos sofrendo o tormento sem fim que merecem. Portanto, não somos imortais por natureza, mas por decreto divino, o que, em termos práticos, parece dar no mesmo.

Ora, o curioso é que quando se pede uma prova bíblica da imortalidade da alma, a resposta que normalmente se dá é que ela não é ensinada explicitamente em parte alguma, mas que (conforme já citado de Shedd) “é presumida em todo lugar”. Goulburn também diz que a doutrina da imortalidade do homem ‘parece estar gravada no coração do homem quase tão indelevelmente quanto a doutrina da existência de Deus’. (pág. 68) O grande teólogo holandês Hermann Bavinck a defende como uma doutrina bíblica, mas diz que ela é mais bem demonstrada pela razão do que pela revelação. Que a vida além da morte é repetidamente ensinada nas Escrituras e todos creem nisso instintivamente, eu concordo prontamente, mas de sua natureza e duração nós nada sabemos a não ser por revelação. Se alguma coisa se tornou cristalinamente clara para mim com o passar dos anos, é esta: filosofar sobre a vida após a morte é inútil; devemos nos ater às Escrituras e apenas às Escrituras. Certamente algo tão importante quanto a imortalidade da alma e o tormento eterno dos condenados não pode ser presumido!

– trecho do capítulo 27, “The Case For Conditional Immortality” [A Argumentação a Favor da Imortalidade Condicional], págs. 229-257.

Against Returning to Egypt: Exposing and Resisting Credalism in the Southern Baptist Convention [Contra Retornar ao Egito: Exposição e Resistência ao Credalismo na Convenção Batista do Sul], Jeff B. Pool, Mercer University Press, Macon, GA, EUA, 1998, – págs. 133, 134 (Nota 35):

Por exemplo, com base em estudos bíblicos cuidadosamente desenvolvidos, o evangélico John Stott oferece uma declaração bem ponderada. “Não dogmatizo sobre a posição a que cheguei. Eu defendo isso tentativamente. Mas eu imploro por um diálogo franco entre os evangélicos com base nas Escrituras. Acredito também que a aniquilação final dos ímpios deve, pelo menos, ser aceita como uma legítima e biblicamente fundamentada alternativa ao tormento eterno consciente deles.” (John Stott, “Resposta de John Stott ao Capítulo 6”, em Evangelical Essentials: A Liberal-Evangelical Dialogue [Essenciais Evangélicos: Um Diálogo Evangélico Liberal], David L. Edwards e John Stott [Downers Grove IL, EUA: Intervarsity Press, 1988], pág. 320; veja similarmente Edward Fudge, “The Final End of the Wicked” [O Fim e os Ímpios],  Journal of the Evangelical Theological Society [Revista da Sociedade Teológica Evangélica] 27 [setembro de 1984]: págs. 325-34). De maneira mais precisa, muitos cristãos entendem seus próprios conceitos como “imortalidade condicional” e não sob a designação frequentemente pejorativa de “aniquilacionismo” (por exemplo, John Wenham, The Goodness of God [A Bondade de Deus, Downers Grove IL, EUA: Intervarsity Press, 1974] págs. 34-41). Teólogos batistas contemporâneos também desenvolvem conceitos semelhantes (Clark Pinock, “Fire, Then Nothing” [Fogo, Daí Nada], “Christianity Today” 31 [20 de março de 1987]: págs. 40-41 idem. “The Destruction of the Finally Impenitent” [A Destruição dos Impenitentes]. Criswell Theological Review 4 [Primavera de 1990]: págs. 243-59, idem, “The Conditional View” [O Conceito Condicionalista], em Four Views on Hell [Quatro Conceitos Sobre o Inferno], ed. William Crockett [Grand Rapids, MI, EUA: Zondervan Publishing House, 1992] págs. 135-178; Dale Moody, Apostasia: Um Estudo na Epístola aos Hebreus e na História Batista [Greenville SC, EUA: Smyth & Helwys, 1991] págs. 67-73; idem, Hope of Glory [Esperança de Glória, Grand Rapids: Eerdmans, 1964], págs. 94-112).

Vários conceitos de imortalidade condicional ou aniquilacionismo surgiram anteriormente na história dos batistas. Vários exemplos ilustram esta afirmação. Tanto os Batistas Gerais como os Particulares, desenvolveram versões do aniquilacionismo ou imortalidade condicional. Entre os Batistas Particulares, veja o trabalho de Samuel Richardson, um dos signatários da “Primeira Confissão de Londres” (1644, 1646): Richardson, Sobre os Tormentos do Inferno, com as Fundações e Pilares Expostos, Abalados e Removidos (Londres, Inglaterra: 1658), págs. 135-36. Até uma primitiva declaração de crenças dos Batistas Gerais pode ter acomodado este ponto de vista (“Confissão Padrão de 1660”, em Confissões de Fé Batista, ed. por W. J. McGlothlin [Filadélfia, EUA: Sociedade Publicadora Batista Americana, 1911], págs. 118-19 [artigo 22]). Veja também as obras de William Whiston (1667-1752) e Richard Wright (1764-1836), ambos os quais foram também Batistas Gerais que compartilhavam essa perspectiva (Whiston, The Eternity of Hell-Torments [A Eternidade dos Tormentos no Inferno, 1740]; Wright, An Essay em Future Punishment [Um Ensaio Sobre a Punição Futura, 1846]). Em 1878, alguns batistas ingleses formaram a Associação Condicionalista. George A. Brown, um pastor batista inglês, patrocinou esta conferência e depois editou o jornal desta associação, intitulado Bible Standard [O Padrão Bíblico]. Outros ministros batistas desta época também tinham esse ponto de vista: Henry Hamlet Dobney, um batista inglês (Dobney, The Scripture Doctrine of Future Punishment [A Doutrina Bíblica Sobre a Punição Futura, 1846], e Henry Grew, um inglês que emigrou para os Estados Unidos e foi pastor da Primeira Igreja Batista em Hartford, Connecticut (Grew, The Intermediate State [O Estado Intermediário, 1835], e Future Punishment, Not Eternal Life of Misery [Punição Futura, não Vida Eterna em Miséria, 1844]). Agradeço especialmente a Rick Willis, graduado da SWBTS, por grande parte dessa informação de sua dissertação (Willis, “‘Torments of Hell’: Conditional Immortality and the Doctrine of Final Punishment among Seventeenth-Century English Baptists” [‘Tormentos do inferno’: A Imortalidade Condicional e a Doutrina da Punição Final entre os Batistas Ingleses do Século 17, dissertação de Ph.D., SWBTS, 1995]).

The Encyclopaedia of Judaism [Enciclopédia de Judaísmo], Neusner, Jacob, Avery-Peck, Alan J., Green & William Scott (eds.), Brill Academic Publishers (Leiden, Boston e Tóquio), 1999:

“Uma segunda doutrina da vida após a morte entra no Judaísmo não na própria Bíblia, mas no período intertestamental, isto é, do século I AC ao século I DC. Esta doutrina ensina que todo ser humano é um composto de duas entidades, um corpo material e uma alma não-material; que a alma é preexistente ao corpo e abandona o corpo na morte; que, embora o corpo se desintegre no túmulo, a alma, por sua própria natureza, é indestrutível; e que ela continua a existir por toda a eternidade. Nem sequer uma sugestão desse conceito dualista do ser humano aparece na Bíblia.”

– Volume 1, págs. 200, 201.

“Ainda que estejamos cônscios do amplo e bem comum uso bíblico do termo “alma”, deve ficar claro para nós que as Escrituras não apresentam sequer uma teologia rudimentarmente desenvolvida da alma. A narrativa da criação é clara no sentido de que toda a vida se origina de Deus. Ainda assim, as Escrituras Hebraicas não oferecem qualquer compreensão específica da origem das almas individuais, de quando e como elas se agregam a organismos específicos, ou de sua existência potencial, à parte do corpo, após a morte. A razão para isso é que, conforme observamos no início, a Bíblia Hebraica não apresenta uma teoria da alma desenvolvida muito além do simples conceito de uma força associada com a respiração, portanto, uma força vital.

– Volume 3, pág. 1343.

Baker Encyclopedia of Psychology and Counseling [Enciclopédia Baker de Psicologia e Aconselhamento], David G. Benner & Peter C. Hill (editores), 2a Edição, 1999:

“A erudição moderna tem ressaltado o fato de que os conceitos hebraico e grego de alma não eram sinônimos. Embora a visão de mundo hebraica distinguisse a alma do corpo (como base material da vida), não havia qualquer questão sobre duas entidades separadas, independentes. Uma pessoa não tinha um corpo, mas era um corpo animado, uma unidade de vida que se manifestava em forma carnal – um organismo psicofísico (Buttrick, 1962). Embora os conceitos gregos da alma variassem amplamente, de acordo com a era específica e a escola filosófica, o pensamento grego frequentemente apresentava um conceito da alma como uma entidade separada do corpo. Até décadas recentes, a teologia cristã da alma tem refletido mais o pensamento grego (compartimentalizado) do que as ideias hebraicas (unificadoras).

– pág. 1148.

Eerdmans Dictionary of the Bible [Dicionário da Bíblia Eerdmans], David Noel Freedman, Astrid B. Beck & Allen C. Myers (Eds.), 2000:

“Longe de se referir simplesmente a um aspecto de uma pessoa, “alma” refere-se à pessoa integral. Assim, um cadáver é referido como uma “alma morta”, embora a palavra seja geralmente traduzida como “corpo morto” (Lev. 21:11; Num. 6:6.). “Alma” também pode se referir à própria vida de uma pessoa (1 Reis 19:4; Eze. 32:10). Com frequência “alma” refere-se, por extensão, à pessoa integral”.

–  pág. 1245.

Christ and the Future in New Testament History [Cristo e o Futuro na História do Novo Testamento], Edward Earle Ellis (Brill Academic Publishers Inc., Boston , MA, EUA, 2000):

conceito platônico de que a pessoa essencial (alma/espírito) sobrevive à morte física tem sérias implicações para a cristologia de Lucas e para sua teologia da salvação na história. Para a cristologia isso encontra seu resultado lógico, por exemplo, em uma exegese gnóstica de Luc. 23:46: O homem terreno morreu, ‘mas o próprio [Jesus], entregando o espírito nas mãos do Pai, ascendeu ao Bom’. Para a escatologia isso representa uma platonização da esperança cristã, uma redenção do tempo e da matéria. Lucas, ao contrário, coloca a salvação individual (e a perda dela) na ressurreição no tempo e na matéria no último dia. Ele ressalta que Jesus ressuscitou ‘na carne’ e faz dele ‘o primeiro a ressuscitar dos mortos’, o modelo que deve ser entendido para o caso de todos os ‘que entram na glória”.

Suponho que um dualismo antropológico entrou no pensamento da igreja patrística, principalmente com a grandiosa síntese do cristianismo e da filosofia grega feita por Clemente e Orígenes. Isto eclipsou a esperança cristã primitiva do retorno de Cristo e da ressurreição dos mortos. Mas não caracterizava o cristianismo do Novo Testamento, e só pode ser encontrado em Lucas se lermos os textos com lentes baseadas em Atenas, como fizeram aqueles pais cristãos.

… ao passo que a morte não é um cumprimento individual da salvação, durante a morte a pessoa permanece sob o senhorio de Cristo e sob seu cuidado… (mas) enquanto os mortos cristãos permanecem no tempo, eles não contam o tempo. O hiato no seu ser individual entre a sua morte e a sua ressurreição no último dia desta era é, na sua consciência, um tique do relógio. Para eles, o grande e glorioso dia da Parousia de Cristo é só um momento no futuro. O ‘estado intermediário’ é só algo que os vivos experimentam com relação aos mortos, e não algo que os mortos experimentam em relação aos vivos ou a Cristo.

Aqueles com lentes baseadas em Atenas, numerosos na tradição cristã, enxergam um quadro bem diferente. Eles postulam que uma parte da pessoa, a alma, não está sujeita à cessação do ser (e, portanto, não é um elemento do mundo natural), mas que por ocasião da morte do corpo ela é ‘separada’ para a bem-aventurança sem corpo ou, em uma variação do tema, que há uma ressurreição por ocasião da morte na qual o corpo físico é trocado por um corpo espiritual que já está sendo formado no interior [isto destruiria o programa esboçado em 1 Cor. 15 e muitas vezes em outros lugares].

Embora tenham muitas raízes e acessórios tradicionais, essas teologias têm, penso eu, deturpado seriamente a escatologia da Paulo da salvação na história. É porque Paulo considera o corpo como a pessoa e a pessoa como o corpo físico que ele insiste na ressurreição do corpo, colocando-o na Parousia de Cristo em que a redenção pessoal é associada e faz parte da redenção – pela transfiguração de todo o cosmos físico. O corpo físico transformado do crente será chamado para fora da terra pela palavra criadora todo-poderosa de Deus [na Parousia], não menos do que o corpo físico transformado de Cristo e o corpo originalmente sem vida da criação do Gênesis.

– Págs. 127, 177, 178.

Tyndale Bible Dictionary [Dicionário Bíblico Tyndale], Philip W. Comfort e Walter A. Elwell, 2001:

Não existe no AT qualquer sugestão da transmigração da alma como uma entidade imaterial, imortal. O homem é uma unidade de corpo e alma — termos que não descrevem tanto duas entidades separadas em uma pessoa, quanto descrevem uma pessoa a partir de diferentes pontos de vista. Assim, na descrição da criação do homem em Gênesis 2:7, a frase “uma alma vivente” (KJV) é mais bem traduzida como “um ser vivente.”

– pág. 1216.

Care for the Soul: Exploring the Intersection of Psychology & Theology [Cuidado para a Alma: Explorando a Intersecção da Psicologia Com a Teologia], Mark R. McMinn e Timothy R. Phillips (Eds.), 2001:

“Surgiu um amplo consenso entre os eruditos bíblicos e teológicos de que o dualismo corpo-alma é uma ideia platônica, helenística que não é encontrada em parte alguma na Bíblia. A Bíblia, de capa a capa, promove o que eles chamam de “conceito hebraico da pessoa integral.” G. C. Berkouwer escreve que o conceito bíblico é sempre holístico, que na Bíblia nunca se atribui à alma qualquer significado religioso especial. Werner Jaeger escreve que o dualismo corpo-alma é uma ideia bizarra que foi lida na Bíblia por pais da igreja mal orientados tais como Agostinho. Rudolf Bultmann escreve que Paulo usa a palavra soma (corpo) para se referir à pessoa como um todo, o ser, de modo que não há uma alma e um corpo, mas o corpo é a coisa toda. Esta interpretação da antropologia paulina foi um tema em grande parte da erudição paulina posterior.”

– págs. 107, 108.

Wozu Religion? – Sinnfindung in Zeiten der Gier nach Macht und Geld, Eugen Drewermann, Herder, Freiburg, Alemanha, 2001. (Em português: Religião Para Que? – Buscando Sentido Numa Época de Ganância e Sede de Poder, Ed. Sinodal, Florianópolis, SC, Brasil, 2004.

Enfrentamos o mesmo problema com todas essas questões: a teologia ocidental, seja de Aristóteles ou Platão, dos filósofos gregos naturais ou metafísicos, tentou dar explicações que as atribuíam a Deus como a Causa Suprema. Quando indagados sobre como a vida pode existir, os gregos respondiam: A planta vive por meio de uma alma vegetal, o animal vive por meio de uma alma animal, o ser humano é parte de uma alma racional. E assim, antecipou-se uma classificação sobre os valores que são atribuídos à coisa viva individual. No conceito de Aristóteles, a matéria é inicialmente inanimada, mas quando se combina com uma substância que estabelece a vida, a alma mesmo, surge um corpo vivo. Essa era a ideia.

Este conceito desempenha um papel importante na teologia católica até hoje. Acredito que a maioria dos católicos está sob a doutrina dogmática de acreditar em uma alma imortal, no sentido de que há uma substância no homem que é indestrutível em si mesma e não é afetada pela morte. Existe, por assim dizer, algo no homem como um metal precioso ou um gás nobre que não é afetado por qualquer mudança e que basicamente se liberta na morte. Quando o corpo se desintegra, fica tudo mais fácil. A alma, vista deste ponto de vista, deve ser uma espécie de gás – muito leve – de maneira que ela ascende ao céu na morte.

Estou caricaturizando um pouco esse conceito porque leva a absurdos tanto cientificamente quanto em termos de filosofia natural – não é muito diferente das teorias acerca duma substância de calor ou substância de leveza na história da Física. A ideia da imortalidade da alma só faz sentido na forma simbólica mítica em que os antigos egípcios a formularam: para eles, a alma Ba se elevava na morte como um pássaro dourado e voava de volta ao seu lar sob as estrelas. Este é um cenário maravilhoso, mas não se pode traduzi-lo em categorias metafísicas, como a Igreja Católica tentou.

Isso foi antecipado pela teologia protestante por bastante tempo, sem ter desempenhado um papel importante nas discussões ecumênicas até hoje. Primeiro de tudo, a teologia protestante leu a Bíblia diligentemente e descobriu que a doutrina platônica da alma não existe na Bíblia. Quando Jesus fala de “alma” no Novo Testamento, ele usou a palavra “nephesh” em hebraico. Se o leitor prefere, isto tem paralelo com a palavra alemã “Schnauf” [fôlego]. Se há algo respirando, algo respira, há vida. Este é o sentido do hebraico “alma”. Pode-se dizer também que é o eu [self] do homem. Quando Jesus cita o salmo mencionado acima: “Em tuas mãos entrego meu espírito, minha alma”, isto significa quando muito “eu mesmo”. Quando ele diz: “Que aproveita ao homem se ele ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua alma?” (Mat. 16:26), isso não é espiritualizado, mas Jesus quer dizer: De que adianta as pessoas conquistarem o mundo inteiro como Alexandre, o Grande, e se perderem no final, ficarem loucas no final, assim como Alexandre realmente ficou – ele era um tremendo paranoico.

Para ser preciso, a Bíblia não sabe absolutamente nada sobre o que conhecemos como “alma” na herança platônica e, depois, na forja da teologia católica no Ocidente. No entanto, revela-se que a Bíblia tem esperança para a morte. Mas ela não transmite a crença de que existe algo no homem que perdure além da morte. A ideia que os fariseus desenvolveram, que também desempenhou um grande papel para Jesus e para Paulo, é que Deus é mais poderoso que a morte. A crença é na ressurreição. Isso quer dizer o seguinte: Deus não esquecerá o que fez, o homem individual, mas ele permanecerá nas mãos de Deus. E como ele vem das mãos de Deus e está nas mãos de Deus, ele é eterno. Ou seja, a imortalidade é parte de Deus, pertence ao poder criativo dele.

A crença na imortalidade da alma não é bíblica. A confiança da piedade bíblica é que Deus é Deus e que ele não faz algo que ele rouba da morte, por assim dizer. Toda a esperança que a piedade bíblica apresenta para a morte é direcionada a Deus. Não tem nada que ver com um princípio metafísico no homem.

Assim como fizemos uma mudança dramática de perspectiva na cosmologia ou cosmoteologia, logicamente devemos fazê-lo também na antropologia. Não podemos basear a esperança das pessoas diante da morte em um princípio metafísico que foi permitido ser apresentado a nós para justificar o fato de que há consciência humana e vida humana, mas nossa esperança vem do relacionamento com Deus. Nós confiamos em Deus e que Ele não nos abandonará na morte.

– págs. 120-122.

The Rise and Fall of the Afterlife: The 1995 Read-Tuckwell Lectures at the University of Bristol (A Ascensão e a Queda da Vida Após a Morte: Palestras Read-Tuckwell de 1995 na Universidade de Bristol), Jan Nicolaas Bremmer, Routledge, Nova Iorque, EUA, 2002.

Temos muito menos informação sobre as ideias israelitas acerca da alma e o mundo inferior do que sobre os conceitos gregos, já que nossa única fonte é o Antigo Testamento. Além disso, os textos dos livros do Antigo Testamento que descrevem o período mais antigo dos israelitas foram revisados ​​em um estágio relativamente tardio na história de Israel, provavelmente após o exílio babilônico, na chamada revisão deuteronomista. Consequentemente, os estudos dos conceitos israelitas normalmente se limitam a uma descrição sincrônica para o período abrangido pelo Antigo Testamento. É só no período helenístico intertestamentário que começamos a encontrar influência grega.

Não há no hebraico antigo qualquer termo equivalente à nossa palavra ‘alma’. Das várias palavras que juntas correspondem à nossa noção da alma, a mais importante é næpæš, que parece ter combinado as funções das palavras thymos e psychê dos vivos. Provavelmente ele está ligado a uma raiz que significa “sopro” (Êxodo 23:12, 31:17; 2 Samuel 16:14) e muitas vezes pode ser traduzida como “vida” ou “força vital“. Por exemplo, quando Raquel estava morrendo, sua næpæš a deixou (Gênesis 35:18) e quando o profeta Elias ressuscitou o filho de uma viúva, ele orou pelo retorno de sua næpæs (1 Reis 17:21-2). Ao mesmo tempo, o termo também pode significar a sede das emoções, como a inclinação para o mal (Provérbios 21:10) ou o anseio por Deus (Salmo 42:2). Ao contrário de psychê, porém, nunca significa a alma dos mortos e não é contrastada com o corpo. A antropologia israelita era estritamente unitarista e permaneceu assim até o 1º século DC, quando a crença grega em uma alma imortal começou a ganhar terreno na Palestina e na Diáspora. Não é por acaso que encontramos os primeiros exemplos desse desenvolvimento entre aqueles judeus, que foram profundamente influenciados pela cultura helenística, como Josefo (Bell. Jud. 2:154-65, Ant. 18:14-8) e Filo (De mundi op. 135).

Em tempos históricos, o além-túmulo é chamado de Seol, que na Septuaginta normalmente é traduzido como ‘Hades’, mas nas mais antigas ideias israelitas o túmulo deve ter desempenhado um papel importante, visto que ‘descer à sepultura’ (Salmo 16:10, 28:1 etc.) é equivalente a ‘descer ao Seol’ (Gênesis 37:35, 42:38, etc.) (Salmo 63:10), cheio de vermes e pó (Isaías, 14:11) e do qual é impossível escapar (Jó 7:9f). Seus habitantes semelhantes a sombras (Isaías 14:9) não mais pensavam nos vivos (Jó 21.21) ou mesmo no próprio Deus (Salmo 88:13). O bom e o mau – o Seol recebia todos eles (Salmos 89:49).

Foi só no período pós-exílico que novas ideias vieram à tona. Começou a se conceber os bons e os maus vivendo em compartimentos diferentes do Seol (1 Enoque 22). Como os primeiros estratos do Livro de Enoque devem remontar ao 3º século AC, é cativante conectar esse desenvolvimento com a presença judaica em Alexandria, onde historiadores judeus do começo do 2º século AC já faziam de Orfeu uma testemunha da verdade da lei mosaica. (Artapanus FGrH 726 F 3), e adaptavam literatura órfica no chamado Testamento de Orfeu. Além disso, no 2º século AC, o Seol começou a ser complementado pela Geena. Este vale ao sul de Jerusalém, onde a tradição situou o sacrifício de crianças a Moloque durante a época dos reis, agora era considerado o lugar onde as punições seriam dadas depois do Juízo Final, mas logo se tornou o nome do inferno de fogo destinado aos ímpios logo depois da morte deles e depois do Juízo Final.

Todavia, assim como na Grécia, o antigo e o novo continuaram a coexistir. Josefo relata que os fariseus situavam as almas dos justos e dos injustos no mundo inferior (Bell. Jud. 2.163, Ant. 18.14), mas menciona que ele próprio, apesar de ser fariseu, acreditava que só as almas dos maus iam para Hades, enquanto as almas dos justos permaneciam no céu até a ressurreição final (Bell. Jud. 3.375). De fato, inscrições e publicações judaicas mostram que as antigas ideias sobre a falta de uma vida após a morte real ainda teriam uma vida longa e persistente (Cap. 3.2).

– págs. 8, 9.

Essentials of Christian Theology, [Essenciais de Teologia Cristã], William C. Placher (Ed.), Westminster John Knox Press, Louisville, KY, USA, 2003:

A Morte como a Destruição do Mal

O que dizer da morte? É a morte apenas uma mancha na usualmente boa criação de Deus? Ou a morte tem um significado teológico positivo?

A história bíblica do jardim do Éden em Gênesis 2-3 nos introduz na tensão entre saber que devemos morrer ainda imaginando a vida sem morrer. A queda no pecado que nos sujeita à mortalidade foi precipitada pela violação da ordem de Deus de evitar o conhecimento do bem e do mal. Reagindo a esta desobediência, Deus expulsou Adão e Eva do jardim e colocou os querubins no portão com uma espada flamejante, impedindo que o homem e a mulher voltassem. Por que Deus reagiu com tanta força? Seria isso devido a uma birra do temperamento divino? Poderia Deus alegar uma insanidade temporária, dizendo que foi ira cega que o levou a puxar o gatilho que levou à morte de Adão e Eva? Não, a expulsão do jardim expressa o mesmo amor permanente de Deus que leva à redenção e salvação.

A razão para a expulsão do jardim do Éden tem que ver com a segunda árvore especial. Embora Adão e Eva tivessem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, eles ainda não haviam provado o fruto da árvore da vida. Isto é teologicamente importante. Se eles tivessem comido o fruto da árvore da vida, então “viveriam para sempre” (Gen. 3:22). O que agora chamamos de “queda” introduziu na outrora boa criação de Deus coisas tais como a inimizade entre humanos e animais selvagens, o suor do rosto, pelo qual o pão deve ser obtido da natureza, dores no parto e todo tipo de sofrimento. Nenhum de nós, nem mesmo Deus, deseja que os itens desta lista continuem para sempre. É o amor redentor, então, que motiva Deus a separar Adão e Eva da árvore da vida. Em sua própria maneira a morte torna-se um dom da graça divina; ela marca o ponto em que as consequências para o pecado chegam ao fim. Não há sofrimento na sepultura. A morte é a porta que Deus fechou sobre o mal e o sofrimento dentro de sua criação.

“O salário do pecado é a morte”, escreve Paulo (Rm 6:23). O que isto significa? Podemos interpretar isso negativamente como significando que a morte é a penalidade apropriada para a desobediência. Contudo, poderíamos considerar outra interpretação também. Podemos dizer, à luz de Gênesis 3 e à luz da Páscoa, que a morte desempenha um papel importante no plano divino da salvação? Poderíamos pensar na morte como um passo necessário no caminho rumo à ressurreição para uma nova vida, para uma nova vida imune aos sofrimentos deste mundo decaído?

Se essa interpretação procede, então precisamos enfatizar a totalidade da morte. A Bíblia afirma severamente que nós, seres humanos, somos mortais. Nós realmente morremos e deixamos de existir. Não há salvação por uma heróica almatomia [separação da alma]. A compreensão do pecado com a qual estamos lidando é que o pecado é um vírus que consome a totalidade da existência humana, não deixando órgão algum, seja físico ou espiritual, sem ser infectado. A morte resultante significa extinção total.

Curiosamente, isso parece aproximar-se do modelo do naturalismo científico.1 A morte, teologicamente entendida, põe fim a tudo o que somos e temos neste lado da mortalidade. Ele põe fim a todo o mal. Ele também põe fim a tudo o que é bom, mortalmente bom. Nós não possuímos uma alma intrinsecamente boa, imortal, que está de alguma forma isenta da doença do pecado, de maneira que ela possa simplesmente largar o corpo como uma ostra descascada e ir para um plano celestial de almas desencarnadas. E certamente não há espaço para uma alma má e imortal que similarmente saia do corpo para que sua existência perversa continue eternamente. Quem quer e o que quer que sejamos, morre total e completamente. A morte simboliza esse fim, a terminação.

A Morte e Ressurreição de Jesus

O resultado da história de Adão e Eva se aplica a Jesus. O messias nasce mortal e morre como um mortal, e ele sabe disso. A morte para Jesus é o fim. No Getsêmani ele está “muito angustiado e perturbado”, dizendo aos seus discípulos: “Minha alma está pesarosa até a morte” (Marcos 14:33-34). Em agonia, Jesus ora “com grandes clamores e lágrimas” (Heb. 5:7), e seu suor se torna como grandes gotas de sangue que caem no chão”  (Lucas 22:44). Jesus pede a Deus: “Afasta de mim este cálice” (Marcos 14:36). “Jesus está com medo”, escreve Oscar Cullmann. “Ele está com medo diante da própria morte. A morte para ele não é algo divino; é algo pavoroso”. Jesus clama da cruz: “Meu Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” (Marcos 15:34). Esta é a morte em todo o seu terrível horror. É o que Paulo chama de “último inimigo” de Deus (1 Cor. 15:26).

Sugere isso que Jesus é um covarde? De jeito nenhum. A coragem dele é firme. Apesar de sua petição na oração do Getsêmani para que não tenha de beber o cálice da morte, ele ainda conclui suas orações, “Mas não o que eu quero, e sim o que tu queres” (Marcos 14:36). E apesar de sua agonizante sensação de abandono na cruz, ele ainda grita: “Pai, em tuas mãos confio o meu espírito” (Luc. 23:46). A morte é terrível, mas a fé de Jesus é forte.

A morte que Jesus sofre na Sexta-Feira da Paixão é a morte de Adão, a morte de todos nós. No entanto, este não é o fim da história. Na Páscoa, Deus levanta o falecido Jesus para uma vida nova e eterna. Jesus morre como um mortal, mas o Deus criador da antiga criação age com o poder da nova criação. Deus concede uma nova vida.

Esta nova vida – a vida da nova criação – é diferente da velha vida da qual Jesus desistiu. A nova vida não está mais sujeita ao pecado, sofrimento ou morte. É isso que torna a ressurreição de Jesus salvífica. Neste respeito, vemos um contraste entre a ressurreição de Jesus na Páscoa e outros milagres de ressurreição, como o filho da viúva em Naim (Lucas 7:11-17), da filha de Jairo (Marcos 5:21-43) e de Lázaro (João 11:38-44). Nesses milagres vemos a ressurreição de um cadáver. Três pessoas foram levantadas, mas não foram levantadas para a imortalidade. Elas simplesmente foram devolvidas à vida mortal. Todas teriam de enfrentar a morte novamente, assim como o resto de nós. Mas o cadáver de Jesus não foi apenas ressuscitado, não apenas restaurado à vida comum. Ninguém esperava que Jesus voltasse a Nazaré para retomar seus deveres como carpinteiro. A existência ressuscitada de Jesus havia se tornado escatológica. Jesus não terá de morrer novamente. Quando aqueles que desfrutaram da comunhão com o Jesus ressuscitado relataram o que viram, eles não disseram: “Vejam, o Nazareno está de volta!” Pelo contrário, eles relataram que tinham visto “o Senhor” (Lucas 24:34, João 20:18).

A Páscoa abre o portão para que, ao compartilharmos a ressurreição de Jesus, passemos para uma vida nova e eterna. Jesus é “as primícias” dos que “dormiram” em suas sepulturas (1 Coríntios 15:20). Jesus é a antecipação, a prefiguração, a prévia do que seremos em nossa ressurreição. Como ele se levantou na Páscoa, assim nós seremos levantados para a nova criação. Quando nos viramos e olhamos para trás, vemos a morte de Jesus como o anjo com a espada flamejante no jardim do Éden, impedindo que o sofrimento e a morte nos sigam na nova criação.

O Corpo Espiritual

Neste ponto, voltaremos a atenção para mais detalhes sobre a natureza do corpo ressuscitado. À medida que avançarmos, ficará claro que estamos trabalhando com um novo modelo, sob uma forma bastante diferente das discutidos anteriormente.

A imagem que Paulo usa é a de uma semente plantada no chão. A flor ou árvore que cresce parece muito diferente da que tinha sido plantada. No entanto, a fim de evitar qualquer possível má interpretação em termos de almatomia, ele explora a aparência como que morta da semente típica por dizer: “O que você semeia não vem à vida a menos que morra” (1 Coríntios 15:36). Esta analogia é delicada. Paulo deseja afirmar continuidade e descontinuidade entre as realidades presente e futura. A ressurreição não é exatamente uma criação do nada, mas a criação de algo a partir de outra coisa. Em contraste com a criação do mundo a partir do nada, creatio ex nihilo, a ressurreição é transformação ou creatio ex vetera (“criação a partir de algo antigo”); Contudo o poder da criação de Deus está em ação em ambos os casos. Este é o ponto que Paulo está estabelecendo: uma semente morta é semeada, mas o que é colhido é nova vida.

Paulo descreve esta colheita escatológica em termos de quatro contrastes complementares:

Assim é com a ressurreição dos mortos. O que é semeado é perecível [corrupto, phthora], o que é ressuscitado é imperecível. [incorrutível, aphtharsia]. É semeado em desonra [atimia], ressuscitado em glória [doxa]. É semeado em fraqueza [astenia], é levantado em poder [dynamei]. É semeado um corpo físico [soma psychikon], é levantado um corpo espiritual [soma pneumatikon]. (1 Coríntios 15:42-44)

Ser ressuscitado “imperecível”, seja isso aplicável a Jesus ou a nós, é ser ressuscitado para a vida eterna. O corpo de alguém não seria ressuscitado para o propósito de simplesmente retornar à sua labuta diária. Doxa, que em referência aos corpos celestes geralmente significa “brilho”, significa aqui que somos criados em “honra”. O “poder” no qual seremos levantados, dynamis, é o mesmo poder pelo qual os milagres de cura são realizados (1 Cor. 12:28).

É teologicamente importante dar atenção especial ao contraste entre os corpos terrestre e espiritual. Paulo não descreve o corpo terrestre morto como um “corpo de carne” (soma sarkikon). Literalmente, este é o corpo com alma que nós associaríamos com a tradição filosófica grega. Este conceito de um ser humano era comumente conhecido entre os judeus de língua grega como Paulo. O importante é isto: Para Paulo, a alma morre. Como se fosse para salientar isso, Paulo diz que não é a psyche [“alma”] que encontramos na ressurreição, é o soma [corpo]. O corpo ressuscitado é um “corpo espiritual” que levanta para a nova criação, no reino de Deus.2

A Vindoura Nova Criação: A Escatologia Cósmica

Conforme venho sugerindo, o destino humano é inseparável do destino cósmico. Um elemento em comum entre os vários modelos da imortalidade – o naturalismo científico, a imortalidade da alma, a reencarnação com absorção no infinito, a projeção astral, a presença ancestral e a vida após a vida – e o seguinte: Todos lidam com a questão do destino humano de maneira isolada da questão do destino cósmico. Todos assumem que o mundo natural permanecerá basicamente o que é. Não é assim no caso do conceito cristão. O que acontece conosco depende do que acontece com o universo. A ressurreição num corpo espiritual só pode ocorrer no advento do eschaton, o “tempo do fim”. Se não houver transformação cósmica, então não há ressurreição, e se não há ressurreição, nossa fé é em vão e de todas as pessoas somos os mais dignos de pena (1Cor. 15:14, 19).

Isto significa que sua ressurreição e minha ressurreição estão indissociavelmente ligadas à parousia escatológica, a segunda vinda de Cristo. Paulo sugere uma ordem das coisas. Primeiro vem Cristo, as primícias (1 Coríntios 15:23). Isto provavelmente se refere à Páscoa. Então, na sua vinda, “os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro, então nós que estivermos vivos” (1 Tes. 4:16-17). Ele “transformará o corpo da nossa humilhação, para que seja conformado ao corpo de sua glória” (Fil. 3:21, veja Rom. 8:29). “Daí o fim, quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois que ele tiver destruído todo governante e toda autoridade e poder… O último inimigo a ser destruído é a morte” (1Cor. 15:24-26). Para entender o corpo ressuscitado, precisamos colocá-lo dentro do horizonte mais amplo da nova criação prometida por Deus. Assim como a criação é transformada, assim somos nós.

O Conflito entre a Entropia e a Escatologia

Todavia, os teólogos contemporâneos confrontam-se com um imenso desafio neste momento, um desafio que vem da cosmologia física nas ciências naturais. A teoria dominante da origem do universo é a teoria do Big Bang [a “Grande Explosão”]. Segundo essa teoria, o universo está imerso em temporalidade; ele tem um passado finito com um começo talvez 13,7 bilhões de anos atrás. No ponto inicial, uma singularidade incrivelmente densa explodiu. A grande explosão liberou violentamente matéria e energia para todas as direções, e nós na terra agora nos encontramos voando para o exterior e para mais longe do estrondo cósmico original. Esta teoria científica parece consonante com os compromissos bíblicos fundamentais para com uma criação divina a partir do nada. Aparentemente a ciência fornece um testemunho indireto do que os cristãos afirmam ser o caráter da criação de Deus.

Os teólogos podem se alegrar com o que a ciência nos diz sobre o passado. Todavia, este não é o caso sobre o futuro. A segunda lei da termodinâmica, também conhecida como entropia, levanta questões para a escatologia cristã. Esta lei afirma que a energia flui em apenas uma direção, do quente para o frio, e não o contrário. A entropia é o nível de desordem no universo, e a segunda lei declara que a entropia, em geral, está sempre aumentando. Se a grande explosão lá no início foi o momento mais quente na história do cosmos, então o futuro que contemplamos é um de entropia incrementada, de dissipação em equilíbrio. O que isto significa é que o universo está destinado a congelar-se saindo da existência. Ainda que ao longo do caminho a gravidade faça com que ele desmorone em outra densa bola de fogo e exploda novamente, o cosmos atual ainda chegará ao fim. Seja ele congelado ou queimado, o futuro da vida em nosso mundo não é infinito. Assim como os indivíduos, o cosmos como um todo está destinado à morte. Pelo menos, esta é a profecia científica dos cosmólogos.

Será que esta profecia se parece com a anunciada pela escatologia cristã? Não. A entropia e a escatologia parecem estar em conflito direto. A escatologia cristã não profetiza um futuro distante em equilíbrio que tenha esquecido o seu passado. Em vez disso, ela agora contempla vagamente por meio de um espelho um futuro brilhante, o futuro da nova criação prometida por Deus na ressurreição pascoal de Jesus. A atual criação está marcada para a transformação, e a ressurreição de Jesus é o microcosmo da transformação macrocósmica prometida. “Mas de fato Cristo ressuscitou dentre os mortos”, escreve Paulo, “as primícias daqueles que morreram” (1 Coríntios 15:20). Assim como ele se levantou, nós também seremos. E aquilo para o qual seremos levantados é a nova criação.

Gostaríamos de ver consonância, mas, em vez disso, vemos dissonância entre a cosmologia física e escatologia cristã. Em princípio, então, a cosmologia física, da maneira como os cientistas colocam, tem o potencial de tornar falsa a crença cristã na ressurreição. Para os cristãos, o próprio conceito da ressurreição pascoal implica a promessa divina para a renovação de toda a criação. O fracasso da criação em sofrer transformação invalidaria a alegação cristã. Se o naturalismo científico vencer – significando que Jesus permaneceu morto e nós também permanecemos – então a fé cristã é em vão.

Os teólogos não precisam correr para a fila do desemprego. Embora possamos dizer que a afirmação cristã seja tornada falsa em princípio, isto não é empiricamente viável. Qualquer refutação final da afirmação cristã exigiria observar a dissipação real do universo em 65 bilhões de anos ou mais no futuro longínquo. Não se espera que laboratório algum da geração atual dure tanto tempo, e nenhum cientista viverá o suficiente para ver isso.

No entanto, este desafio tem uma mensagem para a metodologia teológica. A previsão escatológica, como se apresenta, não deve depender da condição atual da ciência natural para ter apoio conceitual. Se uma nova criação futura realmente vier, como Deus prometeu, então sua chegada terá de ser devida a uma intervenção divina. Deus terá de agir. O mundo natural não evoluirá para uma nova criação por conta própria. Se tal transformação deve ocorrer, ela terá de vir como um dom de nosso Deus criador. Ninguém pode prever um ato criativo de Deus; assim, isto permanecerá imprevisível pela investigação científica.3

– págs. 350-355.

The Westminster Theological Wordbook of the Bible [Vocabulário Teológico da Bíblia de Westminster], Donald E. Gowan (Ed.), Westminster John Knox Press, Louisville, Kentucky, EUA, 2003:

Imortalidade, Imortal (veja também Ressurreição) “Imortalidade” é a tradução de dois substantivos que aparecem dez vezes no Novo Testamento: athanasia (“imortalidade”), que ocorre três vezes e denota a imunidade da morte usufruída por Deus (1 Tim 6:16) e pelos crentes ressuscitados (1 Cor 15:53-54); e aphtharsia (“incorruptibilidade” ou “imperecibilidade”), que ocorre sete vezes e significa a imunidade à decadência que caracteriza a condição divina (1 Cor 15:42, 50, 53-54). O adjetivo aphthartos (“imortal”, “incorruptível” ou “imperecível”) ocorre quatro vezes e descreve a qualidade da natureza divina (Rom 1:23; 1 Tim 1:17), a recompensa do cristão (1 Cor 9:25), e a condição futura dos crentes ressuscitados (1 Cor 15:52). Todos estes termos ocorrem apenas nas cartas paulinas – a maioria em 1 Cor 15.

A imortalidade humana inerente, porém, é uma ideia alheia às Escrituras Judaicas, e não existe um termo equivalente no AT à athanasia (“imortalidade”). Apenas Deus é “vivente” (Deu. 5:26; Jos. 3:10; Sal. 42:2; 84:2, Jer. 10:10) e o possuidor da “vida” (Sal. 36:9). Na verdade, no AT, assim como em toda a literatura antiga do Oriente Próximo, é a mortalidade dos humanos que os separa da deidade ou dos deuses. Embora se pense que alguns mortais cruzaram essa fronteira, e foram dessa maneira admitidos diretamente no mundo divino (por exemplo, Utnapishtim na Epopeia de Gilgamés; aparentemente também Enoque de Gênesis 5:24 e Elias de 2 Reis 2:3-12), tais casos foram considerados exceções e a imortalidade intrínseca aos humanos é rejeitada.4

Foi só durante o período do Judaísmo do Segundo Templo (cerca de 200 AC – 120 DC), quando o conceito grego de imortalidade foi fundido com o conceito hebraico dos seres humanos que foram criados “à imagem de Deus” (Gen. 1:27), que os judeus começaram a distinguir entre corpo e alma (1 Eno. 22:7; 102:5; Sab. 9:15; 2 Mac. 7:37; 14:38; Let. Aris. 139; 236; Josefo, Contra Apião 2.203) e a considerar a alma como inerentemente imortal (Josefo, A Guerra judaica 1.84; 2.154-55, 163; 6.46; 7.341-48; Antiguidades Judaicas 17.354; 18.14, 18). Alguns desses conceitos de imortalidade judaica foram revestidos em linguagem da ressurreição, outros em cenários astrais, outros em terminologia extraída de ideias sobre reencarnação e transmigração de almas, e ainda outros em formas de expressão antropológica tipicamente grega.

Da mesma forma, um entendimento grego da imortalidade da alma é alheio ao NT. É só Deus que possui a vida em si mesmo (João 5:26; 6:57) e é inerentemente imortal (1 Tim. 6:16). Ele torna vivo por meio de seu espírito, e assim o seu espírito é chamado de “dador da vida” (João 6:63; 1 Cor 15:45). Foram escritores cristãos do final do primeiro século e do segundo século que, tentando fazer o evangelho palatável para a mente grega e defendê-lo contra falsas acusações, retomaram a tese de que a alma humana (psyche) é intrinsecamente imortal (athanatos, “imortal”), comparando-a, por exemplo, com a fênix mitológica, um pássaro que a cada quinhentos anos morria, mas se reconstituía de seus restos materiais decompostos para continuar por mais um período de quinhentos anos, ad infinutum (1 Clemente 24-27; Justino, o Mártir, Primeira Apologia 44:9, Diálogo com Trifo 4:5; 124:4; Taciano, Discurso aos Gregos 13:1; 15:4; e a epístola anônima a Diogneto 6). E, embora estes primeiros apologistas usassem tais analogias para apoiar uma doutrina cristã da ressurreição, eles falharam em distinguir entre o ensino cristão sobre a imortalidade, que é dada aos crentes por Deus por ocasião de sua ressurreição e as crenças greco-romanas na imortalidade natural da alma.

Imortalidade e ressurreição. Os termos para a imortalidade no NT – sejam athanasia (“imortalidade”), aphtharsia (“incorruptibilidade” ou “imperecibilidade”), ou aphthartos (“imortal”, “incorruptível” ou “imperecível”) – jamais são usados ​​em conexão com a palavra “alma” (psyche), mas sempre associados apenas com a ressurreição e a transformação de pessoas (oito vezes, todas em 1 Cor 15). E jamais vemos Paulo (ou qualquer outro escritor do NT) usando o substantivo athanatos (“imortal”) ou o verbo athanatizo (“Eu faço imortal” ou, na voz passiva, “eu me torno imortal”), que eram termos comuns para a imortalidade no mundo grego – ainda que o verbo tivesse sido adequado em trechos tais como Rom 8:11 e 2 Cor 5:4. Pode-se argumentar plausivelmente que estes últimos termos foram evitados por Paulo e outros escritores do NT porque poderiam mui facilmente ter sido mal interpretados como significando que a imortalidade era natural para a condição humana e existia à parte da ressurreição.

Ao falar da unicidade de Deus, 1 Tim 6:16 afirma: “É o único que tem imortalidade”. O corolário de Deus sendo o único intrinsecamente imortal é que qualquer imortalidade atribuída aos humanos deve ser vista como um dádiva gratuita da vontade divina (Rom 2:7; 6:23). Os seres humanos só podem ser imortais de forma derivada. A imortalidade deles não é essencial ou intrínseca, e sim derivada ou extrínseca.

Primeira aos Coríntios 15 coloca claramente a recepção da imortalidade no momento da ressurreição, pois justapõe a ressurreição e a imortalidade em frases tais como “o que é levantado é imperecível” (v. 42) e “os mortos serão levantados imperecíveis” (v. 52). Isto não significa que os mortos serão ressuscitados, sendo assim vistos como já imortais, e sim que os mortos serão ressuscitados e dessa forma se tornarão imortais. Longe de já possuir a imortalidade, os crentes em Cristo Jesus são descritos como aqueles que “buscam” a imortalidade (Rom 2:7) e a recebem no momento de sua ressurreição (1 Cor 15: 20-23, 42-53).

Do ponto de vista cristão, as doutrinas da “imortalidade” e da “ressurreição” estão juntas. É um caso de “ressurreição para a imortalidade” e “imortalidade por meio da ressurreição” – ou, conforme expresso por Paulo e reformulado por Murray Harris, “levantado imortal”. Negar a ressurreição é negar a imortalidade, uma vez que a encarnação envolvida no evento da ressurreição é necessária para o gozo da existência significativa implícita pela imortalidade. Por outro lado, negar a imortalidade é negar a ressurreição, já que o fornecimento permanente da vida divina garantido pela imortalidade é necessário para sustentar ressurreição de vida das pessoas transformadas. Cada uma envolve a outra, de modo que escolher entre elas não só é desnecessário, como também impossível.

– págs. 225-227.

Grande Enciclopédia BarsaMacropédia, (anteriormente Encyclopaedia Britannica do Brasil, atualmente propriedade da Editorial Planeta), edição impressa, 2004:

A noção de alma como “sopro”, princípio ativo do corpo, acha-se em quase todos os povos e culturas, tornando-se objeto de constante elaboração filosófica, desde os pitagóricos até a teologia contemporânea ou a psicanálise de Jung.

Definida como elemento vital e espiritual do ser humano, a alma foi sempre um dos problemas mais constantes da maior parte das religiões e filosofias de todos os tempos. Diversas manifestações religiosas encontraram nela seu interesse principal, como o animismo e o espiritismo, e também algumas correntes filosóficas, especialmente as originárias do platonismo, que defendia a imortalidade da alma e a metempsicose (transmigração das almas).

O dualismo inerente à abordagem platônica é uma herança do orfismo e do pitagorismo: a alma pertence à esfera divina, ao mundo das idéias e das formas, confundindo-se com estas e sendo, por isso, eterna, imortal, indestrutível. “O corpo é a prisão da alma”, ensina Platão, correspondendo ela, assim, a uma entidade oposta à existência corpórea, a que só pode chegar através da “queda”.

Para os profetas e pensadores hebreus, “a personalidade do homem era um corpo animado, não uma alma encarnada”, mas o platonismo chegou a exercer maior influência sobre os filósofos cristãos do que a tradição hebraica: a patrística foi quase totalmente dominada pela síntese platônica, que, com o tempo, se tornou parte da doutrina, da prática, da liturgia e da hinologia cristã…

O texto bíblico não oferece nenhuma base para a concepção dicotômica e tricotômica do homem. A alma, na Bíblia, não corresponde a uma parte do ser humano, mas ao homem em sua manifestação de ser vivo, não no sentido biológico simplesmente, porque a alma é a vida humana de um ponto de vista individual, referindo-se a um sujeito consciente e voluntário. Nessa perspectiva, o teólogo suíço Karl Barth é ao mesmo tempo aristotélico e bíblico, quando afirma: “O homem é a alma de seu corpo, a alma racional guiando o organismo vegetativo e animal que está a seu serviço. Mas é um só e o mesmo ser, não dois domínios separados; trata-se sempre de um todo, do homem.” Outro teólogo protestante, Rudolf Kittel, acentua igualmente a unidade da natureza humana. Essa é também a direção da teologia católica mais recente, quer em seu novo catecismo, quer na orientação divulgada pelo concílio ecumênico Vaticano II.

– Volume 1, págs. 266, 267.

Richard T. Ritenbaugh, The Fifth Seal (Part One) [O Quinto Selo (Parte 1)], Forerunner, setembro/outubro de 2004:

A palavra “almas” (psuchás, plural de psuché) [em Apocalipse 6:9] também requer explicação, visto que a palavra grega é muito complexa em significado para ser definida simplesmente como a essência imortal de uma pessoa, como a maioria dos católicos e protestantes se inclina a fazer. Seu significado básico é “respiração”, e é, portanto, equivalente ao hebraico nephesh e ao latim anima (como em inglês “animal” e “animar”). Uma de suas aplicações é como a versão do Novo Testamento do que Gênesis 2:7 chama de “sopro da vida”, isto é, a força vital que faz um corpo viver: “E o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem se tornou um ser vivente [nephesh]”. Lucas 12:20 e Atos 20:10 usam psuché dessa maneira.

Deste significado básico derivam suas extensões, tais como “vida” (veja Mateus 6:25; João 10:11; Filipenses 2:30; Apocalipse 12:11) e “ser vivente” (veja 1 Coríntios 15:45; Apocalipse 16:3). Além disso, psuché pode se referir ao centro da emoção, vontade e desejo, enquanto hoje usaríamos os termos “coração”, “mente”, “personalidade” ou “ser” (veja Lucas 1:46; Atos 14:2, 22; Hebreus 6:19; 2 Pedro 2:14). Em um sentido similar, também pode identificar a vida moral e espiritual do homem (veja Hebreus 13:17; 1 Pedro 1:22; 2:11, 25; 4:19; 3 João 2).

Alguns tentam ler imortalidade em certos usos bíblicos de psuché (por exemplo, Atos 2:27, 31; 2 Coríntios 1:23; Apocalipse 20:4), mas a Bíblia não apóia essa interpretação. Na verdade, em um deles, Mateus 10:28, Jesus confirma que as almas podem de fato ser destruídas (o que é também apoiado pelo Antigo Testamento em Jó 33:22; Ezequiel 18:4, 20)! Para encontrar usos de psuché que definam “a alma como uma essência que difere do corpo e não é dissolvida pela morte” a pessoa deve consultar fontes extrabíblicas (como Platão, Xenofonte, Heródoto e outros escritores gregos) (Thayer’s Lexicon).

Como então esta palavra é usada em Apocalipse 6:9? Devemos lembrar que João está tendo uma visão (Apocalipse 1:10), uma representação simbólica para olhos e mentes mortais de eventos futuros, não a realidade. Não se pode ver a alma de uma pessoa, isto é, seu ser, sua vida, então o que João viu foram representações dos que foram martirizados. Ele provavelmente viu literalmente corpos (do grego soma) sob o altar, mas optou por identificá-los como psuchás, “vidas” ou “pessoas”, porque, como os versículos seguintes mostram, a visão os retrata falando e recebendo roupas, coisas que uma pessoa só pode fazer enquanto viva.

O ponto importante a ser lembrado é que João os identifica especificamente como tendo sido “mortos” — eles estão mortos — e a Bíblia em outros lugares mostra que “os mortos não sabem nada” (Eclesiastes 9:5) e não podem trabalhar, planejar, aprender ou empenhar-se em qualquer atividade na sepultura (versículo 10). Assim, João, um hebreu, está usando psuché no mesmo sentido em que os escritores do Antigo Testamento às vezes usam nephesh, como “corpo morto”, um ser que já teve vida (veja Levítico 21:11; Números 6:6; 9:6-7, 10; 19:11, 13; Ageu 2:13).

The SCM Press A-Z of Patristic Theology [A Teologia Patrística de A a Z – SCM Press], John Anthony McGuckin, SCM Press, Inglaterra, 2004:

Alma – A alma (latim: anima, grego: psyche) foi um conceito fundamental para o pensamento patrístico, de certo modo fundacional, por seus esquemas místico, antropológico e soteriológico, porém um onde diversas questões não resolvidas podem ser vistas na maioria dos autores. Em parte isto é porque, neste aspecto, a tradição intelectual cristã envolveu uma herança anterior bem misturada. Os dados bíblicos sobre a alma, e os das várias escolas filosóficas gregas, se acumularam em um conjunto de ensino muito diversificado. Os primeiros séculos da era patrística foram gastos tentando sintetizar grande parte desse conjunto de evidências. No Antigo Testamento, o conceito de alma é abordado de várias maneiras. Os textos frequentemente usam a palavra nephesh para descrever o sopro de vida em um ser humano, como essa força vital distintiva que Deus inspirou no barro para fazer uma criatura viva (Gênesis 2:7). Porém, mais comumente os escritores cristãos quiseram usar o termo espírito (grego: pneuma) para conotar este aspecto da força vital interna divinamente concedida, esse elemento que distingue um ser humano, digamos, dos animais. Este aspecto não é necessariamente evidente em grande parte da teologia hebraica primitiva, ou na maioria das referências do Novo Testamento à “alma”, que simplesmente a usam no formato bíblico para se referir à criatura, porém ele se tornou um aspecto notável nas reflexões cristãs posteriores que estavam sendo articuladas em um contexto de pensamento grego, o qual há muito tempo especulava sobre a composição interna da consciência humana. A distinção entre alma e espírito permaneceu sempre tênue na reflexão cristã. No que se refere à influência do helenismo, três grandes escolas tinham, muito antes do aparecimento do cristianismo, erguido uma rivalidade distinta em relação à questão da alma humana. Platão ensinava que a psyche tragicamente decaiu numa existência material encarnada de uma vida espiritual anterior, onde ela podia contemplar as Formas Ideais com uma clareza inabalável. Presa num corpo (“o corpo uma prisão” era o lema platônico), a alma padecia todos os tipos de males, não menos a incapacidade de perceber a verdade com alguma certeza. Sua tarefa básica era transcender a ilusão material e retornar à sua antiga dignidade, por assumir o controle através de seu poder racional (to logistikon) sobre a “alma inferior”, que era o centro estético da vida. A alma, para Platão, era eterna e independente (pelo menos em seus aspectos superiores como to logistikon). De maneira diferente, o aristotelianismo, argumentava fortemente que a alma era uma parte fundamental da entelequia [essência] interna da natureza humana, e não uma centelha exterior à parte, presa dentro de uma forma material. Ela nascia junto com o corpo e era a força vital que fazia todo o organismo crescer até seu fim determinado. Assim como uma bolota tem uma força interior que a leva ao seu telos [fim] natural (o carvalho), do mesmo modo a alma humana serve para guiar o desenvolvimento de um ser humano através dos estágios do embrião até o do ser pensante, racional. O estoicismo, por sua vez, argumentava que a alma era o princípio da vida (comparável ao aspecto “diretivo” do platonismo: to hegemonikon), que se originava da reconstituição dos elementos cósmicos após grandes conflagrações cíclicas. A alma era o locus [local] da centelha divina do Logos, que permeava cada ser vivo dotado de razão. Ela era, assim, o princípio da razão dentro de um ser humano e a sede da divindade dentro da forma mortal. Era material na natureza, como dissera Aristóteles, mas não material no sentido do que a matéria básica era, visto que a alma tinha uma “natureza impetuosa” especial, que era refinada e sutil. Cada abordagem que as várias escolas deram à alma atraiu diferentes teólogos patrísticos. Platão deu uma forte ênfase à imortalidade inerente da alma. Inicialmente, muitos cristãos resistiram a isso como incompatível com a mensagem do evangelho, e o conceito de “imortalidade condicional” da alma era o preferido, a saber, que Deus elevaria o ser humano à vida imortal (e não só a alma, mas o corpo também), se (e somente se) a criatura fosse obediente à aliança. Só depois do terceiro século foi que a pressuposição da imortalidade da alma veio a ser mais comumente aceita no mundo cristão. As figuras dominantes de Agostinho e Orígenes foram muito influentes para este desenvolvimento. Por sua vez, o estoicismo deu à igreja uma base atraente para refletir sobre a maneira pela qual a alma era o local interior da divindade: o lugar onde residia a centelha do Logos. Não foi um longo passo associar isto com a vibrante imagem do Novo Testamento da alma como sendo o templo do Espírito Santo, o lugar interno onde Deus habitava na criatura. O próprio Paulo tinha visto a conexão, e muitas das próprias reflexões dele sobre a psyche e a alma foram influenciadas por essa mesma mistura de ideias filosóficas correntes na época, que estariam disponíveis para os teólogos patrísticos depois dele. Por sua vez, eles foram os herdeiros adicionais da linguagem sintética paulina do corpo-alma-espírito (1 Coríntios 6:20, 7:34; 1 Tessalonicenses 5:23), e até pensaram que isso pode ter sido uma tentativa um tanto ingênua de Paulo de reconciliar algumas das ideias em voga no tempo dele na antropologia espiritual, porém, como elas vieram de um apóstolo, tornaram-se imediatamente autoritativas para a tradição patrística e a moldaram até certo ponto. Por sua vez, o aristotelianismo deu à igreja um forte senso da alma como uma força vital dinâmica, que dirigia o desenvolvimento de todo um organismo, isto é, seu progresso físico e emocional, bem como seu progresso intelectivo e moral. A alma como um centro integrador da consciência e escolha moral foi, assim, tomada na forma do aristotelianismo e foi muito utilizada na ética cristã, bem como nos posteriores escritos monásticos sobre a purificação ascética do coração como uma preparação primária para a apreensão mística de Deus. Toda essa articulação cristã de uma doutrina da alma foi uma vasta síntese filosófica e religiosa. Isso não aconteceu conscientemente, ou talvez com uma refinada coerência sistemática, mas mesmo assim evoluiu ao longo de vários séculos à medida que intelectuais cristãos de projeção tentavam fazer intervenções nas grandes disputas sobre a origem e a natureza da alma que iam ocorrendo no mundo antigo. Justino o Mártir foi um dos primeiros dentre os Pais a ter interesse específico na questão. Ele criticou a teoria da imortalidade platônica, argumentando que Deus criou as almas, elas não preexistiam eternamente, e que a alma seria imortal apenas por uma dádiva de Deus, não por causa de sua própria força vital (Diálogo com Trifo 4-5). Irineu, notando isso, sublinhou a teologia como uma característica marcante que divide o sentido bíblico da criaturalidade do sentido platônico da auto-subsistência da alma (Her. 2.19, 29, 33-34). Irineu também fez movimentos para sintetizar aspectos do estoicismo, argumentando que a alma é a força diretiva (hegemonikon) em uma vida humana, mas não como Platão pensava, pois é uma função integral da alma completa estar direcionada a Deus, não um aspecto separado de uma mera parte da alma (o to logistikon de Platão). A exegese de Irineu sobre a psicologia tripartida de Paulo da alma, do corpo e do espírito interpretava enfaticamente que o espírito neste caso (1 Tes. 5:23), significa o Espírito divino residente, não um espírito humano-divino separado, como os estóicos (e talvez alguns cristãos gnósticos, contemporâneos deles) tinham sugerido (Her. 5.6.9). Tertuliano logo colocaria a maior parte dessa teologia cristã em um tratado compacto intitulado Da Alma. Ele pensou, partindo de premissas bíblicas, que a alma não era preexistente de modo algum, e sim transmitida ao filho por meio do sêmen do pai no ato da concepção (Traducianismo), um conceito que depois entrou em conflito com a crença cristã alternativa de que ela era criada diretamente por Deus por ocasião da concepção (Criacionismo) e introduzida no embrião concebido como a consagração direta de cada vida por Deus. Foi essa pressuposição criacionista que fez do aborto um ato tão maligno na mente da igreja primitiva. Tertuliano também pensava que os estóicos provavelmente estavam certos em afirmar que essa alma humana era uma substância muito refinada e etérea, mas não totalmente “espírito” (ou seja, imaterial). Foi a obra de Orígenes que desafiou dramaticamente o conceito de Tertuliano. Ele estava vividamente ciente de que a alma era um dos grandes problemas filosóficos da época e delineou as variedades de crença sobre o assunto em seu Comentário Sobre o Cântico dos Cânticos 1.8 e também no prefácio de seu De principiis. Orígenes ensinou que a alma era inteiramente incorpórea em sua natureza, tinha preexistido o mundo material e foi enviada à Terra, encarnada, para cumprir sua punição por pecados anteriores no domínio celestial. Como tal, ela tinha a tarefa de disciplinar o corpo e assim fixar sua própria reorientação para o divino. A alma era o lugar e o centro da criatura como uma entidade espiritual, e era ela própria o lugar da imagem de Deus dentro da humanidade. Depois de Orígenes, a ideia de que a alma era uma substância material refinada, virtualmente evaporou da teologia cristã (confira o Diálogo com Heráclides, de Orígenes). As ideias dele sobre a preexistência da alma foram rejeitadas logo depois da época dele, mas sua tese de que a alma era a imagem interior de Deus, imortal e ascentiva, tornou-se o substrato de todas as reflexões posteriores, à medida que se percebeu que ela era uma brilhante síntese, não só do melhor das várias escolas gregas, como também uma reconciliação do problema filosófico da alma com o impulso geral do relato bíblico da criatura sob Deus.

– págs. 316-318.

The Modern Theologians: An Introduction to Christian Theology Since 1918  [Os Teólogos Modernos: Uma Introdução à Teologia Cristã Desde 1918], Editado por David F. Ford com Rachel Muers (3ª  Edição), Malden, Massachusetts: Blackwell Publishing, 2005:

O engajamento de De Silva com o Budismo se concentrou no “problema do eu”. Segundo ele, a doutrina budista do “não-eu” (Pali: anatta, sânscrito: anātman) consagra uma verdade essencial sobre a existência humana, que está de acordo não só com a ciência contemporânea, como também com a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento. Embora a ideia de uma alma imortal seja uma crença estabelecida para a maioria dos cristãos, ela não pode ser apoiada por textos bíblicos. Além disso, as imagens bíblicas da individualidade são corroboradas pela doutrina budista do não-eu. Em outras palavras, a doutrina budista do não-eu revela o significado da individualidade nos textos bíblicos — significados que são perdidos quando os textos bíblicos são lidos através das lentes de conceitos filosóficos gregos sobre a alma. Na tradição bíblica, o self é uma unidade psicofísica interdependente de “alma” (psychē), “carne” (sarx) e “espírito” (pneuma) que é muito semelhante à análise budista do eu por meio dos Cinco Skandhas [agregados] ou constituintes da existência (forma, sentimento, percepção, impulsos e consciência). Conseqüentemente, os conceitos budista e bíblico do eu concordam que não existe alma imortal alguma que permaneça auto-identicamente permanente ao longo do tempo.

Não só o conceito budista do não-eu esclarece os conceitos bíblicos da individualidade, como também esclarece a doutrina da ressurreição. Pois, se as pessoas são constituídas pelo não-eu, a questão permanece: o que continua depois da morte? Em contraste com a doutrina budista da reencarnação, a resposta bíblica é a doutrina da ressurreição. Ressurreição não significa a sobrevivência de uma alma imortal ou um cadáver reconstituído. Pois se a doutrina do não-eu corresponde à realidade, a transitoriedade e a mortalidade são fatos cósmicos e a morte é o fim da existência. Não pode haver sobrevivência após a morte a menos que, e somente se, Deus recriar um novo ser. Isto, segundo De Silva, é a verdade do ensino bíblico da ressurreição interpretado através das lentes da doutrina do não-eu. A ressurreição é um ato de Deus pelo qual Ele cria o que São Paulo chamou de “corpo espiritual”. Para explicar o significado de “corpo espiritual”, de Silva usou uma “teoria da réplica”, segundo a qual, no momento da morte, Deus cria uma “réplica psicofísica exata da pessoa falecida”. É uma nova criação. Mas visto que é uma recriação, o corpo espiritual não é idêntico ao eu que existia em um corpo terrestre. É uma réplica psicofísica exata. A doutrina da ressurreição como uma “replicação” é, conforme ele acreditava, uma maneira de reconceber significativamente “o além aceitando ao mesmo tempo o fato de anātta” [“não-eu”].

– pág. 693.

David P. Gushee, Only Human: Christian Reflections on the Journey Toward Wholeness [Apenas Humano: Reflexões Cristãs sobre a Jornada Rumo à Totalidade] (San Francisco, EUA: Jossey-Bass, 2005):

Muitos elementos do relato bíblico também parecem apontar na direção de um único ser unificado. Na história da criação, por exemplo, somos informados de que “o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida, e o homem tornou-se um ser vivo” (Gênesis 2:7). O homem (hebraico, adam) é formado do solo (hebraico, adamah), estabelecendo a conexão íntima entre a humanidade e os materiais terrestres de onde viemos. Nós somos carne, saímos da carne, vivemos encarnados, morremos como carne e somos devolvidos ao solo do qual viemos. Deus nos dá vida ao soprar a vida em nós – a criatura do solo, pode-se dizer, é animada pelo sopro de Deus, e assim vivemos até que a animação cessa e nós retornamos ao solo. Mas isso não nos torna seres dualistas. Um ser humano vivente é uma criatura físico-espiritual em um único ser – uma unidade psicossomática (corpo-alma), como às vezes se diz.

Mas se este é o caso, o que acontece quando morremos? Ao contrário da noção grega de que o corpo se decompõe enquanto o eu flutua para o céu, um entendimento bíblico (principalmente um judaico) não parece visualizar qualquer existência separável desse tipo entre corpo e alma ou espírito. Quando morremos, tudo em nós morre.” Se deve haver alguma existência contínua após a morte, ela terá de ser em um corpo reanimado ou recriado que Deus simplesmente decide fazer viver novamente. Foi isto que Paulo colocou em 1 Tessalonicenses 4:14-16: “Pois, se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também Deus, mediante Jesus, trará, em sua companhia, os que morreram [grego: koimenthentas, literalmente ‘dormiram’]. Pois isto vos declaramos pela palavra do Senhor,  que nós, os vivos, os que ficarmos até à vinda do Senhor, de modo algum precederemos os que morreram.  Pois o Senhor mesmo… descerá dos céus, e os mortos em Cristo ressuscitarão primeiro.”

A natureza deste corpo ressuscitado é muito difícil para entendermos ou descrevermos. Paulo o descreve como um corpo espiritual, um corpo imperecível que nunca mais provará a morte (1 Coríntios 15:35-53). E ainda assim é um corpo, e mantém a continuidade com o corpo terrestre que foi sepultado na terra quando morremos ou, se estivermos vivos quando Jesus vier, será transformado no processo da transfiguração final de todas as coisas (15:52-54). Todos os credos cristãos históricos vislumbram a “ressurreição do corpo e a vida eterna”, mas esta é uma crença que sutilmente se desvaneceu passados poucos séculos em direção a um dualismo alma-corpo no qual a alma imortal vai para o céu e o corpo é deixado inteiramente para trás.

Isso deixa um problema final para uma visão unificada do eu, pelo menos de uma perspectiva bíblica. O que devemos fazer quanto aos vários rótulos dados na Bíblia à parte espiritual do eu? Como vimos no esboço de outros conceitos, certamente há referências bíblicas à alma ou ao espírito, para não mencionar a mente, o coração, as emoções, a vontade, e assim por diante. Essas referências não podem ser simplesmente rejeitadas.

O vocabulário bíblico para o espírito ou a alma denota aspectos, dimensões ou facetas do eu unificado, em vez de distinções fundamentais dentro de um eu multipartido. A Bíblia sabe e transmite que existe uma dimensão espiritual para as pessoas humanas e, em vários contextos, nomeia essas dimensões de várias maneiras. Por exemplo, Jesus conclama seus ouvintes a amar a Deus com todo o seu coração, alma, mente e força (Marcos 12:30). Assim como ninguém sugere seriamente que o ser seja dividido nesses quatro elementos, então não devemos subdividir o ser humano usando qualquer outro esquema (mesmo aqueles derivados de vários relatos bíblicos). Nós somos um ser, com várias facetas quase tão misteriosas para nomear, e com todo esse ser, devemos adorar e servir o Deus único.

– págs. 49-51.

Death and the Afterlife in the New Testament [A Morte e a Vida Após a Morte no Novo Testamento], Jaime Clark-Soles, T & T Clark, Nova Iorque e Londres, 2006:

Nossa única fonte para a antropologia israelita referente à vida e à morte é o AT. O pensamento grego não influenciou fortemente o pensamento hebraico ou judaico até o período helenístico. Para o antigo Israel, a nep̄es parece combinar funções das palavras gregas thymos (sensação intensa) e da psyche (o ser interior) dos vivos. Nep̄es jamais significa a alma. A antropologia israelita, de acordo com Jan Bremmer, era “estritamente unitária e permaneceu assim até o primeiro século DC, quando a crença grega em uma alma imortal começou a ganhar terreno na Palestina e na Diáspora”. Não é surpresa que dois judeus helenizados, Josefo e Filo, sejam os primeiros a demonstrar esta transição.

– pág. 14.

The Rise and Fall of Soul and Self: An Intellectual History of Personal Identity [A Ascensão e a Queda da Alma e do Eu: Uma História Intelectual da Identidade Pessoal], Raymond Martin e John Barresi, Columbia University Press, Nova Iorque, EUA, 2006.

Em Homero, as pessoas tinham psyches, que sobreviviam à morte corporal. Mas a sobrevivência de uma psyche não era a sobrevivência de uma pessoa. Antes da morte do corpo, a psyche das pessoas, ou o princípio da vida, estava associada com o fôlego (pneuma) e o movimento delas. Outras faculdades, a maioria delas associadas com órgãos corporais ou atividades corporais fora a respiração e o movimento, eram responsáveis ​​por tarefas mentais e emocionais específicas. O nous, por exemplo, estava associado com a visão e era responsável pelo raciocínio; o thymos estava associado com a imediata resposta mental e física do organismo a uma ameaça externa e era responsável pela coragem; o phrenes era associado com o diafragma e responsável pela força; a kardia era associada com o coração e responsável pela paixão, inclusive o medo.

No caso das pessoas comuns, cada uma dessas faculdades mentais cessava com a morte do corpo, momento em que suas psyches, na forma de fôlego, deixavam seus corpos para ir ao Hades, onde existiam como sombras. Até o nono século A.E.C. os gregos pareciam achar de pouco consolo saber que a psyche da pessoa sobreviveria à morte do corpo como uma sombra. A vida de uma sombra não era uma vida digna de ser vivida. Os heróis, por outro lado, sobreviviam à morte do corpo de uma maneira mais robusta, tornando-se como deuses. Mas aparentemente a sobrevivência dos heróis era mais para a comunidade de gregos vivos do que para os próprios heróis. Ninguém era encorajado a se tornar um herói para simplesmente sobreviver. Antes, a honra era o objetivo. Qualquer que tenha sido o valor da sobrevivência para os próprios heróis, Homero retratava a sobrevivência divina deles como uma recompensa para a comunidade por ter produzido heróis. Os heróis post-mortem forneciam exemplos morais à comunidade.

Em obras literárias gregas posteriores, como nos poemas de Píndaro e nas peças de Sófocles, há um gradual afastamento da concepção homérica meramente imaginativa de psyches no Hades, onde as almas de todos são tratadas mais ou menos do mesmo jeito, em direção a concepções mais morais, nas quais as almas que partiram são mais fortemente afetadas pelo modo como viveram. Em Homero, as pessoas vivas raramente se preocupam com os destinos de suas psyches. As pessoas retratadas em obras literárias posteriores, cujos relatos de existência post-mortem tendem a ser mais matizados, mostram uma preocupação maior.

No início do quinto século A.E.C., pensadores gregos progressistas começaram a substituir todos os mitos desse tipo pela ciência. Tanto quanto se refira ao eu, o interesse deles estava concentrado na palavra psyche, que significava coisas diferentes para pensadores diferentes. Às vezes significava pessoa ou vida, às vezes personalidade, às vezes aquela parte da pessoa que poderia experimentar. Em cada caso, a psyche tendia a ser concebida como uma função corporal que tem emoção e apetite. Mas sob a influência do orfismo e talvez também do xamanismo grego, os pensadores posteriores começaram a pensar na psyche em termos mais espirituais.

Pitágoras (c. 530 A.E.C) e Empédocles (c. 450 A.E.C.), dois dos primeiros filósofos a se preocupar com o eu, podem ter sido xamãs. Ambos combinaram o que hoje chamaríamos de ciência com um misticismo ao estilo órfico. Pitágoras inspirou lendas, mas não escreveu nada, por isso é difícil falar com confiança sobre os conceitos dele. Originário de Samos, ele era um astrônomo e matemático que se dizia ter originado a doutrina da alma tripartida, que ressurgiu na filosofia de Platão. Pitágoras também adotou o renascimento, ou transmigração, e dizia-se que ele era capaz de lembrar o que aconteceu em muitas de suas encarnações anteriores. Empédocles, por outro lado, estava preocupado com a medicina e não com a matemática. Admirado amplamente como um milagreiro, ele teria curado doença por meio do poder da música. Dizia-se também que ele restaurou mortos à vida.

De acordo com o orfismo com o qual Pitágoras e Empédocles podem ambos ter estado associados, quando um humano morre sua alma (ou psyche) persiste. As almas que eram puras permaneciam para sempre com os deuses. As que eram impuras permaneciam na companhia dos deuses enquanto esperavam para encarnarem novamente como humanos, animais, ou pior (Aparentemente Empédocles acreditava que havia se encarnado como um arbusto). O processo de encarnação “suja” as almas, aumentando sua impureza. Seus destinos subsequentes dependem do comportamento de seus novos hospedeiros, especialmente se os hospedeiros, se forem humanos, observarem certas restrições alimentares e rituais religiosos. Pitágoras, por exemplo, proibiu seus discípulos de sacrificar animais e de consumir verduras e feijão e os encorajou a participar de rituais que celebravam a superioridade do intelecto sobre os sentidos. O orfismo ensinava que ao final todas as almas se reúnem com a divindade universal. Em suma, o que Pitágoras e Empédocles parecem ter compartilhado, e o que eles estimularam em pensadores que viriam depois, foi a crença em uma alma, ou eu, que existia antes do corpo, que poderia ser induzida a deixar o corpo mesmo enquanto o corpo continuava vivo, e que sobreviveria ao corpo.

Estas ideias tiveram consequências extremas. Direta ou indiretamente, elas parecem ter influenciado poderosamente Platão e, por meio de Platão, vários pais da igreja, incluindo Agostinho e, por meio de Agostinho, a teologia cristã e, por meio do cristianismo, toda a mentalidade da civilização ocidental, tanto a secular como a religiosa. É irônico, talvez, que as ideias que por fim adquiriram esse impressionante pedigree racional tenham se originado no coração obscuro do xamanismo, com seu compromisso com a magia e o ocultismo.

– Págs. 9-11. Notas de rodapé omitidas.

Old Testament Theology [A Teologia do Antigo Testamento], John Goldingay, Volume 2 – A Fé de Israel, 2006:

O que é a morte? A morte é o fim da vida. Ela não tem qualquer natureza positiva; é simplesmente a ausência de algo. Quando as pessoas morrem, elas não deixam de existir. Podemos vê-las em seu leito de morte depois que sua vida se foi, mas elas deixaram de ter vida. Na morte, ‘o pó volta à terra, de onde veio, e o espírito volta a Deus, que o deu.’ (Ecle. 12:7, compare com Jó 34:14, 15; Sal. 146:4).

O corpo de um ser humano (‘adam) veio do solo (‘adamâ), e qualquer um pode ver que ele se dissolve de volta no solo após a morte. Há uma relação entre o ventre de minha mãe e a própria terra: daí as palavras do Congregante sobre a pessoa que faz o bem na vida, mas depois tem de morrer como todos os demais: “O homem sai nu do ventre de sua mãe, e como vem, assim vai. De todo o trabalho em que se esforçou nada levará consigo.” (Ecle. 5:15 [14, no Texto Massorético], veja Jó 1:21). A morte não significa retornar realmente ao útero de minha mãe, mas significa voltar à fonte do meu ser que está associada ao ventre de minha mãe, a origem da matéria-prima que se torna uma pessoa no útero. Eu vim da terra; eu volto à terra.

A vida de um ser humano veio diretamente de Deus, e é também evidente que quando alguém morre, o fôlego (rûah, por exemplo, Sal. 104:29) ou a vida (nepeš, por exemplo, Gen. 35:18) desaparece e retorna ao Deus que é rûah. E ao passo que os vivos podem esperar que a ausência de Deus pode dar lugar novamente à presença de Deus, os mortos estão cortados para sempre da presença de Deus. A morte significa o fim da comunhão com Deus e da comunhão com outras pessoas. Ela significa um fim da atividade de Deus e da atividade de outras pessoas.

Ainda mais óbvio, ela significa um fim de minha própria atividade. Significa um fim da consciência. “Quem está entre os vivos tem esperança; até um cachorro vivo é melhor do que um leão morto! Pois os vivos sabem que morrerão, mas os mortos nada sabem; para eles não haverá mais recompensa, e já não se tem lembrança deles. Para eles o amor, o ódio e a inveja há muito desapareceram; nunca mais terão parte em nada do que acontece debaixo do sol.” (Ecle. 9:4-6).

– págs. 639, 640.

“Quem pode dizer se o fôlego do homem sobe às alturas e se o fôlego do animal desce para a terra?” (Ecle. 3:21). Nos dias de Qohelet [o autor do Eclesiastes], talvez houve pessoas que especularam que os seres humanos desfrutariam de uma vida melhor após a morte, o que não seria o caso dos animais. Qohelet assinala que não há qualquer evidência disso.

– pág. 644.

Ancient Near Eastern Thought and the Old Testament: Introducing the Conceptual World of the Hebrew Bible [O Pensamento no Oriente Próximo da Antiguidade e o Antigo Testamento: Apresentando o Mundo Conceitual da Bíblia Hebraica], John H. Walton, Baker Academic, Grand Rapids, MI, EUA, 2006:

O que é um humano? (Corpo, Alma, Espírito)

Até mesmo os teólogos modernos discutem se a pessoa humana é mais bem compreendida por tricotomia (corpo / alma / espírito), dicotomia (corpo / alma-espírito) ou unidade. O mundo antigo compartilhava de nossa preocupação pela compreensão da pessoa humana, mas encarava a pessoa de maneira bem diferente da nossa.

Na Mesopotâmia, a informação mais clara vem na Epopéia de Atrahasis, onde os vários ingredientes usados ​​para criar a humanidade parecem corresponder aos vários aspectos da natureza humana. De acordo com a interpretação de T. Abusch, o fantasma humano (eṭemmu) deriva da carne do deus, enquanto o sangue (damu) do deus fornece o intelecto humano (temu), eu ou alma. “O sangue é a qualidade dinâmica da inteligência, e a carne é a forma do corpo que é imposta sobre a argila”.

As literaturas egípcia e israelita retratam a deidade dando o sopro da vida a materiais mundanos, avigorando-os para servir no papel de imagens divinas. No pensamento egípcio, a natureza humana era composta pelo corpo (djet-corpo, bem como pelo ha’u-corpo), o akh, o ka e o ba, e designações tais como coração, ventre, sombra e nome. Os termos ka e ba são impossíveis de traduzir adequadamente para o português (ou para o grego ou o latim) porque eles não têm conceitos equivalentes na cultura ocidental.

Ka

Uma distinção deve ser feita entre um ka interno e um externo. O ka interno refletia aquele aspecto da natureza humana que tinha ligação com o sobrenatural e, pelo menos de algum modo vago, ligação com as gerações futuras.

ka poderia designar a individualidade humana como um todo, e em contextos diferentes poderia ser traduzido como “caráter”, “natureza”, “temperamento” ou “disposição”. Uma vez que o caráter em grande medida preordena a vida de um indivíduo, o ka também significa “destino” ou “providência”. Este uso da palavra gerou uma tradição de interpretar o ka como uma espécie de força vital universal, mas essa ideia é muito abstrata, pois perde sua associação com a personalidade.

ka externo era como um gêmeo invisível nascido com a pessoa e associado à placenta. O ka continuava a viver no além e recebia ofertas em nome do indivíduo.

Ba

ba está ligado à cognição e outras capacidades mentais. É muitas vezes traduzido como “alma”, apesar das imprecisões da identificação. O ba é o aspecto de uma pessoa refletida para o mundo em torno dela. A reputação e o projeto de personalidade pública de alguém são ba. O ba de alguém existe independentemente de seu corpo, naquilo que essa pessoa realiza e na maneira como se fala e se pensa sobre ela. O ba deixa o corpo por ocasião da morte e continua a existir após a morte. O ba de uma divindade é o que entra na imagem para torná-la utilizável e viva no culto. Isto pode se aproximar do temu acadiano. Talvez coincida bastante com o conceito moderno de personalidade.

Akh

akh é muitas vezes traduzido como “espírito”, e também sobrevive após a morte, algo como um fantasma. O akh de uma pessoa, na vida ou na morte, era capaz de fazer o bem ou o mal. Se o “fantasma” age corretamente, haveria alguma coincidência entre o akh e o etemmu acadiano.

A terminologia hebraica não corresponde à terminologia egípcia ou mesopotâmica em nada mais do que corresponde à dos idiomas modernos. O akh egípcio pode trazer à mente a maneira como o ruah-yhwh vinha sobre os indivíduos para torná-los efetivos para o bem (na maioria dos casos, por exemplo, os juízes) ou para o mal (por exemplo, o rei Saul). Alguns, porém, argumentaram que o termo hebraico nephesh é equivalente ao acadiano eṭemmuOs conceitos israelitas de basar (“carne”), nephesh (frequentemente traduzido como “alma” ou “eu”) e ruah (normalmente traduzido como “espírito”) não coincidem claramente nem como o modelo mesopotâmico nem com o egípcio. Isto poderia ser explicado pelo fato de que os conceitos egípcios são amplamente desenvolvidos em relação ao que eles acreditavam sobre a morte e o além (ou seja, à luz da teleologia). Os conceitos transmitidos na Bíblia hebraica, em contraste com os do Oriente Próximo da antiguidade, são conscientemente ligados, não à protologia ou teleologia, e sim à teologia — o relacionamento com Deus.

Nephesh

O termo hebraico nephesh, apesar de sua tradução tradicional “alma”, jamais se refere ao que continua a existir após a morte, embora a nephesh parta quando se morre (Gen. 35:18). Sobre isso, H. W. Wolff observa que “o ser humano não tem [nephesh], mas é [nephesh], vive como [nephesh].” Deus também é caracterizado por nephesh (por exemplo, Isaías 1:14). Embora tenha sido concedido a Adão quando Deus soprou nele (Gên. 2:7), isso não é um “parte” do divino, mas apenas encontra a sua fonte lá. Assim como a parte do corpo que recebe alimento e respira, a nephesh é associada à garganta. No reino metafísico, nephesh é a que tem a experiência da vida e representa o viver (note-se que a vida, nephesh, está no sangue, Lev. 17:11, e o sangue é nephesh, Deut. 12:23). No plural ela pode se referir a pessoas, e é com frequência associada ao “eu”.

Ruah

Onde a nephesh sente e percebe o ruah age. Ao passo que a nephesh se relaciona com a consciência e percepção, ruah não é entendido como continuando a existir depois que a pessoa morre. Na verdade, é difícil demonstrar que uma pessoa tenha seu próprio ruah. Em vez disso, cada pessoa tem o ruah de Deus. Deus também tem um ruah e seu ruah sustenta a vida humana. (Jó 34:14, Sal. 104:29). O ruah de todas as criaturas retorna a Deus porque é dele. As ideias de Israel sobre a composição humana exprimem da maneira mais central o relacionamento do indivíduo com Deus na vida. O que continua a existir no Seol depois da morte não é a nephesh nem o ruah.

Qual é, então, o impacto dos estudos comparativos sobre o entendimento da metafísica da antropologia? Com base neste breve estudo, vimos que existem algumas categorias coincidentes, mas que é difícil estabelecer quaisquer correspondências de um para um [isto é, na exata proporção]. Os dados comparativos podem, como sempre, exortar à moderação em nossa inclinação de impor categorias modernas aos textos antigos, mas eles não nos dão qualquer compreensão maior da antropologia metafísica israelita. Em relação ao ambiente cognitivo, podemos ver que os antigos conceitos tendiam a se concentrar mais em categorias teológicas e funcionais do que em psicológicas (por exemplo, freudianas) ou filosóficas (por exemplo, platônicas).

– págs. 210-214.

… Paulo não conhece algo semelhante à ideia da imortalidade da alma, apesar de que o pensamento era comum no mundo grego, no qual Paulo fundou as suas comunidades. Esse pensamento encontrou ingresso no cristianismo somente numa época posterior. Para Paulo, no entanto, a ideia de uma parte imortal no homem é até contrária à sua teologia, pois assim como não existe predisposição intra-humana para a justificação, assim também não existe para a imortalidade. Também a imortalidade é algo que Deus deve conceder por sua graça (conf. 1 Cor. 15:53 em diante), o homem não a possui por natureza. Isso faz com que a morte seja entendida por Paulo como morte total, não parcial, e, se há esperança, então unicamente é porque o Deus Criador entra novamente em ação. Ressurreição é nova criação, é recriação. O amor do Deus Criador vence a morte, e a graça de Deus é a nossa única esperança.

Explorations in Neuroscience, Psychology and Religion [Explorações em Neurociência, Psicologia e Religião], Kevin S. Seybold, Ashgate Publishing Limited, Inglaterra, 2007.

Obviamente, as palavras usadas em um idioma específico são cruciais para transmitir a mensagem que o escritor ou orador deseja enviar. Como a mensagem é traduzida de um idioma para outro, ela pode ser alterada devido à escolha das palavras usadas na tradução. Quando lemos a Bíblia, devemos ter em mente que a língua original das Escrituras não era a que lemos hoje. Os escritores do Novo Testamento usavam o grego quando escreveram; os escritores do Antigo Testamento usavam o hebraico. Grande parte do Antigo Testamento, porém, chega até nós em forma escrita depois de ter sido transmitido verbalmente de uma geração para a seguinte. Assim, para começar a determinar o que o Antigo Testamento ou o Novo Testamento tem a dizer sobre a natureza humana, precisamos observar quais são as palavras hebraicas e gregas significativas e como elas eram compreendidas pelos escritores e leitores (ou ouvintes) da cultura original.

No Antigo Testamento, há várias palavras que são usadas quando se faz referência à natureza humana. Por exemplo, a palavra nephesh (que significa “garganta” ou “pescoço”) é frequentemente traduzida como “alma” ou “vida”. Outra palavra usada nesse contexto é basar, que significa “carne” e “encarnação”, e às vezes é usada para se referir a relações de parentesco (por exemplo, Gênesis 37:27). A palavra hebraica leb significa “coração” ou “centro de atividade do eu”, e ruach é frequentemente traduzida como “pessoa”, “respiração” ou “espírito”. Cada uma dessas palavras pode ser usada para se referir àquele aspecto de nossa existência que chamamos de alma, eu ou espírito, e sugere a noção da unidade da pessoa. Cada termo indica inteireza, não divisão, e implica que não somos corpos com almas (ou corpos com almas e espíritos), mas somos pessoas unificadas. Somos, em outras palavras, almas corporificadas. Um trecho chave das Escrituras sobre isso é Gênesis 2:7, que diz (na Revised Standard Version [Versão Padrão Revisada]): “então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem se tornou um ser vivo [nephesh]”. Aqui, a palavra nephesh é traduzida como “alma” na versão Rei Jaime da Bíblia, como “ser” na Versão Padrão Revisada e como “pessoa” na New Living Translation [Nova Tradução Viva] (Stone, 2004, pág. 53).

No Novo Testamento, as palavras gregas para coração, espírito, corpo e alma são usadas para se referir à pessoa como um todo (Shults, 2003, pág. 175). Pneuma significa “espírito” em grego, e psychē é traduzida como “alma”, mas essas palavras são usadas de maneiras que, assim como as palavras do Antigo Testamento hebraico, sugerem uma unidade e um holismo. Outras palavras gregas tipicamente usadas no contexto da pessoa são kardia (2 Coríntios 3:14-16, 2:4, 7:3) e nous (Romanos 12:1), que também se referem à pessoa inteira. Soma (que significa “corpo” em grego) é usada para se referir aos humanos como pessoas corporificadas. O corpo é a pessoa e em 1 Coríntios Paulo enfatiza a ressurreição do corpo, o ser ou pessoa completa. Em Romanos 8:19-23, os termos “carne” (sarx) e “espírito” (pneuma) não sugerem um dualismo de substâncias. Viver no espírito sugere uma pessoa cujo ser completo é orientado para o espírito; sendo a pessoa carnal aquela cujo inteiro ser é orientado para desejos terrestres e carnais (Shults, 2003, pág. 178).

As Escrituras, dizem-nos esses eruditos bíblicos, descrevem a pessoa humana como um todo, uma unidade, não como um corpo material com alma ou espírito imaterial. Estes vários termos (tais como corpo, alma, espírito, coração, mente) são diferentes perspectivas que alguém pode apreender ao olhar para o indivíduo, não substâncias diferentes. Conforme Shults coloca, a Bíblia está preocupada com a pessoa como um todo, particularmente com a salvação da pessoa como um todo (pág. 178). O dualismo, sugerem esses eruditos, não vem da Bíblia, e sim de filósofos gregos como Platão, cuja influência sobre a Igreja primitiva contribuiu para uma má tradução dos manuscritos originais do Novo Testamento. Em vez de entender psychē, por exemplo, como um termo holístico para “pessoa”, o termo foi mal interpretado (sob a influência da filosofia de Platão) como significando uma “alma desencarnada, imaterial e imortal”. Este entendimento era consistente com a filosofia grega (por exemplo, o platonismo), mas não com o significado que se intencionava transmitir no trecho original das Escrituras.

– págs. 49, 50

Ressurreição dos Mortos e Esperança em S. Paulo, Gottfried Brakemeier, 1971 (Veja aqui uma transcrição do artigo, na íntegra).

Em complemento, apresenta-se abaixo o trecho de um pronunciamento deste mesmo erudito, 35 anos depois da escrita do artigo acima:

Para evitar equívocos convém anotar que a teologia passou por um processo de “desplatonização” do conceito [de alma]. Passaram os tempos em que se concebia a alma em termos do filósofo Platão como fenômeno independente do corpo, ou seja, como um acessório do ser humano, imortal por natureza, uma substância etérea pertencente ao mundo ideal. Percebeu-se a incompatibilidade do ideário grego com o pensamento da Bíblia que não podia fragmentar o ser humano em partes distintas e até antagônicas. Via-o como um todo, não como composição de elementos heterogêneos. Na teologia, pois, já não se entende a alma como uma espécie de órgão à parte do corpo e em tensão com ele. Alma designa antes uma dimensão do ser humano, uma qualidade sua, uma maneira de ser. É difícil encontrar na teologia contemporânea um resquício da visão dualista de outrora. O ser humano não tem alma, ele é alma, muito de acordo com a passagem de Gn 2.7, onde se lê que ele passou a ser alma vivente depois de Deus lhe ter soprado nas narinas o fôlego da vida. Por isto mesmo se listava antigamente nas comunidades evangélicas não o número de pessoas, e, sim, de almas. Pessoa e alma eram sinônimos. De qualquer maneira, na teologia se abandonou o discurso dicotômico, substituindo-o por uma visão antropológica “holística”.

Isto não impede enxergar no ser humano alguém que “tem” alma. É este o linguajar comum. Alguém me disse certa vez que bancos não têm alma, com o que queria dizer ser inútil esperar sentimento humano do frio calculismo de instituições financeiras. Quem não tem alma, tem a sua humanidade prejudicada. Como alma o ser humano é portador de uma dignidade peculiar, relacionada à sua inconfundível pessoalidade. O ser humano é indivíduo, dotado de consciência, raciocínio, vontade, responsabilidade. Lembrava S. Kierkegaard, teólogo luterano do século XIX na Dinamarca que, caso não fôssemos espírito (ele também poderia ter dito “alma”), seríamos incapazes de angústia, desespero, pecado e fé. Portanto, a alma nos distingue como seres humanos, e mesmo que se atribua alma também a animais, ela não será a mesma. O animal não é capaz de fé nem comete pecado. Ao mesmo tempo se deve inferir que alma é o elo que conecta o ser humano com Deus. Conforme E. Drewermann, influente teólogo católico na atualidade, o termo “alma” articula um mistério, uma esfera sagrada a ser protegida, um sopro do infinito no ser humano. E com efeito, sem alma, o ser humano está ameaçado a ver-se reduzido a simples mecanismo orgânico ou mesmo psíquico sem esteio sustentador de sua dignidade. Por todas essas razões o termo alma é fundamental para uma antropologia que se pretende humana. Antes de prosseguir devo incluir duas observações que julgo importantes:

1.      Além da dicotomia de “corpo e alma” encontramos na Bíblia também a “trictomia” de “corpo, alma e espírito” (cf 1 Ts 5.23). A diferença é pouca. A filosofia clássica grega privilegiava a dicotomia, incorporando o espírito nas potências da alma. Já o helenismo posterior preferia a tricotomia, separando também entre alma e espírito. Distinguia assim entre a dimensão intelectual e emocional além da parte física e corporal do ser humano. A emancipação do espírito não conseguiu fazer esquecer sua proximidade à alma. Em termos teológicos espírito e alma perfazem uma junta inseparável.

2.      Se a alma já não deve ser imaginada como componente autônomo do corpo, e, sim, como dimensão do ser humano, parece tornar-se impossível a fala em sua imortalidade. De fato, a referida desplatonização favoreceu a concepção da morte integral. No fim da vida, assim se asseverou, a alma sucumbiria juntamente com o corpo, aguardando também ela a ressurreição. Mas como entender, sob tais condições, a continuidade entre o velho e o novo ser humano, entre o corpo físico e o espiritual, entre a pessoa morta e ressuscitada? Ora, justamente quando se concebe a alma em termos de pessoa e não de uma substância, deve-se afirmar que a morte não é capaz de devorar o ser humano por completo. Seu nome, sua pessoa, seu ser resistem à aniquilação e estão guardadas na memória de Deus. Assim como na linguagem da computação, salvar é sinônimo de “arquivar”, assim a “alma” permanece no arquivo, até Deus a chamar de novo para ressuscitá-la como novo corpo. Ela não possui a imortalidade inerente a si mesma. É preciso que seja dela revestida (1 Co 15.54). Se não ressuscitada permanecerá na morte. Mas como alma, o ser humano tem a promessa de ver a perfeição e de ter cumprido seus justos anseios na definitiva comunhão com Deus.

Palestra proferida por Gottfried Brakemeier no XV Congresso Nacional do CPPC (Corpo de Psicólogos e Psiquiatras Cristãos) em Canela, RS, Brasil, 2007. A palestra encontra-se publicada na íntegra na revista Psicoteologia, nº 41 (capa acima). Grifos do autor e sublinhados acrescentados.

Encyclopaedia Judaica – Second Edition [Enciclopédia Judaica – Segunda Edição], Thompson Corporation, EUA, em associação com a Keter Publishing House, Jerusalém, Israel, 2007:

VIDA APÓS A MORTE. O judaísmo sempre manteve uma crença na vida após a morte, mas as formas que essa crença assumiu e os modos nos quais ela foi expressa variaram grandemente e diferiram de período para período. Assim, ainda hoje existem várias concepções distintas sobre o destino do homem após a morte, relativas à imortalidade da alma, à ressurreição dos mortos e à natureza do mundo vindouro após a redenção messiânica, que existem lado a lado dentro do judaísmo. Embora estas concepções estejam entrelaçadas, não existe qualquer sistema teológico aceito geralmente sobre sobre sua inter-relação.

Na Bíblia

A Bíblia é comparativamente inexplicita sobre o destino do indivíduo após a morte. Parece que os mortos descem ao Seol, uma espécie de Hades, onde vivem uma existência etérea e sombria (Núm. 16:33, Sal. 6:6, Isa. 38:18). Diz-se também que Enoque “andou com Deus, e não era mais; porque Deus o tomou” (Gen. 5:24); e que Elias é levado para o céu em uma carruagem de fogo (2Reis 2:11). Mesmo o trecho mais completo sobre o assunto, o incidente necromântico envolvendo o profeta morto Samuel em En-Dor, onde seu espírito é ressuscitado dos mortos por uma bruxa por ordem de Saul, pouco faz para lançar luz sobre o assunto (1 Sam. 28:8 em diante.). O único ponto que emerge claramente das passagens acima é que existia uma crença na vida após a morte de uma forma ou de outra. (Para uma discussão completa, veja-se Pedersen, Israel, 1-2 (1926), 460 e seguintes) Uma visão mais crítica pode ser encontrada em G. von Rad, Old Testament Theology [Teologia do Antigo Testamento], 2 vols., 1962.) Embora os rabinos talmúdicos alegaram que há muitas alusões ao assunto na Bíblia (Sanh. 90b-91a), a primeira formulação bíblica explícita da doutrina da ressurreição dos mortos ocorre no livro de Daniel, na seguinte passagem:

“Muitos dos que dormem no pó da terra despertarão, alguns para a vida eterna, e outros para reprovação e desprezo eterno” (Daniel 12:2, veja também Isaías 26:19, Ezequiel 37:1 e seguintes.).

– Vol. 1, pág. 441.

RESSURREIÇÃO (Heb. תְּחִַיּת הַמֵּתִים), a crença de que, em última instância, os mortos serão ressuscitados em seus corpos e viverão novamente na Terra. A ressurreição deve ser distinguida da crença em algum tipo de existência pessoal em outro reino após a morte (veja Vida Após a Morte) ou na imortalidade da alma. Uma doutrina importante da escatologia judaica juntamente com a do Messias, a crença na ressurreição é firmemente atestada desde o período dos Macabeus, ordenada como um artigo de fé na Míxena (Sanh 10:1) e incluída como a segunda bênção da Amidá e como o último dos 13 princípios da fé de Maimônides.

Na Bíblia

A visão bíblica padrão da morte tomou-a como a condição final do homem (II Samuel 14:14). Tirando anomalias como Enoque e Elias que foram “tomadas” por Deus (Gen. 5:24; II Reis 2:1), a sorte comum de todos os homens, como então se conceba, é aptamente descrita em Jó 7:7 -9:

Lembre-se de que minha vida é um sopro;
Meu olho não vai ver novamente o que é bom…
Uma nuvem se dissolve e desaparece;
Assim é aquele que desce ao Seol;
Ele não subirá.

Rabbah inferiu corretamente que o autor deste trecho não deixou qualquer margem para a ressurreição (BB 16a). Isso está de acordo com a doutrina bíblica de recompensa e punição que satisfaz as exigências da justiça durante a (primeira) vida dos homens. Quando nos tempos helenísticos a doutrina se revelou inadequada, “a extensão da retribuição divina além do túmulo veio como um corolário necessário à ideia da justiça de Deus e à garantia de sua fidelidade no cumprimento de sua promessa aos justos” (G. F. Moore, Judaism [Judaísmo], 2 (1950), pág. 319.

Os componentes da ideia da ressurreição estavam presentes no pensamento bíblico desde os tempos primitivos. Que Deus pode reviver os mortos é um de seus louvores: “Eu mato e revivo; eu feri e curarei” (Deut. 32:39, cf. Pes. 68a para o argumento de que se faz referênca à morte e a vida da mesma pessoa); “YHWH mata e faz viver; Ele faz descer ao Seol e faz subir de lá” (1Sam. 2:6, veja 2Reis 5:7). Seu poder para fazer isso foi exibido por meio dos atos de Elias e Eliseu (1 Reis 17:17 e 2 Reis 4:18 e seguintes.).

… A exegese judaica posterior, influenciada pela doutrina judaica da ressurreição (veja abaixo), leu-a retroativamente em muitos dos trechos citados acima, bem como em outros. Assim, por exemplo, a “vigília” em que a visão beatífica de Salmos 17:15 ocorre foi explicada por Rashi como a ressurreição (para o sentido claro – uma experiência cultual – confira com Sal. 27:4; 63:3; e especialmente Exo. 24:11). Muitas vezes, contudo, os exegetas medievais dão o sentido pleno (figurativo) em adição e antes do ressurreicional: ver Ibn Ezra sobre Deuteronômio 32:39; David Kimḥi sobre I Samuel 2:6 e Ezequiel 37:1. A reserva e sobriedade deles contrasta com a adoção por atacado de M. Dahood da interpretação ressurreicional da maioria dos trechos dos Salmos citados acima, além de muitos outros nos quais a “longa e duradoura vida” das orações reais (por exemplo, Salmos 21:5; compare com as orações reais em Pritchard, Textos, 383d, 394a, 397c) e o “futuro” dos justos (muitas vezes significando progênie, como em Sal. 109: 13) são caprichosa e acríticamente combinados e oferecidos como evidência de uma antiga crença israelita na ressurreição e na imortalidade (M. Dahood deixa de fazer distinção entre os dois, Salmos, 3 (1970), xli-lii).

– Vol. 17, pp. 240, 241

ALMA, IMORTALIDADE DA.

Na Bíblia

Ao contrário dos deuses da Mesopotâmia e Canaã, por exemplo, Apsu, Tiamat, Baal e Mot, que, embora não pudessem sofrer uma morte natural, estavam sujeitos a uma violenta, o Deus de Israel é o Deus vivente (Ose. 2:1 Sal. 18:47). Seu senhorio se estende do céu até o Seol (Sal. 139:8, Jó 26:6); Ele mata e dá vida (1 Sam. 2:6, 1 Reis 17:17-22, 2 Reis 4:18-37); e Ele pode livrar seus fiéis do Seol (Sal. 16:10).

… Na Bíblia, diz-se que duas pessoas deixaram este mundo de uma maneira especial: Enoque “foi tomado por Deus” (Gên. 5:24) e Elias “foi levado ao céu em um redemoinho” (2 Reis 2; compare com Sal. 49:16). O significado exato destas tradições não é claro.

O trecho crucial de Provérbios 12:28 foi traduzida de forma diferente através dos séculos. Saadiah Gaon já entendeu isso como imortalidade, assim como F. Delitzsch muitos séculos depois. M. Dahood (em: Biblica, 41 (1960), 176-81) relacionou o hebraico אַל מֶָות ʿal mawet) neste versículo ao ugarítico blmt, “não morrer”.

É também possível [não provável] que o Texto Massorético de Provérbios 14:3 contenha a esperança de uma vida melhor do que essa no Seol (veja Sal. 16:9-11; 73:24; A. W. van der Weiden, em: VT, 20 (1970), págs. 339-50).

Contudo, em Daniel 12:2 a ressurreição para a vida eterna para alguns é inequivocamente preditaFoi só no período pós-bíblico que uma crença clara e firme na imortalidade da alma tomou o controle (por exemplo, Sab[edoria, um livro apócrifo] 3) e tornou-se um dos pilares da fé judaica e cristã.”

– Vol. 19, pág. 35.

The Perfectibility of Human Nature in Eastern and Western Thought, [A Perfectibilidade da Natureza Humana no Pensamento Oriental e Ocidental], Harold Coward, Albany: Editora da Universidade de Nova Iorque, EUA, 2008:

O período bíblico no pensamento hebraico vai do êxodo dos judeus do Egito e do estabelecimento de uma aliança com Moisés por Deus em 1447 AEC até a destruição de Jerusalém e do Segundo Templo pelos romanos em 70 DC. Os estudiosos do pensamento bíblico identificam quatro conceitos básicos sobre a natureza humana. Primeiramente, uma pessoa é considerada como um corpo vivo com várias qualidades, mas sem qualquer distinção pontual entre corpo e alma. A palavra hebraica que significa “carne” é frequentemente usada em relação à humanidade em geral ou à natureza humana em particular. Por exemplo, no Gênesis, a ideia de toda a humanidade como um coletivo é expressa por “toda carne” e pela palavra adam (homem). Em segundo lugar, a consciência não se centralizava no cérebro, como é o caso no pensamento moderno. Para os hebreus, a consciência humana, com suas qualidades éticas, era encarada como estando difundida por todo o corpo, de modo que a carne e os ossos, bem como a boca, o olho, o ouvido, a mão e assim por diante, tinham uma “quase-consciência” por si mesmos. Em terceiro lugar, estas “consciências separadas” eram encaradas como sendo facilmente suscetíveis a todos os tipos de influências externas, desde a posse por demônios (como no caso de uma dor de dente) até a invasão e o controle pelo Espírito de Deus (como no caso dos profetas). Em quarto lugar, há também a ideia de um fantasma ou duplicata (que não deve ser necessariamente identificado com a alma) – uma réplica fraca e sombria para o eu, como o fantasma de Samuel, descrito pela “feiticeira de Endor” (1 Sam 28:14) como “um homem idoso”, envolvido na contrapartida fantasma pelo manto familiar usado na vida. Este eu débil ou “sombra”, como se chamava em hebraico, pode ser separado até mesmo dos vivos e é visto por outros em seus sonhos, ao passo que depois da morte ele passa para a caverna do Seol sob a terra.

Além desses quatro conceitos básicos, o hebraico bíblico usa certos termos-chave para descrever a natureza humana. A palavra hebraica nephesh é geralmente traduzida para o inglês [e outros idiomas modernos] como “alma”, mas isto é inadequado e enganoso. A análise literária do uso de nephesh na Bíblia hebraica mostra três significados distintos. Primeiro, nephesh é comumente o princípio da vida, sendo o fôlego [ou respiração] o significado subjacente – por exemplo, em 2 Reis 1:13, o capitão israelita, ameaçado de morte, diz ao profeta Elias: “Seja preciosa aos teus olhos a minha nephesh e a nephesh destes cinquenta servos.” Aqui, a melhor tradução é simplesmente “vida”. Em segundo lugar, nephesh é “eu” ou “pessoa”, como no Salmo 3:2 “Muitos estão dizendo sobre minha nephesh [eu], não há libertação para ele em Deus”. Aqui não há referência à vida interior do salmista como distinta de seu corpo externo, e, portanto, “alma” é uma tradução errada. Em terceiro lugar, nephesh também é usado para denotar a “consciência humana” em todo o seu alcance, como em Jó 16: 4; “Eu poderia falar como vós falais se vossa nephesh estivesse no lugar da minha nephesh.” Aqui, Jó está falando com Deus. Destes três usos, o mais comum parece ter sido nephesh como “alma-fôlego” ou o “princípio da vida”. Essa “alma-fôlego” é considerada como o princípio de ativação da vida humana e seu constituinte essencial. A morte é entendida como a partida da nephesh ou alma-fôlego do corpo. A inconsciência momentânea é descrita da mesma forma, como uma breve perda da nephesh. E a vida é descrita como sendo devolvida a alguém considerado morto pelo sopro da nephesh. Por exemplo, em 2 Reis 4:34, somos informados de que Eliseu se estendeu sobre o corpo de um menino morto e colocou sua boca na boca do menino para insuflar a vida nela. Ao longo do uso bíblico a nephesh é fortemente identificada com o corpo, seus órgãos, especialmente o coração, e seu sangue como o princípio ativador da vida.

Ruach é um segundo termo hebraico chave. Ele é especialmente importante para o entendimento bíblico de como Deus se comunica com os profetas. Wheeler Robinson observa que o ruach possui três aplicações principais na Bíblia hebraica. Primeiro, ruach é “vento”, seja o vento natural ou o “vento de Deus” – a energia de Deus ou o vento furioso. Em Oséias 13:15 somos informados de que o ruach do Senhor vem do deserto e seca tudo. Em segundo lugar, o ruach é “sopro inspirador”, o espírito de Deus. Em sua atividade como profeta, Jeremias foi infundido com o ruach de Deus, que falou por meio dele. E em Ezequiel, capítulo 37, é o ruach do Senhor que dá nova vida psíquica e física aos ossos secos do vale na visão de Ezequiel. Por fim, no pensamento bíblico após o exílio em Babilônia (c. 598-515 AC), ruach torna-se quase igualado com nephesh como o princípio da vida em humanos e animais, mas ele também é sinal de uma vida originária de Deus. Enquanto nephesh é às vezes traduzido como “alma”, ruach é traduzido como “espírito”, que implica uma sensação de energia divina que atua na natureza humana vinda de fora – significando que a vida dos seres humanos ou animais deriva-se de Deus.

Robinson adverte-nos que não devemos ser influenciados pelo dualismo corpo-alma do pensamento grego. Para o hebraico bíblico, nephesh (alma-fôlego), ruach (espírito) e basar (carne) são concebidos juntos como uma unidade psicofísica – a personalidade humana como um corpo animado. Isto inclui os órgãos centrais de uma pessoa, aos quais os hebreus atribuíam funções psíquicas. O coração (leb), por exemplo, é identificado com atividades mentais em vez de emocionais – o contrário da maneira como frequentemente se faz hoje quando ele é contrastado com a mente. Em seu uso bíblico, é dada ênfase especial ao papel volitivo do coração. Isto é importante, uma vez que a vontade é algo primário na ética hebraica – a pessoa escolhe com o seu coração. Outros órgãos, como os rins, também recebem função psicofísica. A emoção que motiva o coração à ação é encarada como localizada nos rins. Robinson ressalta que essa atribuição de funções psíquicas a partes do corpo não se restringe a órgãos como coração, fígado e rins, mas também se estende ao ouvido, olho, boca, mão e assim por diante. O olho, por exemplo, está descrito no Salmo 131:1 como tendo as qualidades de “orgulho” ou “humildade”. O pensamento na antiguidade não tinha conhecimento de um sistema nervoso central, e os hebreus bíblicos (assim como outros da época deles) distribuíam os poderes psíquicos que situamos na mente para várias partes do corpo, incluindo todos os aspectos da “carne” e do “osso”. Assim, o salmista diz: “Todos os meus ossos dirão: Senhor, que é como tu?” (Sal. 35:9, 10). Robinson conclui que, para os hebreus bíblicos, a natureza humana é entendida como um complexo de partes que deriva sua vida e atividade de um nephesh/ruach, que não possui existência à parte do corpo. O aspecto mais importante da natureza humana, além da unidade psicossomática, é a sua constante abertura à influência “espiritual” de fora…

Os rabinos especularam que, enquanto o primeiro humano foi criado inteiramente por Deus, todos os demais nasceram de pais que contribuem com várias partes: “O branco é proveniente do macho, do qual o cérebro, os ossos e os nervos são formados; e o vermelho é proveniente da fêmea, da qual a pele, a carne e o sangue são feitos; e o espírito, a vida e a alma são provenientes do Santo [Deus], bendito seja Ele.” Na morte, Deus toma de volta a parte dele e deixa a parcela dos pais. Como o pai e a mãe tiveram uma participação, junto com Deus, na criação da criança, assim os pais devem ser honrados. Essa ideia dos seres humanos constituídos por três partes, abriu o caminho para que o conceito psicossomático hebraico da natureza humana começasse a se aproximar mais do entendimento dualista corpo / alma grego. Por exemplo, o rabino Simai sugere que na criação de um humano a alma é proveniente do céu e o corpo da terra. E Filo, seguindo Platão, descreve a natureza humana como tendo três partes: “o corpo que é proveniente do barro, a vitalidade animal que está ligada ao corpo e a mente que é instilada na alma, sendo essa a mente divina.” Os humanos são, portanto, uma síntese das partes terrestres e do Espírito de Deus. A alma humana, composta pelo espírito de Deus, inclui a mente e é a parte imortal. Presa dentro do corpo, a alma experimenta as misérias que surgem das falhas humanas da fraqueza e do pecado. Mas a alma também inspira e dirige o corpo em direção à perfeição. Em última análise, porém, a alma precisa ser liberta do corpo. Este é o conceito de Filo, e ele é essencialmente dualista e grego. Os rabinos rejeitam uma mudança tão extrema e encaram a relação entre as partes terrestres (dos pais) e a parte divina da natureza humana de maneira mais positiva. Para os gregos, o objetivo final é a libertação da alma do corpo, mas para os rabinos, a perfeição e a ascensão humana são alcançadas por se seguir as leis da Torá e pela realização de boas ações …

No Novo Testamento, a natureza humana é descrita como tendo inteligência, emoções, livre arbítrio, responsabilidade moral e a possibilidade da vida eterna. Os Evangelhos indicam que os conceitos de Jesus em relação à natureza humana são essencialmente as da Bíblia hebraica ou do Antigo Testamento (veja o capítulo 3). O conceito do corpo físico, expresso tanto por “corpo” como por “carne”, representa a pessoa ou a personalidade inteira, sem qualquer distinção pontual entre corpo e alma, como no pensamento grego. Quando Jesus diz em Marcos 14:38 “O espírito realmente está disposto, mas a carne é fraca”, pareceria que ele está adotando um conceito dualista da natureza humana. Mas este não é o caso. Jesus adota plenamente a abordagem do pensamento hebraico da personalidade total – mente, corpo e espírito – como uma unidade psicossomática. Jesus frequentemente usa os termos “carne” e “corpo” para representar a personalidade completa, como, por exemplo, em Mateus 5:29 “e não seja todo o teu corpo lançado no inferno”. Quando Jesus usa a palavra “vida” como em Marcos 8:35 “Quem quiser salvar a vida perdê-la-á”, ou a palavra “alma” como em Marcos 14:34, “Minha alma está triste”, o termo hebraico nephesh (vida ou ser, incluindo o corpo, seus órgãos e sangue) é que é o significado. Em seus ensinamentos, o aspecto mais básico do conceito de Jesus sobre a natureza humana é a sua premissa de que  a inteligência, o livre arbítrio e as emoções é que exigem disciplina. A inteligência humana permite compreender a vontade de Deus e a liberdade humana dá a oportunidade de escolher segui-la. Estas qualidades de inteligência, liberdade e responsabilidade são vistas nas declarações de Jesus, como a de Mateus 5:28: “[T]odo aquele que olha para uma mulher com luxúria já cometeu adultério com ela em seu coração.” Aqui, Jesus assume que todas as ações morais são da responsabilidade do eu. “Coração” é usado aqui por Jesus no sentido típico hebraico de que o coração é a lugar da vontade e da livre escolha, em vez da mente, como no pensamento moderno. Jesus sabe que a natureza humana é capaz tanto de bons atos como de maus, e assim ele diz em Mateus 5:8 “Bem-aventurados os puros de coração, pois eles verão a Deus.” Os seres humanos têm a habilidade de escolher corretamente porque, assim como na Bíblia hebraica, entende-se que eles foram criados à imagem de Deus. Esta responsabilidade está no centro das parábolas de Jesus. Por exemplo, na história do filho pródigo (Lucas 15:11-32), o pai, que representa Deus, permite a seu filho a liberdade de sair de casa, e o filho só retorna depois de decidir livremente que é melhor para ele voltar. O entendimento da natureza humana que perpassa ao longo dos ensinamentos de Jesus é o da Bíblia hebraica ou do Antigo Testamento. Embora a ideia de vida após a morte não seja encontrada ao longo da maior parte da Bíblia hebraica, ela apareceu nos escritores finais do Antigo Testamento, como no livro de Daniel. Jesus adotou esse pensamento. “Dificilmente há uma palavra no ensino dele pressupondo que a possibilidade da vida eterna pertence à natureza do homem”. Como no caso do pensamento hebraico, é claro que Jesus tinha em mente uma ressurreição corporal e não uma alma desencarnada, como no conceito grego sobre a vida após a morte.

Assim como Jesus, Paulo adota o conceito hebraico básico ou o do Antigo Testamento sobre a natureza humana. Os seres humanos são criados por Deus como uma unidade mente-corpo-espírito e à imagem de Deus. Além disso, todos os seres humanos têm a lei natural de Deus dentro como uma espécie de consciência inata escrita em seus corações (Romanos 2:14, 15). Enquanto os requisitos de Deus são explicitados aos judeus na Torá, os gentios têm a lei natural em seu interior, de modo que ninguém tem desculpa para desobedecer aos requisitos de Deus. Apesar disso, parece haver alguma perversidade inerente na natureza humana que faz com que os humanos pequem. Paulo busca identificar introspectivamente em si mesmo o que é que o leva a fazer isso. Embora ele não seja um psicólogo técnico, Paulo usa palavras-chave ao conduzir sua análise. Ele usa várias palavras para “desejo”, que frequentemente combina com “carne” para obter “desejos da carne”. Aqui é importante notar que Paulo não está separando o corpo da alma ou espírito e identificando os desejos iníquos de uma pessoa com seu corpo, como nos conceitos dualísticos gregos da natureza humana. Em vez disso, Paulo usa “desejos da carne” de uma maneira poética como uma maneira de falar de todos os desejos – como se eles fossem uma espécie de pessoa alheia que reside dentro de si. Em Gálatas 5:16-21, Paulo fala da vida (personalidade) de alguém  sob o domínio da “carne” ou do “Espírito”. Ele diz: “Andai em espíritos e não satisfareis os desejos da carne … estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis.” Ele prossegue identificando as obras da carne como incluindo coisas tais como imoralidade, impureza, idolatria, feitiçaria, rixas, invejas, bebedices e conclui no versículo 24: “Os que pertencem a Cristo Jesus crucificaram a carne com suas paixões e desejos”. A ênfase de Paulo no desejo em sua análise da natureza humana faz lembrar a abordagem budista, que examinamos no capítulo 8.

Paulo usa também o termo “corpo” em um sentido poético semelhante. Em Romanos 6:12, por exemplo, ele diz: “Não reine, portanto, o pecado em vosso corpo mortal, para lhe obedecerdes em seus desejos”. Aqui, “corpo” tem em muito o significado de “carne” como descrito acima. De fato, Paulo usa os termos “carne”, “corpo” e “pecado” intercambiavelmente, para significar essencialmente a mesma coisa – ou seja, viver sob a dominação do desejo na personalidade inteira. Em Romanos 8:13, Paulo diz: “Se viverdes segundo a carne, morrereis; mas, se pelo Espírito mortificardes os desejos do corpo, vivereis.” Aqui “carne”, “corpo” e “desejos” são equiparados e opostos a viver de acordo com os ditames do Espírito no corpo e na mente da pessoa. Assim, em Romanos 7:20, Paulo diz que, quando está sob o domínio dos desejos da carne, “não sou mais eu que o faço, e sim o pecado que habita dentro de mim”. Ele declara o dilema da natureza humana da seguinte maneira: “Porque, segundo o homem interior, tenho prazer na lei de Deus; mas vejo nos meus membros outra lei, que batalha contra a lei do meu entendimento, e me prende debaixo da lei do pecado que está nos meus membros. Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte? Dou graças a Deus por Jesus Cristo nosso Senhor.” (Romanos 7:22-25). Paulo afirma claramente que, embora ele queira fazer o bem que encontra dentro de si, sem a graça de Deus que recebeu por meio de seu Senhor Jesus Cristo, ele permanece sob o domínio dos desejos pecaminosos da carne. Embora Paulo não use o termo técnico “vontade” na análise acima da condição humana, esse termo está claramente implícito. Com a razão dele, um homem entende a lei de Deus, quer por meio da Torá revelada, se for um judeu, quer por meio de sua consciência inata, se for um gentio. Mas a habilidade de obedecer é obstruída pelos desejos da carne. No meio está um “eu” consciente que possui livre arbítrio à sua disposição. Mas a capacidade de escolher obedecer é constantemente obstruída pelo desejo. Isso leva Paulo a concluir em Romanos 7:25: “Assim que eu mesmo com o entendimento sirvo à lei de Deus, mas com a carne à lei do pecado.” Só por levar sua vontade à harmonia com a vontade de Deus é que Paulo pode encontrar a liberdade do pecado e experimentar a salvação.

– págs. 30-32, 37, 56-58.

Body, Soul, and Human Life: The Nature of Humanity in the Bible [Corpo, Alma, e a Vida Humana: A Natureza da Humanidade na Bíblia], Joel B. Green, Baker Academic, Grand Rapids, Michigan, EUA, 2008:

O termo de interesse mais imediato, repā’îm (“sombras”, vertido frequentemente para o inglês como rephaim, em vez de ser traduzido), aparece apenas oito vezes na Bíblia hebraica no sentido de “os mortos”. Embora a etimologia e o desenvolvimento histórico deste termo sejam ambos problemáticos, seu uso no AT é muito simples. Rephaim refere-se àqueles cuja morada é o Seol, o lugar dos mortos. Encontrado no AT apenas em textos poéticos, as “sombras” são retratadas através de simples paralelismo como “os mortos”. Em Isaías 26:14, 19 e Salmos 88:11, os rephaim estão associados com “os mortos”; em Provérbios 2:18, o termo ocorre em paralelo com “morte” (veja a ideia semelhante em Prov. 21:16); e em Isaías 14:9 e Provérbios 9:18 eles aparecem no “túmulo”. Ou seja, os rephaim são simplesmente os mortos humanos cujo lugar é a sepultura. Para Provérbios, as referências aos rephaim são usadas para dramatizar o fim de um modo de vida oposto aos caminhos justos de Deus. Aqui, os rephaim são associados ao lugar dos mortos, ao Seol ou, simplesmente, à “morte” (como “esfera da morte”), de uma maneira característica do ensino dos Dois Caminhos encontrado na tradição da sabedoria. No único uso entre os Salmos, o salmista roga a intervenção divina, percebendo que, se ele morrer, não poderá oferecer louvores a Deus.

– pág. 155.

The Witness of Jesus, Paul and John: An Exploration in Biblical Theology [O Testemunho de Jesus, Paulo e João: Uma Exploração na Teologia Bíblica], Larry R. Helyer, InterVarsity Press, Illinois, EUA, 2008:

O texto problemático é 2 Coríntios 5:1-10. Este texto, porém, é coerente com os dois primeiros quando descortinamos o que realmente se descreve. Para fazer isso, exponho em forma de quadro os pontos essenciais que Paulo estabelece neste trecho:

Esta vidaA MorteO “Estado Intermediário”A “Vida Vindoura”
“gememos, desejando ser revestidos da nossa habitação celestial” (v. 2); “enquanto estamos no corpo” (v. 6); “Longe do Senhor” (vs. 6, 9)“se for destruída a temporária habitação terrena” (v. 1); “ser despidos” (v. 4)“não seremos encontrados nus” (v. 3); “despidos” (v. 4); “ausentes do corpo e habitar com o Senhor” (v. 8)“temos da parte de Deus um edifício, uma casa eterna no céu, não construída por mãos humanas” (v. 1); “nossa habitação celestial” (v. 2); “revestidos da nossa habitação celestial” (v. 4); “absorvido pela vida” (v. 4); “todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo” (v. 10)

Paulo realmente descreve quatro condições possíveis que um crente pode experimentar. A primeira é a vida em corpos físicos marcados pela fragilidade e mortalidade. O cenário de uma tenda retrata efetivamente essa condição. A experiência da morte, a segunda possibilidade, é aludida sob as metáforas da tenda destruída ou de repente estar sem roupa. A severa realidade por trás das metáforas é a separação do espírito e do corpo na morte. O que não é tão claro, mas creio ser essencial para entender o pensamento de Paulo, é uma ligeira referência à terceira possibilidade: um estado intermediário, uma existência desencarnada após a morte e antes da parousia. Paulo usa a metáfora da nudez para estabelecer o ponto. Por fim, ele descreve a quarta possibilidade: a grande consumação da história redentora, a ressurreição de vida na era vindoura, onde o que é mortal é “absorvido pela vida”.

Em suma, Paulo não ensina que um crente recebe o corpo da ressurreição na morte. Mas ele está tão certo de que os crentes receberão um novo corpo na parousia que ele usa o tempo presente “temos [echomen]” em 2 Coríntios 5:1. Este é o uso futurista do tempo presente, um uso comum ao grego e ao inglês [e outras línguas modernas]. Na morte, a pessoa está ausente do corpo – isto é, no estado intermediário. Por um lado, Paulo prefere muito este estado a estar no corpo, visto que está ‘habitando com o Senhor’ (2 Cor 5: 8). Para isso, comparamos com Filipenses 1:23, onde ele diz que “partir e estar com o Cristo … é muito melhor”. Por outro lado, esta não é a condição final. O que Paulo mais deseja é estar com Cristo na sua habitação celestial (ou seja, possuindo um corpo da ressurreição). Em consonância com a herança hebraica de Paulo, o propósito final de Deus para os seres humanos envolve a existência corpórea. O corpo da ressurreição é um corpo imperecível, glorioso, poderoso, espiritual e celestial – um enorme avanço em relação a um mero corpo físico – mas ainda é um corpo bem concreto e real.

– págs. 299, 300.

Dueling With Death: Christian Funeral Preaching as Dialogue [Duelando com a Morte: A Pregação Cristã no Funeral como Diálogo], Jeremy P. Muniz (Dissertação de Doutorado), Covenant Theological Seminary, St. Louis, Missouri, EUA, 2009

A Ressurreição Além da Bíblia

Se alguém definir a ressurreição como “a reversão dos efeitos da morte” em termos de uma reanimação física da vida humana, então é seguro presumir que a ressurreição não era um pensamento ou crença comum no mundo antigo. A ressurreição não faz parte do entendimento homérico de qualquer existência humana além do túmulo e, como diz Wright, se os escritos de Homero têm alguma coisa a dizer sobre a ressurreição, é que “isto não ocorre”. Não é que os gregos não estivessem a par do conceito de ressurreição. Afinal, eles tinham uma palavra para isso (ἀνάστασις), mas a literatura deles revela que eles não a encaravam como uma opção ou fonte de esperança viável diante da morte. Wright mostra que a ressurreição “não era uma maneira de descrever em que consistia a morte. Era uma maneira de descrever algo que todos sabiam que não acontecia: a ideia de que a morte poderia ser revertida, desfeita ou retroceder (por assim dizer).” Além do que a teologia da ressurreição que estava presente nas raízes judaicas do Cristianismo, “nasceu em um mundo onde sua alegação central era considerada como falsa”. De um modo geral, a ressurreição no mundo pagão era um absurdo que não merecia uma investigação séria pelos amantes da verdade.

Indícios de possíveis ressurreições surgem na literatura pagã em raras ocasiões. Por exemplo, alguns dos soldados de Nero circularam um boato de que Nero não havia realmente morrido (as circunstâncias em torno do enterro de Nero foram muito secretas), e isso deu origem a um mito de “Nero redux” ou “Nero redivivus”. Esta alegação de ressurreição, porém, não foi aceita amplamente, e “ninguém parece ter achado que a ressurreição foi o que aconteceu”. Histórias de ressurreição surgiram na literatura pagã antiga de tempos em tempos, mas o consenso parece ter sido de que tudo isso era ficção completa e que a morte era uma “via de mão única”, na qual os possíveis “violadores do tráfego” (Sísifo, Eurídice e outros) foram mandados de volta ou punidos”. A ressurreição era pouco mais do que um recurso literário no mundo pagão da antiguidade.

A única cultura fora do Judaísmo ou do Cristianismo que teve uma esperança religiosa ou filosófica na ressurreição foi a Zoroastriana da Pérsia. O Zoroastrismo ensinava que havia uma “boa ou má consciência após a morte, a passagem por uma ponte e a ressurreição final da carne e o reino da justiça”. É possível que a crença zoroastriana tenha influenciado o pensamento judaico sobre a ressurreição. No entanto, é igualmente provável que a presença do povo hebreu na Pérsia durante a Diáspora tenha influenciado o zoroastrismo. Outras possíveis conexões entre a doutrina bíblica da ressurreição e a ressurreição no mundo antigo são os mitos agrários do mundo antigo. Wright comenta que estes não eram apresentados como fatos da vida após a morte, mas eram “metáforas” que ajudaram a descrever o rejuvenescimento da vida vegetal e animal, à medida que os meses mais quentes substituíam a inclemência do inverno. No geral, as evidências sugerem que os autores da Bíblia não tomaram emprestado o conceito de ressurreição de seus vizinhos. O desenvolvimento da esperança da ressurreição (em particular, a esperança da ressurreição para todos os que acreditam em um Salvador ressuscitado) como a resposta para a dor da morte é uma doutrina unicamente judaico-cristã.

– págs. 60-63.

Dualismo Corpo/Alma na Teologia Pentecostal, Fernando Albano (Tese de Mestrado em Teologia), São Leopoldo, RS, Brasil, 2010.

Nos primórdios do cristianismo pode se perceber certa ambiguidade em torno da ideia de ser humano. A Igreja nos primeiros séculos teve trabalho para enfrentar as concepções grega e platônica, que negavam o corpo e o apresentava junto com tudo o que é material como coisa intrinsecamente mau.

Na obra intitulada “Fédon” de Platão (que muito influenciou o pensamento cristão) a alma e o corpo são tratados como entidades separadas, porque pertencem a mundos antagônicos. A relação entre corpo e alma é retratada de modo negativo, pois o corpo é concebido como uma prisão para a alma. Esta tensa relação entre corpo e alma, no pensamento platônico é que vai influenciar a teologia cristã.

Evidentemente que essa antropologia helênica é estranha à mentalidade semita e veterotestamentária, que fundamenta o pensamento apostólico. De acordo com González e Pérez:

“Desde o começo, e logo que as enfrentou, a Igreja recusou as diversas doutrinas que negavam a criação do mundo por Deus – doutrinas como as da tradição platônica, as do gnosticismo e as de Marcião e seus seguidores. Isso não quer dizer, contudo, que tais doutrinas desapareceram completamente.”

Muitos gnósticos negavam a encarnação de Jesus, pois diziam eles que Deus não poderia ter se tornado matéria sem contaminar-se. Sendo assim, Jesus apenas aparentava ser humano, todavia, seu corpo não era real apenas aparente. O Evangelho de João, assim como as epístolas joaninas claramente combatem o equívoco desse ensinamento gnóstico (Cf. Jo 1.1-18; 1 Jo 4.1-3).

Assim, o dualismo religioso e filosófico, desde os primórdios, assedia o cristianismo com certa concepção antropológica e de mundo caracterizado por séria desconfiança em relação à matéria e toda corporeidade.

Outra problemática surgiu em torno de alguns escritos do primeiro teólogo da igreja cristã, isto é, Paulo. Seus escritos pareciam afirmar um certo dualismo carne/espírito. Assim, se tem o desafio para os pais da Igreja definir o que significava carne nos escritos de Paulo. Para muitos, que realizavam uma interpretação literal, o termo carne refere-se ao corpo humano; para outros, que faziam uma leitura alegórica da Escritura, poderia significar a natureza humana decaída. Acabou prevalecendo a primeira concepção. Deste modo, já se percebe os primeiros fundamentos do dualismo antropológico que valoriza o interior, ou seja, a alma e espírito e que vê o corpo com algo pejorativo…

Além da problemática da compreensão dos escritos de Paulo, houve a forte influência de Platão, Plotino, neoplatônicos e dos já mencionados gnósticos sobre o cristianismo, que acabou configurando o dualismo antropológico.

O dualismo grego é constatado no orfismo e no pitagorismo. Mas é no pensamento de Platão que o dualismo corpo e alma se revelam de modo mais explícito. Para Platão o corpo e alma se encontram em oposição um ao outro; a alma é a fonte de toda moção. Procedendo de Deus, a alma não estaria sujeita a perecer, porque imortal. O corpo, portanto, era apenas a “prisão” da alma. Platão ensina que o ser humano encontra-se dividido entre o mundo sensível e o mundo das ideias, que é o mundo das formas eternas. A alma degrada-se ao entrar em contato com a matéria. Deste modo, a morte do corpo proporciona a salvação da alma. A respeito de Platão Rubio afirma:

“Platão foi um pagão que viveu no século IV antes de Cristo, sem conexão alguma conhecida com as perspectivas bíblicas sobre o homem. Todavia, nada tem de surpreendente se considerarmos a realidade histórica da forte penetração no pensamento platônico na compreensão cristã do homem, do mundo e de Deus.”

Não é exagero afirmar que nenhuma outra filosofia da antiguidade marcou tão fortemente a história inicial da teologia cristã quanto o platonismo. Comblin disse: “A impregnação do cristianismo pelo helenismo foi profunda”. A princípio o interesse da teologia cristã pelo pensamento helênico e, por conseguinte, do pensamento platônico era de caráter apologético e hermenêutico, ou seja, visava defender a fé cristã e contextualizá-la para a realidade do mundo greco-romano. Assim, surgiram grande nomes na teologia cristã, que fizeram fama sintetizando os princípios da fé cristã com o pensamento grego, a saber: Agostinho, Gregório de Nissa, Tomás de Aquino, entre outros. De acordo com Comblin:

“Uma primeira vaga de helenismo entrou através dos Padres dos séculos IV e V, principalmente os capadócios no Oriente e Agostinho no Ocidente. Uma vez que os concílios recorreram a esses Padres ou a conceitos por eles propostos, produziu-se como que uma espécie de autenticação de seu pensamento. Rapidamente, no decorrer dos séculos V e VI no Oriente, a Igreja adotou a teologia dos Padres. Fixou-se na ortodoxia, mas sua ortodoxia era a dos Padres, e continha, implicitamente, uma forte carga de helenismo. […] foram considerados cristãos, não apenas a tradição evangélica que os Padres transmitiam mas, também, os conceitos e as estruturas gregas pelos quais eles faziam essa transmissão. E há muito mais platonismo em Santo Agostinho ou em São Gregório de Nissa do que se poderia supor […].”

Principalmente, no período da Patrística o dualismo antropológico de origem platônica é facilmente diagnosticado. As máximas desse período relativas ao corpo comprovam: “O corpo é uma prisão, um túmulo da alma; (é preciso) arrancar a alma das ‘cadeias da carne’, do laço com um cadáver. A carne é como um lodo em que a alma não pode deixar de manchar-se e degradar-se”. Portanto, é inegável a forte influência dualista helênica no pensamento e teologia cristã. Essa influência está presente até hoje na cultura ocidental.

– págs. 13-16. (as notas de rodapé foram omitidas nesta citação).

Christianity: History, Belief, and Practice, The Britannica Guide to Religion [Cristianismo: História, Crença e Prática, Manual de Religião da Enciclopédia Britânica], Matt Stefon (ed.), Britannica Educational Publishing em associação com Rosen Educational Services (Nova Iorque, EUA), 2012:

A IMORTALIDADE DA ALMA

Os seres humanos aparentemente sempre tiveram alguma noção de uma duplicata sombria que sobrevive à morte do corpo. Porém, a ideia da alma como uma entidade mental, com qualidades intelectuais e morais, interagindo com um organismo físico, mas capaz de continuar depois da dissolução deste, deriva no pensamento ocidental de Platão e entrou no judaísmo aproximadamente ao longo do último século antes da Era Comum e daí no cristianismo. No pensamento judaico e cristão [essa ideia] tem existido em tensão com a ideia da ressurreição da pessoa concebida como uma unidade psicofísica indissolúvel. O pensamento cristão gradualmente se fixou num padrão que exigia essas duas ideias aparentemente divergentes. Na morte a alma é separada do corpo e existe em um estado desencarnado, consciente ou inconsciente. Mas, no futuro Dia do Julgamento as almas serão reencarnadas (seja em seus anteriores corpos terrenos, mas agora transfigurados, ou em novos corpos da ressurreição) e viverão eternamente no reino celestial.

Dentro deste contexto, a discussão filosófica concentrou-se principalmente na ideia da alma imaterial e sua capacidade de sobreviver à morte do corpo. Platão, no Fédon, argumentou que a alma é intrinsecamente indestrutível. Destruir algo, incluindo o corpo, é desintegrá-lo em seus elementos constituintes; mas a alma, como uma entidade mental, não é composta de partes e é, portanto, uma unidade indissolúvel. Embora o conceito de Tomás de Aquino da alma como a “forma” do corpo, tenha sido derivado de Aristóteles em vez de Platão, ele também argumentou em favor da indestrutibilidade dela (Summa theologiae [Suma Teológica], I, Q. 76, art. 6). O filósofo francês Jacques Maritain (1882-1973), um tomista moderno, resumiu a conclusão como segue: “Uma alma espiritual não pode ser corrompida, visto que não possui nenhuma matéria; não pode ser desintegrada, já que não tem quaisquer partes substanciais; não pode perder a sua unidade individual, pois é auto subsistente, nem a sua energia interna, uma vez que contém dentro de si todas as fontes de suas energias”. Mas, embora seja possível definir a alma como incorruptível, indissolúvel e auto subsistente, os críticos têm indagado se existe alguma boa razão para se pensar que almas definidas desta maneira existem. Se, por outro lado, a alma significa a mente consciente ou personalidade – algo cuja imortalidade seria de grande interesse para os seres humanos – isso não parece ser uma unidade indissolúvel. Pelo contrário, parece ter um tipo de unidade orgânica que pode variar em grau, mas que também é capaz de fragmentação e dissolução.

Muita análise filosófica moderna do conceito de mente é inóspita à ideia de imortalidade, pois equipara a vida mental com o funcionamento do cérebro físico. Impressionados pela evidência da dependência que a mente tem do cérebro, alguns pensadores cristãos têm se mostrado dispostos a aceitar o conceito – correspondente ao entendimento dos hebreus da antiguidade – do ser humano como uma unidade psicofísica indissolúvel, mas esses pensadores ainda mantêm uma crença na imortalidade, não com a mente sobrevivendo ao corpo, e sim como uma ressurreição ou recriação divina da totalidade corpo-mente vivente. Essas pessoas da ressurreição estariam presumivelmente localizadas num espaço diferente do qual elas habitam agora e presumivelmente passariam por um desenvolvimento da condição de um moribundo para a de um habitante viável do mundo da ressurreição. Mas todas as teorias nesta área trazem com elas suas próprias dificuldades, e surgiram teorias alternativas.

– págs. 177, 178.

Néfesh e Basar: A Relação Corpo-Alma na Bíblia Hebraica e Suas Implicações Para a Cultura Somática Hodierna, Alexandre de Jesus dos Prazeres (Dissertação de Mestrado – Universidade Católica de Pernambuco), Recife, PE, Brasil, 2013:

A segunda narrativa sobre a criação do ser humano, em Gn 2,7, relata que, após o sopro divino, o ser humano (אָדָ֛ם / adam) tornou-se um ser vivente נפשחיה  / nephesh hayyah. Neste sentido, o termo נֶ֫פֶשׁ / nepeš é utilizado como definição do que o ser humano é e não como definição do que ele possui, dá destaque à unidade da pessoa humana e não a uma dualidade.

Tudo o que o A.T. ensina a respeito do homem encontra-se nos relatos da criação. A definição mais completa é dada pelo javista: “formou o Senhor Deus ao homem do pó da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente” (Gn 2,7). Esta passagem afirma claramente que a vida é o apanágio exclusivo de Deus e que o homem só existe na medida em que recebe o sopro da vida, que Deus lhe dá em ato soberano da sua graça (cf. Sl 104,29s). Vindo ambos de Deus, o corpo e o sopro de vida não são elementos que seja possível dissociar ou isolar. A vida divina penetra de tal modo a totalidade do ser, que cada um dos órgãos do corpo pode expressar a vida do conjunto; longe de ser o invólucro que esconde uma alma, o corpo, pelo contrário, é a expressão indispensável da realidade imaterial, que é o princípio da vida; as funções psíquicas e espirituais também estão ligadas a um órgão corporal (cf. sobre este assunto: Dhorme, L’emploi métaphorique des noms de corps en hébreu et en akkadien, Paris, Gabalda, 1923). Segundo o AT o homem não tem alma, mas o termo hebraico (nefesh), que nossas versões correntes traduzem por “alma”, designa um conjunto psicofísico correspondente ao que entendemos por ser vivente e suas diferentes formas de expressão (ALLMEN, 2001, p.231).

Westermann (1975, p.31-32) ao comentar Gn 2,7, afirma que, após o sopro de Deus em suas narinas, o ser humano não recebe uma alma em seu corpo, mas é convertido em alma, ser animado, pois, segundo a Bíblia, o ser humano deve ser entendido como unitário e não como um composto de diversas partes integrantes como corpo e alma, ou corpo, alma e espírito. Assim, pois, é de suma importância que, na narrativa da criação do ser humano, este seja considerado unitariamente como um ser animado, cuja alma não é algo próprio em seu corpo, mas o viver do corpo.

Por sua vez, Schroer e Staubli (2003, p.89-90) expõem que a fé veterotestamentária orientava-se para a vida concreta, terrena, a vida antes da morte, pois a pessoa humana é “uma nefesh viva, faminta de vida, enquanto vive, mas justamente somente enquanto vive”.

A concepção hebraica da pessoa humana é abrangente e por não reconhecer separação entre corpo e alma, contribui para a superação das consequências da dicotomia grega, e para uma valorização da corporalidade humana, e consequentemente para uma compreensão do ser humano em sua completude, em sua integralidade. Esta concepção a respeito da pessoa humana é abrangente não somente por não reconhecer separação entre corpo e alma no ser humano, mas principalmente por conceber a corporalidade humana como um elemento unificador, pois esta conecta o ser humano a si mesmo, aos outros e ao mundo.

… O texto de Gn 2,7 está no segundo relato da criação da humanidade e descreve o ser humano plasmado a partir do pó oriundo do solo, mas ainda sim barro sem vida até Deus insuflar em suas narinas um fôlego de vida, em hebraico נשמה / neshamah. Segundo Schökel (1997, p.455), נשמה /neshamah/ significa “alento, respiração, sopro, lufada, espírito, consciência, ser vivo, alguém”, e sinônimo de ר֫וּחַ /rûah/, “sopro de vida, espírito, respiração” (SCHÖKEL, 1997, p.609). O termo נשמה /neshamah/  quando empregado com sentido de “respiração” adquire um sentido equivalente à “vida”, como em Gn 7,22, “respiração/espírito de vida” (נִשְׁמַת רוּחַ חַיִּים  /nismat rûah hayyim/).

… O texto de Gn 3,19, descrevendo a punição divina após a desobediência dos primeiros seres humanos, apresenta a fala de Deus da seguinte forma: “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão até que retornes a אֲדָמָה /adamah/, pois dela foste tirado, pois tu és pó e ao pó tornarás”. Deste modo, recorda a procedência humana do pó do solo, definindo o ser humano como pó e descrevendo a sua morte como um retorno ao pó. Se na morte o ser humano retorna ao pó, o ר֫וּחַ /rûah/ retorna a Deus que o concedeu (Ecl 12,7). É desta forma que a cultura preservada na Bíblia Hebraica concebe a morte, o elemento, no ser humano, que veio da terra deve voltar para lá, mas como este recebeu vida após o sopro de Deus, este sopro retorna para Deus por ocasião da morte.

No fundo, a concepção de morte está marcada pela concepção da vida. Assim, a concepção hebraica da pessoa humana mais como corpo animado do que como espírito encarnado faz com que o fim desta animação apareça como cessação de toda atividade vital (MACKENZIE, 1985, p.633). O Antigo Testamento comumente pressupõe que o homem não é aniquilado completamente depois da morte, mas continua a existir em certo sentido. Todavia, esta existência não era classificada como propriamente “vida”, mas como uma espécie de vegetação. Mesmo nesta condição, o fato relevante sobre isto é que se trata do ser humano como um todo, não de sua “alma”. Na morte, uma sombra separa-se da pessoa e vaga no mundo dos mortos e sua existência depende do cadáver e do seu estado de decomposição. Talvez venha desta crença a proibição de se cremar o corpo de alguém morto, algo considerado como um sacrilégio (Am 2,1). Deste modo, a sepultura era possuidora de vital importância para o destino dos mortos após a morte, pois continha a base sobre a qual a sombra descansa, uma vez que ela vegeta no mundo dos mortos. Por sua vez, o mundo dos mortos, na concepção hebraica, não é comparado ao Hades dos gregos (FOHRER, 2008, p.283-284).

O termo hebraico שְׁאוֹל /seôl/, “abismo, reino da morte, morte, túmulo, sepulcro” (SCHÖKEL, 1997, p.651), provavelmente “significa ‘não-terra’, a esfera na qual não há nada ativo e dinâmico; portanto, a terra que ‘não existe’, no sentido israelita. Era concebido como um espaço fechado, […] abaixo da terra ou mesmo abaixo das águas (Jó 26,5)” (FOHRER, 2008, p.284).

Para referir-se aos mortos, a Bíblia Hebraica utiliza o termo רָפָא /repa’im/, “almas, espectros, manes, defuntos, habitantes do שְׁאוֹל /seôl/” (SCHÖKEL, 1997, p.629), pertencente à mesma raiz do verbo רָפָא /rapah/, “desfalecer, consumir-se, debilitar-se” (SCHÖKEL, 1997, p.629), deste modo, provavelmente caracteriza a total impotência dos mortos.

– trechos das págs. 68-72.

Implications of the Nature of Immortality for the Final Judgment [As Implicações da Natureza da Imortalidade para o Julgamento Final] (tese), Norman H. Althausen, Liberty University Baptist Theological Seminary, Lynchburg, Virgínia, EUA, 2014:

Imortalidade

Um dos fundamentos da doutrina tradicionalista do tormento consciente e eterno para os ímpios é a crença de que a alma humana é imortal e, assim, após o julgamento, ela deve ir para algum lugar. Ocasionalmente isso é negado, e apela-se às Escrituras como a única base para a doutrina. No entanto, esta seção mostrará que a imortalidade da alma é de fato uma peça importante da fundação. A evidência bíblica para o tormento eterno consciente será examinada numa seção posterior. Excluindo-se umas poucas referências possíveis, o Antigo Testamento não tem qualquer ensinamento bem desenvolvido sobre a vida após a morte. O conceito hebraico da morte gira em torno da natureza do Seol:

O que, então, o Antigo Testamento tem a dizer sobre a vida após a morte? Os hebreus dos tempos do Antigo Testamento não tinham quaisquer ideias positivas sobre o Seol. Tudo era negativo em vez de positivo. Se o Seol deve ser encarado como evidência da persistência de alguma coisa, é melhor pensar nele como a persistência da morte em vez da vida.

Snaith resume dizendo: “Não há referência à vida após a morte no Antigo Testamento além de dois casos, apenas, Isaías 26:19 e Daniel 12: 2”. O período intertestamental viu um desenvolvimento de uma crença na ressurreição dos mortos, de modo que na época do Novo Testamento, há uma diversidade de opiniões, conforme representadas pelos fariseus e saduceus. O filósofo grego Platão (429-347 AC) desenvolveu a ideia da imortalidade da alma com base no conceito de que a alma era simples e indivisível:

Não gerada e eterna, ela existia antes de o corpo lhe dar habitação, e sobreviveria ao corpo também. Estar separada do corpo era a condição natural e própria da alma; estar aprisionada no corpo foi o castigo dela por faltas cometidas durante uma encarnação anterior.

Os apologistas do segundo e terceiro séculos, como Inácio, Ireneu e Tertuliano, tomaram emprestados certos aspectos da alma imortal de Platão, com modificações, conforme eles tentavam demonstrar a racionalidade da fé cristã à cultura pagã na qual viviam. De acordo com Jaeger:

Os pais cristãos rejeitaram a estória da transmigração da alma, mas aceitaram a imortalidade da alma individual, uma vez que a acharam conciliável com o conceito de Paulo sobre ressurreição e com a angelologia judaico-cristã, isto é, a existência de um mundo de seres imateriais.

Por meio desses desenvolvimentos, a ideia da imortalidade inerente da alma veio a ser incorporada à teologia escatológica.

Tão lógico quanto esta ideia possa parecer, o fator importante é se as Escrituras ensinam a imortalidade inerente da alma. O primeiro ponto a estabelecer é que Deus é o único que possui imortalidade inerente. 1 Timóteo 1:17 afirma: “Ora, ao Rei dos séculos, imortal, invisível, ao único Deus, seja honra e glória para todo o sempre. Amém.” 1 Timóteo 6:15, 16 é ainda mais enfático: “Ele [Deus] é o bendito e único Soberano, o Rei dos reis e Senhor dos senhores, o único que é imortal e habita em luz inacessível, a quem ninguém viu nem pode ver. A ele sejam honra e poder para sempre. Amém.” A imortalidade pertence unicamente a Deus, mas Ele a compartilhará com os redimidos em Cristo: “Ele [Deus] dará vida eterna aos que, persistindo em fazer o bem, buscam glória, honra e imortalidade.” (Rom 2:7). Ao cristão se faz a promessa da imortalidade: “Quando, porém, o que é corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal, de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: ‘A morte foi destruída pela vitória’.” (1 Cor 15:54). Em parte alguma das Escrituras a imortalidade é concedida aos incrédulos. Conforme Snaith observa: “Nem aqui nem em lugar algum na Bíblia há qualquer sugestão de uma alma imortal que sobreviva à morte. Nada sobrevive a menos que seja levantado por Deus, e a condição é que o homem deve estar “em Cristo”, sendo assim “nascido do espírito”. A imortalidade não é inerente, mas está condicionada à fé em Cristo.

Apesar do claro ensino bíblico, os tradicionalistas continuam a insistir nessa crença, mesmo ela não sendo encontrada na Bíblia, porque é necessário estabelecer a doutrina do inferno como um lugar de tormento eterno e consciente. W. G. T. Shedd disse no fim do século 19:

Mas irreprimível e universal como é, a doutrina da imortalidade do homem é surpreendente e difícil de cogitar. Pois ela significa que todo homem transitório e finito deve ser tão duradouro quanto o Deus infinito e eterno; que não haverá mais um fim para a existência do homem que morreu hoje do que haverá para a Deidade que o fez… Sim, o homem deve existir. Ele não tem qualquer opção. A necessidade é colocada sobre ele. Ele não pode se extinguir. Ele não pode deixar de existir.”

As citações seguintes provam que esta posição se baseia mais na suposição do que na demonstração à base das Escrituras. Lehman Strauss afirma: “A Palavra de Deus assume a existência eterna de cada alma, independentemente do destino dela. A alma de cada homem é imortal e nunca pode ser aniquilada (ênfase adicionada).” Shedd enfatizou que a imortalidade da alma “não é demonstrada formalmente em parte alguma, porque ela é presumida em todo lugar”, Goulburn insiste que ela “parece estar gravado no coração do homem quase tão indelevelmente como a doutrina da existência de Deus”, e Herman Bavinck insiste que a imortalidade da alma é uma doutrina bíblica, mas ela é mais bem demonstrada pela razão do que pela revelação. Claramente, a doutrina da imortalidade da alma carece de suporte bíblico, mas, como ela é um componente necessário da posição tradicionalista, ela deve ser mantida. Antes de passar a uma consideração dos dados bíblicos tanto a favor como contra o aniquilacionismo, é necessário examinar o significado da palavra grega αιωνιος (aionios), mais comumente traduzida como eterno.

Aionios

Aionios é um adjetivo derivado do substantivo aion, que significa idade ou eternidade. É mais frequentemente traduzido como eterno ou perpétuo. De acordo com o TDTNT [sigla em inglês para o Dicionário Teológico do Novo Testamento] (Kittel, ed.), aionios é usado no sentido eterno de três maneiras: 1) como um predicado de Deus, em cujo caso “não contém apenas o conceito de tempo ilimitado sem princípio ou fim, mas também o da eternidade que transcende o tempo”; 2) “também é usado acerca de bens e dons divinos;” e 3) “como termo para o objeto da expectativa escatológica”, e seu significado “se estende além do significado puramente temporal”.

A questão é: será que aionios sempre significa eternidade temporal, ou tempo perpétuo, ou pode ter também um aspecto qualitativo, tal como pertencer à era vindoura? Fudge cita Emmanuel Petavel como afirmando que em “pelo menos setenta vezes na Bíblia, esta palavra qualifica  ‘objetos de natureza temporária e limitada’, de modo que significa apenas ‘uma duração indeterminada da qual o máximo é fixado pela natureza intrínseca da pessoa ou das coisas’.” Daí ele cita uma série de coisas em que aionios (e seu equivalente hebraico, olam) se refere a coisas que chegaram ao fim:

a aspersão do sangue na Páscoa era uma ordenança “eterna” (Êxodo 12:24); 2) o sacerdócio de arônico (Lev. 3:17); 3) A herança de Calebe (Jos. 5:17); 4) o templo de Salomão (1 Reis 8:12, 13); 5) O período de uma vida de escravo (Deu. 15:17); 6) a lepra de Geazi (2 Reis 5:27). Essas coisas não duraram “para sempre” no sentido de “tempo prolongado sem limitação”. Elas duraram além da visão dos que ouviram originalmente elas serem chamadas de “eternas”. E não foi definido qualquer limite de tempo.

Segundo Fudge, aionios significa claramente eterno em seu sentido temporal, mas pode também ter um sentido qualitativo. Isso está relacionado com a “atitude judaica sobre a história e as últimas coisas, na qual o tempo é dividido em duas eras – a era presente e a era vindoura”. Bruce Milne, um tradicionalista, observa: “A palavra comumente traduzida por ‘eterno’ em nossas traduções do Novo Testamento é, de fato, literalmente ‘da era (vindoura). Assim, ela se refere em primeira instância a uma qualidade de vida específica, e não ao seu intervalo de duração.” Isso não nega o aspecto temporal. Assim, a vida eterna pode significar a vida característica da era por vir, que também será eterna. O julgamento eterno e a punição eterna podem significar o julgamento e a punição referentes à era por vir. J. C. Davis, em sua análise do uso de “vida eterna” nos escritos de João, examina a questão de saber se a vida eterna é algo para o futuro ou algo que o crente possui agora. Ele conclui que este é outro exemplo do aspecto “agora, mas ainda não” da vida cristã, e que a vida eterna vem em duas etapas: o futuro, quando Cristo retorna, e agora, onde já temos a vida eterna. João 17:3 enfatiza o aspecto qualitativo da vida eterna: “Esta é a vida eterna: que te conheçam, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste.”

Um aspecto final do uso de eterno é quando o adjetivo modifica um substantivo que dá nome ao resultado de uma ação (geralmente com o sufixo –mento ou –ção). Há cinco usos desse tipo no Novo Testamento: salvação eterna (Heb 5:9); redenção eterna (Heb 9:12); julgamento eterno (Heb 6: 2); punição eterna (Mat. 25:46); e destruição eterna (2 Tes. 1: 9). Fudge comenta:

Vemos aqui novamente a qualidade do “eterno” da outra era. Há algo transcendente, escatológico, divino sobre este julgamento, este pecado, este castigo e destruição, esta redenção e salvação. Eles não são meramente humanos, assuntos desta era, mas são de uma natureza totalmente diferente. No entanto, os contextos e conteúdos dos trechos das Escrituras em que aionios modifica as palavras julgamento, pecado, punição, destruição, redenção e salvação justificam a conclusão de que alguma coisa relativa a cada um deles jamais chegará ao fim.

Em todos esses casos, eterno modifica um substantivo que é o resultado de uma ação, não uma ação em si. Assim, salvação eterna não significa que Deus esteja salvando para sempre seu povo, e sim que o resultado dessa salvação não terá fim. Da mesma forma, redenção eterna não significa redimir para sempre, e sim que os resultados duram para sempre. Do mesmo modo, o julgamento, a punição e a destruição eternas não significam que Deus julgará, punirá e destruirá para sempre, e sim que os resultados dessas ações durarão para sempre.

Understanding Death: An Introduction to Ideas of Self and the Afterlife in World Religions [Entendendo a Morte: Uma Introdução às Ideias do Eu e da Vida Após a Morte nas Religiões do Mundo], Angela Sumegi, Wiley-Blackwell, West Sussex, Inglaterra, 2014

Há várias palavras em hebraico relacionadas ao elemento ativador que é a marca de um ser vivo: nefesh, neshamah, ruah. Todas elas têm nuances ligeiramente diferentes, mas todas se relacionam com conceitos de inalação de fôlego, ou vento. Nephesh é freqüentemente traduzida como “alma” no sentido da personalidade, a qualidade de um indivíduo que pode tornar-se nobre ou degradado, e neshamah ou ruah são usadas ​​para se referir mais explicitamente ao princípio da vida ou fôlego de vida (Segal, 1989, pág. 144). Ainda assim, conforme descrevemos – seja como princípio animador, força vital, fôlego de vida – o que faz com que as criaturas vivas sejam viventes, é entendido como vindo de Deus e, após a morte, o fôlego vital deixa o corpo. O ponto principal aqui, porém, é que na história bíblica da criação, os seres humanos não são uma dualidade de corpo mortal e alma imortal; o fôlego de Deus animou o corpo feito do pó e o corpo se tornou um ser vivente. Conforme Segal observa: “Em resumo, o problema é que usamos o termo de maneira diferente dos hebreus: nós achamos que temos uma alma; os hebreus achavam que eram uma alma” (Segal, 1989, pág. 144). Por ocasião da morte, o corpo retorna ao pó de onde foi formado e o fôlego de vida retorna a Deus de onde ele veio. A identidade pessoal, no entanto, não é aniquilada; a palavra nefesh também é usada para se referir à sombra ou fantasma da pessoa que permanece após a morte, quando a pessoa não é mais uma alma viva, e sim uma alma morta. Investigaremos isso adicionalmente abaixo …

O fôlego de vida é o fôlego de Deus, mas é difícil estabelecer significados exatos para os termos usados ​​para descrever o que faz a diferença entre a vida e a morte. Gillman explica que eles podem ser usados ​​de forma bastante intercambiável na Bíblia.

A morte é entendida como a “saída” do ruah [Sal. 146:4], ou a “saída” similar da nephesh (como em Gênesis 35:18), ou como Deus “tirar” a nefesh (como em 1 Reis 19:4) ou o neshamah (como em Jó 34:14). (Gillman, 1997, pág. 76)

Embora a noção de algo “saindo” do corpo possa sugerir ideias de uma entidade alma separada e imortal que sobrevive e continua sem o corpo, não é este o conceito expresso nos livros de Gênesis, Salmos ou Jó. Nesses textos anteriores ao período helenístico, um ser humano é considerado como uma combinação holística de corpo e fôlego ativador; a pessoa não possui uma alma, mas é como alma, um ser, vivente quando o fôlego de vida está presente, morto quando ele não está. Naquela época também, parece que as crenças dos israelitas em relação à vida após a morte, e o Seol como o lugar dos mortos, eram semelhantes às dos ambientes culturais circunvizinhos da Mesopotâmia e de Canaã.

A ideia de que uma pessoa morta tornava-se sombra ou fantasma ou algum tipo de espírito que morava na terra dos mortos era comum entre os povos mesopotâmicos e cananeus. Em Canaã, o Senhor da Morte era chamado Mot, que governava o mundo inferior. Por ocasião da morte, o elemento vital, equiparado à “sombra” ou “alma” (nps – também relacionado ao fôlego, como a nefesh hebraica) (Segal, 1989, pág. 113), deixava a pessoa e ia morar no reino da morte, de Mot. É importante notar aqui que as figuras sombrias que povoavam o mundo inferior mesopotâmico e cananeu, aqueles que, por meio de ritos necromânticos, podiam ser levantados para se comunicar com os vivos, não devem ser entendidos como almas desencarnadas, no sentido de uma essência imortal imaterial que usufrui felicidade ou miséria. Eles eram fantasmas, sombras de seus antigos seres, cortados da vida, desprovidos da vitalidade. Os mundos inferiores mesopotâmico e cananeu eram lugares sem castigo nem recompensa, mas simplesmente o destino final de todos os mortos, independentemente de suas consecuções ou posições na vida. De todas essas maneiras, eles se assemelham ao conceito bíblico de Seol como o lugar dos mortos – um lugar que o Livro de Jó chama de “a terra das trevas e das densas trevas” (Jó 10:21). As referências bíblicas ao Seol estão ligadas à natureza final e trágica da morte…

Além da noção de Seol, a Bíblia refere-se a outra morada dos mortos chamada de Geena em grego. Esta era originalmente uma grande ravina ao lado de Jerusalém, que aparentemente era usada como depósito de lixo da cidade e também esteve associada a um culto que praticava o sacrifício de crianças, aqueles que “passavam filhos pelo fogo” (Segal, 1989, pág. 135). Durante o período helenístico (333-63 AEC) e especialmente no Novo Testamento cristão, Geena se torna a base metafórica para as ideias do inferno como um lugar onde os ímpios mortos são condenados a queimar por toda a eternidade, mas nos registros bíblicos anteriores à destruição do Primeiro Templo em 586 AEC, não há qualquer ideia de mortos alcançando as alegrias do céu nem os fogos do inferno. O Seol é descrito como um lugar de escuridão e está associado com a morte indesejada ou final (Segal, 1989, pág. 139). A Bíblia, porém, também fala da morte como um descanso pacífico pertencente à ordem natural das coisas. Ao final de uma vida longa e produtiva, o morto é “ajuntado ao seu povo” (Gên. 25:8) ou “dorme com os seus antepassados” (1 Reis 1:21). O que significam exatamente essas frases não é totalmente claro, mas o que está claro é que no período do Primeiro Templo da história israelita, a vida era concebida como dom de Deus e todas as bênçãos e recompensas de Deus eram dadas na vida, não depois da morte. Como a famosa história de Jó conta, depois de ter sofrido todas as provações que lhe foram impostas para testar sua fé, Deus recompensa Jó em vida com grande riqueza, o amor de amigos e familiares, lindos filhos, uma vida longa e uma morte pacífica: “E depois disto viveu Jó cento e quarenta anos; e viu a seus filhos, e aos filhos de seus filhos, até à quarta geração. Então morreu Jó, velho e farto de dias.” (Jó 42:16, 17)…

No quarto século AEC, os exércitos de Alexandre, o Grande, derrotaram os persas e a Palestina ficou sob o domínio dos gregos. Este foi o começo do período helenístico na história judaica e marcou outra mudança na forma como os pensadores judeus abordavam a questão da morte e da vida após a morte. As ideias de ressurreição corporal, como vimos, desenvolveram-se como uma extensão natural da fé na justiça de Deus, para proporcionar esperança àqueles que abriram mão da vida, em vez de renunciarem às suas crenças. Todavia, a noção de que cada corpo material e mortal abriga uma alma imaterial e imortal que continua após a morte e experimenta uma vida após a morte beatífica pode ser atribuída à influência dos pensadores e filósofos gregos, particularmente Platão (quinto século AEC). Para Platão, a alma era a essência da faculdade humana do pensamento e da razão, a essência do eu individual e sua partida significava a morte. A morte era uma libertação bem-vinda da alma de sua prisão corporal. Desenvolver a alma era desenvolver o intelecto, a razão e a apreciação do Belo e do Bem. Platão ensinava que a alma é preexistente ao corpo e depois muitas reencarnações era destinada à sua própria vida divina em um reino de essências ou Formas perfeitas. Na mitologia grega popular, a morada da alma imortal passou a ser identificada com os Campos Elísios, as Ilhas do Bem-Aventurados localizadas no céu entre as estrelas.

– págs. 80, 81, 83, 87.

Psykhé e néfesh: um estudo comparativo da tradução de néphesh por psykhé em alguns versículos na SeptuagintaAlex Fabiano Campos Gonçalves (Tese de Doutorado, publicada em Coletânea, Ano XIII – Fascículo 25, Jan./Jun. 2014, págs.160-172, Rio de Janeiro, Brasil)

O termo néphesh (נפש), à semelhança do termo psykhé, apresenta-se com uma grande extensão semântica, de modo que, para precisar seu significado, é preciso levar em conta o contexto específico no qual seu emprego se dá e, embora sua tradução mais frequente seja alma, isto não quer dizer que seja o melhor significado, porque o termo alma evoca um princípio imaterial oposto ao corpo material, e tal concepção é estranha à palavra néphesh (נפש)

O termo néphesh (נפש) é relacionado ao homem pela primeira vez no segundo relato da criação em Gênesis 2, 7, e, de modo algum, pode ser tomada simplesmente como um elemento imaterial oposto a corpo material: “וַיִּיצֶר֩ יְהוָ֨ה אֱלֹהִ֜ים אֶת־ הָֽאָדָ֗ם עָפָר֙ מִן־ הָ֣אֲדָמָ֔ה וַיִּפַּ֥ח בְּאַפָּ֖יו נִשְׁמַ֣ת חַיִּ֑ים וַֽיְהִ֥י הָֽאָדָ֖ם לְנֶ֥פֶשׁ חַיָּֽה׃:” (“E o Senhor Yhwh plasmou o homem do pó da terra e insuflou no nariz dele um sopro de vida, e o homem se tornou um vivente.”)

Neste passo, em que se relata a criação do Homem, a tradução do termo por ψυχὴν, como se pode observar na tradução grega, ou seja, na Septuaginta: “καὶ ἔπλασεν ὁ Θεὸς τὸν ἄνθρωπον, χοῦν ἀπὸ τῆς γῆς, καὶ ἐνεφύσησεν εἰς τὸ πρόσωπον αὐτοῦ πνοὴν ζωῆς, καὶ ἐγένετο ὁ ἄνθρωπος εἰς ψυχὴν ζῶσαν.”, induz a conceber que o termo hebraico encerraria a mesma concepção de que o homem é constituído de dois princípios como acontece com o homem homérico. Tal compreensão é, porém, equivocada. Néphesh (נפש) aqui parece estar sendo empregado apenas para indicar que o homem passa de um estado para outro, isto é, de não-vivo para vivo. Observa-se a respiração como característica essencial dos seres vivos.

Assim, entende-se que o termo se relaciona com o verbo respirar cuja raiz é nāfăsh (פֶשׁנ), aliás de emprego raro, e que todo ser que respira possui uma néphesh, como se pode deduzir da leitura de Gênesis 1, 20 e 24: “וַיֹּ֣אמֶר אֱלֹהִ֔ים יִשְׁרְצ֣וּ הַמַּ֔יִם שֶׁ֖רֶץ נֶ֣פֶשׁ חַיָּ֑ה וְעֹוף֙ יְעֹופֵ֣ף עַל־ הָאָ֔רֶץ עַל־ פְּנֵ֖י רְקִ֥יעַ הַשָּׁמָֽיִם׃” (“E disse o Senhor: Fervilhe a água um fervilhar de seres vivos e pássaros voem sobre a terra, sob o firmamento do céu.”); “וַיֹּ֣אמֶר אֱלֹהִ֗ים תֹּוצֵ֨א הָאָ֜רֶץ נֶ֤פֶשׁ חַיָּה֙ לְמִינָ֔הּ בְּהֵמָ֥ה וָרֶ֛מֶשׂ וְחַֽיְתֹו־ אֶ֖רֶץ לְמִינָ֑הּ וַֽיְהִי־ כֵֽן׃” (“E disse o Senhor: A terra produza viventes segundo sua espécie: animais domésticos, répteis e feras segundo sua espécie. E sucedeu desse modo.”).

Os tradutores do texto grego traduziram esses versículos como “Καὶ εἶπεν ὁ Θεός· ἐξαγαγέτω τὰ ὕδατα ἑρπετὰ ψυχῶν ζωσῶν καὶ πετεινὰ πετόμενα ἐπὶ τῆς γῆς κατὰ τὸ στερέωμα τοῦ οὐρανοῦ. καὶ ἐγένετο οὕτως” e “Καὶ εἶπεν ὁ Θεός· ἐξαγαγέτω ἡ γῆ ψυχὴν ζῶσαν κατὰ γένος, τετράποδα καὶ ἑρπετὰ καὶ θηρία τῆς γῆς κατὰ γένος. καὶ ἐγένετο οὕτως.”

Os exemplos acima evidenciam que o termo hebraico é aplicado a qualquer ser vivo e não exclusivamente ao Homem. Todo animal é uma néphesh (נפש), seja ele humano ou não. O termo psykhé (ψυχὴ), de modo diferente, só é atestado, nos Poemas Homéricos, em Odisseia XIV, v.425-6, referindo-se a um animal, no passo referente ao sacrifício de um porco:
 
κὸψε δ’ ανασχὸμενος σχίζη δρυός, ήν λίπε κείων
τον δ’ έλιε ψυχή τοί δ’ έσφαξάν τε και εύσαν

E depois, levantando o braço, o feriu com a clava de carvalho, que abandonava quando rachava lenha. A psykhé o deixou. Eles o degolaram e o chamuscaram.

Esta é uma importante diferença entre a palavra grega e a hebraica. Enquanto psykhé (ψυχὴ) é um atributo humano e aparece se referindo a animais somente nos versos imediatamente acima, néphesh (נפש), ao contrário, pode se referir a outros seres, inclusive, ao próprio Deus, como por exemplo, em Jeremias 12,7: “עָזַ֙בְתִּי֙ אֶת־ בֵּיתִ֔י נָטַ֖שְׁתִּי אֶת־ נַחֲלָתִ֑י נָתַ֛תִּי אֶת־ יְדִד֥וּת נַפְשִׁ֖י בְּכַ֥ף אֹיְבֶֽיהָ׃” (Eu abandonei minha casa, rejeitei minha herança, entreguei minha amada néphesh nas mãos do inimigo). Novamente a tradução grega verte o termo para psykhé (ψυχὴ): “Εγκαταλέλοιπα τὸν οἶκόν μου, ἀφῆκα τὴν κληρονομίαν μου, ἔδωκα τὴν ἠγαπημένην ψυχήν μου εἰς χεῖρας ἐχθρῶν αὐτῆς.” Essa concepção de que uma divindade possui ψυχὴ é completamente estranha aos Poemas Homéricos.

– págs. 168, 169.

O ser humano necessitado: as implicações do conceito de nefesh nas ideias de homem, vida e morte na antropologia do Antigo Testamento, Willibaldo Ruppental Neto (Capítulo 2 do Trabalho de Conclusão de Curso de Teologia [O Conceito de Nefesh no Antigo Testamento], Faculdade Batista do Paraná [FABAPAR]), Brasil, 2015:

Como bem afirmou George A. Barton, o termo nefesh “passou por um desenvolvimento considerável que deu a este [termo] diferentes formas de significado em diferentes momentos”. Das 756 vezes que nefesh aparece no Antigo Testamento em suas várias formas, 600 vezes é traduzida na Septuaginta (LXX) por psykhe (ψυχή), alma, quando na verdade “hoje podemos concluir que em muito poucas passagens a tradução dessa palavra por ‘alma’ corresponde ao significado de נֶ֫פֶש”. Há uma variedade de significados de nefesh que devem não somente ser considerados para a tradução como também na compreensão deste termo em sua essência, uma vez que não se trata de uma palavra com significados simplesmente sobrepostos, mas de fato um conceito que apresenta um desenvolvimento…

Alguns estudiosos traduzem o termo hebraico nefesh também enquanto alma (soul em inglês). Esta é a tradução mais recorrente, mas que não necessariamente é correta

Para se traduzir nefesh por alma, se faz necessária uma posição de precaução. Miriam Seligson lembra que a alma enquanto tradução da palavra nefesh não deve ser tomada em seu sentido moderno. A alma deveria ser compreendida em sentido judaico, segundo Seligson, muito mais no sentido de ser “concebida como material”. Mas será que de fato tal materialidade pode acompanhar uma palavra tal como alma, que carrega consigo um sentido de imaterialidade quase intrínseco?

Hebrew and Aramaic Dictionary of the Old Testament (Dicionário de Hebraico e Aramaico do Antigo Testamento) editado por Georg Fohrer traz os seguintes significados para a palavra nefesh (נֶ֫פֶשׁ): “garganta; fôlego; respiração; ser; vida; alma (não no sentido grego), pessoa, self; seres humanos, pessoas; desejo, sentimento, humor, vontade; pessoa morta”. É interessante de se notar que apesar do uso da tradução de nefesh enquanto alma, foi necessária uma explicação entre parênteses, a fim de se diferenciar esta ideia da compreensão grega de alma… Para compreendermos a possibilidade da tradução de nefesh por alma, é necessário, para além dos significados desta palavra, compreender-se o seu conceito…

A partir do estudo da antropologia judaica, podemos concluir que a ideia de alma não é estranha ao pensamento judaico, desde que seja reconfigurada de modo que se compreenda que “corpo e alma não são, pois, duas entidades do homem, mas duas dimensões e perspectivas do mesmo e único homem”. Assim sendo, a alma que nefesh representa para o pensamento semítico é necessariamente uma realidade que se relaciona com o corpo, com a vida e com a morte do ser humano.

É justamente por tais relações que a compreensão de nefesh se distancia e muito do conceito de psykhe para os gregos. O corpo com que nefesh se relaciona é um elemento essencial na constituição do homem na perspectiva semítica, bastante distante da visão grega, assim como a situação de morte ainda em vida contrasta com a ideia grega de vida após a morte. Além de relacionar-se, porém, o conceito de nefesh ainda possibilita novas percepções sobre as ideias de homem, vida e morte no Antigo Testamento.

– Págs. 36, 45-47, 50, 51 (notas de rodapé omitidas).

Antropologia, Pedro Fernandes de Queiroz e Antonio Gonçalves Sobreira, 1ª Edição. AIAMIS, Sobral, Ceará, Brasil, 2017.

Até aqui percebemos que a questão se há ou não vida após a morte não possui uma única resposta, nem mesmo entre os teólogos cristãos. O homem consciente da morte se pergunta: Ela constitui ou não o fim de todo ser humano? À primeira vista a resposta parece ser sim, pois todas as pessoas que conhecemos possuem uma estrutura físico-psicológica que cessará por ocasião da morte.

Para quem defende que após a morte ainda sobreviverá uma essência, ou a alma, a morte do corpo não representa a morte do ser inteiramente, apenas do seu aspecto físico ou corpóreo. Mas como vimos, esta é uma resposta cuja base está na filosofia grega, embora presente em muitas religiões do mundo.

Para os cristãos primitivos, aqueles que viveram no século I, herdeiros da pregação de Cristo e dos apóstolos, a resposta para a questão se há ou não vida após a morte era um contundente “sim”. Haveria uma vida pós-morte, mas no sentido de que os mortos ressuscitariam no último dia da história humana. Não acreditavam que houvesse “vida na morte”, ou seja, enquanto mortos, não poderiam viver de alguma forma. Morte é interpretada como antítese da vida. Seria um contrassenso afirmar que um morto vive. Se vive, não está morto. O correto era afirmar como Jesus afirmou: “Quem crê em mim, ainda que esteja morto viverá” (João 11:25). Jesus não disse que seu amigo Lázaro, enquanto morto, estava vivendo em algum lugar. Durante os quatro dias que assim permaneceu, não fez nenhum passeio astral viajando pelo espaço cósmico, pelo paraíso, inferno ou purgatório. Jesus afirmou categoricamente que Lázaro estava, de fato, morto. Mas ele iria ressuscitá-lo, ou seja, iria trazê-lo de volta à vida.

Nessa perspectiva, é incorreto afirmar que haja qualquer alma no céu ou no inferno. Não faria sentido algum condenar uma pessoa a um pesado castigo sem antes haver um justo julgamento. Para os que defendem a existência da alma imortal, aqueles que nessa vida agiram mal e morreram sem salvação estão nesse momento ardendo nas profundezas do inferno, sendo afligidas continuamente sem alívio algum, e tudo isso sem terem ainda passado pelo julgamento final. Essa imagem é grotesca e conspira contra o caráter santo e justo de Deus. É difícil compreender e aceitar como um Deus justo e amoroso poderá lançar em torturas infindáveis aqueles que havia criado como filhos amados.

Somente uma má interpretação das Escrituras poderia levar alguém a ensinar tais doutrinas. Mas é exatamente isso que acontece com muitos que tomam figuras de linguagens como algo literal e assim, ao interpretarem o “fogo eterno” ou o “fogo que não se apaga”, dão uma interpretação errônea, considerando que este fogo seja eterno em sua “duração”, quando sabemos que é eterno nos seus “efeitos”. E isso é algo completamente diferente.

O destino eterno do homem, na teologia cristã, depende da sua decisão e da sua resposta ao plano da salvação. Uma resposta negativa implicará na perda da vida eterna. Uma resposta positiva resultará na aquisição da vida eterna. Para os que acreditam na alma imortal, os que perdem a salvação, sua sorte é terrível, pois não podendo morrer ou ser destruída, a alma terá que sofrer para todo o sempre. Isso é terrivelmente cruel e injusto.

Por outro lado, há o entendimento de que não existe alma imortal, e que é o homem “inteiro” que ressuscitará para ser julgado; caso seja condenado, sofrerá a morte eterna, e sendo mortal, será então destruído, logo, para sempre não viverá. Nessa perspectiva, o sofrimento dos injustos e maus terá um fim. O fogo eterno não é eterno em duração, ou seja, não ficará aceso indefinidamente, mas apenas até cumprir sua finalidade. As consequências do fogo é que são eternas, pois nunca mais os que forem consumidos tornarão a viver novamente.

Sendo a morte o fim da vida, dos projetos, das atividades, das interações e relações, do amor e afeto, e por isso seja algo tão indesejado, nos causa angústia pensar que teremos de enfrentá-la algum dia. Por outro lado, a fé cristã nos proporciona a esperança de uma superação, de uma vitória sobre a morte. Essa fé nos diz que a morte é um fim, mas um fim “provisório” e que a palavra final e definitiva será dada por Deus. A fé cristã foi fundada sobre a promessa de superação da morte como algo definitivo e a perspectiva de uma vida eterna. E como afirma Mondin (1977), “para o cristão, a morte deve constituir o último ato de fé no Deus que ressuscitou Jesus Cristo dos mortos”.

– págs. 95-97.

The Hebrew Bible: A Translation with Commentary [Bíblia Hebraica: Uma Tradução com Comentários], Três Volumes, Robert Alter, W. W. Norton and Company, Nova Iorque (EUA) e Londres (Inglaterra), 2019.

Alter me contou sobre sua decisão de rejeitar uma das tradições mais antigas da tradução inglesa e remover a palavra “alma” do texto. Essa palavra, que traduz a palavra hebraica nefesh, é uma das favoritas das Bíblias em inglês desde a versão Rei Jaime de 1611. Mas considere o Livro de Jonas 2:6, no qual Jonas, preso nas profundezas do intestino de um peixe gigante, canta sobre o terror da quase morte pela água. Segundo a versão Rei Jaime, Jonas diz que as águas do Mediterrâneo “cercaram-me até a alma” – ou nefesh. O problema com esse termo “alma”, para Alter, são suas conotações cristãs de um ser incorpóreo e imortal, o dualismo da alma à parte do corpo. Nefesh, ao contrário, sugere as partes materiais e mortais, as coisas que nos tornam vivos nesta terra. O corpo.

“Bem,” – disse Alter, falando no tom divertido e tranquilo de um observador veterano. “Essa palavra hebraica, nefesh, pode significar muitas coisas. Pode ser “fôlego” ou “fôlego da vida”. Pode significar “garganta” ou “pescoço” ou “esôfago”. Às vezes pode sugerir “sangue”. Pode significar “pessoa” ou até mesmo uma “pessoa morta”, “cadáver”. Ou pode ser “apetite” ou algo mais geral: “vida” ou mesmo “o eu [self] essencial”. Mas, absolutamente não é ‘alma’”.

‘Mas’, perguntei a Alter, ‘a palavra “alma” não ajuda a dramatizar a intensa emoção do cenário’? Mencionei outro exemplo da palavra nefesh, a linha terrivelmente vívida da tradução do Salmo 69 na versão Rei Jaime: “Pois as águas chegaram até minha alma”.

“Ah, sim”, disse Alter, com um sorriso. “Certamente há uma certa ressonância emocional nele. Mas não era isso o que o salmista tinha em mente. E eu acrescentaria que a linha “pois as águas chegaram até o meu pescoço” também é bastante dramática.”

Mais tarde, verifiquei o versículo de Jonas e vi que a tradução de Alter era fiel à estrutura formal do poema. O versículo começa com Jonas dizendo que as águas chegaram até sua nefesh – seu “pescoço”, como Alter colocou – e termina com ele exclamando que sua cabeça estava coberta de algas marinhas. A poesia bíblica é frequentemente feita de pares de linhas compostas de imagens análogas, e Alter escolheu um substantivo anatômico, “pescoço”, que logicamente combinou com “cabeça” na frase paralela. Você não precisa conhecer a etimologia hebraica para perceber que “alma” não se encaixa na analogia. A estrutura poética dita sua própria lógica.

Traçar estes tipos de estruturas formais no antigo texto hebraico, explorando seu significado e argumentando sobre sua relevância, tem sido a missão da vida de Alter como crítico literário. Como tradutor, ele rastreou versículo por versículo através da Bíblia Hebraica para tornar essas estruturas visíveis em inglês, em alguns casos pela primeira vez. Ao longo de sua carreira, ele também ajudou a estabelecer a Universidade da Califórnia, em Berkeley, onde ele é professor desde os anos 60, como um dos principais centros de estudos literários hebraicos do mundo. Seleções de sua tradução da Bíblia, publicadas em intervalos de poucos anos desde a década de 1990, tiveram boa vendagem e receberam elogios de críticos literários como James Wood, que escreveu que o trabalho lançado por Alter em 2004, intitulado “Os Cinco Livros de Moisés”, “melhora muito, às vezes remove produtivamente palavras que agora podem ser familiares demais para os que cresceram com a Bíblia Rei Jaime.” Finalmente temos a tradução completa agora.

– Trecho da entrevista feita por Avi Steinberg ao erudito Robert Alter, publicada na The New York Times Magazine em 20 de dezembro de 2018.

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