A “Vida Após a Morte” no Conceito Bíblico – Parte 4
A New Translation of The Holy Scriptures according to the traditional Hebrew text (Nova Tradução das Escrituras Sagradas de acordo com o texto hebraico tradicional), 1962:
Outros tradutores interpretaram [a palavra “nefesh”] como “alma”, o que é completamente inexato. A Bíblia não diz que temos uma alma. “Nefesh” é a própria pessoa, sua necessidade de alimento, o próprio sangue em suas veias, seu ser.
– Declaração de Harry Meyer Orlinsky, em entrevista publicada no The New York Times, 12 de outubro de 1962 (Orlinsky foi o editor-chefe da Nova Tradução da Torá da Jewish Publication Society (Sociedade Publicadora Judaica dos Estados Unidos) em 1962. Concordemente, esta tradução não usa a palavra ‘alma’.)
James H. Burtness, Immortality and/or Resurrection [Imortalidade e/ou Ressurreição], Dialog: A Journal of Theology [Diálogo: Uma Revista de Teologia], Vol. I, Wiley Periodicals, Inc. and Dialog, Inc., NJ, EUA, 1962.
Quando se lê a Bíblia com cuidado … percebe-se que os escritores não observam as regras de uma antropologia dualista. Por exemplo, Mateus registra Jesus dizendo: “Não estejais ansiosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer, ou pelo que haveis de beber”. A palavra traduzida como “vida” é ψυχή, que poderia ter sido traduzida como “alma”. Mas os tradutores não usam “alma” porque soaria estranho ter a alma comendo e bebendo. No entanto, um uso semelhante de ψυχή em Lucas 12:19 é traduzido por “alma”. A Bíblia está repleta de exemplos de atribuir funções “corporais” à alma e funções “psíquicas” ao corpo. Afirma-se que a alma tem fome (Sal. 107:9) e sede (Prov. 10:3; 17:7). Por outro lado, diz-se que os intestinos são cruéis (Prov. 12:10). E os lombos estão cheios de angústia (Isa. 21:3). Esse intercâmbio de funções corporais e psíquicas na Bíblia é semelhante ao nosso próprio uso da palavra “coração” em conexão com o conceito de amor, ou como um termo para designar o centro da vida pessoal. No entanto, somos tão completamente dualistas em nosso pensamento que, mesmo quando tentamos abolir o dualismo, a palavra que é cunhada para esse propósito revela uma orientação dualista. “Psicossomático” é uma palavra que é uma combinação das palavras alma e corpo. Mas esse termo seria impensável para o hebreu, para quem seria uma simples redundância, significando homem-homem. Pois estas várias categorias antropológicas não se referem a diferentes partes de um homem, mas referem-se, antes, a um homem como uma totalidade, descrita de diferentes pontos de vista.
… No Novo Testamento encontramos a expressão: “ressurreição dos mortos”, mas não a expressão “ressurreição do corpo”, uma vez que nem a ideia nem a palavra se encontram no hebraico. A ressurreição dos mortos é a ressurreição do homem. Os concílios, para evitar uma interpretação platônica da ressurreição, e para assegurar que a “ressurreição” da Revelação não deveria ser confundida com a “imortalidade da alma” das filosofias gregas, sentiram-se obrigados a especificar: cum corporibus suis. O acréscimo foi necessário nas circunstâncias porque a ideia bíblica estava sendo introduzida em um mundo de pensamento dualista. Portanto, para fornecer o equivalente completo do que a Bíblia chama de ressurreição dos mortos, eles tiveram de especificar que isto significava o homem inteiro, isto é, na maneira grega de falar, a alma e o corpo… É como que uma piada histórica que a frase “ressurreição do corpo”, originalmente acrescentada para combater uma antropologia dualista, seria usada depois para apoiá-la.
– págs. 47, 48.
Studies In Dogmatics. Man: The Image of God [Estudos em Dogmática. O Homem: A Imagem de Deus], Gerrit Cornelis Berkouwer, WM. B. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, MI, EUA, 1962:
“Parece claro, portanto, que as Escrituras jamais retratam o homem como um ser dualista ou pluralista, mas que em todas as suas variadas expressões o homem inteiro vem à tona, em toda a sua culpa, em seu pecado, em sua necessidade, em seus desejos e em sua nostalgia. Assim, a priori é improvável que o conceito bíblico do homem faça distinção entre uma parte superior e uma parte inferior no homem, sugerindo que a parte superior é mais santa do que a inferior e está mais próxima de Deus, sendo, então, a parte inferior impura, pecaminosa e mais afastada do Deus da vida. Esse conceito de superior e inferior no homem geralmente forma o pano de fundo para o dualismo antropológico e muitas vezes também se manifesta na teologia. A alma então vem a ser encarada como mais próxima de Deus do que o corpo, o qual forma a parte inferior do homem. E embora a criação do homem inteiro não seja negada, torna-se, porém, muitas vezes difícil honrar o corpo do homem como parte de sua criaturalidade e humanidade completa e genuína. Não analisaremos mais a fundo essa depreciação do corpo do homem, que veio à tona na teologia sob a influência do pensamento grego, e que se manifestou não só na teoria da salvação do corpo como se fosse a salvação duma forma inferior, como também na prática do ascetismo. É claro que não há margem para tal concepção de uma parte superior e inferior no conceito bíblico do homem. Isto é especialmente evidente pelo fato de que o pecado, o mal e o apóstata no homem, nunca estão relacionados a uma ou outra parte do homem no sentido de uma parte antropologicamente distinta, e nunca estão localizados no homem, como se o mal tivesse sua sede aqui ou ali – embora muitas vezes tenham sido feitas tentativas de encontrar tais localizações nas Escrituras.
… Em primeiro lugar, foi apontado que o contraste entre sarx (e sooma) e pneuma no pensamento de Paulo não é um contraste entre corpo e espírito. Isso está claro em Rom. 8:6, onde Paulo fala da mentalidade da carne, e 1 Cor. 3:3, onde a carnalidade é associada a assuntos espirituais como ciúme e inveja, e Gálatas 5:19 em diante, onde as “obras da carne” incluem coisas espirituais similares, como a idolatria, a feitiçaria, a inveja, e assim por diante. Além do mais, Paulo fala não só da psyche [alma] e do sooma [corpo] como necessitando de santificação, mas também do pneuma [espírito] (1 Tes. 5:23). Ele exorta a comunidade cristã a “purificar-se” de “toda a imundície da carne e do espírito” (sarx e pneuma) (II Cor. 7:1). Assim, claramente, o contraste não é entre o corpo, como a sede do pecado, e o espírito, acima do pecado. Paulo não encara o corpo como de menor valor; na verdade ele incentiva a igreja a “apresentar seus corpos como um sacrifício vivo, santo, aceitável a Deus, que é o seu serviço espiritual” (Romanos 12:1). A preocupação dele não é denegrir o corpo, e sim assegurar que o pecado não domine o corpo (Rom. 6:12). A luta dele não é contra o corpo, e sim em favor do corpo, para que este seja conduzido de maneira correta: “Nem apresenteis os vossos membros ao pecado como instrumentos de injustiça, mas… como instrumentos de justiça a Deus” (Rom. 6:13). Assim, o corpo não é um instrumento de devassidão, mas para o Senhor, e os nossos corpos são membros de Cristo (1 Cor. 6:13, 15, confira o 19).
Evidência adicional da impossibilidade de Paulo ver na sarx [carne], no corpo, uma carnalidade maligna e pecaminosa, é o fato de que ele também usa o termo “sooma” para o corpo – e este é um termo intimamente ligado à verdadeira humanidade do homem. Assim, o pensamento de Paulo está muito distante de um dualismo gnóstico, no qual a alma está aprisionada no corpo e anseia por sua fuga.”
– págs. 203-205.
The Hebrew Concept of “Soul” in Pre-Exilic Writings [O Conceito Hebraico de “Alma” em Escritos Pré-Exílicos], E. W. Marter, Helderberg College, Cidade do Cabo, África do Sul, 1964, págs. 104-108:
A Alma Que o Homem Tem
Em aproximadamente cinquenta por cento dos casos em que nep̄eš aparece como algo que um homem tem (isto significa 40 trechos nos escritos em análise) a Versão Rei Jaime traduz como “vida”. Quem pode duvidar da exatidão desta tradução nos seguintes exemplos? Natã aconselhou Bate-Seba a relatar a tentativa de golpe de Adonias para “salvar tua própria vida e a vida de teu filho Salomão”. Elias fugiu dos esquemas assassinos de Jezabel e queixou-se: “Só eu restei e eles estão buscando minha vida.” Os servos de Ben-Hadade aconselharam-no a colocar-se à mercê de Acabe, pois “talvez ele salve a tua vida”. O terceiro capitão enviado com seus homens para prender Elias “caiu de joelhos… e disse… Ó homem de Deus, rogo-te que seja preciosa a minha vida e a vida destes cinquenta servos teus” (1 Reis 1:12; 19:10, 14; 20:31; 2 Reis 1:13).
Provavelmente o estudante das Escrituras também concordará com o restante dos quarenta exemplos; mas quando ele lê as palavras de agradecimento de Ezequias pelos quinze anos acrescentados à sua vida, “Pois a sepultura não pode te louvar, a morte não pode celebrar-te … como estou fazendo hoje”, ele se perguntará como sucedeu que a Versão Rei Jaime não o fez dizer, como a Versão Padrão Revisada, “tu retiveste minha vida da cova de destruição”, mas em vez disso cita-o como dizendo “tu amaste a minha alma e a livraste da cova” (Isa. 38:17, 18). Ele também pode se perguntar por que Jeremias, de acordo com a Rei Jaime, prometeria ao rei Zedequias que se ele se entregasse aos babilônios, “tua alma viverá” em vez de “tua vida será poupada” (Jeremias 38:17, RSV). Há uma dúzia desses casos. Isso elevaria o total a cinqüenta e dois. Em vários desses outros 12 exemplos, conforme já foi observado, a Versão Padrão Revisada mudou “alma” para “vida”, apoiando assim nossas conclusões – e ainda assim não em todos. Por exemplo, no mesmo versículo que antecede a última ocorrência mencionada, em que a Rei Jaime verte “que nos fez esta alma”, a RSV verte “que fez nossas almas”, enquanto Moffatt e Powis Smith vertem como “que fez esta vida nossa” (Jer. 38:16).
A Alma Pode Morrer
Na literatura analisada, nep̄eš ocorre 124 vezes. Dessas ocorrências, 109 referem-se à nep̄eš humana. Nessas 109 ocorrências, nada menos que 48 indicam claramente que a nep̄eš humana morre. Em outras palavras, 44 por cento das ocorrências da palavra nep̄eš em referência ao homem mostram que a alma do homem é mortal. Esta evidência é esmagadora. Já citamos a súplica de Ben-Hadade por sua “vida”, a queixa de Jeremias contra os conspiradores, o conselho que salvou a “vida” de Bate-Seba e o milagre que prolongou a “vida” de Ezequias (1 Reis 20:32; Jer. 18:20, 22 1 Reis 1:12; Isa. 38:17, 18).
Das 48 ocorrências, a que mais provavelmente confundirá o leitor moderno da Bíblia é a história da ressurreição do filho da viúva fenícia por Elias. A Versão Padrão Revisada ainda usa as palavras idênticas da Rei Jaime, “a alma da criança entrou nele novamente, e ele reviveu.” Muito mais clara é a interpretação de Moffatt, “a vida da criança voltou e ele reviveu”, ou a de Powis Smith, “a vida da criança voltou a ele novamente, de modo que ele viveu.” (1 Reis 17:22) Expressa em conexão com este mesmo texto e o trecho semelhante em Gên. 35:18, a opinião de um meticuloso erudito do passado é significativa: “tem sido suposto que נֶ֫פֶשׁ [nephesh] significa a parte espiritual do homem, ou o que comumente chamamos de sua alma: devo confessar por mim mesmo que não consigo encontrar qualquer trecho [bíblico] onde ele tenha indubitavelmente esse significado.”
A nep̄eš pode morrer seja a alma o que um homem tem, seja a alma o que ele é. Na história de Elias, a palavra é traduzida em ambos os sentidos com referência ao mesmo evento em um único versículo: “E ele pediu para si mesmo que pudesse morrer; e disse: Basta, agora, ó Senhor, tire minha vida” (1 Reis 19:4). A Versão Padrão Revisada não altera substancialmente essa tradução de duas partes, nem é necessário fazer isso. Só quando nep̄eš é traduzida pela palavra “alma”, estas se tornam obscuras. Os acréscimos populares e teológicos ao significado que se tornaram ligados à palavra nos idiomas modernos são um obstáculo para um entendimento adequado da palavra hebraica sob consideração.
Uma publicação de Oxford exprime a visão popular comum – e errônea – quando diz: “As Escrituras são explícitas… na… distinção entre alma e corpo, a criação da alma do primeiro homem… e sua imortalidade”. Esta obra está muito mais próxima da verdade ao dizer que os primeiros Pais refletem a confusão das filosofias pagãs sobre este assunto, e que a definição da alma por Tomás de Aquino como “uma substância espiritual individual” que “pode ser separada do corpo e levar uma existência separada… após a morte” foi tomada do filósofo grego Aristóteles.
Consistente com as descobertas da presente pesquisa, cada vez mais eruditos estão reconhecendo a verdade da afirmação feita por N. H. Snaith de que “a imortalidade da alma … não é uma ideia bíblica de modo algum”. “Para os hebreus, o homem é um corpo animado por uma vida-alma (nephesh), e quando o homem está morto, não há vida-alma em parte alguma.”
O Que Significa Nep̄eš?
A alma que um homem é, é simplesmente o ser vivo que um homem é. A alma que um homem tem é simplesmente sua vida, em qualquer manifestação dessa vida. No conceito hebraico, a nep̄eš que um homem é e a nep̄eš que um homem tem são uma e a mesma; ou seja, a vida que constitui um homem num ser vivo e o ser vivo assim constituído. É só um artifício da linguagem, acentuado pelas dificuldades da tradução idiomática, que parece separar esse significado abrangente em dois. Nos relatos originais da criação de toda alma vivente, a palavra nep̄eš é qualificada pela palavra hayyâh (“יָּֽה “vivente” ou “vida”, Gen. 1:20, 21, 30; 2:7, 19). No conceito hebraico básico, todas as nep̄eš na terra tiveram sua origem no dom da “vida” (חַיִּ֣ים ḥayyîm, Gen. 2:7; 7:15, 21, 22). Toda manifestação de atividade naquele ser recém-constituído, chamado de nep̄eš, seja física, mental, moral ou emocional, era uma manifestação dessa vida e, portanto, a própria nep̄eš tornou-se sinônimo de “vida”, bem como o nome do “organismo psicofísico total” assim constituído. O Deus Vivente criou todos os outros seres viventes. Deus, a grande nep̄eš, criou todas as outras nep̄eš. Como Ele, o Grande Ser Vivente, é uma nep̄eš em Sua esfera mais elevada de existência e atividade, assim o homem é criatura, é uma nep̄eš em sua esfera. O homem tem vida; ele é um ser vivente. Quando sua vida cessa, ele cessa: a nep̄eš, tanto como vida quanto como ser vivente, não existe mais. Este é o conceito hebraico pré-exílico da “alma” humana. Compreende o homem em todos os seus poderes da mente e do corpo, manifestando vida, não em um aspecto do ser, mas no eu total, seja apetite ou emoção, razão ou propósito, percepção ou consciência. É a vida como ela se manifesta no homem, ou é o próprio homem enquanto ele tem vida.
Theological Dictionary of the New Testament (TDNT) [Dicionário Teológico do Novo Testamento], Gerhard Kittel e Gerhard Friedrich, EUA, 1964-1976, Vol. 9, 1974, págs. 618-620:
A marca decisiva da criatura viva é a respiração, e sua cessação significa o fim da vida. Assim, a raiz נפשׁ na forma do substantive נָ֫פֶשׁ [nephesh], que ocorre 755 vezes na Bíblia hebraica, denota ‘vida’ ou ‘criatura vivente’, sendo o sentido especial de “fôlego” expresso por נְשָׁמָה [neshamah], embora com frequência este compartilhe o desenvolvimento da נָ֫פֶשׁ [nephesh] Deut. 20:16; Jos. 10:40; 11:11, 14; 1 Reis 15:29; Sal.150:6; Isa. 57:16. Alguém poderia dizer que a נָ֫פֶשׁ [nephesh] sempre inclui o נְשָׁמָה [neshamah] mas não se limita a ele. Em 1 Reis 17:17 a falta de נְשָׁמָה [neshamah] causa a partida da נָ֫פֶשׁ [nephesh], que retorna quando o profeta dá à criança o fôlego novamente, pois só a נָ֫פֶשׁ [nephesh] é que faz duma criatura vivente um organismo vivo.
… Contudo, não se deve concluir que a נָ֫פֶשׁ [nephesh] seja um princípio imaterial que pode ser abstraído da sua subestrutura material e que pode levar uma existência independente. A partida da נְשָׁמָה [nephesh] é uma metáfora da morte, um homem morto é aquele que deixou de respirar…
נָ֫פֶשׁ [nephesh] é o termo usual para a natureza total de um homem, para o que ele é e não simplesmente para o que ele tem. Isto dá ao termo a primazia no vocabulário antropológico, pois o mesmo não pode ser dito sobre o espírito, o coração ou a carne. O texto clássico em Gên. 2:7 expressa isso claramente quando chama o homem em sua totalidade de נפש חיה [nephesh hayyah]. Talvez em vista de sua formulação excessivamente lógica, este trecho nunca se tornou normativo para o AT como um todo. Deve-se notar que ele expressa o aspecto externo de um homem e não as modalidades de sua vida. A palavra נָ֫פֶשׁ [nephesh] se desenvolveu em duas direções principais que correspondem mais a estruturas de pensamento do que a uma seqüência cronológica. As duas direções podem ser definidas em termos de forma e movimento. A נָ֫פֶשׁ [nephesh] é quase sempre associada com uma forma. Ela não tem qualquer existência à parte de um corpo. Assim, a melhor tradução em muitos casos é “pessoa” compreendida na realidade corpórea. A pessoa pode ser marcada e contada, Gên. 12:5; 46:18; Jos. 10:28; 11:11. Cada indivíduo é uma נָ֫פֶשׁ [nephesh], e quando os textos falam de uma única נָ֫פֶשׁ [nephesh] para uma totalidade, sendo a totalidade encarada como uma única pessoa, uma “personalidade coletiva”. Assim, נָ֫פֶשׁ [nephesh] pode denotar o que é mais individual na natureza humana, a saber, o ego, e pode se tornar um sinônimo do pronome pessoal, Gên. 27:25: “para que a minha נָ֫פֶשׁ [nephesh] (eu) te abençoe” e Jer. 3:11: “a rebelde Israel justificou mais a sua נָ֫פֶשׁ [nephesh] do que a aleivosa Judá”.
(Os termos em hebraico foram transliterados [entre colchetes]).
Dictionary of the Bible [Dicionário da Bíblia], John L. McKenzie, The Bruce Publishing Company, Nova Iorque, EUA e Collier MacMillan Ltd., Toronto, Canadá, 1965, Vol. 1, págs. 183, 184.. (A capa acima é da edição reimpressa, 1995):
Morte. 1. AT. O A[ntigo] T[estamento] apresenta certo desenvolvimento nas ideias israelitas sobre a morte. Este desenvolvimento não é progressivo; Pode-se encontrar no Sirácida [Eclesiástico, um apócrifo] um conceito de morte que pouco difere do conceito encontrado no Pentateuco. O conceito prevalecente no AT é de que a morte é terminal. O conceito de morte de uma pessoa é determinado, em última instância, pelo seu conceito de vida; daí o conceito hebraico da pessoa humana como um corpo animado, em vez de um espírito encarnado, fez com que o fim da animação parecesse ser a cessação de toda atividade vital. Quando uma pessoa morria, o “espírito” partia; o falecido continuava a existir como um “eu” (nepeš) no Seol, mas era incapaz de qualquer atividade ou passividade vital. Os mortos não participam no culto divino (Sal 6:6; 30:10; 88:11; 115:17, compare também com Isa 38:11, 18). É contra esse pano de fundo da crença do AT que Jesus disse que Deus não é Deus dos mortos, mas de vivos (Mat. 22:32, Mar. 12:27, Luc. 20:38). A morte é aceita como o fim natural do homem (2 Sam. 14:14). A morte ideal era alcançada na plenitude da velhice com poderes não diminuídos (Gen. 25:8; Jó 21:23 e seguintes; 29:18-20). Aquele que sofre tal morte ideal morre fácil e rapidamente; ele desce ao Seol “em um instante” (Jó 21:13) e não é vítima de uma morte prematura ou de uma doença prolongada desgastante. Essa é uma morte “amargurada” (Jó 21:15). O sentido da história do Paraíso (Gen. 2-3) é que a morte é a consequência da Queda original e que o homem não foi criado por Deus para ser mortal. No cenário da história do Paraíso a imortalidade é alcançada por se comer o fruto da árvore da vida, da qual o homem está agora excluído. Esta história tem alguma semelhança com o relato mesopotâmico da busca de Gilgamés pela árvore da vida, a qual Gilgamés encontrou só para logo perdê-la por roubo, bem como com a história de Adapa. Adapa foi admitido à presença dos deuses mas foi avisado contra a aceitação do alimento da morte e da água da morte, que lhe seriam oferecidos. Na verdade, foi-lhe oferecido o alimento da vida e a água da vida. A morte que veio como consequência de uma Queda original não está refletida em outro lugar no OT antes de Sirácida 25:24. Há expressões ocasionais no AT de uma distensão da esperança de que a morte não é tão terminal como parece. Assim, em Sal. 16:9, o poeta se alegra de que Iavé não o abandonará ao Seol, nem lhe permitirá ver a cova. Em Sal. 49:16 o poeta está certo de que Deus o redimirá do Seol. Expressões semelhantes não são incomuns nos Salmos e geralmente não significam nada mais que a preservação da morte súbita ou prematura. O contexto destes Salmos parece ir além disso, já que todo o problema da vida e da morte geralmente está envolvido, particularmente no Sal. 49. Ainda mais clara é a certeza do poeta em Sal. 73:23, de que ele não tem qualquer quinhão, a não ser Iavé no céu ou na terra. Se as promessas de Iavé e sua bondade são eternas, então deve haver alguma maneira pela qual o israelita fiel as experimente. Como ele deve fazer isso não é formulado nesta fase inicial da crença israelita. A concepção israelita da morte foi afetada pelo mito cósmico subjacente da criação em que tanto do pensamento israelita foi lançado. A luta entre ordem e o caos, a luz e a escuridão, era também uma luta entre a vida e a morte. Nos antigos mitos semíticos da criação, a vida e a morte eram alternadamente vitoriosas. Visto que a crença hebraica em Iavé não lhes permitia aceitar a ideia de que seu poder e vontade para o bem não eram suficientes para superar as forças do mal, assim também eles não podiam acreditar que Ele não seria vitorioso sobre a morte; pelo menos a morte não podia tocá-lo. Obviamente, porém, conforme eles desenvolveram uma crença na vitória final de Iavé sobre as forças da escuridão, do mal e do caos, da mesma maneira a lógica de sua fé exigiu que Ele vencesse a morte também. Este desenvolvimento parece bastante tardio na crença do AT; não encontramos qualquer traço certo de uma crença clara na ressurreição dos mortos antes do século II AC em Dan. A imortalidade da alma, conforme proposta na S[abedoria] de S[alomão], um produto do judaísmo alexandrino, era realmente um elemento estranho à crença hebraica e à psicologia hebraica, que jamais foi assimilado dentro do AT ou do NT.
The Theology of Martin Luther [A Teologia de Martinho Lutero], Paul Authaus, Fortress Press, 1966, págs. 413, 414:
A esperança da igreja primitiva centrava-se na ressurreição do Último Dia. É isto o que primeiramente chama os mortos para a vida eterna (1 Cor 15; Filipenses 3:21). Esta ressurreição acontece para o homem e não só para o corpo. Paulo fala da ressurreição não ‘do corpo’, mas ‘dos mortos’. Este conceito da ressurreição entende implicitamente a morte como também afetando o homem inteiro…
Nenhuma ênfase, porém, é colocada neste segundo fator, mas somente no primeiro, isto é, que as almas estão realmente vivas e abençoadas já antes da ressurreição. Assim, os conceitos bíblicos originais foram substituídos por ideias do dualismo helenístico, gnóstico. A ideia do Novo Testamento sobre a ressurreição, que afeta o homem total teve de dar lugar à imortalidade da alma. O Último Dia também perde seu significado, pois as almas receberam tudo o que é de importância decisiva, muito antes disso. A tensão escatológica não é mais fortemente direcionada para o dia da Vinda de Jesus. A diferença entre isto e a esperança do Novo Testamento é muito grande.
Paulus, Ontwerp van zijn theologie, Herman Ridderbos, Kampen, Holanda, 1966. (A Teologia do Apóstolo Paulo. Editora Cultura Cristã, São Paulo, Brasil, 2004):
Em Paulo, psyche não é – segundo o modo greco-helenista – o homem imortal, distinto do soma e nem denota o espiritual como sendo distinto do material. De um modo geral, psyche significa a vida natural do homem (cf. Rm 11.3; 16.4; 1Ts 2.8 – dar a própria “alma”, ou seja, a vida – por alguém, et al). Isso fica mais evidente nos conhecidos pronunciamentos de 1 Coríntios 15.44ss, em que Paulo coloca o primeiro homem, Adão, como “alma vivente” em contraste com Cristo como “Espírito vivificante” e fala do “corpo natural” (soma psychikon) semeado na fraqueza e na corrupção distinguindo-o do corpo espiritual que será ressuscitado. Psyche e físico significam nesse caso claramente a vida natural e terrena, que não tem subsistência em si, mas encontra-se sujeita à morte e à destruição; é usado aqui praticamente como sinônimo de “carne e sangue” no versículo 50, aquilo que foi tirado da terra (v. 47). Em conformidade com isso, Paulo fala também do “homem natural” que não pode compreender as coisas do Espírito de Deus (1 Co 2.14) e que ele contrasta com o homem pneumático, espiritual. Em 1 Coríntios 3.1 ele equipara o físico com a sárquico, o carnal. Fica evidente, portanto, que o físico nesse contexto denota aquilo que é humano e limitado e que, em si, é incapaz de captar ou compreender a sabedoria divina que, no capítulo anterior, Paulo disse ser objeto da proclamação especial de Deus. O físico e o carnal encontram-se, portanto, muito próximos um do outro nessa passagem no sentido de que ambos denotam o homem em seu caráter limitado e a humanidade em contraste com as possibilidades e realidades divinas. De outro modo, o físico e o psyche não são, em si, uma desqualificação. Exceto por sarx, o termo não tem um significado pleno de homem natural que, em seu pecado, afastou-se de Deus. Mesmo quando não é visto em contraste com o pneuma dado por Deus, ele descreve o homem em sua vida natural, especialmente de acordo com sua existência interior, como fica aparente em particular nas combinações “unidos de alma” (uma única mente; Fp 2.2), “de igual sentimento” (um único espírito; Fp 2.20), “animado” (alegre; Fp 2.19, et al.).
Paulo fala de pneuma num sentido muito parecido com psyche, pelo menos na medida em que se refere ao espírito humano e não ao Espírito de Deus dado aos crentes (como normalmente é o caso quando ele fala de pneuma). Assim como psyche, pneuma denota o homem em sua existência natural, abordado de dentro para fora. A evidência mais clara dessa afirmação certamente é o uso paralelo de pneuma em 2 Coríntios 2.13 (“não tive … tranqüilidade no meu pneuma) e de sarx em 2 Coríntios 7.5 (nosso sarx não teve alívio). Em ambas as ocasiões, trata-se simplesmente do homem em sua condição natural, que pode ser denotada tanto por espírito como por carne. Aqui, mais uma vez, não há nenhum traço do espírito como um princípio divino supra-sensual inerente ao homem. Assim, quando Paulo diz em outras passagens: a graça de Cristo seja com o “vosso espírito” (G1 6.18; Fp 4.23; Fm 25), quer dizer o mesmo que “convosco”, “com todos” (Rm 16.20; Ef 6.24, et al). No mesmo sentido de “uma só alma”, etc., o apóstolo fala de “um só espírito” (Fp 1.27), “comunhão no Espírito” (Fp 2.1, et al). Não significa nada além do homem em sua existência natural interior. Portanto, quando é dito em 1 Tessalonicenses 5.23 “o vosso espírito, alma e corpo, sejam conservados íntegros e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor…” é bem provável que não deva-se pensar aqui numa representação tricótoma, na qual as três partes podem ser claramente distinguidas entre si dentro do homem e na qual o pneuma denota uma área mais elevada da vida e separada do psyche. Devemos, sim, tratar aqui de um modo de expressão plerofórico (talvez tradicional) no qual a vida interior do homem é denotada de duas formas diferentes, mas à qual não se pode atribuir nenhum significado psicológico ou antropológico particular.” Paulo fala do homem interior não apenas de uma única maneira. Para isso, usa a palavra “alma”, bem como “espírito” sem que seja sempre possível distinguir entre elas num sentido técnico…
Surge aqui, novamente, a questão quanto a se com essas expressões “deixar o corpo” e “habitar com o Senhor” Paulo está falando da transição a ser efetuada na ressurreição ou se se trata daquela que ocorre já antes, na morte, antes da ressurreição. No segundo caso, “habitar com o Senhor” refere-se, então, ao estado intermediário. Nesse caso, o teor de 2 Coríntios 5.1-10 é um resumo desse estado, em poucas palavras: na expectativa certa da vida da ressurreição e do novo corpo prometido por Deus, não devemos desanimar em meio a todos os ataques e perigos de morte e também estamos dispostos, caso seja essa a vontade de Deus, a deixar nossa existência corpórea e unirmo-nos pela morte com Cristo. Paulo quer dizer, portanto, que tendo em vista o grande futuro, ele está preparado para continuar suportando a tribulação e, ainda mais, para aceitar a morte por amor a Cristo.
Apesar do modo de expressão poder ocasionar uma falta de clareza por causa das várias imagens usadas, essa concepção, na qual “habitar com o Senhor” significa o estado intermediário (que se concretiza quando o corpo “se desfizer”), parece altamente recomendável. Em primeiro lugar, essas expressões são menos apropriadas para indicar a transição deste corpo para o corpo de ressurreição. Menciona-se deixar o corpo (v. 8) – não passar a ocupar um outro corpo, mas “habitar com o Senhor”. Enquanto no desfazer-se da casa terrena a nova habitação corpórea não está presente, acontece o “habitar com o Senhor”. Essa expressão em si dificilmente já denota a ressurreição; de qualquer modo, permite que saibamos o que ocorre quando o corpo é abandonado.
No entanto, em segundo lugar, a expressão no versículo 9 – “quer presentes, quer ausentes” – dificilmente pode ser entendida de outra forma senão como: quer por nosso viver ou nosso morrer. Paulo não coloca sua própria preferência acima de tudo, mas sim, a maneira pela qual ele pode melhor servir a Deus e ser agradável a ele. Esse “quer… quer…”, ao que parece, tem o mesmo significado da expressão correspondente em 1 Tessalonicenses 5.10; Romanos 14.8; cf. Filipenses 1.23, 24. Portanto, com isso diz-se que, na expectativa da vida glorificada da ressurreição, ele considera seu maior desejo, quer por sua vida ou sua morte, ser agradável a Deus; mesmo que, se fosse dada a ele a escolha, o apóstolo escolheria esta última, pois a morte significa, ao mesmo tempo, a permissão de habitar com Cristo.
Se esta exegese é correta, como acreditamos que seja, então, de fato, fala-se sobre o estado intermediário em 2 Coríntios 5.8 e isso, verdadeiramente, como “habitar no Senhor”. Só é correto que uma idéia inteiramente nova seja introduzida aqui nessa perícope, que a princípio fala da ressurreição, quando se parte do ponto de vista de que, nessa passagem, Paulo está dando instruções sobre o futuro dos crentes. No entanto, ele está falando a partir de uma situação concreta e diz o que há nela que o consola e estimula.
Acima e além de tudo, é a esperança da ressurreição. Deus irá colocar um novo corpo no lugar daquele que agora está sendo corrompido. Contudo, mesmo não sendo a hora de esse dia chegar, ainda assim ele tem bom ânimo, até nas tribulações em que se encontra, para entregar sua vida à morte. Na verdade, ele preferiria a morte em vez da vida cheia de lutas e perseguições no corpo terrestre. Porquanto, então, ele poderia habitar com o Senhor. Aqui a idéia de um “estado intermediário” não é um Fremdkörper [corpo estranho]. Assume o primeiro plano, por assim dizer, quando o grande futuro ainda está à espera e quando a morte, ainda assim, é uma realidade imediata. A idéia é ainda mais aceitável, pois corresponde inteiramente ao pronunciamento de Filipenses 1,20ss (também com referência à situação do contexto, ao viver sob pressão, preferir a morte). Aquilo que lá é chamado de “estar com Cristo”, aqui é descrito como “habitar com o Senhor”, duas expressões que, inegavelmente, podem significar a mesma coisa e certamente estão ligadas uma à outra.
Se, dentro da estrutura da pregação de Paulo não existe, desse modo, qualquer dúvida sobre a realidade dos crentes estarem com Cristo imediatamente depois da morte, já a resposta para a questão do significado que deve ser atribuído a essa realidade, e qual o lugar que ocupa na salvação como um todo proclamada por Paulo, é muito mais difícil.
No que se refere ao espaço que ela ocupa, em primeiro lugar, é possível dizer, sem dúvida alguma, que nas epístolas que foram preservadas e chegaram até nós, não é dedicada atenção separada e deliberada ao estado dos crentes falecidos depois da morte e antes da vinda de Cristo. Em ambas as passagens que foram discutidas, essa realidade é mencionada com uma única palavra, uma palavra que, de fato, é direta, porém não recebe mais explicações. Isso é ainda mais impressionante, pois trata-se do futuro grandioso que começa com a ressurreição à qual Paulo dedica tanta atenção. Não se fala do estado intermediário como um motivo de consolo em separado. Por mais que a certeza de se “estar com Cristo” seja colocada como uma indicação do compromisso entre Cristo e os crentes que não pode ser quebrada pela morte, ainda assim, ao que parece, essa expectativa não tem uma “existência independente” para Paulo, mas é totalmente tomada pela esperança da ressurreição e sem ela não existiria (cf. ICo 15.18; lTs 4.13). Alguns quiseram, de fato, concluir, a partir disso, que Paulo não aceitava um estado de provisões de bênção. Diz-se que, de outro modo, ele certamente o teria usado para consolar a igreja. No entanto, essa conclusão não é compelativa. Tudo o que pode ser inferido do raciocínio de Paulo é que sem a ressurreição não há qualquer esperança para os crentes que faleceram.
Certamente é verdade, portanto, que estar com Cristo depois da morte e antes da ressurreição não têm, nas epístolas de Paulo, o mesmo significado redentor pleno da ressurreição. Por esse motivo; toda a esperança concentra-se na ressurreição e não na morte, a morte antes da ressurreição pode ser causa de grande tristeza e espanto para a Igreja e Paulo pode explicar a morte de membros da Igreja como uma correção do Senhor (1Co 11.30ss). No entanto, isso não significa que só é possível falar dos crentes falecidos antes da ressurreição em termos de morte e não vida. Sem dúvida, não existe aqui qualquer apelo a uma imortalidade inerente ao homem ou a qualquer coisa no homem. O ponto de vista predominante é, mais uma vez, cristológico. Fala-se não apenas daqueles que “dormiram em Cristo” (1Co 15.18), mas também dos “mortos em Cristo” (1Ts 4.16). Desse modo, o compromisso com Cristo, o haver sido incluído nele e ser co-participante dele, não deixa de existir com a morte (cf. Rm 8.38; 14.8). Assim como os crentes, quer vivam ou morram, são do Senhor, assim também Cristo, por haver morrido e voltado à vida, é Senhor tanto dos mortos quanto dos vivos (Rm 14.9). É a partir desse ponto de vista de absoluta abrangência dos crentes pertencerem a Cristo, de sua comunhão com ele e sua inclusão nele, que também devemos entender o fato dos crentes estarem com Cristo imediatamente depois de sua morte (Fp 1.23), bem como depois da ressurreição (1 Ts 4.17; 5.10). Contudo, aquilo que vem em primeiro lugar na ordem cronológica não é o que vem primeiro na ordem da fé, não sendo, por causa disso, menos real ou essencial.
Não recebemos uma resposta mais completa para a questão de como devemos entender esse “estar com Cristo” imediatamente depois da morte. Ela não é explicada antropologicamente, nem mesmo em 2 Coríntios 5 e nem Filipenses 1. Negativamente, é chamada de partir do corpo ou do deixá-lo (ekdêmêsai ek tou sõmatos; 2Co 5.8) e é colocada em contraste com “permanecer na carne” (Fp 1.24); a transição é descrita como “habitar com o Senhor”. Já questionamos anteriormente a idéia que sugere que a “nudez” de 2 Coríntios 5.3 é uma designação do estado entre a morte e a ressurreição. Não é dito em parte alguma da alma, nesse contexto, como o sujeito de uma existência contínua depois da morte, por mais freqüentemente que 2 Coríntios 5 e Filipenses 1 tenham sido interpretados dessa forma. Até mesmo sobre os crentes que estão vivos, Paulo diz em Colossenses 3.3 que sua vida está oculta no céu com Cristo em Deus. A questão é se podemos dizer qualquer coisa mais sobre estar com Cristo depois da morte, além de que se trata de uma existência oculta em Cristo no céu, que um dia será revelada com ele. Não estará mais no corpo terrestre e, portanto, será livre de toda imperfeição, pecado e aflição neste corpo. Por esse motivo, também pode ser descrita por Paulo como “lucro” que, portanto, é preferível em relação às tribulações, ao se “levar sempre no corpo o morrer” e ser “entregue à morte” (2Co 5.8; cf. 4.10, 11). “Desse ponto de vista, a morte é lucro em comparação com a vida presente.” Por outro lado, ainda não é estar no corpo glorificado e, portanto, para nós, é um modo de existência humana inconcebível. No entanto, as expressões “estar com Cristo” e “habitar com o Senhor” nos levam a pensar além de um “não mais” e de um “ainda não”. Greijdanus observa, com relação a Filipenses 1.23, que estar com Cristo indica não apenas sua presença, mas também união e comunhão íntimas e define isso, então, como “estar pessoalmente com o Senhor, vê-lo, ter permissão para compartilhar de sua companhia, viver em sua presença,” mesmo que, mais adiante, ele acrescente (quando escreve sobre a expressão “isso é incomparavelmente melhor”) que essas palavras não oferecem uma descrição, mas sim, despertam uma suposição, dão uma impressão. Outros expressam-se ainda de outras maneiras. Não podemos dar nenhuma outra expressão para isso além daquilo que Paulo diz com relação a uma outra questão: nada nos separará do amor de Cristo (Rm 8.35, 38ss). Como ele declara explicitamente nessa passagem, essa realidade também é válida para a morte. Ela não trará qualquer separação entre Cristo e nós. Esse fato pressupõe a continuidade não apenas do amor, mas também do objeto do amor. Significa que somos mantidos na onipotência do amor de Deus em Cristo e, por esse motivo, mesmo quando vem a morte, somos mais do que vencedores (Rm 8.36, 37).12
– Edição em português, págs. 128, 129, 566-569.
Lothar Coenen e Klaus Haacker, Theologisches Begriffslexikon zum Neuen Testament [Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento], 1967:
A compreensão que Paulo tem do soma como sendo o “eu”, como “a pessoa”, como distinto de sarx (“carne”), se ilustra em Rm 7:14 e seg[uinte]s. “Eu, todavia, sou carnal (sarkinos), vendido a escravidao do pecado” (v. 14). O corpo jaz aberto às duas possibilidades: desejo ou obediência. Neste sentido, não há diferenca entre “corpo do pecado” (Rm 6:6) e “carne pecaminosa” (Rm 8:3). Quando Paulo exclama: “Quem me livrara do corpo desta morte?” (Rm 7:24), pensa na natureza arruinada da existencia humana que acha a sua expressão no corpo. Percebe na sua existencia os poderes do pecado, da carne e do espirito que podem significar ou a destruição ou a vida. A existencia corporal do homem não significa, por si mesma, qualquer coisa ou boa ou ruim. Pelo contrario, o corpo é a esfera concreta da existencia, atraves da qual se leva a efeito o relacionamento do homem com Deus.
À luz disto, compreende-se porque Paulo, em 1 Co cap. 15, ressalta a ressurreição do corpo, contra seus oponentes corintianos. A compreensão que Paulo tem da ressurreição reflete a antropologia judaica. A vida humana é inconcebível sem o corpo. Assim, exclui-se qualquer divisão do homem em alma e corpo segundo as linhas da antropologia gr[ega]. (cf, também 2 Co 5:1-10). Paulo, neste discurso sobre a ressurreição, coloca a contradição entre o corpo terrestre ou “corpo físico” (v. 44, sôma psychikori) e um “corpo espiritual” (sôma pneumatikon). Estas são as duas possibilidades que existem para o homem. A primeira representa a sua existência terrena, e a última, sua vida depois da ressurreição, As figuras se representam em termos de espaço e tempo, embora, naturalmente, não se possa conceber o corpo em termos da matéria, O alvo de Paulo é expressar aquilo que é o ser essencial do homem. Caracteriza-se pela existência num corpo, empregando-se, mais uma vez, a terminologia do espaço e do tempo. O corpo, no sentido do “eu”, da “pessoa”, sobreviverá à morte, através do ato criador de Deus. “Mas Deus lhe dá corpo como lhe aprouve dar, e a cada uma das sementes o seu corpo apropriado… Pois assim também é a ressurreição dos mortos. Semeia-se o corpo na corrupção, ressuscita na incorrupção… Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual” (1 Co 15:38, 42, 44).
… O fato de que não há no NT qualquer descrição de conceitos do além deve ser vinculada com esta ênfase dada ao domínio e graça de Cristo que a tudo abrangem. Não há doutrina do além nem geografia do além. Nisto, há agudo contraste com certos escritos judaicos rab[ínicos] e também cristãos até os tempos da Divina Comédia de Dante. Talvez seja, no entanto, o próprio silêncio do NT a respeito dos detalhes do além e do estado temporário que excitou a curiosidade dos pseudo-piedosos e levou à dissatisfação com o colocar em Cristo somente a sua esperança. A ideia de que as declarações bíblicas precisam ser aumentadas pela imaginação humana indica uma falta de fé. Um fator contribuinte neste ponto é a substituição da doutrina neotestamentária da ressurreição dos mortos (1 Co cap. 15) pela doutrina gr[ega] da imortalidade da alma. Assim acontece no cristianismo irrefletido, que fracassa por não perguntar se a crença se fundamenta no NT ou no pensamento gr[ego] pagão.
… Ap[ocalipse] 22:1-2,14 dá uma visão final da árvore da vida, na sua última visão do paraíso (embora não empregue esta palavra) em termos da nova Jerusalém: “Então me mostrou o rio da água da vida, brilhante como cristal, que sai do trono de Deus e do Cordeiro. No meio da sua praça, de uma e outra margem do rio, está a árvore da vida, que produz doze frutos, dando o seu fruto de mês em mês, e as folhas da árvore são para a cura dos povos… Bem-aventurados aqueles que lavam as suas vestiduras, para que lhes assista o direito à árvore da vida, e entrem na cidade pelas portas’’.
No decurso posterior da história da igreja, muitos outros temas, quadros e idéias extra-bíblicos foram absorvidos no conceito do paraíso, a fim de pintar em cores brilhantes o estado dos bem-aventurados após a morte. O ponto de contraste, do outro lado, era a palavra que Jesus dirigiu ao ladrão (Lc 23:42), que foi generalizada e aplicada a todo o crente, embora não haja, além da prometida comunhão com Cristo (ver supra 1) virtualmente nenhuma motivação bíblica, muito menos para as descrições detalhadas do paraíso. As especulações na igreja a respeito do paraíso, e os conceitos da piedade popular, também se ligam ao fato da doutrina da imortalidade da alma ter entrado para tomar o lugar da escatologia neotestamentária, com a sua esperança da ressurreição dos mortos e da nova criação (Ap caps. 21-22), de tal maneira que a alma recebe o julgamento depois da morte, e chega ao paraíso, que é considerado como parte do outro mundo, enquanto os pecadores vão para o inferno.
… “O conceito ‘Deus dos mortos’ subentende uma contradição marcante, especialmente no conceito do entendimento dos saduceus quanto à morte como extinção, sem a esperança da ressurreição. Se Deus tomou sobre Si a tarefa de proteger os patriarcas dos infortúnios no decurso da vida deles, mas deixa de libertá-los daquele infortúnio supremo que marca o fim definitivo e absoluto das esperanças deles, Sua proteção é de pouco valor… Ao citar Êx 3:6 Jesus demonstrou como a fé na ressurreição é vinculada de modo profundo ao conceito central da revelação bíblica, e como a salvação que Deus prometeu aos patriarcas e seus descendentes, com base na aliança, contém implicitamente a certeza da ressurreição. Foi a falta de apreciar a ligação essencial entre a fidelidade de Deus à Sua aliança e a ressurreição que levou os saduceus ao seu erro gravíssimo” (W. L. Lane, The Gospel according to Mark, NLC, 1974,430; cf. F. Dreyfus, “L’Argument Scripturaire de Jésus en Faveur de la Résurrection des Morts (Marc, XII, 26, 27)” , RB 66, 1959, 213-14; C. F. D. Moule, The Birth of the New Testament, 1966, 65).
… O NT não faz referência direta à “ressurreição do corpo” ou à “ressurreição da carne” mas, sim, somente à “ressurreição dos mortos” ou à “ressurreição dentre os mortos”. “Os sujeitos da ressurreição são pessoas inteiras, que são transformadas externa e internamente naquilo que pode ser chamado uma aceleração do processo de cristificação (ver Rm 8:29; 1 Co 15:49; 2 Co 3:18; Cl 3:10)” (op. cit., 51; sobre os formulários credais, cf. W. Bieder, “Auferstehung des Fleisches odes des Leibes? Eine biblisch-teologische und dogmengeschichtliche Studie” ThZ 1, 1945, 105-20; J. A. Schep, The Nature of the Resurrection Body, 1964, 220-27; J. G. Davies, “Factors leading to the Emergence of Belief in the Resurrection of the Flesh”, JTS Nova Série 23, 1972, 448-55; R. M. Grant, “The Resurrection of the Body”, JR 28, 1948, 120-30, 188-208; J. Gnilka, “Contemporary Understanding of ‘the Resurrection of the Body’”, em P. Benoit e R. Murphy, eds., Immortality and Resurrection, 1970, 129-41). Até mesmo a frase “ressurreição no corpo” não deixa de apresentar dificuldades (C. R. Bowen, The Resurrection in the New Testament, 1911, 76). Tendo em vista o modo de o NT entender o corpo, Harris sugere que a frase “ressurreição da pessoa” está menos aberta a objeções (ibid.; cf. P. H. Menoud, Le Sort des Trepasses, 1966, 60-61).
– págs. 442, 1024, 1586, 2060 e 2100
[Citado aqui da 2ª edição da versão em português do Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Edições Vida Nova, São Paulo, SP, Brasil, 2000].
The Biblical Meaning of Man [O Significado Bíblico de Homem], Dom Wulstan Mork, Bruce Publishing Company, Milwaukee, Wisconsin, EUA, 1967:
“O homem é encarado na Bíblia como um todo. Não há divisão em corpo e alma, nem corpo, alma e espírito. O homem dividido contra si mesmo é puro platonismo; jamais é o pensamento da revelação. A dicotomia de corpo e alma tanto é proveniente como termina em corpo versus alma. O corpo concebido como a prisão da alma – um conceito que causou tanto mal à espiritualidade cristã – é platônico, não cristão, e certamente não hebraico.”
– pág. 14.
The Pattern of New Testament Truth [O Padrão da Verdade do Novo Testamento], George Eldon Ladd, Wm. B. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, Michigan, EUA, 1968, págs. 31-40.:
O Conceito do Antigo Testamento
O conceito do Antigo Testamento sobre Deus, o homem e o mundo é muito diferente do dualismo grego. Fundamental para o pensamento hebraico é a crença de que Deus é o criador, de que o mundo é criação de Deus, sendo, portanto, bom por si mesmo. A ideia grega de que o mundo material é a esfera do mal e um fardo ou um obstáculo para a alma é alheia ao Antigo Testamento.
Quando Deus criou o mundo, Ele viu que era bom (Gen 1:31). O mundo foi criado para a glória de Deus (Salmo 19:1); o objetivo final e o destino da criação é glorificar e louvar seu Criador (Salmo 98:7-9). Os hebreus não tinham qualquer conceito de natureza; para eles, o mundo era o cenário da atividade constante de Deus. O trovão era a voz de Deus (Salmo 29:3, 5); a pestilência é a mão pesada do Senhor (1 Sam. 5:6); a vida humana é o sopro de Deus insuflado no rosto do homem (Gênesis 2:7; Salmo 104: 29).
Com certeza, o mundo não é tudo o que deveria ser. Algo deu errado. Mas o mal não se encontra na materialidade, e sim no pecado humano. Na criação, Deus mostrou sua bondade, fazendo do homem o senhor de todas as suas criaturas e sujeitando o mundo criado aos cuidados do homem (Gen. 1:28), confiando-lhe o domínio sobre todas as outras criaturas. Quando o homem, com autoafirmação orgulhosa se recusou a aceitar o papel de criatura, quando ele sucumbiu à tentação de “ser como Deus” (Gênesis 3:5) e decaiu no pecado, Deus colocou a maldição da morte sobre o homem e o fardo de decadência e maldade sobre o mundo inteiro, para que o homem possa ser continuamente lembrado do fato fundamental de que o pecado perturba o gozo dos dons de Deus, mesmo no domínio físico. A vida e a felicidade são dons de Deus; A tristeza, a labuta e a morte são o salário do pecado.
O Antigo Testamento jamais encara a Terra como um lugar estranho nem como um teatro indiferente no qual o homem passa sua vida temporal enquanto procura um destino celestial. O homem e o mundo juntos pertencem à ordem da criação; e no sentido verdadeiro da palavra, o mundo partilha do destino do homem. O mundo é afetado pelo pecado do homem. Embora o mundo tenha sido designado para refletir a glória divina e ainda faça isso, esta é uma glória manchada por causa do pecado. Este relacionamento íntimo é às vezes expresso poeticamente. Por causa da iniquidade humana, “a terra pranteia, e todos os seus habitantes desfalecem; os animais do campo, as aves do céu e os peixes do mar estão morrendo”. (Ose 4:3).
Por trás deste conceito do homem e o mundo está a teologia de Deus de que tanto o homem como o mundo são a criação de Deus, e a verdadeira vida do homem consiste em completa obediência e dependência de Deus. Isso pode e é ilustrado pelo conceito de vida do Antigo Testamento. Não há qualquer antítese entre a vida física e espiritual, entre as dimensões exterior e interior no homem, entre os reinos inferior e superior. A vida é encarada em sua totalidade como o pleno gozo de todos os dons de Deus. Algumas teologias cristãs considerariam isso crassamente materialista; mas uma profunda teologia está subjacente nisso. A vida, que só pode ser usufruída da perspectiva da obediência a Deus e do amor por Ele (Deu. 30:6), significa prosperidade física, produtividade (Deu. 30:9), uma vida longa (Sal. 34:12; 91:16), saúde corporal e bem-estar (Pro. 4:22; 9:23; 22:4), segurança física (Deu. 8:1); em suma, o gozo de todos os dons de Deus (Sal. 103:1-5). Todavia, o gozo dessas coisas boas por si só não pode ser chamado de vida, pois a vida significa o gozo dos dons de Deus em comunhão com Deus. É só Deus que é a fonte de todas as coisas boas, incluindo a própria vida (Sal. 36:9). Os que abandonarem o Senhor serão envergonhados, pois abandonaram a fonte da vida (Jer. 17:13). Enquanto a saúde e o bem-estar corporal estão incluídos na vida, o homem não vive só de pão; e o usufruto dos dons de Deus à parte da obediência à palavra de Deus não é vida (Deu. 8:3). A vida, portanto, pode ser definida de maneira simples como o gozo dos dons de Deus em comunhão com o Deus que os dá. Deus apenas tem o caminho da vida; é só na presença dele que há plenitude de alegria e prazeres eternos (Sal. 16:11).
Por trás dessa compreensão da vida está uma teologia profunda. O homem compartilha com a natureza o fato da criaturalidade. Mas o homem se destaca de todas as outras criaturas por ter sido criado à imagem de Deus. Por esta razão, ele usufrui uma relação com Deus diferente da de todas as outras criaturas. No entanto, isso não quer dizer que os homens jamais transcenderão a criaturalidade. Na verdade, a própria raiz do pecado é a má vontade de reconhecer a realidade e as implicações da criaturalidade. O fato de o homem ser uma criatura física no mundo não é a causa nem a medida de seu pecado e, portanto, um estado do qual ele deve ser libertado. O pecado não resulta da carga do corpo sobre a alma ou o obscurecimento da mente; ele resulta da rebelião da vontade, o ego. A aceitação da criaturalidade pelo homem, a confissão de completa e total dependência do Deus Criador, é essencial para a verdadeira existência do homem. O homem realmente se conhece, reconhece o seu verdadeiro eu, só quando se dá conta de que ele é criatura de Deus. Então ele aceita o papel humilde de alguém cuja própria vida depende da fidelidade a Deus e cuja principal alegria é servir e adorar o seu Criador. A raiz do pecado é encontrada não em sucumbir ao lado físico de seu ser, e sim na intenção de se livrar de sua criaturalidade, para exaltar-se acima de Deus, recusar-se a dar a Deus o culto, o louvor e a obediência que são devidos a Ele.
Sob esta perspectiva, a salvação não significa libertação da criaturalidade, pois ela é um elemento essencial e permanente para o ser essencial do homem. Por esta razão, o Antigo Testamento jamais retrata a redenção final como uma fuga do mundo ou um escape da existência terrestre e corporal. A salvação não consiste em libertar a alma do seu engajamento no mundo material. Pelo contrário, a redenção final envolverá a redenção do homem inteiro e do mundo ao qual o homem pertence. Esta é a teologia por trás da doutrina da ressurreição corporal, que só começa a surgir no Antigo Testamento, mas que é claramente desenvolvida no Judaísmo e no Novo Testamento.
A mesma teologia básica é vista em toda parte nos profetas, em sua esperança de redenção do mundo. Enquanto os profetas, em uns poucos lugares, falam de ressurreição (por exemplo, Isa. 25:8; Eze. 37; Dan. 12:2), eles constantemente esperam a consumação do propósito redentor de Deus em uma Terra transformada. A natureza desta transformação é descrita de maneira diversificada. Às vezes, o novo mundo é representado simplesmente em termos de abundância material. A terra se tornará tão frutífera que não haverá intervalo entre as estações. As uvas serão tão prolíficas que as colinas serão inundadas em rios de vinho. Guerra e devastação serão substituídas pela paz e segurança (Amós 9:13-15). Em outras ocasiões, a transformação será mais radical. Isaías descreve isso como novos céus e uma nova terra (65:17; 66:22), onde a morte prematura será banida, a paz e a segurança usufruídas, e a maldição da violência tirada da natureza. “O lobo e o cordeiro comerão juntos, e o leão comerá feno, como o boi, mas o pó será a comida da serpente. Não farão nem mal nem destruição em todo o meu santo monte”, diz o Senhor.” (Isa. 65:25)
O mundo deve ser redimido de sua escravidão ao mal, não por qualquer processo de evolução gradual, nem por qualquer poder residente no mundo, e sim por um ato poderoso de Deus – uma visitação divina. Alguns eruditos defenderam que dois tipos diferentes de escatologia são encontrados no judaísmo: uma autêntica esperança hebraica profética que procura um reino terrestre decorrente da história e uma esperança dualista que resultou da descrença na história como o cenário do Reino de Deus e em seu lugar, a crença de que uma ordem transcendental seria inaugurada por um irrompimento da ordem celestial na história. Cremos que essa teoria crítica não é apoiada por nossas fontes, e argumentamos amplamente que a esperança profética jamais contempla o estabelecimento do Reino de Deus como resultado de forças iminentes dentro da história, e sim apenas por uma visitação divina – um irrompimento do exterior para dentro da história. Mesmo nas concepções mais antigas, a realeza de Deus só poderia ser absolutamente estabelecida ao custo de uma grande mudança que traria o fim do estado atual das coisas e testemunharia o estabelecimento de algo novo. “Não há escatologia sem ruptura. Nas ponderadas palavras de H. H. Rowley, o Dia do Senhor era concebido “como o tempo do irrompimento divino na história de maneira espetacular. Ao passo que se acreditava que Deus está sempre ativo no plano da história, usando a natureza e os homens para cumprir seus objetivos, o Dia do Senhor era considerado como um dia de ação mais direta e claramente manifesta.”
Enquanto os profetas aguardavam uma visitação final de Deus para redimir tanto o povo de Deus como o mundo físico, eles não eram pessimistas quanto à natureza da existência histórica antes da vinda do Dia do Senhor. Uma das saudáveis ênfases da teologia bíblica moderna é a atuação de Deus na história. G. Ernest Wright promoveu o conceito de que a teologia bíblica é o recital dos atos judiciais e redentores de Deus na história; e talvez a maior obra contemporânea sobre a teologia do Antigo Testamento – a de Gerhard von Rad – é uma teologia do kerygma: A proclamação dos atos poderosos de Deus na história. James Barr forneceu uma emenda saudável do conceito, por insistir que no pensamento da revelação do Antigo Testamento não ocorre apenas em eventos, mas também em palavras. von Rad reconhece que os atos e as palavras se pertencem. “A história se torna palavra e a palavra se torna história”. Vários anos atrás, este autor expôs um conceito semelhante. Deus se revela nos eventos; mas os eventos não falam por si mesmos. O significado interior deles deve ser estabelecido em palavras. Assim, a revelação ocorre em um complexo evento-palavra, sendo a palavra interpretativa profética uma parte integrante do evento.
Por trás deste conceito de revelação está uma profunda teologia de Deus: um Deus vivo e pessoal que é conhecido pelo homem, porque Ele opta em revelar-se por visitar o homem na história. O Deus do Antigo Testamento é sempre “o Deus que vem”. “Batam palmas os rios, e juntos, cantem de alegria os montes; cantem diante do Senhor, porque ele vem, vem julgar a terra” (Sal. 98: 8). “O Senhor veio de Sinai, e lhes subiu de Seir; resplandeceu desde o monte Parã, e veio com dez milhares de santos; à sua direita havia para eles o fogo da lei.” (Deu. 33:2). “O Senhor já está saindo da sua habitação; ele desce e pisa os lugares altos da terra. Debaixo dele os montes se derretem como cera diante do fogo, e os vales racham ao meio, como que rasgados pelas águas que descem velozes encosta abaixo.” (Miq. 1:3, 4). Ele veio a Israel no Egito para torná-los seu povo; Ele veio para eles vez após vez em sua história; Ele virá novamente em uma visitação final escatológica no futuro para por fim à maldade e estabelecer seu Reino.
Para o presente propósito, o importante a se notar é a diferença entre os conceitos hebraico e grego da realidade. Para o grego, o mundo, a natureza, a história humana – em suma, a esfera do visível – formavam o reino do fluxo e da mudança, do tornar-se, do transiente. A realidade pertencia ao reino do invisível, o bom, o imutável, que só poderia ser apreendido pela mente da alma transcendendo o visível. Assim, a salvação se achava no voo da alma do mundo para o mundo invisível de Deus.
Para o hebreu, a realidade se encontrava em Deus, que se dá a conhecer no fluxo e no refluxo tanto da natureza como dos acontecimentos históricos, por meio de seus atos e de suas palavras. Deus vem aos homens em sua experiência terrena. Assim, a redenção final não é um voo deste mundo para outro mundo; ela pode ser descrita como a descida do outro mundo – o mundo de Deus – resultando numa transformação deste mundo.
O contraste entre os conceitos grego e hebraico de Deus e do mundo é reforçado ainda mais pela antropologia do Antigo Testamento. O homem hebraico não é como o homem grego – uma união de alma e corpo e, portanto, relacionada a dois mundos. Ele é carne animada pelo sopro de Deus (ruach), que é dessa maneira constituída como uma alma vivente (nephesh) (Gênesis 2:7; 7:22). Nephesh (alma) não é uma parte do homem; é o próprio homem visto como uma criatura viva. Nephesh é vida, tanto de homens (Êxo. 21:23; Sal. 33:19) como de animais (Pro. 12:10). Uma vez que a nephesh é o homem como uma criatura viva, ela pode ser usada em referência ao próprio homem em si e indicar o homem como uma pessoa, e também se tornar um sinônimo de “eu”, “eu mesmo”. Por uma extensão fácil, nephesh é o homem encarado em termos de seus apetites e desejos (Ecle. 6:2, 7) ou em termos de suas emoções ou pensamentos (Ose. 4:8; Sal. 35:25; Gênesis 34:8; Sal. 139:14; Prov. 19:2).
Se a nephesh é a vida do homem, pode-se dizer que ela parte na morte (Gen. 35:18; 1 Reis 17:21) ou retorna se uma pessoa revive (1 Reis 17:22). Se a nephesh representa o próprio homem, pode-se dizer que sua nephesh se afasta do mundo inferior ou do sheol na morte (Sal. 16:10; 30:3; 94:7). Todavia, o Antigo Testamento não concebe almas desencarnadas existentes no mundo inferior depois que partem do corpo, como fez Homero e outros escritores gregos antigos. O Antigo Testamento não vê almas no Sheol, e sim sombras (rephaim), que são uma espécie de réplica tênue do homem como criatura viva. Essas sombras não são de qualquer forma diferentes das almas de Homero no Hades, e ambas representam uma convicção comum da teologia natural, a saber, que a morte não é o fim da existência humana, mas que a vida em sua plenitude deve ser vida corporal.
Todavia, ao seguir o curso de seu desenvolvimento, o pensamento grego e hebraico divergiram drasticamente. Os gregos, como vimos, passaram a acreditar que havia algo de divino sobre a alma e que esta deveria encontrar a libertação da existência corporal para alçar o seu voo às estrelas. O pensamento hebraico se desenvolveu de forma muito diferente. Começou a surgir, mesmo no Antigo Testamento, a convicção de que, se os homens desfrutam de comunhão com Deus na vida, essa comunhão não poderia ser quebrada pela morte. “Pois não deixarás a minha alma no Seol, nem permitirás que o teu Santo veja corrupção. Tu me farás conhecer a vereda da vida; na tua presença há plenitude de alegria; tua mão direita há delícias perpetuamente.” (Sal. 16,10, 11). “Mas Deus remirá a minha alma do poder do Seol, pois me receberá.” (Sal. 49:15). “Tu me guias com o teu conselho e depois me recebes na glória.” (Sal. 73:24). Ao passo que tais declarações dificilmente nos fornecem material para uma doutrina do estado intermediário, elas expressam a convicção absoluta da “benção imperecível do homem que vive em Deus”. Elas não podem conceber que essa comunhão seja quebrada, nem mesmo pela morte. Conforme Martin-Achard diz: “Sem realmente se darem conta disso, os hassidins estão desgastando os portões do reino dos mortos, sem atingir a afirmação positiva da imortalidade ou ressurreição do crente… eles estão preparando o caminho para que as gerações futuras proclamem que a morte é Impotente contra os que vivem em comunhão com o Deus vivo.” O judaísmo posterior desenvolveu a ideia de um estado intermediário e às vezes identificou os mortos como almas ou concebeu a alma como existindo após a morte.112 No entanto, a menos que haja influência grega, como na Sabedoria de Salomão (8:19), a existência contínua da alma no sheol não se deve a alguma qualidade intrínseca de imortalidade que ela compartilhe com Deus, e sim à convicção de que, como Deus é o Deus vivo e mestre tanto da vida como da morte, deve haver um destino abençoado para os indivíduos e para a nação. Quase sempre no judaísmo, a esperança individual encontra a sua realização na ressurreição corporal. Só em uns poucos lugares é que encontramos a ideia de uma imortalidade abençoada da alma no céu.113
Notas de rodapé:
112 Josefo, A Guerra ii. 156; Enoque 9:3, 10; Sabedoria 15:8, 14; 4 Macabeus 18:24.
113 Veja Enoque 9l:16; 103:4; 104:2; Jubileus 23:31; 4 Macabeus 18:23; Sabedoria de Salomão 3:4.
[N.T.: Com exceção destas notas 112 e 113, as demais notas de rodapé foram omitidas. Vale notar que todas as referências citadas pelo autor nestas duas notas, que apresentam a ‘alma existindo após a morte’, a ‘existência contínua da alma no Seol’ ou sua ‘imortalidade abençoada no céu’ são referências extrabíblicas, que foram claramente influenciadas pela filosofia grega. Essas ideias estão ausentes no cânon das Escrituras hebraicas.]
Podemos agora resumir nossas descobertas sobre a diferença entre o dualismo básico grego e hebraico. O dualismo grego é o de dois mundos, o visível e o invisível, o fenomenal e o noumenal, o tornar-se e o ser, a aparência e a realidade. O homem pertence a ambos os mundos em virtude do fato de ele ser corpo e alma ou mente. “Deus” só pode ser conhecido pelo controle dos apetites corporais, de maneira que a mente esteja livre de máculas materiais para contemplar as realidades divinas. Finalmente, a alma deve escapar da roda da existência corporal para retornar ao mundo divino ao qual ela realmente pertence.
O conceito hebraico não é um dualismo de dois mundos, e sim um dualismo religioso de Deus versus homem. O homem é a criatura de Deus; a criação é o domínio da constante atividade de Deus; e Deus se dá a conhecer e fala aos homens no fluxo e refluxo da história. O homem não é uma criatura bipartida do divino e humano, da alma e do corpo; em seu ser total ele é a criatura de Deus e continua sendo uma parte da criação. Portanto, a redenção do homem e a redenção da criação se pertencem. A salvação consiste na comunhão com Deus no meio da existência terrena e, finalmente, significará a redenção do homem inteiro junto com seu ambiente. No coração do conceito do Antigo Testamento, Deus é um ser vivo pessoal – que visita o homem na existência terrena para estabelecer uma comunhão consigo mesmo e que finalmente irá visitar o homem para estabelecer seu reino perfeito e a redenção no mundo.
Em suma, o conceito grego é que “Deus” só pode ser conhecido pela fuga da alma do mundo e da história; o conceito hebraico é que Deus pode ser conhecido porque Ele invade a história para encontrar os homens na experiência histórica.
Christian Doctrine [A Doutrina Cristã], Shirley C. Guthrie, Jr., 1968, EUA. (A capa acima é da Edição Revisada, Westminster John Knox Press, Louisville, KY, EUA, 1994):
Estivemos falando de um ponto de vista que, na perspectiva da fé cristã, é falsamente pessimista porque leva a morte muito a sério: não tem qualquer esperança para o futuro, porque não sabe ou não acredita em um Deus que é mais forte do que a morte. Agora temos de falar sobre um ponto de vista que, na perspectiva da fé cristã é falsamente otimista porque não leva a morte suficientemente a sério. Sua esperança para o futuro é baseada na confiança em uma capacidade que temos dentro de nós mesmos para sobreviver à morte, e não na confiança no poder de Deus sobre ela. Visto que a posição que estamos prestes a criticar e rejeitar é justamente o que muitos acreditam ser o próprio alicerce da esperança cristã para o futuro, enfatizamos desde já que a criticamos e rejeitamos, não para destruir a esperança da vida eterna, e sim para defender uma esperança autenticamente bíblico-cristã para o futuro, que é muito melhor e muito mais confiável.
Referimo-nos à crença na imortalidade da alma. Esta doutrina não foi ensinada pelos próprios escritores bíblicos, mas ela era comum na religião grega e nas religiões orientais do mundo antigo em que a igreja cristã nasceu. Alguns dos primeiros teólogos cristãos foram influenciados por ela, leram a Bíblia à luz dela e introduziram-na no pensamento da igreja. Ela está conosco desde então. Calvino a aceitou (Institutes [Institutos] 1.15.2.6), e o mesmo fez a confissão clássica das igrejas reformadas (Confissão Escocesa, 17, Confissão de Westminster, 34).
Segundo esta doutrina meu corpo morrerá, mas eu mesmo não morrerei. Meu corpo é só a concha em torno de meu verdadeiro eu. Não sou eu; é só a residência física terrena em que eu moro temporariamente, ou a prisão terrestre física na qual estou preso por um tempo. Meu verdadeiro eu é a minha alma, minha parte espiritual que é como Deus e, portanto, compartilha a imortalidade de Deus (não passível de morrer). O que acontece na morte, então, é que minha alma imortal escapa do meu corpo mortal. Meu corpo morre, mas eu mesmo continuo vivo e retorno ao reino espiritual de onde vim e ao qual eu realmente pertenço.
Se seguirmos a Reforma Protestante buscando fundar nossa fé “nas Escrituras apenas”, devemos rejeitar esta esperança tradicional para o futuro baseada na crença na imortalidade da alma (ainda que os reformadores não tenham seguido sua própria recomendação neste ponto). Há várias razões pelas quais isto é inaceitável do ponto de vista bíblico.
1. Os cristãos crentes na Bíblia devem rejeitar a doutrina da imortalidade da alma porque ela se baseia num entendimento não bíblico do que é a alma. Segundo as Escrituras, a alma não é a parte íntima divina (e, portanto, imortal) de nós, que vem de Deus e retorna a Deus; ela é simplesmente o “fôlego de vida” dado por Deus que faz de nós criaturas vivas (veja nossa consideração sobre o corpo e a alma no capítulo 10 [do livro]). É verdade, então, que quando morremos a alma “parte” e “se foi”. Mas isso não significa que nossa parte imortal divina partiu para viver em algum outro lugar. Significa que a vida nos deixou, que nossas vidas chegaram ao fim, que estamos agora “mortos e enterrados”. Em outras palavras, segundo as Escrituras minha alma é tão humana, criatural, finita – e mortal – quanto meu corpo; ela é simplesmente a vida do meu corpo. Isto não quer dizer que não haja qualquer esperança de “vida após a morte”, e sim que não temos esperança alguma se nossa esperança estiver em nossa própria imortalidade incorporada.
2. Dizemos a mesma coisa de outra maneira quando dizemos que a fé cristã baseada na Bíblia rejeita a esperança na imortalidade da alma porque essa doutrina nega a terrível realidade da morte. A Bíblia não finge que a morte afinal não é ruim, porque nós realmente não morremos, mas apenas “passamos” para uma nova forma de existência quando nossas almas escapam de nossos corpos. Segundo as Escrituras, a morte é real, total e terrível. O próprio Jesus não enfrentou a morte com a calma de apenas “passar para o outro lado”. Ele a enfrentou com “altos clamores e lágrimas” (Heb. 5:7) e suando sangue devido à angústia (Lucas 22:44)…
A Bíblia não ensina que o corpo é inferior, uma concha ou prisão sem valor em que estamos presos e do qual desejamos escapar. Ela ensina que fomos criados e somos corpo (corpo masculino ou feminino!) bem como alma, e que a tanto a vida corporal como a espiritual são desejadas e abençoadas por Deus. Ensina também que nossa esperança para o futuro não é a fuga da alma da vida físico-corporal para algum reino espiritual mais elevado e melhor, e sim a renovação da existência humana total como almas corporificadas e corpos dotados de alma. Assim foi com Jesus: O Novo Testamento não nos diz que a alma dele deixou seu corpo e “voltou para casa” para estar com Deus; ela nos diz que Deus o ressuscitou corporalmente dos mortos e que o mesmo Jesus terreno que seus discípulos tinham conhecido antes (com certeza com um corpo “novo” transformado) retornou ao Deus de quem Ele havia vindo. Assim será conosco: não estamos ansiosos para finalmente um futuro sombrio em que nossas almas “nuas” vivem para sempre; ansiamos por um futuro em que nós, pessoas dotadas de corpo que somos agora, viveremos (certamente de uma nova maneira) em comunhão com Deus e com outras pessoas. Se pensarmos sobre a vida neste mundo ou no mundo vindouro, o desprezo pela nossa própria vida corporal (ou de qualquer outra pessoa) é antibíblica e anticristã. A esperança bíblico-cristã para o futuro é a esperança para os seres humanos que são corpo e alma em sua unidade inseparável.
Chegamos aqui ao próprio coração da esperança cristã para o futuro. Vamos agora perguntar o que isso significa mais especificamente. A questão agora é que, em nome de uma verdadeira esperança bíblico-cristã para o futuro, devemos rejeitar a esperança na imortalidade da alma. Por um lado, os cristãos são muito mais honestos do que isso sobre a total ameaça e realidade da morte. Por outro lado, a esperança cristã é muito maior do que isso. Nossa esperança não está em nossa própria espiritualidade imortal, mas no Deus que cria e recria seres humanos inteiros. Quando os cristãos confessam sua esperança para o futuro, dizem que acreditam na “ressurreição do corpo.”…
Nos escritos do Antigo Testamento, em sua maior parte, não há esperança alguma pela vida além da vida neste mundo. Os indivíduos podem esperar que Deus abençoe os justos e castigue os injustos nesta vida, mas depois desta vida não há céu nem inferno, nem vida real. Todo aquele que morre vai para o mesmo lugar, o Seol, “a terra da sombra e da escuridão profunda” (Jó 10:21), uma região onde todos os mortos têm uma espécie de existência sombria completamente cortada de Deus e esquecida por Deus (Sal. 88:4-6, 10-12; 115:17). A esperança de Israel para o mundo não é esperança de um novo céu e terra que virá no fim da história do mundo, mas a esperança para a vinda de um novo rei como Davi (um “Filho de Davi”) que trará um reino político de prosperidade, justiça, paz e religião verdadeira para todas as pessoas dentro da história.
Perto do fim do período do Antigo Testamento, a esperança de Israel para o futuro mudou quando o povo foi levado para o exílio. Tornou-se claro que nesta vida não é o piedoso que prospera e os ímpios que sofrem, mas justamente o oposto. Não havia mais qualquer esperança realista de um reino davídico perante o qual as nações da terra se curvariam. Surgiu uma esperança “apocalíptica” de uma grande batalha cósmica entre Deus e todas as forças demoníacas do mal no final da história, ao fim da qual Deus será vitorioso. Naquele tempo, todos os mortos serão ressuscitados para a “vida eterna” ou para “vergonha e desprezo eterno” (Daniel 12:2) para receber a recompensa ou a punição que não receberam nesta vida, e Deus (não este ou aquele líder político) estabelecerá um eterno reino de justiça além da história.
No Novo Testamento, o livro do Apocalipse desenvolve essa esperança apocalíptica para o futuro em grande detalhe, mas também é o quadro da própria proclamação de Jesus sobre a vinda do Reino de Deus e da teologia dos escritores do Novo Testamento. Como resultado da pregação de Jesus e especialmente a sua morte e ressurreição a esperança de um julgamento final mundial, a ressurreição dos mortos e a vinda de “um reino que não deste mundo” tornaram-se o fundamento da fé cristã…
A Ressurreição do Corpo
Dissemos que a esperança para a ressurreição do corpo é a alternativa cristã à esperança da imortalidade da alma. Se quisermos tornar esta alternativa cristã nossa, devemos responder a três perguntas: Por que professamos isso? O que ela significa? Quando é que ela acontece?
1. Por que esperar a ressurreição corporal? A ideia da ressurreição dos mortos não se originou com Jesus ou com a igreja primitiva. Ela originou-se na escatologia apocalíptica do judaísmo posterior. O ministério de Jesus ocorreu no meio de um acirrado debate já em andamento entre os fariseus que a afirmavam e os saduceus que a rejeitavam. Mas os primeiros cristãos não esperavam a ressurreição dos mortos porque Jesus e eles concordaram com os argumentos dos fariseus. Eles também não a esperavam porque preferiam isso às especulações e teorias sobre a imortalidade da alma. Eles esperavam por ela porque acreditavam que ela tinha ocorrido: um homem morto realmente viveu de novo! Não apenas de um homem (para que o evento pudesse ser considerado uma fraca exceção à regra de que os mortos permanecem mortos), mas de um em quem eles acreditavam que o plano de Deus para o futuro de todos os seres humanos foi revelado. Visto que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos, podemos estar certos de que Deus fará o mesmo por todos. Como é que se faz essa conexão entre o que aconteceu com Jesus e o que acontecerá a todos nós em 1 Cor. 15:12-22 e Rom. 8:11? Mais uma vez vemos que a esperança cristã para o futuro se baseia no que já aconteceu no passado.
2. O que ela significa? Começamos a responder a essa pergunta em nossa discussão sobre a ressurreição de Jesus. Continuamos aqui onde do ponto onde paramos lá. A chave para a compreensão da esperança da ressurreição corporal reside no fato de que para os escritores bíblicos “corpo” ou “carne” é sinônimo de “ser humano”. Ressurreição do corpo significa ressurreição de uma pessoa. Esperar por isso é esperar que meu eu humano, a pessoa que eu sou, viverá novamente. Eu não serei alguém ou algo diferente de quem e do que sou agora. Eu serei eu mesmo. O mesmo vale, naturalmente, para outras pessoas.
Ora, para os escritores bíblicos (assim como para as pessoas realísticas de hoje), é impossível pensar em um ser humano sem um corpo. Como pode alguém ser uma pessoa distinta e reconhecível sem um corpo? Sem orelhas, olhos, bocas, mãos, pés e a identidade masculina ou feminina que nos fazem homens ou mulheres que somos, como poderíamos amar, louvar, servir e viver em comunhão com Deus? Como poderíamos reconhecer, comunicar e nos relacionar pessoalmente com outras pessoas? A ressurreição de pessoas significa necessariamente a ressurreição de seus corpos.
Isso não significa esperança de revivificação ou ressuscitação de nossos corpos físicos atuais. Os escritores do Novo Testamento sabiam tão bem quanto nós que esses corpos podem ser deformados e, em qualquer caso, após a morte, eles se decompõem e “retornam ao pó”. Esforçando-se para expressar o inexprimível, Paulo disse que teremos “corpos espirituais” perfeitos (1 Cor. 15:42-44). Nós não podemos e não precisamos tentar conceber exatamente o que isso pode significar. Mas, se seguirmos a regra de que a nossa melhor pista para o que vai acontecer conosco é o que aconteceu com Jesus, podemos dizer isso de nosso corpo ressuscitado. 1 João 3:2 diz que não sabemos o que seremos, mas sabemos que seremos “como ele”.
Segundo os relatos evangélicos das aparições pós-ressurreição de Jesus (Mat. 28:9, 10, Lucas 24:13-50, João 20:11-29, 21:1-13), os discípulos reconheceram Jesus ressuscitado como o mesmo Jesus que eles tinham conhecido antes. Ele não era um fantasma desencarnado. Caminhava e conversava, comia e bebia, e podia ser tocado. Ele tinha um corpo. Mas era um corpo misteriosamente diferente. Foi tão transformado que até mesmo aqueles que o conheceram melhor nem sempre o reconheciam. De repente, ele podia desaparecer da vista ou aparecer em uma sala com portas trancadas. O que quer que pensemos sobre os detalhes dessas histórias estranhas, diz-nos que houve uma continuidade e uma descontinuidade entre o Jesus físico-terrestre e o ressuscitado espiritual. Ele era a mesma pessoa de uma maneira diferente.
… Em Lucas 23:42, Jesus diz ao ladrão moribundo: “Hoje estarás comigo no Paraíso”. Em Filipenses 1:3, Paulo expressa seu desejo de “partir e estar com Cristo”. Por outro lado, Paulo nos diz que há algo como um sono de espera de todos os mortos até que todos eles sejam levantados ao mesmo tempo no que mais tarde foi chamado de “ressurreição geral” no fim da história (1 Cor. 15:51-52; 1 Tes. 4:13-18).
A tradição protestante clássica solucionou este problema, combinando as doutrinas da imortalidade da alma e da ressurreição do corpo. Quando morremos, Deus determina a cada um de nós o nosso destino eterno. Nossas almas vão imediatamente para o céu ou inferno, enquanto que nossos corpos permanecem na sepultura. No último dia, nossos corpos são criados e reunidos com nossas almas para um juízo final e destinação para o céu ou inferno (veja o cap. 34 da Confissão de Westminster). Esta explicação pode ser criticada por várias razões: (1) Sua separação do corpo e da alma, ainda que temporariamente, é antibíblica. (2) O julgamento final parece supérfluo se imediatamente após sua morte já foi determinado o lugar permanente das almas dos justos e dos ímpios. Para que fazer tudo de novo? (3) A explicação tradicional confunde as categorias de tempo e eternidade. Após a morte, uma pessoa está além de nossas categorias criaturísticas de espaço e tempo. Nossas distinções entre presente e futuro e o tempo entre eles (assim como nossas categorias de para cima e para baixo) não são mais aplicáveis. A Bíblia reconhece isso quando diz que “com o Senhor um dia é como mil anos” (2 Pedro 3:8). Eventos que, do nosso ponto de vista, estão amplamente separados no tempo, podem acontecer simultaneamente do ponto de vista do “Agora do Deus eterno”, que inclui o passado, o presente e o futuro de uma só vez. (4) Embora a explicação tradicional combine duas expressões da esperança do Novo Testamento para o futuro, o Novo Testamento em si não procura reconciliá-las ou combiná-las, mas se contenta em deixá-las em sua contraditória aparência e deixa sem resposta nossas perguntas sobre exatamente quando e como tudo acontecerá. Não deveríamos fazer o mesmo?
– págs. 378-381, 384, 392-394.
Life and Immortality: An Examination of the Nature and Meaning of Life and Death as they are revealed in the Scriptures [Vida e Imortalidade: Um Exame da Natureza e do Significado da Vida e da Morte conforme são revelados nas Escrituras], Basil Ferris Campbell Atkinson, E. Goodman & Son Ltda., The Phoenix Press, Taunton, Inglaterra, 1969:
A Psychee e o Homem
Há catorze ocorrências da palavra psychee no Novo Testamento, significando um ser humano exatamente no mesmo sentido do hebraico nephesh, quatro das quais estão em citações do Antigo Testamento. As duas primeiras, que aparecem no mesmo versículo, são as mais importantes e exigem um exame especial. Em Mateus 10.28, lemos: “E não temais os que matam o corpo e não podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no inferno a alma e o corpo.” Neste texto, encontramos o contraste entre alma e corpo que às vezes ocorre no Novo Testamento, embora muito raramente no Antigo sob a forma de alma e carne. Nosso texto aqui isolado é facilmente capaz de querer dizer a sobrevivência da alma após a morte do corpo e nossos amigos que acreditam que a alma sobrevive normalmente o tomam nesse sentido. Se houvesse alguma palavra no Antigo ou no Novo Testamentos para conectar a sobrevivência ou a imortalidade com a alma, eles sem dúvida teriam razão. Mas um estudo cuidadoso do significado da palavra “alma” na língua original do Antigo Testamento, e também do Novo como veremos, mostra que ela está sempre associada com um ser humano vivo na terra e que ela morre ou é destruída quando a morte chega para ele da maneira que é tão familiar à nossa experiência. Quando temos isso em mente, o significado das palavras do Senhor aqui fica claro. Matar o corpo aqui significa tirar a vida atual na Terra. Mas isso não mata a própria alma ou pessoa. Isto só a faz dormir. Ele é por fim destruído na segunda morte, quando sua pessoa ou eu é morto para sempre. Todos concordarão que a destruição no inferno [geena] é a segunda morte, embora vamos deixar a discussão de sua natureza exata para nossa quarta seção. Em paralelo com este versículo está a declaração do Senhor de que a filha de Jairo não estava morta, mas estava dormindo (Mat. 9:24). Ela estava realmente morta (“matar o corpo”), mas como ela iria acordar, poderia ser dito que estava dormindo. Da mesma forma, todos os mortos se levantarão no último dia, de forma que, como eles agora estão em seus túmulos, pode-se dizer corretamente que suas almas, isto é, eles mesmos não foram finalmente mortas ou destruídas. A morte que todos conhecemos é, como vimos, a morte da alma, mas ela não é definitiva.
Mais exemplos de psychee significando “pessoa” encontram-se em Atos 2:41, 43, Atos 3:23 e 7:14, ambos em citações do Antigo Testamento, em 1 Pedro 3:20; 2 Pedro 2:14; Romanos 2:9; 13:1; 1 Coríntios 15:45 em uma citação de Gênesis 2:7; Apocalipse 18:13 em uma citação de Ezequiel 27:13, e Apocalipse 20:4. O caso restante é Apocalipse 6:9, que necessita de estudo especial. As almas de que se fala aqui são muitas vezes encaradas como espíritos desencarnados dos mártires. Uma dificuldade está na estranha posição delas por baixo do altar e uma grande dificuldade no fato de que elas são ouvidas gritando por vingança como se todo o caráter e princípios tivessem sido alterados pela morte. Esses versículos são todos simbólicos em consonância com todo o Apocalipse. A chave do seu significado está no Levítico 17:14, onde a alma é identificada com o sangue. A passagem é paralela a Gênesis 4:10: “A voz do sangue de teu irmão está clamando a mim desde a terra.” As almas são as pessoas mortas dos mártires (veja Números 5:2 e outros trechos em Números). As almas em Apocalipse 20:4 também foram ocasionalmente tomadas como espíritos desencarnados, mas a palavra enfatiza o contrário. As almas dos mártires e os justos são eles próprios restaurados na ressurreição do pó da morte e este é o uso da palavra que apresenta este fato e chama a atenção para ele.
– págs. 12, 13.
Justo L. Gonzalez, A History of the Christian Thought, Revised Edition Vol. I, 1970, Abingdon Press – Nashville, Tennessee, EUA. (A capa acima é da edição em volume único, publicada em 2014):
Desde os tempos antigos, a doutrina da imortalidade da alma atraía os cristãos que procuravam apoio na filosofia grega para a doutrina cristã da vida futura. Se Platão tinha afirmado que a alma é imortal, por que os pagãos agora zombavam dos cristãos, que também afirmavam a vida após a morte? Os cristãos que argumentavam desse modo, normalmente não reconheciam a diferença entre a imortalidade da alma platônica e a esperança cristã da ressurreição. O sistema platônico fazia da vida futura, não um presente de Deus, mas o resultado natural do divino no humano. O ensino platônico afirmava a vida eterna da alma e a morte eterna do corpo, visto que somente o espiritual pode ter permanência. Platão ensinava não apenas a imortalidade, mas também, provavelmente, a preexistência e a transmigração das almas. Tudo isso era muito diferente do Cristianismo. Contudo, não poucos pensadores cristãos, desejosos de expressar sua nova fé à luz da filosofia platônica, vieram a incluir uma parte ou o todo dessa filosofia em seu sistema doutrinário.
(O trecho acima foi extraído da versão em português, Uma História do Pensamento Cristão – Editora Cultura Cristã, 2004, Volume 1, págs. 49, 50.)
History of Israelite Religion (História da Religião de Israel), Georg Fohrer, Abingdon Press, EUA, 1972, pág. 219. (Publicado originalmente como Geschichte der Israelitischen Religion, Berlim, Alemanha).
O A[antigo T[estamento] geralmente assume que o homem não é completamente aniquilado após a morte, mas continua, em certo sentido, a existir. Naturalmente, esta existência não deve ser chamada de “vida” no sentido pleno da palavra, e sim mais uma espécie de vegetação. O ponto importante é que estamos mais uma vez tratando do homem como um todo, não com sua “alma” ou alguma outra parte dele. Na sua morte, uma sombra de sua pessoa desliga-se e continua vegetando no mundo inferior. Sua existência depende obviamente do cadáver e, após a decomposição deste, dos ossos. Num grau que não pode ser definido com maior precisão, eles constituem a base terrena concreta para a imagem sombria. Por esta razão, a cremação era desconhecida, e a queima de ossos era considerada um sacrilégio (Amós 2: 1). Os ossos eram, portanto, coletados em um buraco dentro dos túmulos, que eram frequentemente usados por muitas gerações; mais tarde foram mantidos em ossuários.
A sepultura, então, era de importância crucial para o destino dos homens após a morte: era o repositório de cadáveres e ossos, a base sobre a qual a sombra repousava. Portanto, é incorreto ver uma evolução ou uma contradição quando tanto a sepultura quanto o mundo inferior são mencionados. Simplesmente não há evidência que apoie qualquer desenvolvimento ao longo do percurso, de uma sepultura única – muitas sepulturas – grande tumba – mundo inferior. Nem é a justaposição da sepultura como repositório e local de união com os pais, e o mundo inferior como a “lugar destinado a todos os viventes” (Jó 30:23) uma contradição não resolvida. A sepultura, ao contrário, contém a base sobre a qual a sombra repousa enquanto vegeta no mundo inferior.
Este mundo inferior não é comparável nem ao Hades dos gregos nem ao inferno e ao purgatório. O termo hebraico seol provavelmente significa “não-terra”, o reino no qual não há nada ativo e dinâmico, portanto, a terra que “não existe” na acepção israelita. Era concebido como um espaço fechado dentro do oceano abissal abaixo da terra, ou mesmo abaixo das águas (Jó 26:5). O reino da impotência total, fechado por portões barrados (Isa. 38:10; Sal. 9:14; Jó 38:17), é adentrado pela sombra que se liberta dos que partiram, para lá levar a existência fantasmagórica que tradicionalmente tipifica o destino dos homens após a morte. O termo refaim, “espíritos dos mortos”, que faz eco ao verbo rapa, “enfraquecer”, “entrar em colapso”, é provavelmente para caracterizar a impotência total das sombras.
El Hombre y Su Cuerpo [O Homem e Seu Corpo], Xavier Zubiri, Asclepio, Nº25, 1973, págs. 5-15. Asclepio é uma revista eletrônica iberoamericana de história da medicina. Publica artigos originais sobre história da ciência, ecoando as várias tendências historiográficas da disciplina (tem periodicidade semestral. Apresenta-se acima a capa da edição do primeiro semestre de 2017:
Portanto, o homem não “tem” psique e organismo, mas “é” psico-orgânico, porque nem o corpo nem a psique tem cada um por si alguma existência independente; só o sistema tem isso. Por isso, penso que não se pode falar de uma psique sem corpo. Diga-se de passagem, que quando o cristianismo, por exemplo, fala de sobrevivência e imortalidade, quem sobrevive e é imortal não é a alma, e sim o homem, isto é, toda a substantividade humana.
– Reimpressão na Salesianum (Roma, Itália) Nº 36, 1974, pág. 481.
N.T.: O exame geral das obras de Zubiri mostra que ele sustentou até o fim de sua vida essa unidade psico-orgânica dos seres humanos, que envolve a negação da existência de uma alma que sobreviva ao corpo. O que é especificamente humano não é possuir uma alma imortal, e sim ser uma pessoa. A morte significa a morte do ser humano em todas as suas dimensões. O ser humano é mortal na sua totalidade; não há alma imortal, e sim a ressurreição dos mortos. Na apresentação do livro póstumo de Zubiri, Sobre el Hombre [Sobre o Homem], o teólogo Ignacio Ellacuría comentou:
“Zubiri terminou pensando e afirmando que a psyche [alma] ´é por natureza mortal e não imortal, de modo que com a morte acaba tudo no homem ou acaba o homem por inteiro.’ O que Zubiri sustentava, mas já como crente cristão e teólogo, é que também o homem inteiro ressuscita, se merecer esta graça ou receber tal graça de Deus pela promessa de Jesus.” (Grifos acrescentados.).
Anthropologie des Alten Testaments [Antropologia do Antigo Testamento], Hans Walter Wolff, Gütersloher Verlagshaus Mohn, Gütersloh, Alemanha, 1973:
Ao traduzir, via de regra, os substantivos hebraicos mais freqüentes com as palavras “coração”, “alma”, “carne” e “espírito”, ocorreram equívocos de graves conseqüências. Eles remontam já à antiga tradução grega da Septuaginta e acarretaram uma antropologia dicotômica ou tricotômica, na qual o corpo, a alma e o espírito se encontram em oposição mútua. É necessário examinar até que ponto, quando passou a usar a língua grega, a filosofia helênica deturpou e substituiu concepções semítico-bíblicas. Para isso, temos de esclarecer o uso veterotestamentário das palavras.
– pág. 29
As versões tradicionais da Bíblia traduzem via de regra por “alma” uma palavra fundamental da antropologia veterotestamentária: נֶ֫פֶשׁ [néfesh]. Como no francês, âme, e no inglês, soul, elas lançam mão da tradução mais freqüente de נֶ֫פֶשׁ [néfesh] por ψυχή [psyché] na Bíblia grega e por anima na latina. נֶ֫פֶשׁ [néfesh] aparece 755 vezes no Antigo Testamento; a Septuaginta traduz seiscentas vezes por ψυχή [psyché / alma].
… Javé Deus formou o ser humano do pó da terra e soprou nas suas narinas o fôlego de vida; assim o ser humano se tornou uma נֶ֫פֶשׁ [néfesh] vivente.
O que significa נֶ֫פֶשׁ [néfesh] aqui [em Gên. 2:7] (daqui em diante utilizaremos a abreviação n. para o termo נֶ֫פֶשׁ [néfesh])? Certamente, não significa “alma”. N. deve ser vista aqui em conjunto com a figura total do ser humano e especialmente com sua respiração; por isso, o ser humano não tem n., mas é n., vive como n.
– págs. 33, 34
Este emprego de n. em prescrições da lei para a garantia da vida corresponde a um uso em amplas áreas da língua. Quando alguém pede pela própria vida ou pela de outros, está pedindo pela n.: 2Rs 1.13; Est 7.3; 1 Rs 3.11; quando pede a morte, ele diz: “Tira de mim a minha n.!” (Jn 4.3; cf. 1 Rs 19.4).
… Quanto a esse emprego extremamente abundante de n. para designar a vida, resta observar que nunca se atribui à n. a significação de um núcleo de existência indestrutível, em oposição à vida corporal, podendo existir também separado dela. Quando se fala da “saída” da n. (Gn 35.18) de um ser humano ou de sua “volta” (Lm 1.11), isso se baseia na noção concreta da cessação e do reinício da respiração, como vimos acima, p. 36s. Quando Javé faz a n. voltar da mansão dos mortos (Sl 30.4; 86.13), deve-se pensar na volta para a vida sadia de todo o ser humano que, em sua doença, já estava exposto ao poder da morte. Por mais que se fale da n. como sendo a vida, falta qualquer culto da vida ou da morte e, com isto, falta também qualquer especulação sobre o destino da “alma” para além do limite da morte.
– pág. 48
No relato javista da criação (Gn 2.7), vemos o ser humano definido expressamente como חַיָּֽה נֶ֫פֶשׁ [néfesh hayyä / alma vivente] mas sua simples formação do pó da terra não faz com que seja vivo. Ele só vem a sê-lo por Javé Deus soprar o fôlego da vida em seu nariz. Apenas a respiração produzida pelo criador faz dele uma n. viva, isto é, um ser vivo, uma pessoa viva, um indivíduo vivo. Portanto, o ser humano aqui é definido mais precisamente sob este aspecto. חַיָּֽה נֶ֫פֶשׁ [néfesh hayyä / alma vivente] na estrutura dos enunciados de Gênesis 2.7 não introduz uma diferença específica em oposição a animais vivos; neste caso a definição posterior também do ser animal como חַיָּֽה נֶ֫פֶשׁ [néfesh hayyä / alma vivente] em 2.19 dificilmente seria possível. Mas, recebendo de Deus o fôlego da vida, o ser humano como indivíduo vivo se distingue da מֵ֖ת נֶ֫פֶש [néfesh met / alma falecida] como de um corpo sem vida ou de um cadáver.
– pág. 52
[Citado aqui da versão em português: Antropologia do Antigo Testamento, Ed. Hagnos, São Paulo, Brasil, 2008. Os termos em hebraico foram transliterados e traduzidos entre colchetes].
As Grandes Religiões, Victor Civita (Editor), Abril Cultural, São Paulo, Brasil, 1973, Volume 1, págs. 78-80:
ADESÃO DO JUDAÍSMO AO PENSAMENTO GREGO
Filho de um dos mais nobres e ricos membros da comunidade judaica de Alexandria, Fílon foi criado na crença de seus pais e instruído segundo os melhores padrões da educação grega. Nascido por volta do ano 25 da nossa era, desempenhou um papel pioneiro em vários campos do pensamento humano. É considerado não só o primeiro teólogo, isto é, o primeiro que tentou harmonizar os ensinamentos de uma revelação sobrenatural e as conclusões do pensamento especulativo, mas também o primeiro psicólogo da fé e, finalmente, o primeiro sistematizador da alegoria bíblica. Alexandria era, nessa época, a capital do Judaísmo da Diáspora, e, ao mesmo tempo, o principal centro da cultura grega. Fílon viveu, portanto, numa idade que estava madura para uma síntese do credo judaico e do pensamento grego. Fiel à tradição, teve consciência de que a Lei de Moisés não poderia ser aceita facilmente por judeus ou gentios educados na cultura grega, segundo métodos de crítica filosófica. Na verdade, a Escritura, muito pouco especulativa, deixava sem resposta um grande número de problemas tidos como fundamentais pelos filósofos. Para cobrir essas lacunas, Fílon dedicou a maior parte de sua vida à interpretação do Pentateuco, no qual, a seu ver, se encontrava a fonte de todo conhecimento verdadeiro: a Escritura é a sabedoria revelada e toda a filosofia não passa de um reflexo dessa sabedoria.
Para explicar a Bíblia, Fílon utiliza o método alegórico. Em suas exposições do texto bíblico, procura um duplo significado: o literal ou evidente e o alegórico ou oculto. Para ele, o primeiro representaria o “corpo” e o segundo a “alma” das revelações divinas. Atrás das palavras, Fílon procura descobrir um significado mais profundo, espiritual, que é, para ele, o verdadeiro sentido da Escritura, a essência da revelação divina.Assim, as narrativas bíblicas não são simplesmente relatos da história de Israel, mas imagens de verdades morais e metafísicas. Os acontecimentos narrados na Bíblia devem ser entendidos como sinais de experiências espirituais independentes de tempo e espaço.
A grande história bíblica é a história da eterna luta da alma pela salvação, uma descrição simbólica do progresso religioso de cada indivíduo. A saída dos israelitas da Terra do Egito, por exemplo, simboliza a libertação do indivíduo de suas paixões corporais. A história de Abraão significa, antes de mais nada, o desenvolvimento interior do homem de fé. Adão é a alma que sucumbe à tentação, representada por Eva; de sua queda nasce o orgulho – Caim –, e o bem – Abel – acha-se desse modo eliminado da vida da alma. Esta, não obstante, pode elevar-se novamente pelo arrependimento – Enoc – e pela justiça – Noé – até a virtude, da qual cada um dos patriarcas – Abraão, Isaac e Jacó – representa um aspecto, chegando assim à santidade total, figurada por Moisés.
Fílon não inventou o uso dos símbolos, através da alegoria, nem foi o primeiro a se valer deles. Esse método já havia sido aplicado à mitologia grega e a Homero por alguns filósofos. A obra de Fílon consistiu em lhe dar um novo alcance, partindo da alegoria como um método sistemático de conhecimento. Seu pensamento revela nítidas influências de diversas escolas gregas, especialmente a de Platão (428/7-348/7 a.C), com uma oposição entre o mundo sensível e o inteligível, entre a matéria e o espírito. O sábio deve ser ao mesmo tempo um asceta e um místico: libertar-se das paixões, dos sentidos, da matéria, elevar-se até a contemplação das realidades eternas e finalmente, pela contemplação mística, unir-se a Deus.
O pensamento de Fílon é dominado por dois conceitos de Deus aparentemente contraditórios: o Ser Supremo, auto-suficiente, afastado do gênero humano e incompreensível em sua natureza; e o Deus pessoal, íntimo da vida humana em cada momento. Esses dois aspectos da perfeição divina unem-se no conceito de Logos, a Palavra de Deus, a Sabedoria do Ser Supremo, que também é representada como sendo abstrata e pessoal ao mesmo tempo. O Logos é a soma das ideias divinas, a força da divindade, o instrumento da criação, o filho primogênito de Deus, que executa a vontade do Pai. Personifica a presença de Deus no mundo, através da qual a alma humana pode realizar seu caminho de volta para Deus.
Os seguidores do pensamento de Fílon não foram os rabinos, mas os teólogos do Cristianismo nascente. Os rabinos, em sua literatura, não mencionam nem o nome nem a obra de Fílon. Mesmo os filósofos judeus da Idade Média, que reviveram suas ideias num outro contexto, ignoravam a existência do seu precursor. Somente no século XVI um estudioso judeu, Azarias dei Rossi, redescobriu Fílon. A partir de então o pensamento judaico aceitou, embora com alguma relutância, os escritos desse pensador.
A Theology of the New Testament [Teologia do Novo Testamento], George Eldon Ladd, Wm. B. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, MI, EUA, 1974. (A capa acima é da Edição Revisada, de 1993):
Jesus quase nada tem a dizer sobre o Hades. A palavra ocorre poucas vezes (Mateus 11:23 = Lucas 16:19-31) como um conceito bem conhecido. Em uma parábola, Jesus se baseia em ideias contemporâneas sobre o Hades para expor o perigo que as pessoas enfrentam se recusarem a dar ouvidos à palavra de Deus. A parábola do rico e Lázaro (Lucas 16:19-31) foi frequentemente entendida como um trecho didático para ensinar explicitamente a condição dos mortos. Isto, porém, é muito difícil, pois se este é um trecho didático, ele ensina algo contrário ao resto do ensino de Jesus, a saber, que a riqueza merece o Hades e que a pobreza em si mesma é recompensada no Paraíso. Esta parábola não é um comentário sobre a vida social contemporânea, nem pretende dar ensinamentos sobre a vida após a morte. Ela não é realmente uma parábola sobre o homem rico e Lázaro, e sim sobre os cinco irmãos. Jesus usou material folclórico popular da época para apresentar a simples verdade de que, se as pessoas não ouvirem a palavra de Deus, não é um milagre como a ressurreição que as convencerá.
– págs. 194, 195. Grifos acrescentados.
Para avaliar a psicologia paulina, precisamos ter em mente os principais elementos dos conceitos grego e hebraico de homem. Um dos pensadores mais influentes para a história posterior da filosofia grega foi Platão. Platão defendia um dualismo de dois mundos, o noumenal e o fenomenal, e um dualismo antropológico de corpo-alma. O corpo não era mal ipso facto, mas era um fardo e entrave para a alma. O homem sábio cultivaria a alma de modo que pudesse elevar-se acima do corpo e no momento da morte ser liberto do corpo e escapar para o mundo superior. Nos tempos helênicos, o corpo, que pertence ao mundo da matéria, era concebido pelos gnósticos como sendo mal ipso facto [em si mesmo]. Stacey assinalou que a maioria dos filósofos da Grécia seguiu Platão em seu conceito da alma e do corpo, e que isso foi tão impactante sobre o mundo civilizado que “ninguém pode discutir a relação da alma e do corpo hoje sem encontrar algum ressurgimento da visão platônica.” (D. Stacey, The Pauline View of Man [O Conceito Paulino de Homem], pág. 74. Stacey apresenta um excelente resumo histórico do conceito grego sobre o homem.).
O conceito hebraico do homem é muito diferente do conceito grego. Não há qualquer vestígio de dualismo. A palavra hebraica para corpo ocorre apenas quatorze vezes no Antigo Testamento e jamais está em contraste com a alma (nephesh). Com mais frequência, a palavra para carne (basar) é usada para designar o corpo (23 vezes). Esta palavra carrega principalmente um significado físico. Um uso significativo é “carne” como um símbolo da fragilidade humana em relação a Deus. Basar aparece como algo que os homens e os animais possuem em sua fraqueza, que Deus não possui. “Não contenderá o meu Espírito para sempre com o homem; porque ele também é carne” (Gên. 6:3). “Porque os egípcios são homens, e não Deus; e os seus cavalos, carne, e não espírito.” (Isaías 31:3.). Basar refere-se a seres humanos em sua fragilidade e transitoriedade, ao homem em suas limitações, como distintos do Deus infinito.
Alma (nephesh) não é uma parte superior do homem que está em oposição ao seu corpo, mas designa o princípio da vitalidade ou a vida no homem. Deus soprou nas narinas do homem o fôlego da vida, e o homem tornou-se uma nephesh vivente (Gen 2:7). O corpo e o sopro divino juntos fazem a nephesh vital, ativa. A palavra é então estendida do princípio de vida para incluir os sentimentos, paixões, vontade, e até mesmo a mentalidade do homem. Em seguida, ela vem a ser usada como um sinônimo para o próprio homem. Famílias foram contadas como tantas almas (Gen. 12:5; 46:27). Jamais se visualiza vida incorpórea para a nephesh. A morte afligia a nephesh (Num. 23:10) bem como o corpo.
Um terceiro termo é espírito (ruach). A raiz de significado da da palavra é “ar em movimento”, e ele é usada para todos os tipos de vento. A palavra é usada frequentemente no caso de Deus. O ruach de Deus é seu sopro – seu poder de operar no mundo (Isaías 40:7.), criando e sustentando a vida (Sal. 33:6; 104:29-30.). O ruach do homem – seu fôlego – vem do ruach de Deus (Isa 42:5; Jó 27:3.). Assim, concebe-se o homem como possuindo ruach, soprado por Deus, como um elemento em sua personalidade (Gen. 45:27; 1 Sam 30:12; 1 Reis 10:5.). Deus é o Espírito Supremo (Gênesis 6:3; Isa. 31:3). O ruach no homem é expandido para incluir toda a gama de vida emocional e volitiva, sobrepondo-se desta forma com a nephesh. A diferença entre nephesh e ruach no homem é que nephesh designa o homem em relação a outros homens como um homem vivendo a vida comum dos homens, enquanto ruach é o homem em sua relação com Deus. Todavia, nem nephesh nem ruach são concebidos como uma parte do homem capaz de sobreviver à morte do basar. Ambos designam o homem como um todo visto de diferentes perspectivas.
– págs. 499-501.
The Zondervan Encyclopedia of the Bible [Enciclopédia da Bíblia Zondervan], Merrill C. Tenney & Moisés Silva (eds.), 1975:
b. Psicologia hebraica: A tradução de נֶ֫פֶשׁ pelo termo “alma” frequentemente tem sido mal compreendida como ensinando uma antropologia bipartida (alma e corpo: dicotomia) ou tripartida (corpo, alma e espírito: tricotomia). Igualmente enganadora é a interpretação que tão radicalmente separa a alma do corpo como no conceito grego da natureza humana. Porteus demonstra isto bem quando diz: “O hebreu não podia conceber uma נֶ֫פֶשׁ desincorporada, embora ele pudesse usar נֶ֫פֶשׁ com ou sem o adjetivo ‘morto’ para cadáver (e.g.: Lv 19.28; Nm 6.6)” (ibid). Ou como R. B. Laurin sugeriu: “Para o hebreu, o homem não era um ‘corpo’ e uma ‘alma’, mas antes um ‘corpo-alma’, uma unidade de poder vital” (cp. BDT, s.v.). O texto mais significativo é Gênesis 2.7: “então, formou o Senhor Deus o homem do pó da terra e lhe soprou nas narinas o fôlego de vida, e o homem passou a ser alma vivente”. Deus criou o homem (נֶ֥פֶשׁ חַיָּֽה) ao soprar nas suas narinas o princípio vital de vida (נִשְׁמַ֣ת חַיִּ֑ים). A tradução “ser vivente” parece estar mais alinhada com as ideias básicas do AT. Deve ser observado, porém, que a frase hebraica נֶ֣פֶשׁ חַיָּ֑ה ocorre em Gênesis 1.20, 21, 24, 30, em referência a outras formas de vida, porém a construção intensiva de Gênesis 2.7 ainda coloca o homem em uma posição única em relação ao restante da criação, embora falte precisão técnica à terminologia do AT. Por esta razão, há uma distinção entre o homem como נֶ֣פֶשׁ חַיָּ֑ה “ser vivente” e os animais como נֶ֣פֶשׁ חַיָּ֑ה “criaturas viventes”. O ponto aqui é que a psicologia hebraica reconhece a profundidade da vida: a vida é a realidade misteriosa que dá vida tanto ao homem quanto aos animais, mas o pensamento do AT ainda salienta a distinção do homem. Sendo assim, נֶ֫פֶשׁ pode significar simplesmente “vida” como em Josué 2.13; Juízes 5.18; 2 Samuel 23.13-17; 1 Reis 19.4. Semelhantemente, o termo pode ser simplesmente o “eu” como uma expressão de personalidade. Literalmente “minha alma” (Gn 49.6; Nm 23.10) pode significar apenas “eu”; “sua alma” (ls 43.4; 51.23) provavelmente quer dizer “você” (Cp. SI 25.13; 121.7). A alma e o seu relacionamento com a vida está associada em dois outros termos, “sangue” e “espírito”. A נֶ֫פֶשׁ está no sangue, de acordo com Gênesis 9.4; Levítico 17.11,14; Deuteronômio 12.23. Para descrever a profundidade do ser do homem como sendo uma criatura que sente e pensa, o AT utiliza “espírito” e “coração” como sinônimos para a alma, como a sede dos apetites, emoções, desejos, paixões e inteligência. Pode ser possível conceber o “coração” (לֵב) como a faculdade cognitiva, emotiva נֶ֫פֶשׁ do homem; enquanto que o “espírito” (רוּחַ) se refere ao “princípio da vida” criativo da נֶ֫פֶשׁ. Tais distinções não são seguidas consistentemente por todo o AT, e a psicologia generalizada do pensamento do AT deveria impedir os estudiosos da Bíblia de identificar a psicologia hebraica com qualquer escola moderna de psicologia. O realismo bíblico tem interesse em descrever a vida do homem em relacionamento com Yahweh, e não em providenciar especulação esotérica sobre a natureza intrínseca do homem e do mundo (Cp. Gn 6.5,6; 41.8; 42.21; 45.27; 49.6; Êx 4.14,21; 35.21; Lv 19.17; 26.41; Nm 5.14,30; Dt 4.9,29; 6.5; 10.12; 11.13,18; 13.3,6; 26.16; 30.2,6.10; 2Sm 3.21; Jó 7.11; SI 77.3,6; Pv 4.23; Lm 2.11; 3.20).
c. Morte e a alma: O problema mais perplexo da antropologia e psicologia do AT é o relacionamento da alma com a morte e a vida depois da morte. Este problema se concentra não apenas na natureza da alma, mas no sentido e significado do termo שְׁאﯴל. Gênesis 35.18 e 1 Reis 17.21,22 falam do נֶ֫פֶשׁ como sendo a partida e/ou a volta. Todavia, as séries cruciais dos textos são aquelas nas quais os escritores do AT indicam um medo da morte e um medo da perda do eu ou da alma por meio da experiência da morte (Cp. Jó 33.18-30; SI 16.10; 30.3; 116.8; Is 38.15-17). O que é essencial para compreender a mente hebraica é o reconhecimento de que o homem é uma unidade: corpo-alma! A alma não é, pois, insensível à experiência da morte. A escatologia do AT contém elementos seminais de esperança que sugerem os ensinos mais positivos do NT, como pode ser observado na frase do AT “descansou com seus pais” (1 Rs 2.10; 11.21), na atitude confiante de Davi em relação à morte de seu filho (2Sm 12.12-23) e a esperança de Jó pela ressurreição (Jó 19.20-29). É esta unidade essencial da alma-corpo que provê a singularidade do conceito bíblico da ressurreição do corpo como distinto da ideia grega da imortalidade da alma.”
– Vol. 1, págs. 232, 233.
[Citado aqui da versão em português da Enciclopédia da Bíblia, Cultura Cristã, São Paulo, SP, Brasil, 2008].
I Believe in the Resurrection of Jesus [Creio na Ressurreição de Jesus], George Eldon Ladd, Wm. B. Eerdmans Publishing Company, EUA, 1975:
Para entender a esperança do Antigo Testamento devemos, em primeiro lugar, compreender o conceito de homem do Antigo Testamento. Ele está em nítido contraste com a concepção grega do homem. Um dos conceitos gregos mais influentes do homem deriva do pensamento platônico e teve com frequencia uma forte influência sobre a teologia cristã. É o de que o homem é um dualismo de corpo e alma. A alma pertence ao mundo real, permanente, noumenal (pensamento abstrato); o corpo pertence ao mundo visível, transitório, temporal, fenomenal. Não se imagina que o corpo seja mal, ipso facto [inerentemente; em si mesmo], como era o caso na concepção gnóstica posterior, e sim um obstáculo para o cultivo da mente e da alma. O homem sábio é aquele que aprende como disciplinar o corpo para que ele seja mantido sob controle e não prejudique o cultivo da alma. Nesse conceito, a alma é imortal, e a “salvação” significa o voo da alma por ocasião da morte para escapar do fardo do mundo fenomenal e encontrar plenitude no mundo da realidade eterna.
Um versículo de Paulo, tirado do contexto, pode ser interpretado sob essa luz. “Porque não miramos as coisas que se veem, mas sim as que não se veem. Pois as coisas que se veem são temporais e as que não se veem são eternas.” (2 Coríntios 4:18). Isso soa como dualismo platônico; mas no contexto do pensamento paulino, as ‘coisas que não se veem’ eternas significam o mundo de Deus que por fim vai dissolver este mundo e transformá-lo. Isto inclui a ressurreição do corpo. Paulo jamais concebe a salvação da alma separada do corpo. Salvação significa o resgate do corpo, bem como de toda a ordem criada (Rom. 8:21-23).
O conceito de Paulo baseia-se na concepção do Antigo Testamento sobre o homem, no qual a “alma” do homem (nephesh) é primariamente sua vitalidade, sua vida – nunca uma “parte” separada do homem. “Espírito” é, antes de qualquer coisa o espírito de Deus (ruach), seu sopro, seu poder (Isa. 31:3; 40:7), que criou e sustenta todas as coisas vivas (Sal. 33:6; 104:29-30). O espírito de Deus cria o espírito humano (Zac. 12:1), mas nem a alma nem o espírito do homem é encarado como uma parte imortal do homem, que sobrevive à morte. A morte do homem ocorre quando seu espírito – seu fôlego – é retirado (Sal 104:29; Ecle. 12:7). E pode-se dizer que sua alma – sua nephesh – morre (Núm. 23:10, literalmente, “morra minha alma a morte dos justos”; Juí. 16:30, “morra minha alma com os filisteus”). Em outros lugares, afirma-se que a alma (nephesh) parte para o Seol (Sal. 16:10: “Pois não deixarás a minha alma no Seol”; cf. Sal. 30:3; 94:17.). Nestas últimas referências, nephesh é praticamente sinônimo do pronome pessoal; não há qualquer ideia sobre uma alma imortal existente após a morte. Em suma, o conceito do Antigo Testamento sobre o homem é que ele é um corpo animado em vez de uma alma encarnada. “Vida” no Antigo Testamento é a existência corporal neste mundo em comunhão com o Deus vivo (Deut 30:15-20.). “Morte” significa o fim da vida, mas não a cessação da existência. Os mortos existem no Seol como “sombras” (Prov. 9:18; Isa. 14:9; 26:19.) Uma “sombra” não é alma ou espírito do homem; é o próprio homem, ou melhor, uma pálida réplica de um homem. É o homem despojado de sua vitalidade e energia – uma sombra de seu ser terrestre. A coisa má sobre o Seol é que, na morte, o homem é cortado da comunhão com Deus (Sal 6:5; 88:10-12; 115: 17).
– págs. 44-49.
Calvinism and Scholasticism in Vermigli’s Doctrine of Man and Grace [Calvinismo e Escolasticismo na Doutrina do Homem e da Graça de Vermigli], John Patrick Donnelly, Leiden, E. J. Brill, 1976:
“A erudição bíblica do século vinte concorda amplamente que os judeus da antiguidade tinham pouca noção explícita de uma vida após a morte pessoal até bem tarde no período do Antigo Testamento. A imortalidade da alma era um conceito filosófico tipicamente grego, bem alheio ao pensamento dos antigos povos semitas. Só o último estrato do Antigo Testamento afirma até mesmo a ressurreição do corpo, um conceito mais próprio dos semitas. Como Calvino, Martyr [Peter Martyr Vermigli] tomou a si uma tarefa hercúlea ao tentar defender a imortalidade da alma com um punhado de textos vagos do Novo Testamento (por exemplo, Lucas 23:43) contra os defensores do sono da alma, que tinham uma abundante fonte de contradições da imortalidade obtida dos primitivos estratos do Antigo Testamento.”
– págs. 99, 100
Jewish Ideas & Concepts [Ideias e Conceitos Judaicos], Steven T. Katz, Schocken Books, Nova Iorque, EUA, 1977:
A Natureza e o Propósito do Homem
… Uma forma útil de começar a ganhar alguma apreciação substancial do conceito bíblico do homem é examinar brevemente os termos mais importantes usados pelas Escrituras para descrever diferentes aspectos de sua natureza. Em primeiro lugar há o termo adam que a Bíblia costuma usar como um termo coletivo que significa “homens”, “seres humanos” ou “humanidade” em distinção a outras criaturas ou a Deus. Em segundo lugar, há o termo ish que significa “indivíduo (homem)”, “macho” ou “marido” (e às vezes “servo” ou “soldado”). Em terceiro lugar, encontramos o termo enosh que é usado principalmente para denotar a raça humana coletivamente ou para indicar fraqueza ou mortalidade, em oposição ao termo gever, que é usado para indicar um homem forte. Finalmente, encontramos o termo metim, que é usado apenas no plural e indica “machos” ou “homens” ou “pessoas”. À base dessa terminologia variegada, podemos ver que a Bíblia sugere uma imagem complexa do homem, que reconhece e engloba sua atividade como indivíduo e como membro da raça humana, como pessoa individual e como membro de uma família, tanto forte como fraco (e isso tanto no sentido físico quanto no espiritual) e como senhor e servo. Desta forma, a narrativa bíblica faz justiça à riqueza da experiência humana e também aos múltiplos e diferentes papéis que o homem é chamado a desempenhar em sua situação histórica concreta. Os autores bíblicos evitam assim qualquer representação simplista da situação humana ou do lugar do homem na história e no cosmos.
Um insight adicional sobre a natureza do homem é fornecido por certos termos que descrevem diferentes aspectos da personalidade humana. O termo nefesh pode denotar a essência de qualquer criatura viva e pode até ser equiparado com o sangue vital. Significa o “indivíduo”, o “ego”, a “pessoa” e, consequentemente, às vezes o corpo (Êxodo 21:23). Às vezes sinônimo com nefesh, mas também distinguindo-se dele está o termo ru’ah, “espírito”. Ele representa o poder e a energia que vêm ao homem de fora; ele fornece o impulso para uma vida mais elevada e encontra expressão em habilidade especial, poder ou liderança. O conceito de neshamah, “fôlego”, não é apenas o elemento vitalizante soprado no homem por Deus, mas o espírito divino e a lâmpada – a alma – dentro dele. Em contraste com estes aspectos espirituais do homem, basar significa sua natureza física, o corpo vivo e, como tal, simboliza a fragilidade, a sensualidade e a mortalidade humanas.
… Embora esta extensa nomenclatura aponte para a complexidade da personalidade humana, ela não é exaustiva. O retrato completo da natureza do homem, conforme previsto pela Bíblia só pode ser visto no contexto completo da evidência bíblica.
A chave deve ser encontrada na história da origem do homem. Ele não é um descendente dos deuses (como em certas mitologias pagãs); o termo filho(s) usado (s) nas Escrituras com referência ao homem em relação a Deus (Deuteronômio 14:1, Salmo 2:7) tem uma conotação metafórica. Nem é o homem o produto (como alguns sistemas filosóficos mantêm) das forças cegas da natureza. Ele é o artefato de Deus, formado propositadamente a partir de dois elementos diversos: seu corpo é da terra, mas é animado pelo sopro divino da vida. Porém, o homem não é uma dicotomia de corpo e alma (um conceito característico do Orfismo e do Platonismo), e certamente não uma tricotomia de elementos. Seu ser é um unitário multifacetado – sendo nefesh hayyah, “uma pessoa vivente.” (Gênesis 2:7).
– páginas 99-102.
Paul, Apostle of the Heart Set Free [Paulo, Apóstolo do Coração Libertado], Frederick Fyvie Bruce, William B. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, Michigan, EUA, 1977:
Paulo evidentemente não poderia contemplar a imortalidade à parte da ressurreição; para ele um corpo de algum tipo era essencial para a personalidade. Nosso pensamento tradicional sobre a ‘alma imortal’, que deve tanto à nossa herança greco-romana, torna difícil que apreciemos o conceito de Paulo. Exceto quando se atribui a imortalidade ao próprio Deus no Novo Testamento, é sempre ao corpo ressuscitado que ela é atribuída, nunca à alma. É, sem dúvida, uma simplificação exagerada afirmar que enquanto para os gregos o homem era uma alma encarnada, para os hebreus ele era um corpo animado; e ainda assim há substância suficiente na afirmação para dizermos que neste, assim como em outros aspectos, Paulo era ‘um hebreu de hebreus’ (Fil. 3:5). Para outros, incluindo vários de seus convertidos em Corinto, o desengate do grilhão do corpo era uma consumação a ser devotadamente almejada; mas se Paulo desejava ser libertado da mortalidade desta atual ‘morada’ terrena, era visando a trocá-la por uma que era imortal; estar sem um corpo de algum tipo seria uma forma de nudez ou isolamento espiritual diante do qual a mente dele recuou.
– pág. 311.
Theologische Realenzyklopädie (Enciclopédia Teológica [36 Vol.]), Walter de Gruyter GmbH & Co. KG, Alemanha, 1977-2004 (A capa acima é da edição de 2006):
A recepção da teoria de Platão sobre a imortalidade da alma por meio da teologia e das declarações doutrinais da igreja assegurou-lhe uma influência esmagadora na história anterior do cristianismo. Esta influência ainda é tão forte que para muitos ela eclipsa a esperança bíblica da ressurreição da pessoa inteira e confunde o núcleo da mensagem cristã sobre a vida após a morte com a doutrina platônica. Porém, os reformadores reconheceram que esta doutrina da imortalidade é de origem filosófica e não bíblica.
– Verbete “Imortalidade”.
Indian Journal of Theology [Revista Indiana de Teologia] 27.3-4, Julho-Dezembro de 1978. (Indian Journal of Theology foi uma revista acadêmica bienal, publicada conjuntamente [de 1952 a 2004] pela Serampore College [Departamento de Teologia] e pela Bishop’s College, Calcutá, Índia – fotos acima).
The Biblical View of Man [O Conceito Bíblico de Homem], Gnana Robinson (trechos das págs. 137-149):
Deus criou o homem como um ser unitário; não há nele uma dicotomia de corpo e alma ou uma tricotomia de corpo, alma e espírito. Ele não é uma alma encarnada, e sim um corpo ou carne animada. Os termos antropológicos utilizados tanto no Antigo quanto no Novo Testamento apresentam os diferentes aspectos do homem.
A palavra ‘adam (de ‘adamah – solo) refere-se ao homem como pertencente à espécie humana; ‘ish refere-se ao homem como dotado de poder, talvez o poder da vontade e da escolha; ‘anash (de ‘enosh – fraco) enfatiza a natureza frágil do homem (Sal. 8:5; 90:3), geber aponta para o homem como um com vigor masculino sobre uma mulher (Êxo. 10:11; 12:37; Jos. 7:14).
Várias outras palavras são utilizadas para se referir às partes constituintes da faculdade humana – alma (nepesh), carne (basar), espírito (ruah), coração (leb / lebab). Conforme visto acima, basar representa o homem em sua natureza criativa e, com mais frequência, refere-se ao corpo inteiro (1 Reis 21:27; 2 Reis 6:30; etc.) ou à humanidade em geral. Nepesh foi traduzida de forma variada como alma, ser vivo, vida, eu, pessoa, desejo, apetite, emoção e paixão. Ela distingue o ser interior do homem de seu corpo ou carne externa. É o lugar das emoções e dos desejos pessoais. Nepesh não é uma alma que está aprisionada num corpo, como o pensamento grego posterior entendeu, e sim o resultado final da atividade criativa de Deus que é física e espiritual ao mesmo tempo. Não é que o homem tenha uma alma, mas o próprio homem é uma alma. Ela representa o homem inteiro como um ser vivo; em vários lugares significa vida (Êxodo 4:19; 21:23; 1 Reis 19:2).
A palavra ruah (vento), quando usada em referência ao homem, tem uma ampla gama de significados, de “sopro” a “espírito de profecia”. É o dom de Deus (Zac. 12:1, 10). É este elemento no homem que está mais intimamente ligado à natureza de Deus. Quando a basar é animada pelo ruah, ela se torna nepesh, um ser vivo (Gênesis 2:7). O espírito cria a vida quando ele age; a vida se revela em vários graus de intensidade de acordo com o nível em que o espírito está ativo nesse homem. Os dons especiais do espírito são dados às pessoas para cumprir fins extraordinários (Juí. 13:20; 14:6; etc.). O espírito do homem deve ser controlado por Deus.
O coração (leb) é a sede da vontade ou a faculdade de tomar decisão no homem (2 Sam. 7:3; 1 Cron. 22:7; Sal. 20:5 [E.4]; Isa. 63:15). Associados ao coração estão os rins (kilyoth) que têm a capacidade de pensar (Sal. 7:10; 26:2, Jer. 11:20; 20:12). Alguns outros órgãos internos do corpo também são encarados como os lugares de diferentes sentimentos e emoções do homem – os intestinos (me’im) – sede da tristeza e anseio (Isa. 16:11; 3:15; Jer. 31:20); o fígado (kabed) – sede do sofrimento (Lam. 2:11); o útero (rehem, rahamim) – sede da compaixão ou misericórdia (Jer. 31:20; Sal. 40:12 [E. 11]; 103:4).
Embora diferentes funções sejam atribuídas às diferentes partes do corpo, o homem é considerado um ser unitário. Embora elementos dualistas sob influência grega sejam encontrados em alguns dos escritos posteriores do Antigo Testamento (Ecle. 3:21; 12:7), o núcleo principal da antropologia do Antigo Testamento fala do homem como um ser unitário. A ideia de que a carne se opõe ao espírito e é a causa do pecado é alheia ao Antigo Testamento. O corpo e o sopro da vida, ambos vindos, como de fato vêm, de Deus, não são dois elementos que podem ser isolados e tratados separadamente. A vida divina penetra o ser total a tal ponto que cada órgão do corpo pode expressar a vida do todo. ‘O homem é um ser psicofísico e as funções psíquicas estão ligadas tão intimamente à sua natureza física que são todas situadas nos órgãos corporais os quais atraem eles próprios a vida da força vital que os anima.’ Dessa forma, o homem é corpo (carne), espírito, alma, sentimento, mente e coração. Ele é todos estes, e ainda assim nenhum destes em particular, se alguém tenta identificá-lo com uma única categoria. Eles não são elementos contrastantes, e sim aspectos diferentes de uma personalidade vital. Qualquer que seja a atividade em que um homem esteja envolvido, o aspecto predominante, seja alma, coração, rosto ou mão, representa a pessoa inteira e induz os outros aspectos.
Esta natureza unitária do homem é preservada no Novo Testamento também. De acordo com os escritores evangélicos, Jesus Cristo é o homem verdadeiro cujo ser unitário não é destruído, nem mesmo na morte; S. Paulo também encara o homem como um ser unitário. Embora ele use alguns dos termos antropológicos – alma (psique), carne (sarx), corpo (soma), espírito (pneuma), mente (nous) – comuns entre os gregos, ele os usa mais como um judeu com seus antecedentes do Antigo Testamento. A carne e o corpo não são usados em Paulo em relação à matéria e à forma, como na filosofia aristotélica. Nem a carne ou o corpo são encarados como a prisão da alma ou do espírito, de cuja servidão estes últimos tem de ser libertados.
A [palavra] alma é menos frequente no Novo Testamento (13 vezes), em comparação com sua frequência no Antigo Testamento (756 vezes). Por outro lado, a palavra espírito é usada aqui [no NT] com mais frequência (146 vezes). Não há provas de preexistência da alma no Novo Testamento. O Novo Testamento usa a alma no sentido do Antigo Testamento para designar o homem como um ser vivo (Mateus 10:28; 16:26; Lucas 9:56; 12:19 em diante, João 12:27). A existência da alma sem carne ou corpo é impossível.
Com sua fé teocêntrica, Paulo encara o homem em sua relação com Deus e percebe que o mais alto e o melhor é derivado de Deus. É por isso que o espírito se torna central no pensamento dele. A palavra pneuma é usada com diferentes nuanças de significado – o Espírito Santo ou o Espírito de Cristo, a influência divina na vida dos crentes, os espíritos malignos sedutores, o espírito de escravidão, o espírito em um cristão que mantém a comunhão com Deus (1 Cor. 2:11-12), um espírito pessoal, a possessão natural em todo homem, que por si só não é bom nem ruim (compare com 1 Cor. 2:11a) e que pode ser contaminado (2 Cor. 7:1). O Espírito de Deus dá origem a um novo espírito no homem – o espírito de fé, de adoção, de profecia, etc. (Rom. 8:15; 1 Cor. 2:4; 2 Cor. 4:13; Efe. 1:17; 1 Cor. 4:21). O Espírito de Deus recria o espírito do homem natural, de modo que o cristão possui apenas um espírito, diferente em qualidade daquele de um incrédulo ou homem natural. O homem pneumático de Paulo jamais perde sua própria identidade; ele nunca é absorvido no Espírito; ele apenas compartilha da comunhão do Espírito. Ele ainda é humano, e ele compartilha a fraqueza humana, estando sujeito à tentação (1 Cor. 3:1-4; Gal. 6:1). Ele permanece ainda dentro das amarras da humanidade. Conforme E. Kasemann observa: ‘Os termos usados na antropologia paulina referem-se todos indubitavelmente ao homem inteiro nas diferentes condutas e capacidades de sua existência’.
The Old Testament View of Man [O Conceito de Homem no Antigo Testamento], G. M. Fernandez (trechos das págs. 150-159):
Não se pode falar de antropologia propriamente dita na Bíblia. A Bíblia não considera o homem em si mesmo, como indivíduo como tal, mas sempre em seu relacionamento e atitude fundamentais para com Deus. Isto é bem verdadeiro, de qualquer forma que seja considerado, seja do ponto de vista da criação ou do ponto de vista da escatologia. Paulo caracterizou os tratos divinos com o mundo e o homem em uma palavra: mistério. Isto também pode ser dito e, de forma preeminente, do homem que permanece, apesar de muitos estudos e análises, um mistério e um enigma sem solução suficiente.
O homem é uma criatura, feita pelo Deus todo amoroso. Esta criatura, isto é, o fato de Deus tê-lo criado, faz com que ele não só dependa de Deus, como também de alguma forma seja semelhante a ele. O homem é o final e o melhor produto da criação de acordo com o relato bíblico. Todo o resto parece ter sido feito por causa dele. Assim como a origem, a manutenção do homem depende do livre arbítrio de Deus (Jó 10:12; Sal. 119:73; Jó 14:4 em diante; Sal. 104:20).
Acima de tudo na Bíblia, com referência ao homem está a palavra ‘adam, que é um termo coletivo que pode ser mais bem traduzido como humanidade em vez de homem. Um termo mais preciso é ben ‘adam, ou filho do homem. Outra palavra que se usa para denotar o homem é ‘ish, que tem mais o sentido de um indivíduo, ou marido. Uma terceira palavra que significa homem é ‘anosh. O homem é um organismo vivo (Gen. 2:7; 1 Sam. 18:1); porém as palavras mais utilizadas para denotar o homem vivo, são nepesh quando trata da personalidade do sujeito ou basar quando se trata da natureza frágil do homem. Em grego, existe uma variedade de termos utilizados em referência ao homem: anthropos, aner, brotos, thnetos, psyche, arsen, andreios, dunatos, gegenes, etc. Todavia, uma distinção entre corpo e alma como elementos constituintes do homem é desconhecida para o Antigo Testamento. As diferentes palavras, tais como leb ou lebab, que significam coração ou basar, significando carne, ou nepesh que significa uma alma viva, etc., são usadas para descrever o homem inteiro em diferentes aspectos e não partes dele (Jó 14:22; Sal. 16:9 em diante; 69:2). Cada um deles descreve esse real de muitas facetas, que o homem é. A dicotomia ou a tricotomia são alheias ao pensamento do Antigo Testamento. Dessa forma, podemos dizer que a concepção do homem é totalmente e não parcialmente tratada no Antigo Testamento. As tendências dualistas originam-se com o judaísmo posterior e a seita de Qumran.
Ao herdar uma filosofia grega como seu substrato para o processo de pensamento, o cristianismo no passado, muitas vezes, aplicou suas categorias num esforço para entender o ensino do Antigo Testamento. Isto fez violência ao padrão de pensamento oriental e injustiça à mentalidade judaica. O Antigo Testamento considera o homem em sua relação com Deus. Se o homem é o centro da disputa e da discussão na filosofia grega, a arena do mundo do Antigo Testamento é entregue a Deus. É Deus e não o homem que ocupa o centro do cenário. Conduzindo e incorporando em si a coletividade da raça humana, Adão e seus relacionamentos resumem em um microcosmo a história completa de toda a humanidade…
O futuro assombra o presente. Em parte alguma isso é mais verdadeiro do que na vida humana. A incerteza de um futuro e o desconhecido inevitável assolam a imaginação humana e destroem qualquer certeza humana. Qual é o futuro do homem? O que vai acontecer comigo amanhã, quando eu estiver morto? Esta pergunta atormentadora também afligia os pensadores de Israel. A crença na vida após a morte é de origem bem tardia em Israel; nisso, eles parecem ter seguido as crenças canaanitas e mesopotâmicas, em vez de as do Egito. Ao contrário dos egípcios, que acreditaram em um estado de vida contínua mas inalterada após a morte, os mesopotâmios reconheciam que tudo terminava com a morte. A vida é uma reserva dos deuses. A morte é o quinhão comum do homem, que deve ser encarado com pessimismo estoico. A morte é o fim da vida. Há uma espécie de alimento e bebida que concederia a imortalidade ao homem; mas estes são zelosamente guardados pelos deuses. A morte, assim como o nascimento, é uma necessidade natural, desprovida de qualquer significado mais profundo ou ulterior.
Israel compartilhava este conceito mesopotâmico da morte. Havia, porém, a seguinte diferença: na Mesopotâmia, o homem era mortal porque o alimento e a bebida da imortalidade se mantinham longe dele devido ao ciúme divino. Israel estava convencido de que o homem perdeu a imortalidade por sua própria culpa. A morte é o limite de seu horizonte; não há qualquer além. Nada sobrevive ao túmulo. É verdade que há menção de um Seol (Isaías 14, Jó 10:21; 17:13-16; 3:17-19); mas ele é um vasto túmulo onde os mortos são armazenados como matéria inerte. A morte é o fim natural da vida. Tudo o que o israelita sempre desejava era uma vida longa e uma morte indolor. Só uma morte precoce ou repentina ou dolorosa eram encaradas como castigo divino. Caso contrário, a morte era vista como uma coisa natural que colocava um ponto final a tudo. Em uma sociedade em que a personalidade corporativa estava em primeiro, onde todos acreditavam que o pai tinha continuidade em seu filho, uma existência especificamente individual após a morte não era uma necessidade. Israel vivia; o moribundo era seu membro. Dessa forma, enquanto Israel vivesse, o indivíduo também vivia. Este pensamento não é completamente primitivo ou estranho. Mesmo hoje, os pais querem que seus filhos estejam melhores do que eles, financeiramente, educacionalmente e de qualquer outra maneira possível. A crença fundamental de que seu ego terá continuidade em seus filhos é que é o mais importante neste comportamento. A imortalidade coletiva, portanto, não é simplesmente supersticiosa ou primitiva. Os Salmos oferecem um problema especial. Alguns deles parecem acreditar em uma vida após a morte de algum tipo. Às vezes, o inimigo de que se fala, e a quem o salmista se opõe, é a morte (Salmos 7:6; 13:3, 18:4). Os salmos 49 e 73 oferecem uma imagem vaga e ainda pouco clara de algum tipo de vida após a morte. A expressão clara de uma esperança de ressurreição ocorre em Daniel 12:2 no período dos macabeus. Como essa ideia se desenvolveu em Israel, não temos nenhum indício.
Já mencionamos que há menção ao Seol no Antigo Testamento. Todavia, não se deve concluir que o Seol seja o lugar da vida após a morte. O Seol nada sabe de retribuição. A recompensa ou o castigo de um homem por seus caminhos bons ou maus deve ser visto nesta vida, seja em sua própria vida pessoal, seja na de sua posteridade. Os ímpios são punidos para que seus nomes sejam apagados por completo (Sir. 23:24-27; 41:5-11). Uma boa reputação e filhos dignos seguem as boas ações de um homem (Sir. 30:4-6; 37:24-26; 41:11-13; 44:10-15). O Seol tem um tipo de existência suspensa. Mesmo quando se refere ao Seol como um lugar de descanso (Sir. 22:11; 38:23; 30:17 texto incerto), isto não é concebido em qualquer sentido positivo. O homem na visão do Antigo Testamento é uma criatura. Ele não possui qualquer caráter autônomo. Considerado em si mesmo, ele não tem qualquer mérito. O único valor do homem é que ele é o dom de Deus. Ele recebe “glória” e “honra”; ele é dotado com bênçãos reais (Sal. 8) e seu status em si é um pouco menos do que divino. O homem compartilha a dignidade do trabalho, que é um atributo divino (Gen. 1:28; 2:15; Sal. 104:23). No entanto, o homem é como a grama que desaparece (Isa. 40:6-8). Ele é pó (Sal. 103:13-16) e cinzas (Gen. 18:27). No entanto, a característica mais trágica do homem é que ele é pecador. Desejando afirmar sua própria autonomia em relação a Deus, ele peca. Esta é a lição que o autor ensina, apresentando as histórias de Adão e Eva, Caim e Abel, Lameque, a Torre de Babel e o Dilúvio. O homem é corrupto desde o nascimento (Sal. 51:5; 143:2) e seus pensamentos são maus desde sua juventude…
Se a criação leva um ser a algo do nada, ela é promessa que torna capaz de admitir e experimentar dentro e fora de si mesmo que o principal suporte da sua existência é a promessa de Deus. O relacionamento pessoal que Deus oferece ao homem é apenas uma parte do dom de Deus, que é sua promessa. A resposta humana às promessas divinas pode e deve ser uma esperança e uma confiança absoluta. A vida de Israel mostra que toda história é uma história da dependência de Deus com absoluta confiança na fidelidade de Deus e sua promessa. As próprias pessoas foram concebidas por causa de uma promessa. Sua própria existência estava condicionada pelas continuadas e repetidas promessas de Iavé.
O conceito de homem do Antigo Testamento é adicional e completamente desenvolvido no Novo Testamento. Se geralmente é verdade que quase todos os temas do Antigo Testamento são desenvolvidos no Novo, em relação ao homem isto é particularmente verdadeiro. O cristianismo está convencido de que o primeiro homem não foi Adão, e sim Cristo. O homem, à parte de uma consideração de Cristo, é apenas um espantalho e uma caricatura. Este é o resultado resumo das considerações do Velho Testamento sobre o homem. O quadro emergente não é muito promissor. Este cenário torna-se cada vez mais irritante, assustador e terrivelmente frustrante, quando o comparamos com a glória que é Cristo. Deixamos isso para ser considerado em outro artigo. Se o homem está com fome e sede do absoluto, isto é muito verdadeiro no caso da antropologia do Antigo Testamento. Toda a história do Antigo Testamento mostra o convite sempre presente de Deus aos homens para serem seus próprios filhos, e o triste fracasso humano em responder a esse chamado. Considerado de maneira objetiva, não existe uma única figura no Antigo Testamento que preenchesse plenamente as expectativas divinas. Daí a ideia do homem, passando do Antigo para o Novo Testamento, não passa apenas de um desenvolvimento, mas de uma reconsideração radical, porque Jesus, o homem, foi uma radical reconsideração de Deus. Se o Antigo Testamento é uma promessa de Deus para o homem, então Cristo é a promessa da humanidade ao seu Deus. Se o Antigo Testamento é a história de um “não” humano para o “sim” divino, então o Novo Testamento é o “sim” humano para o “sim” divino; Isto só é possível por meio do homem Jesus de Nazaré, o Novo Homem.
Themes in Old Testament Theology [Temas na Teologia do Antigo Testamento], William A. Dyrness, Inter-Varsity Christian Fellowship, EUA, 1979 (Em espanhol: Temas de la Teologia del Antiguo Testamento, traduzido por Agustín S. Contin, Editorial Vida, Miami, Flórida, EUA, 1989):
A morte e a vida futura
Nossos comentários sobre a esperança profética demonstraram que a esperança do Antigo Testamento era de natureza coletiva. O mesmo vale quando voltamos nossa atenção para o conceito da vida após a morte: a imortalidade é primeiramente do grupo e, em seguida, do indivíduo. Só quando uma pessoa está dentro do povo de Deus ela pode ter a certeza da vida eterna.
1. A morte e o Seol. Todos os povos do mundo entendem que a morte é o fim natural da vida na Terra. Como diz a Epopeia de Gilgamés:
Quando os deuses criaram o homem, eles lhe destinaram a morte, mas a vida eles mantiveram em suas próprias mãos.
Todavia, no Antigo Testamento, a morte está associada com o pecado, e isso reflete algo antinatural no mundo como ele existe, algo sobre o qual só Deus pode triunfar.
Os hebreus também entendiam que morrer era uma coisa natural. Os corpos feitos como os nossos devem morrer um dia “como se recolhe o feixe de trigo a seu tempo” (Jó 5:26). Às vezes se fala da morte simplesmente como o fim (2 Samuel 14:14). A morte é como água derramada no chão; ela não pode ser recolhida. Devemos voltar ao pó porque deste fomos tomados (Gênesis 3:19). Neste ponto, os judeus compartilhavam um conjunto de ideias sobre a morte que eram comuns a todo o mundo semita. Pela simples observação pode-se ver que a morte pode ser uma falta de vigor (às vezes apenas falta de alento, Salmo 104:29) ou a redução da vitalidade física que nos faz pensar em dormir. “Ilumina-me os olhos”, suplica o salmista, “para que eu não durma o sono da morte.” (Salmo 13:3). Embora ela seja natural, a morte é algo assustador que as pessoas evitam (Salmo 55:4). A vaidade melancólica do Eclesiastes assenta-se no fato de que todas as atividades findam no túmulo. Só os vivos têm esperança (Eclesiastes 9:4). Em parte alguma do Antigo Testamento a morte é simplesmente a porta para o paraíso (Jacob, 299). Seu perfil de inimiga é evidente em todos os lugares.
A morte era, ao mesmo tempo, um símbolo da destruição que o pecado trouxe ao mundo e uma parte da própria destruição. Neste sentido, a morte não era uma parte normal do mundo, mas alheia aos propósitos de Deus. Na verdade, em Gênesis 2:17 promete-se ao homem que no dia em que ele comesse do fruto da árvore proibida certamente morreria, e Gênesis 6:3 confirma que a maldade do homem está relacionada com esse fim. Logo antes da sua entrada em Canaã, Moisés pediu ao povo para que escolhesse entre a vida ou a morte, tomando a decisão de obedecer aos mandamentos de Jeová ou voltar-se para servir outros deuses (Deuteronômio 30:15-19). Como regra geral, no Antigo Testamento não se faz distinção entre a morte física e a espiritual; o homem, como um todo, está sujeito à morte. Porém, sob o aspecto físico está a realidade mais profunda da morte espiritual, uma confirmação da separação de Deus e da alegria de Sua presença que tinha início nas opções de vida. Assim, Moisés pôde dizer: “Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua descendência” (Deuteronômio 30:19). Embora isto se refira à vida terrena, é claro que também tem implicações para a vida após a morte.
Os hebreus sabiam que tinham de fazer essa escolha, porque entendiam que a vida e a morte estavam sob o controle de Deus. Embora o homem pudesse escolher a vida, era Deus quem devia dá-la. Deus é o que mata e mantém vivo (Deuteronômio 32:39). É Ele que faz descer ao Seol e quem faz subir de lá (1 Samuel 2:6). Todavia, não há nada no Antigo Testamento que conduza ao fatalismo. Deus é quem decide; mas o homem também deve escolher. Além disso, o Deus que decide é pessoal e responde às orações dos que se voltam para Ele. Conforme dito pelo profeta Ezequiel: “Porque não tenho prazer na morte de ninguém, diz o SENHOR Deus. Portanto, convertei-vos e vivei.” (18:32).
O lugar dos mortos no Antigo Testamento, o Seol, é frequentemente representado em termos visíveis como uma existência sombria e carente de dinamismo. Também neste aspecto, os hebreus compartilhavam muitas de suas ideias com seus vizinhos no Oriente Médio. O Seol não é identificado com lugar algum. Em vez disso, ele é considerado mais como um tipo de existência que, no caso dos hebreus, é basicamente oposta a Deus. O Seol é o lugar de sobrevivência desnuda. A pessoa dorme com seus pais (Gênesis 37:35 e 1 Reis 2:10). É um lugar onde o louvor é impossível (Isa 38:18 e Salmo 6:5). Ele está fora do escopo da terra e de suas instituições; mas não está fora do âmbito de Deus (Sal. 139:7-12; Amos 9:2). Ao passo que se trata dum local sem esperança do ponto de vista humano, Deus pode resgatar do poder do Seol aqueles que confiam nele (Sal. 49:15).
Mas, qual é o significado da esperança de que Deus não permitirá que seu povo desça ao abismo? Não há convicção de que a alma sobreviva, apesar de o corpo morrer. Edmond Jacob chega ao ponto de dizer: “Não há qualquer texto bíblico que autorize afirmar que a ‘alma’ se separa do corpo no momento da morte” ([Dicionário Bíblico do Intérprete], 1803). Não, assim como observa Eichrodt, a esperança de Israel era bem completa para ter uma realização de qualquer tipo no âmbito do espírito apenas. Ela exigia a renovação da vida corpórea e terrena, tal como era conhecida. (Eichrodt, 1, 491).
2. A ressurreição do corpo e a esperança da vida eterna. As ideias de vida eterna no Antigo Testamento têm sido difíceis de avaliar. Tradicionalmente, os eruditos sempre acreditaram que, embora os judeus tinham certo senso vago de imortalidade, não tinham qualquer ideia clara da ressurreição. Recentemente, Mitchell Dahood usou paralelos ugaríticos em seu estudo dos Salmos, para mostrar uma esperança muito mais plena de confiança na ressurreição e na imortalidade. Em Sal. 16:10, 11 este autor acredita que se vislumbra uma suposição de Elias ou Enoque (veja também Salmo 73: 24 e 49:15), e ele traduz o Sal. 17:15b “na ressurreição” em vez de “desperte”. Ele considera que é “o sentido natural… quando comparado com os trechos escatológicos de Isaías 26:19… e Daniel 12:2.” (Dahood, 1, 99; veja também a página xxxvi, 91 e a obra de E. B Smick em Payne, 1970, 10410). Isto nos leva claramente em uma nova direção, que promete uma compreensão mais profunda do material do Antigo Testamento. Sem dúvida, é característico da fé do Antigo Testamento que seu deleite em Deus e Sua providência é tão vigoroso que não aceita qualquer limitação temporal em absoluto. A comunhão com Deus é tão real que transcende a experiência terrena. De modo primário, vemos isso em três temas distintos que ganham força nas páginas do Antigo Testamento e conduzem, quase inevitavelmente, à doutrina da ressurreição do Novo Testamento. No entanto, para que isso fique bem claro, precisamos do exemplo concreto de nosso precursor na morte e na ressurreição, o nosso Senhor Jesus Cristo.
a. Fundamentos teológicos. Apesar de ser possível desenvolver amplamente os fundamentos teológicos da vida eterna, é suficiente observar que o conceito que o Antigo Testamento tem sobre Deus assegurava a sobrevivência daqueles que confiavam nele. Esta crença enraizava-se na convicção de que Deus é a única fonte da vida, que a dá e a tira (Gênesis 2:7 e Salmo 36:9). A vida pertence essencialmente a Deus e se deriva dele. “Contigo está a fonte da vida”, diz o salmista (Salmo 36:9) Por conseguinte, quando a pessoa encontra Deus e começa a compartilhar a vida dele, ela adquire um elemento indestrutível. Isto é representado de muitas maneiras diferentes nos Salmos e Provérbios. Deus é uma torre poderosa onde os justos estão seguros (Provérbios 18:10); é uma rocha de proteção e irremovível (Salmo 62; note-se no versículo 2 que rocha e salvação estão em uma fraseologia paralela) e é também uma fortaleza (Salmo 46:1, 4). Assim, mesmo que jamais haja quaisquer falsas ilusões quanto à fraqueza humana e sua propensão à morte, há uma forte confiança de que Deus protegerá aqueles que confiam nele. “Ainda que a minha carne e o meu coração desfaleçam, Deus é a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre.” (Salmo 73:26). Note-se o uso de “para sempre”. Isso significa que a força dele é tal que a sua proteção não tem limites. Deve tratar-se simplesmente de que a pessoa que teme a Jeová não verá o Seol (Salmo 16:10, 11). Isso não aparece em nenhum lugar com mais beleza do que no Salmo 23: “Jeová é o meu pastor”. Embora passarei por vales que evocam a morte, confessa o salmista, eu experimentei a maravilhosa providência de Deus a tal ponto – minha mesa está bem sortida e meu cálice transborda -, que creio que a bondade e a misericórdia me perseguirão; não posso fugir disso. (Dahood,1, 148-49). O corolário simples é que certamente habitarei para sempre na presença de Deus (note-se um paralelo no Novo Testamento, em João 14:1-3).
b. Fundamentos éticos. A fonte do fundamento ético para a vida eterna é a ideia de retribuição do Antigo Testamento que vimos antes e que se torna particularmente evidente nos textos sobre a sabedoria. Há certo tipo de fruto decorrente de uma vida de justiça ou maldade. O tolo segue um caminho que leva à morte, e o justo um caminho que conduz à vida (Provérbios 11:30). O julgamento de Deus que é sempre justo causará com toda a certeza um fim reto. Ele recompensará os justos e punirá os ímpios. O fato de se afirmar que a vida é o fruto de uma vida de retidão indica quão profundamente enraizada é a ideia de justiça. Isto era uma espécie de lei da natureza. Isto é expresso no Novo Testamento nas palavras de Paulo: “O que o homem semear, isso também ceifará” (Gálatas 6:7). Assim, podia-se ter como certo que Deus recompensará os justos com a vida. A verdade deve prevalecer, devido à ordem das coisas. Este é o sentido de retribuição que está por trás da súplica de Jó, que é de natureza altamente profética: “Oxalá que as minhas palavras fossem escritas!”, ele clamou. “Pois eu sei que o meu Redentor vive, e que por fim se levantará sobre a terra.” (Jó 19:23, 25). A palavra “redentor”, neste momento, também pode ser traduzida como “vindicador”. Jó sabia que mesmo depois de sua carne ser destruída (versículo 26), a vindicação de Deus o preservaria. É como se, por inspiração do Espírito, ele tivesse ido além do que ele sabia, a uma verdade que sua experiência com Deus tornava necessária, a verdade de que a proteção de sua carne por Jeová, depois de sua morte, seria uma vindicação da ordem justa do próprio Deus. Neste ponto, a fé do Antigo Testamento atinge o próprio limiar da revelação adicional de Deus em Cristo.
c. Fundamentos históricos e escatológicos. Já enfatizamos anteriormente em nosso estudo a qualidade “terrestre” da fé de Israel. Eles não tinham que especular sobre como Deus trataria seu povo, porque eles tiveram ampla oportunidade de apreciar isso com seus próprios olhos. Eles tinham visto como Jeová tomou a Abraão e levou sua descendência à Terra Prometida. Eles tinham visto que Jeová os livrara da opressão: “Vistes o que fiz aos egípcios, e como vos tenho trazido sobre asas de águia para junto de mim.” (Êxodo 19:4).
Tudo isso deu-lhes confiança de que Deus os livraria no futuro também. A experiência que tinham do cuidado real e providência de Jeová os fez acreditar naturalmente que Deus iria preservá-los. A palavra de Deus dada por meio de seus profetas confirmou esta fé e assegurou-lhes que, apesar de todas as provas contrárias que os confrontassem, Deus iria garantir ao seu povo uma vitória final e definitiva. Eles também tinham diante de si o exemplo de Enoque e Elias, os homens que haviam andado com Deus e que gozavam de sua proteção especial. Tudo isso fazia com que os hebreus, quando refletiam no futuro, acreditassem que a vitória final de Deus certamente incluiria o triunfo final sobre a morte. Eles não tinham qualquer ideia clara sobre como é que Deus faria isso; mas eles não tinham dúvida de que Ele faria. O ajuste final de contas, como observou Isaías, incluirá a destruição da morte para sempre (Isaías 25:8). Associando isso à vinda de Miguel e à época da tribulação, Daniel diz: “Muitos dos que dormem no pó da terra ressuscitarão” (Daniel 12:2).
Não se trata de negar a realidade e o terror da morte, e sim de colocar as coisas em perspectiva. Quando se entende plenamente o caráter de Deus, quando se observa o modo como a ordem moral do mundo funciona, quando se vê Deus libertar seu povo, considera-se, no final de tudo, que a morte é algo pequeno e fraco, do ponto de vista de Deus. Quando chegar a vitória final, não há dúvida alguma de que a própria morte será eliminada. Porém, o Antigo Testamento também neste caso parece estar de sobreaviso; ele busca um complemento e uma encarnação de tudo o que se sabe com certeza que é a verdade. Esta encarnação é a nova criação que Cristo veio a revelar. A verdade que eles só conheciam em parte, Cristo veio iluminá-la ainda mais: que por sua morte e ressurreição, nós podemos ser o seu povo e Ele o nosso Deus, para sempre.
– págs. 185-190 (da versão em espanhol).
The Problem of the Self in Buddhism and Christianity [A Questão do Ser no Budismo e no Cristianismo], Lynn A. De Silva, Palgrave Macmillan, Londres (Inglaterra) e Nova Iorque (EUA), 1979:
Há, porém, alguns casos [na Bíblia] que parecem sugerir uma dicotomia ou uma tricotomia. Neste contexto, o versículo mais frequentemente citado é Mat. 10:28, onde Jesus diz: ‘Não temam os que matam o corpo; antes temam aquele que pode destruir corpo e alma no inferno’. Oscar Cullmman comenta este versículo da seguinte maneira:
Pode parecer que isso pressupõe o conceito de que a alma não tem necessidade do corpo, mas o contexto do trecho mostra que este não é o caso. Jesus não prossegue dizendo: “Temei aquele que mata a alma” e sim: “Temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena tanto a alma como o corpo.” Ou seja, temei a Deus, que é capaz de entregar completamente à morte, a saber, quando Ele não ressuscita uma pessoa para a vida. Veremos, é verdade, que a alma é o ponto de partida para a ressurreição, uma vez que, como já dissemos, ela já pode estar sob o controle do Espírito Santo de uma maneira bem diferente do corpo. O Espírito Santo já vive em nosso homem interior. “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos”, diz Paulo em Romanos 8:11, “esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita.” Portanto, aqueles que matam somente o corpo não devem ser temidos. O corpo pode ser ressuscitado dentre os mortos. Mais ainda, ele deve ser levantado. A alma não pode permanecer para sempre sem um corpo. E, por outro lado, ouvimos Jesus dizendo em Mateus 10:28 que a alma pode ser morta. A alma não é imortal. Tem de haver uma ressurreição para ambos, pois desde a Queda no pecado o homem inteiro “é semeado em corrupção”.
Referindo-se a este versículo, J. Barr diz:
Dificilmente está é uma afirmação da imortalidade natural da alma desencarnada, antes significa que a vida do ser é uma questão entre o homem e Deus, ou o homem e o diabo.
1 Tessalonicenses 5:23 é outro versículo que muitas vezes é citado a este respeito: “Que vosso espírito, alma e corpo sejam preservados inteiros, sem culpa, na vinda do Senhor Jesus Cristo”. W. D. Stacey comenta sobre este versículo da seguinte maneira:
As palavras holoteles e holokleros apontam para o verdadeiro significado. Paulo está enfatizando a totalidade da preservação. O homem inteiro é preservado, e espírito, alma e corpo, simplesmente sublinham a inclusão da concepção. O homem em todos os aspectos, o homem em sua totalidade, deve ser preservado.
Apocalipse 6: 9 (compare com 20:4) também precisa ser analisado. “E, quando ele abriu o quinto selo, vi sob o altar as almas daqueles que foram mortos pela palavra de Deus e pelo testemunho que deram.” Este cenário é tomado diretamente do ritual sacrificial do Templo onde o sangue do animal sacrificial era oferecido na base do altar. Assim, as almas dos mártires “sob o altar” (note a frase) significa o sangue vital dos mártires que foi derramado como oferta e um sacrifício a Deus. A crença hebraica era que a vida estava no sangue, de modo que Deuteronômio 12:23 e Levítico 17:14 dizem que “o sangue é a alma”. A luz disso, as “almas dos mártires” significam seu sangue vital derramado no altar.
– págs. 82, 83.
The Concise Jewish Enciclopedia [Enciclopédia Judaica Concisa], Cecil Roth, New American Library, 1980:
imortalidade da alma: a Bíblia não declara uma doutrina da imortalidade da alma, nem isto claramente surge na primitiva literatura rabínica. As opiniões divergiam quanto a se o conceito do Mundo Vindouro implicava a imortalidade da alma, ao passo que houve também confusão com respeito à relação com a Ressurreição dos Mortos. Maimônides foi criticado por minimizar o significado da ressurreição e enfatizar a doutrina da imortalidade da alma. Por fim, a crença de que alguma parte da personalidade humana era eterna e indestrutível tornou-se parte do credo rabínico e foi quase universalmente aceita no judaísmo posterior. Também foi aceito pelos filósofos judeus medievais e posteriores. Os cabalistas acreditavam na imortalidade da alma, apesar de conectá-la com a doutrina da metempsicose. A crença tradicional que evoluiu era em um além onde as almas que partiram são recompensadas e os ímpios punidos por suas ações neste mundo, até o tempo da Ressurreição e do Juízo Final, que inaugurará uma era completamente nova. O judaísmo da reforma geralmente nega a crença na ressurreição, mas aceita a imortalidade da alma.
ressurreição (tehiyyat hametim): o ensino de que em algum período futuro os corpos dos mortos serão revivificados. Entre os judeus, essa crença começou a se desenvolver perto do fim do período bíblico, possivelmente sob influência persa. Ao final do período do Segundo Templo, tornou-se uma crença básica entre os fariseus (mas não entre os saduceus). Os rabinos frequentemente relacionavam a r[essurreição] com a era messiânica, e Maimonides a incorporou como um dos Treze Princípios de Fé, embora os vários pronunciamentos dele sobre o assunto sejam ambivalentes. A maioria dos pensadores ortodoxos entendeu isso literalmente, mas o judaísmo reformista negou a interpretação literal e revisou a liturgia em conformidade. Outros círculos tendem a identificá-la com a imortalidade da alma.
– págs. 257, 258, 450, 451.
Dale Moody, The Word of Truth – A Summary of Christian Doctrine Based on Biblical Revelation (A Palavra da Verdade – Um Sumário da Doutrina Cristã Baseada na Revelação Bíblica), W. B. Eeedmans Publishing Company, Grand Rapids, MI, USA, 1981.
A particularidade da alma e do corpo é seu [de Barth] segundo problema subordinado. Nenhuma objeção se faz à afirmação de que tudo o que tem vida é alma. A Bíblia vai além da preocupação de Barth com os animais e inclui peixes e aves! Não há objeção à sua ênfase no homem como perceptivo e associado de Deus. Até onde sabemos, isto realmente distingue o homem dos animais. Às vezes, o espírito humano como transcendência humana do organismo físico é a terminologia que eu usaria para a capacidade do homem de perceber Deus e ser um associado de Deus, mas a principal objeção ao conceito de Barth do homem como a alma do corpo é o que soa como um dualismo que nunca é claramente superado. Ele protesta firmemente que só está falando de dois momentos, não de duas substâncias, e que não há partição, mas sua insistência na “diferença indelével” entre alma e corpo é difícil de harmonizar com “unidade inseparável”. Ele ainda está lutando no final quando diz: “Esse homem como a alma do seu corpo é o fato secundário que não é menos indispensável ao homem real do que o primeiro, a saber, que ele é a alma do seu corpo.” Parece mais bíblico dizer que o homem é uma alma vivente que tem um corpo humano criado e um espírito humano criado que vivem em unidade até a morte separá-los.
Quando Barth interpreta a última frase em sua declaração, “ordem indestrutível”, temos uma surpresa genuína. No início de sua discussão sobre alma e corpo, ele não hesita em usar termos como dualismo e antítese, mas agora enfatiza a unidade e até a identidade da alma e do corpo em sua descrição do homem como “um ser natural”. (Vernunftwesen). A alma sem corpo e o corpo sem alma são descartados como espiritualismo e materialismo, pois o homem “não pode, em caso algum, entender a si mesmo como um dual, mas apenas como um sujeito único, como alma idêntica ao seu corpo e como corpo idêntico à sua alma. Ele parece retornar à sua analogia cristológica, na qual a alma e o corpo podem ser comparados à unidade da divindade e da humanidade na pessoa do Jesus único. Esse todo é, como ele labutou para dizer consistentemente, a unidade do Espírito Santo – corpo-alma. Esta é a antropologia teológica dele, a única antropologia verdadeira, que não dá qualquer margem para uma antropologia tecnológica ou qualquer outra antropologia que negligencie a orientação do homem em direção a Deus. A um só tempo, esta é a força de Barth – e sua fraqueza! Qualquer desafio de Barth deve ser bíblico, pois ele não aceita qualquer outro guia. É por isso que sua identificação do espírito humano e do Espírito Santo e pontos relacionados são rejeitados.
Atualmente alguns calvinistas conservadores rejeitaram o dualismo platônico em termos inequívocos. Isto é especialmente verdade no caso da teologia do calvinista holandês G. C. Berkouwer. Em três pontos especiais, ele revisa os conceitos da alma na teologia histórica com seu rigor típico, mas os próprios conceitos dele tornam-se claros também.
Berkouwer tem um longo capítulo sobre o significado da alma chamado “O Homem Inteiro”. Aqui ele denuncia a teoria de uma “dicotomia substancial” entre uma alma imortal e um corpo mortal. Berkouwer argumenta corretamente que a alma não é uma “parte” do homem não sujeita à morte, mas que o homem inteiro está sujeito ao julgamento de Deus e à redenção possibilitada pelo homem inteiro, Jesus Cristo. Este conceito, que parece completamente bíblico, exige que se repense completamente não só o catolicismo tradicional, como também grande parte do protestantismo. Isto se aplica não só ao protestantismo conservador anterior a Kant, como também ao liberalismo construído sobre o idealismo kantiano.
O significado da alma repousa sobre a natureza da alma. A crítica de Berkouwer à crença na imortalidade natural da alma é tanto significativa quanto bíblica. Às vezes, ele argumenta que a “cautela quanto a credos” é melhor do que a teologia dogmática, mas sua principal estocada é contra a teoria da crença em uma alma imortal independente de Deus. Somente Deus é imortal por natureza, e a imortalidade do homem é um presente recebido em dependência do Deus imortal.
O ponto crucial para a teologia conservadora é a origem da alma. Em reação contra a teoria da evolução, o papa Pio XII, em 12 de agosto de 1950, na encíclica Humani Generis, denunciou qualquer negação do Adão histórico de quem provém o pecado original e afirmou a criação imediata de almas individuais para cada corpo humano. O corpo natural vem por meio da procriação, mas a alma imortal vem por meio da criação direta. Isto era apenas dogmatizar a doutrina dualista há muito ensinada.
O calvinismo, é claro, tem apelado livremente às Escrituras sobre todos os dogmas e credos, mas a teoria do criacionismo tem sido frequentemente exposta pelos calvinistas em concordância com os católicos. Os luteranos têm se inclinado mais ao traducianismo que remonta a Tertuliano. Berkouwer acredita que o longo debate entre criacionismo e traducianismo tem sido em grande parte “uma controvérsia infrutífera”, porque ambos argumentam com base na crença de que a alma é uma substância espiritual separada do corpo. Em apenas um ponto, Berkouwer se abstém de dizer o que precisa ser dito contra o conceito tradicional da alma. Não basta rejeitar a teoria da dicotomia substancial do corpo e da alma, ou da tricotomia substancial do corpo, da alma e do espírito. É necessário dizer que o dualismo da criação ou evolução também deve ser rejeitado também, e a evolução criativa deve ser colocada no centro. Deus está agindo no processo completo do homem inteiro, pois não há qualquer ponto em que o homem seja independente de Deus. Berkouwer só precisa seguir até a conclusão lógica de seu argumento.
– págs. 181-183.
Genesis – Volume I [Gênesis – Volume I], John C. L. Gibson, Westminster John Knox Press, Louisville, Kentucky, EUA, 1981:
A palavra traduzida por “ser” na RSV [Versão Padrão Revisada] é nephesh em hebraico. A AV [Versão Autorizada, ou Rei Jaime] verte “alma”, o que a RSV evita sabiamente porque isto poderia levar seus leitores modernos a pensar na “imortalidade” da alma. Esta não é uma ideia hebraica, e sim uma ideia grega. Em hebraico, a “alma” não é uma parte do homem, e sim a pessoa viva completa, consistindo, como este versículo deixa claro, de seu corpo mais o fôlego que lhe dá vida. Quando o salmista diz: “Deus remirá a minha alma do poder do Seol” (Sal. 49:15), ele não deve, portanto, ser entendido como estando ansioso pela sobrevivência de sua alma após a morte. Ele está simplesmente expressando sua confiança de que Deus não o deixará morrer. E quando ele diz: “Bendize o senhor, ó minha alma”, ele quer dizer simplesmente que deseja cantar a Deus com todo o seu ser (compare com Sal. 104:33).
Não se deve permitir que a simplicidade deste quadro de Deus formando o ‘homem’ como um oleiro nos deixe cegos quanto ao seu significado essencial. Isto significa que nós e todos os seres humanos derivamos nossas vidas diretamente dele. Sem o fôlego que ele coloca em nós, estamos mortos e nossos corpos se dissolvem no pó de onde vieram. Conforme diz o Eclesiastes (12:7), “o pó retorna à terra como ele era, e o espírito (ou melhor, o fôlego) retorna a Deus que o deu”. Ou como o autor desta história mais tarde tem Deus dizendo, “você é pó, e ao pó você voltará” (Gên. 3:19). Estas citações mostram que a origem de todo ser humano poderia ser descrita aos hebreus na mesma linguagem pictórica.
Esta lição da criaturalidade total do homem é ainda mais evidente no hebraico deste versículo do que é em inglês. Pois a palavra hebraica para “homem” é adam e a palavra hebraica para “solo” é adamah. As duas palavras não têm qualquer conexão etimológica entre si, mas eram tão próximas em som que o autor não podia resistir ao trocadilho. Nem poderia ele nos versos que se seguem resistir a aplicar a lição, onde quer que pudesse, por usar constantemente a palavra “solo”. Temos isso ao longo desta história – veja [Gen.] 2:9, 19; 3:17, 19, 23 – e o temos ao longo da próxima história de Caim e Abel, pela qual ele também foi responsável – veja [Gen.] 4: 2, 3, 10-12, 14.
Como tudo isso é diferente do conceito grego de que o corpo material de uma pessoa pode perecer, mas sua “alma” viverá para sempre! Esse conceito só se tornou familiar ao Judaísmo e ao Cristianismo quando, em séculos posteriores, eles se mudaram para o mundo de língua grega, e isso tem causado danos teológicos incalculáveis desde então. No pensamento hebraico não há nada de eterno valor nos seres humanos como tais e eles só podem entrar em contato com a eternidade quando se relacionam humildemente e em obediência a Deus seu Criador (veja mais adiante o comentário sobre [Gen.] 1:26-31, “Man” – the creature of God [O “homem” – a criatura de Deus].”
Pode-se ter alguma dúvida sobre qual é o conceito mais realístico?
– págs 103, 104.
Expository Dictionary of Bible Words [Dicionário Expositivo de Palavras Bíblicas], Lawrence O. Richards, Zondervan Publishing House, Grand Rapids, MI, EUA, 1985. (A capa acima é da edição de 1991.):
Assim, “alma” no AT não indica alguma parte imaterial dos seres humanos que continua após a morte. Nepeš significa essencialmente a vida como ela é experimentada exclusivamente por seres pessoais…
– Edição de 1991, pág. 576.
Harper’s Bible Dictionary [Dicionário Bíblico de Harper], Paul J. Achtemeier, Editora Harper & Row, EUA, 1985:
“Para um hebreu, ‘alma’ indicava a unidade de uma pessoa humana; os hebreus eram corpos vivos, eles não tinham corpos. Este campo semântico hebraico é violado na Sabedoria de Salomão [o livro apócrifo] pela introdução explícita de ideias gregas sobre a alma. Um dualismo da alma e do corpo está presente: “o corpo corruptível torna pesada a alma” (9:15). Este corpo corruptível é oposto por uma alma imortal (3:1-3). Tal dualismo poderia significar que a alma é superior ao corpo.
No NT, “alma” retém o seu campo semântico hebraico básico. Alma refere-se à vida de alguém: Herodes procurou a alma de Jesus (Mat. 2:20); pode-se salvar uma alma ou tirá-la (Marcos 3:4). A morte ocorre quando Deus ‘reclama a tua alma’ (Luc. 12:20). ‘Alma’ pode referir-se à pessoa inteira, o ser: ‘três mil almas’ se converteram em Atos 2:41 (veja Atos 3:23). Embora a ideia grega de uma alma imortal de espécie diferente do corpo mortal não seja evidente, ‘alma’ denota a existência de uma pessoa após a morte (veja Lucas 9:25; 12:4; 21:19); ainda assim a influência grega pode ser encontrada em uma observação de Pedro sobre “a salvação das almas” (1:9). Um dualismo moderado existe no contraste do espírito com o corpo e até mesmo com a alma, onde ‘alma’ significa a vida que ainda não foi alcançada pela graça. Veja também ‘Carne e Espírito; Ser Humano.”
– págs. 982, 983.
The Jewish Study Bible [Bíblia de Estudo Judaica], Adele Berlin e Marc Zvi Brettler (editores), Jewish Publication Society, EUA, 1985 (a capa e a citação acima são de uma edição de 2004, Oxford University Press, Nova Iorque, EUA):
Aqui [em Gênesis 2:7], o homem tem uma origem mais humilde do que no paralelo em 1:26-28. Ele é criado não à imagem de Deus, e sim do pó da terra. Mas ele tem também um relacionamento mais achegado e íntimo com seu Criador, que sopra o fôlego de vida nele, transformando aquela criatura humilde e ligada à terra em um ser vivente. Nesse entendimento, o ser humano não é uma mescla de corpo perecível e alma imortal, e sim uma unidade psicofísica que depende de Deus para ter a própria vida.
– pág. 15.
The Parables of the Kingdom [As Parábolas do Reino], Robert Farrar Capon, Zondervan Corporation, Grand Rapids, MI, EUA, 1985:
“O maior obstáculo para encararmos o julgamento de Jesus como o grande sacramento da vindicação talvez seja a nossa infeliz preocupação com o conceito da imortalidade da alma. A doutrina é uma peça de bagagem filosófica não hebraica com a qual estamos grudados desde que a igreja adentrou no vasto mundo do pensamento grego. Sozinha ao lado da ideia concomitante de ‘vida após a morte’ [imediata], ela não nos trouxe quase nada além de problemas: ambos os conceitos militam contra uma séria aceitação da ressurreição dos mortos que é a única base do julgamento.”
– pág. 71.
Old Testament Theology in a Canonical Context [A Teologia do Antigo Testamento em um Contexto Canônico], Brevard Spring Childs, Fortress Press, Filadélfia, EUA, 1985 (A capa acima é de uma edição de 1989.).
Há muito tempo foi percebido que, de acordo com o Antigo Testamento, o homem não tem uma alma, mas é uma alma (Gên. 2:7). Isto é, ele é uma entidade completa e não uma combinação de partes de corpo, alma e espírito. Contudo, também é verdade que o Antigo Testamento encara o homem de diferentes perspectivas holísticas. Ele pode ser descrito em termos de sua vontade, ou suas emoções, ou suas ações físicas.
– pág. 199.
Evangelisches Kirchenlexikon [Enciclopédia das Igrejas Evangélicas], E. Fahlbusch, J. M. Lochman, J. Mbiti, J. Pelikan, Lukas Vischer, G. W. Bromiley and D. Barret, Göttingen, Alemanha, 1986. (Traduzido para o inglês com o título Encyclopedia of Christianity [Enciclopédia de Cristianismo], Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 2001):
Todos os cristãos creem na imortalidade, entendida como uma ressurreição final para a vida eterna. A maioria tem defendido que a imortalidade inclui também a contínua existência da alma ou pessoa entre a morte e a ressurreição. Porém, quase todos os detalhes desta confissão geral e sua base bíblica foram contestados.
O debate foi alimentado pelo desenvolvimento de crenças sobre a vida após a morte dentro da própria Bíblia e a variedade da linguagem em que elas são expressas. A Bíblia Hebraica não apresenta a alma humana (nepeš) ou o espírito (rûah) como uma substância imortal, e na maior parte encara os mortos como fantasmas no Seol, o submundo escuro e sonolento. Não obstante, ela manifesta a esperança além da morte (Veja os Salmos 23 e 49:15) e por fim afirma a ressurreição física (veja Isa 26:19; Dan. 12:2.).
O judaísmo intertestamental inclui várias versões. Os saduceus enfatizaram a dissipação da vida no Seol e às vezes adotaram o materialismo grego, que negava totalmente a vida após a morte. Outros, como Filo, foram fortemente influenciados por Platão e enfatizaram a imortalidade da alma em vez da ressurreição física do corpo. Os fariseus abraçaram ambos, o Seol e os textos sobre ressurreição do AT, afirmando um estado intermediário, uma futura ressurreição corporal na vinda do Messias e imortalidade em seu reino.
O NT desenvolve uma posição muito parecida com a dos fariseus (veja Atos 23:6-8). Ao passo que sua maior ênfase é na ressurreição do corpo, que é explicitamente identificado como “imortal” (veja 1 Coríntios 15:53-54), também vislumbra a comunhão pessoal com Cristo imediatamente após a morte (Lucas 23:43, 46; 2 Coríntios 5:1-10, Filipenses 1:20-24). Ele usa ‘alma’ (psyche) e ‘espírito’ (pneuma) em sentidos amplamente sinônimos, não-técnicos e não os descreve explicitamente como “imortais”. Com base nessa leitura das Escrituras, a maioria dos cristãos entendeu a imortalidade como “vida eterna”, um dom de Deus para o crente individual que é dado já nesta vida (João 6:47), continua depois da morte em um “estado intermediário” até a ressurreição corporal e permanece para sempre com Deus em seu reino eterno, o novo céu e a nova terra. O outro conceito minoritário é implicitamente materialista. Encontra-se principalmente entre os → Anabatistas do século XVI e seitas posteriores, como os → Adventistas do Sétimo Dia. Defendido na Inglaterra por Thomas Hobbes e John Milton, ganhou popularidade entre os intelectuais no século 20. Ele sustenta que uma pessoa não pode existir sem um corpo e nega a imortalidade da alma. Assim, ele exclui o estado intermediário, embora possa falar de “sono da alma”, e afirma unicamente a ressurreição do corpo para a imortalidade na segunda vinda de Cristo. Nega que o AT visualiza uma vida após a morte e que o NT ensina um estado intermediário. Acredita que o conceito cristão majoritário resulta principalmente do platonismo, não da Bíblia. Tanto os platonistas como as minorias materialistas concordam com a maioria que a ressurreição ocorrerá no retorno de Cristo.
Em contraste, os espíritas, apelando para fenômenos parapsicológicos e experiências de quase-morte, continuaram a afirmar a imortalidade entendida literalmente como sobrevivência pessoal à morte.
Os cristãos que acham o idealismo, o romanticismo, o naturalismo modernos – espiritismo ou reencarnação mais atraentes do que a visão de mundo bíblica tradicional, frequentemente substituem o conceito cristão histórico da imortalidade ou tentam harmonizá-lo com outro conceito. Todavia, o conceito majoritário da tradição cristã – que a imortalidade pessoal é um dom de Deus em Cristo já nesta vida, continua entre a morte e a ressurreição, e é completado com a ressurreição do corpo para a vida no reino eterno de Deus – continua sendo o ensinamento da maioria das igrejas e a crença da maioria dos cristãos em todo o mundo, seja Ortodoxo, Católico Romano (veja o Catecismo da Igreja Católica [1994]), ou Protestante tradicional.
– Edição em inglês, Vol. 2, trechos das págs. 668-670.
The Eerdmans Bible Dictionary [Dicionário da Bíblia Eerdmans], Allen C. Myers, John W. Simpson, Jr., Philip A. Frank, Timothy P. Jenney e Ralph W. Vunderink (editores), Grand Rapids, MI, EUA, 1987:
“Realmente, a salvação da “alma imortal” tem sido às vezes um lugar-comum na pregação, mas isso é fundamentalmente antibíblico. A antropologia bíblica não é dualista, e sim monista: o ser humano consiste na totalidade integrada de corpo e alma, e a Bíblia jamais contempla a existência desencarnada da alma em gozo.”
– pág. 518.
ALMA. A tradução usual do Heb. nepeš e Gk. psychḗ (embora a maioria das traduções mantenham considerável liberdade em suas versões destes termos). Assim como outros termos, tais como “corpo”, “coração” e “espírito”, “alma” não designa uma parte de um ser humano, e sim a pessoa inteira considerada de um aspecto particular de seu funcionamento. Como tal, ela representa primariamente a força vital do corpo (Gênesis 2:7) ou a vida interior da pessoa, abrangendo desejos e emoções.
– pág. 964.
Backgrounds of Early Christianity [Contextos do Primitivo Cristianismo], Everett Ferguson, Wm. B. Eerdmans Publishing, Grand Rapids, Michigan, EUA, 1987 (A capa acima é da edição de 2003):
Para Platão, a alma é imortal, possuindo a preexistência e a pós-existência contínua. O Fédon, elaborado como uma conversação entre Sócrates e seus amigos nas últimas horas dele, é um argumento em favor da imortalidade da alma. Por definição, a alma é a vida (psique), e a vida é antitética à morte. A alma, portanto, não morre, mas sobrevive ao corpo. Platão elabora ideias mais antigas de transmigração, recompensas e punições. O verdadeiro eu possui algo divino. O lar da alma não é a terra, mas a esfera dos planetas. A imortalidade da alma platônica é uma imortalidade natural, algo que é verdadeiro para a alma por sua própria natureza. Esta doutrina filosófica da imortalidade da alma deve ser distinguida da doutrina judaica e cristã de uma ressurreição do corpo e da doutrina patrística de uma imortalidade criada ou condicional da alma dependente da Graça e do Poder de Deus.
A teoria do conhecimento de Platão (epistemologia) está relacionada ao conceito dele sobre a alma. O conhecimento é uma recordação. As pessoas só podem ter conceitos porque os tiveram anteriormente. As ideias são a priori, conhecidas independentemente da experiência. A alma viu e aprendeu as ideias antes de habitar em um corpo. A experiência lembra, mas ela não prova e valida. O conhecimento é inato e deve ser evocado pelo professor como uma parteira, extraindo-o de uma pessoa.
Platão dividia a alma em três partes: a intelectual ou racional, a enérgica ou espiritualizada, e a desejosa ou apetitiva. A ética dele está relacionada a esta tripla análise, pois ele via uma virtude para cada parte: sabedoria para a parte intelectual, coragem para a parte espiritualizada e autocontrole para a parte desejosa. Quando há harmonia e equilíbrio entre as três partes da alma, com o controle no firme controle, a pessoa reflete a virtude da justiça. Estas quatro virtudes – justiça, autocontrole, coragem e sabedoria – receberam proeminência na era helenística e se tornaram as quatro virtudes naturais às quais foram acrescentadas as três virtudes sobrenaturais (fé, esperança e amor) para compor as sete virtudes cardeais da Idade Média.
A Influência de Platão
Embora Platão não tenha ocupado um lugar dominante na filosofia da era helenística, ele chegou a essa posição nos primeiros séculos da era cristã. A teologia patrística tomou forma em grande parte na estrutura [ou molde] da filosofia platônica. Não só o pensamento cristão, como também alguns judeus (principalmente Filo) e, posteriormente, a filosofia islâmica deveram muito a ele. A ênfase de Platão na realidade não-material, uma alma que não morre, distinta do corpo, a ideia de uma religião cósmica (a beleza da ordem celestial superior), e uma sociedade justa tiveram uma influência enorme.
– pág. 335.
New Dictionary of Theology [Novo Dicionário de Teologia], Ferguson, Sinclair B., Wright, David F., Packer, J. I. (editores), 1988:
“Gen. 2:7 faz referência a Deus formando Adão ‘do pó da terra’, e soprando ‘em suas narinas o fôlego da vida’, para que o homem se tornasse um ‘ser vivente’. A palavra ‘ser’ traduz a palavra hebraica nep̄eš que, embora seja muitas vezes traduzida pela palavra inglesa ‘alma’, não deve ser interpretada no sentido sugerido pelo pensamento helenístico (veja Platonismo; Alma, Origem da). Ela deve, em vez disso, ser entendida no seu contexto próprio no âmbito da AT como indicativa de homens e mulheres como seres ou pessoas vivas em relação a Deus e a outras pessoas. A LXX traduz esta palavra hebraica nep̄eš pela palavra grega psychē, o que explica o hábito de interpretar este conceito do AT à luz do uso grego de psychē. Porém, é certamente mais apropriado entender o uso de psychē (tanto na LXX como no NT), em função do uso de nep̄eš no AT. Segundo Gen. 2, qualquer concepção da alma como uma parte ou divisão separada (e separável) de nosso ser parece ser inválida. Da mesma forma, o debate popular sobre se a natureza humana é um ser bipartido ou tripartido parece ser de uma irrelevância muito mal fundamentada e inútil. A pessoa humana é uma ‘alma’ em virtude de ser um ‘corpo’ que se tornou vivo pelo ‘sopro’ (ou ‘Espírito’) de Deus.”
– págs. 28, 29 (da edição digital, 2000].
The True Image: The Origin and Destiny of Man in Christ [A Verdadeira Imagem: A Origem e o Destino do Homem em Cristo], Philip Edgcumbe Hughes, Eerdmans, 1989:
O que pode ser deduzido da revelação bíblica? Em primeiro lugar, que o homem conforme criado originalmente era potencialmente imortal e potencialmente mortal. Em estreita associação com isso está o fato de ele ter sido criado potencialmente sem pecado, mas também potencialmente pecaminoso. A possibilidade de seu pecado envolvia a possibilidade de morrer, assim como a possibilidade de não pecar implicava a possibilidade de não morrer. Conforme observamos anteriormente, isso não quer dizer que o homem foi originalmente criado num estado de neutralidade entre a justiça e a pecaminosidade e entre viver e morrer; pois, pelo contrário, sua criação à imagem divina, que é o vínculo de sua comunhão pessoal com seu Criador, colocou sua existência bem positivamente dentro da esfera da piedade e da vida. Sua concordância amorosa e grata com a vontade de Deus, que é a fonte de sua vida e bem-aventurança, teria assegurado a continuação de sua existência em uma bênção límpida, conforme ele se conformasse com aquela imagem na qual ele foi constituído. Foi por sua rebelião contra seu Criador que ele passou de um relacionamento positivo para um negativo e trouxe a maldição sobre si mesmo. Sua morte, que é a conta dessa maldição, é também a evidência de que o homem não é inerentemente imortal.
Afirmar que só a alma humana é inatamente imortal é manter uma posição que não é aprovada em parte alguma no ensino das Escrituras, pois, no âmbito bíblico, a natureza humana é sempre vista como integralmente composta tanto do espiritual quanto do corporal. Se não fosse assim, toda a doutrina da encarnação e da morte e ressurreição do Filho seria despojada de significado e realidade. O homem é essencialmente uma entidade corpóreo-espiritual. A advertência de Deus no princípio, a respeito da árvore proibida: ‘No dia em que dela comerás, morrerás’, foi dirigida ao homem como uma criatura corporal e spiritual – se comesse dela, como tal ele morreria. Não há qualquer sugestão de que uma parte dele era imortal e, portanto, que sua morte só seria em parte.
Concordemente, a imortalidade com a qual o cristão é assegurado, não é inerente nele mesmo ou em sua alma, mas é concedida por Deus e é a imortalidade da pessoa inteira na plenitude de sua humanidade, tanto corporal quanto espiritual.
– pág. 400.
Death and the Soul After Life [A Morte e a Alma Após a Vida], George Wisbrock, ZOE-Life Books, Oakbrook, ILL, USA, 1990 (a imagem acima não é a verdadeira capa do livro):
No uso bíblico, a imortalidade pertence inerentemente a Deus apenas; ou senão pertence apenas àqueles a quem Deus a concede. Mais uma vez, quando os seres humanos estão em causa, a imortalidade na Bíblia é direcionada ao corpo, não à alma.
Em nossa cultura ocidental, o pensamento e a linguagem sobre a imortalidade foram amplamente determinados pela doutrina de Platão sobre a imortalidade da alma. Porém, qualquer tentativa de combinar a doutrina de Platão com o ensino da Bíblia só pode resultar em confusão. Pois Platão não entendia por imortalidade o que os escritores bíblicos entendiam por ela, e o que Platão entendia por alma não é o que os escritores bíblicos entendiam por alma.
Para o cristão, a esperança da imortalidade está vinculada à ressurreição de Cristo.”
– Frederick Fyvie Bruce, no “Prefácio”.
… o SENHOR disse pessoalmente a Adão e Eva que morreriam no próprio dia em que o desobedecessem … O tipo de morte que lhes foi prometida foi… remoção imediata do Jardim do Éden e a sentença imediata de por fim saírem totalmente da consciência da vida assim que parassem de tomar o fôlego da vida…
Se eles tivessem sido mais disciplinados e pacientes em sua seleção de menus, finalmente teriam comido o fruto da Árvore da Vida e só depois se TORNARIAM seres imortais que nunca morreriam. Porém, como aceitaram a mentira de Satanás de que eles não morreriam se comessem da árvore proibida… eles, consequentemente, receberam a realidade de uma morte espiritual instantânea que os separou da presença de seu Deus…
… a morte do homem, conforme a Bíblia ensina, não é seguida imediatamente por uma continuação ininterrupta da consciência em qualquer um dos seus supostos reinos de existência incorpórea ou sem corpo… O conceito divino de morte a declara como a própria causa da partida do homem de TODA a vida, consciente ou algo do gênero…
A Palavra de Deus não diz que na morte VOCÊ … entra em um domínio de consciência contínua, para aguardar conscientemente outro corpo no qual você finalmente será reencarnado. Em vez disso, a Bíblia ensina que pouco depois da morte, você e eu e todos os demais estamos destinados a entrar no túmulo.
As Escrituras não dizem que o corpo do homem vai para um lugar e que sua alegada “alma imortal” ou “espírito” conscientes vai para outro lugar na morte. Em vez disso, uma vez que o fôlego da vida expira completamente de uma pessoa que morre, todos os processos mentais cessam completamente e essa pessoa começa a retornar ao pó da terra.
… a alma, na Bíblia, significa algo completamente diferente da crença tradicional e ortodoxa sobre um ser incorpóreo que se separa do corpo na morte… [Há] evidências mais do que suficientes para demonstrar a diferença entre o significado bíblico de “nephesh” e o significado contemporâneo de alma… uma “nephesh” humana é de fato uma pessoa MORTAL que só está viva enquanto tiver o fôlego da vida…
De acordo com [Gênesis 1:21], “nephesh” não se refere apenas ao homem. Nem faz… qualquer referência a essa parte presumida do homem que algumas pessoas acreditam que se separará de dentro de seu corpo na morte. Em vez disso … os seres criados do ar e do mar foram todos referidos por Deus como “nephesh”. O homem e todas as criaturas da terra foram formadas do pó do solo. Então, quando eles receberam o sopro da vida dentro de sua carne… tanto o homem como as criaturas da terra se TORNARAM – não receberam – “nephesh” vivente…
É verdade que alguns hebreus começaram a acreditar na imortalidade incorpórea da “alma” alguns séculos antes do nascimento de Cristo, mas todos esses pensamentos podem ser atribuídos à influência dos primeiros filósofos gregos e não a uma exegese adequada da Bíblia. Na verdade, esses pensamentos parecem ter ocorrido em grande número só depois que esses hebreus, submissos ao Império Romano, começaram a falar e escrever na língua grega….
…o salmista [Salmos 35:3, 4] … [disse]: ‘Sejam humilhados e envergonhados os que procuram MINHA ALMA…’. Se a alma humana fosse uma entidade incorpórea que habita dentro do corpo humano, então, como poderia essa “alma imaterial” ser tirada do corpo de alguém enquanto ele ainda está vivo? Ou, se a alma humana fosse puramente espiritual e de forma alguma material na composição, como alguém poderia até mesmo vê-la para agarrá-la e tomar posse dela?…
Uma evidência muito importante que apoia a ideia do mesmo significado para os termos correspondentes em ambas as alianças é que, com poucas exceções, a Bíblia inteira foi escrita por hebreus… todos os autores da Bíblia consideravam as palavras correspondentes nas Escrituras da Antiga Aliança e seus próprios escritos a serem definidos pela palavra hebraica da Antiga Aliança. Então … cada palavra grega da Nova Aliança com significado religioso particular que tenha uma palavra correspondente nas Escrituras Hebraicas da Antiga Aliança deve ser definida de acordo com sua correspondente palavra hebraica. Não se deve, sob circunstância alguma, dar uma definição pagã de uma cultura grega antiga… Só fazendo isso é que a Bíblia inteira pode nos apresentar uma declaração de continuidade harmoniosa. Pois, uma vez que as profecias da Antiga Aliança foram cumpridas através de eventos da Nova Aliança, todos os termos correspondentes de ambas as Alianças que descrevem esses eventos devem compartilhar a mesma definição…
O reconhecimento de Pedro da ressurreição de Jesus como o cumprimento da profecia do salmista [Salmo 16:10] faz uma declaração profunda sobre a natureza bíblica tanto do “seol” como da alma humana. Pois, visto que a ‘psuche’ de Jesus, sua alma, teve de ser tirada do “hades”, o túmulo, para evitar que ele experimentasse a corrupção [ou: decadência, apodrecimento], sua ressurreição do “hades” reforça o conceito bíblico de que a alma humana está sujeita tanto à morte como à corrupção. Também indica claramente que tanto “seol” como “hades” na Bíblia representam igualmente o mesmo lugar – o túmulo…
Se as crenças tradicionais e “ortodoxas” no “seol” e “hades” como uma “região infernal”, um lugar real onde os “não convertidos” estão atualmente sofrendo punição eterna, então, a que propósito serviria tirá-los do “inferno” para enfrentar o julgamento no final da era e daí enviá-los novamente de volta para baixo ao “inferno” pela eternidade após o julgamento? Não acredito pessoalmente que o Deus da nossa Criação agiria de maneira tão injusta, fazendo com que alguém sofra a consequência de suas ações pecaminosas sem antes permitir que essa pessoa enfrente o julgamento, uma experiência que a Bíblia diz que ninguém terá até o fim dos tempos… nem acredito que um Deus verdadeiramente amoroso e justo fará com que “os perdidos não convertidos” sofram por toda a eternidade o tipo de tormentos hediondos ou macabros geralmente associados com as… crenças supersticiosas… do homem moderno… o ensino moderno de que um Deus amoroso, justo e imparcial castigaria eternamente “os perdidos” em um tipo de “inferno” dantesco para todo o sempre está fora de questão como a ideia mais humilhante e degradante que já se atribuiu a Deus!…
Infelizmente, as almas referidas em Apocalipse 6:9 e 20:4 são muitas vezes concebidas erroneamente como “seres espirituais” pessoais que tinham se separado antes de “seus corpos físicos anteriores” por ocasião da morte. Muito pelo contrário, todavia, as almas mencionadas por João… representam realmente algumas das pessoas que eventualmente entrarão no Reino de Deus perto do fim dos tempos … Pois não existem coisas tais como “espíritos” ou “almas” incorpóreas… em nenhuma dessas duas situações João viu “entidades espirituais” imateriais e, portanto, invisíveis que anteriormente residiam dentro dos corpos daqueles homens e mulheres justos … Em vez disso, ele viu NUMA VISÃO as coisas que acontecerão no Último Dia de algumas das pessoas que finalmente viverão com Deus por toda a eternidade…
Que Jesus não ascendeu ao Paraíso Celestial para se sentar à direita de Deus no dia em que morreu também pode ser demonstrado por outro ato bem simples de entender. Logo depois que Deus o ressuscitou de seu túmulo no terceiro dia após sua morte e sepultamento, ele disse a Maria Madalena: ‘pare de me tocar, porque eu ainda NÃO ASCENDI até meu Pai’.
– págs. 38, 39, 43, 44, 48, 49, 55, 71, 72, 73, 92, 108, 125, 126, 131, 146, 150, 230, 231, 331.
Passion of the Western Mind: Understanding the Ideas That Have Shaped Our World View [A Paixão do Pensamento Ocidental: Entendendo as Ideias que Moldaram Nossa Visão de Mundo], Richard Tarnas, 1991 (a capa acima é da edição de 1993, Ballantine Books, Nova Iorque, EUA):
A estrutura filosófica neoplatônica, que se desenvolveu simultaneamente ao lado da teologia cristã primitiva em Alexandria, parecia oferecer uma linguagem metafísica particularmente adequada dentro da qual a visão judaico-cristã poderia ser melhor compreendida. No neoplatonismo, a inefável Divindade transcendente, o Ser, trazia a sua imagem manifesta – o Nous divino ou a Razão universal – e a Alma do Mundo. No Cristianismo, o Pai transcendente trazia sua imagem manifesta – o Filho ou Logos – e o Espírito Santo. Mas o Cristianismo agora trazia a historicidade dinâmica para a concepção helênica ao afirmar que o Logos, a verdade eterna que havia estado presente na criação do mundo, já havia sido enviado para a história do mundo em forma humana para levar essa criação, por meio do Espírito, de volta à sua essência divina. Em Cristo, o céu e a terra se reuniram, o Ser e os muitos se reconciliaram. O que tinha sido a ascensão espiritual particular do filósofo era agora, por meio da Encarnação do Logos, o destino histórico de toda a criação. A Palavra despertaria toda a humanidade. Por meio da habitação do Espírito Santo ocorreria o retorno do mundo ao Ser. Aquela luz suprema, a verdadeira fonte de realidade resplandecendo fora da caverna de sombras de Platão, agora era reconhecida como a luz de Cristo. Conforme Clemente de Alexandria anunciou: “Pelo Logos, o mundo inteiro agora está se tornando Atenas e Grécia”.
Indicativo desta intimidade entre platonismo e cristianismo é que Plotino e Orígenes, os pensadores centrais, respectivamente, da última escola de filosofia pagã e da primeira escola de filosofia cristã, compartilharam o mesmo professor em Alexandria, Amônio Sacas (uma figura misteriosa sobre quem praticamente nada se sabe). A filosofia de Plotino, por sua vez, foi fundamental na conversão gradual de Agostinho para o cristianismo. Agostinho encarava Plotino como um em quem “Platão viveu novamente”, e considerava o próprio pensamento de Platão como “o mais puro e brilhante em toda filosofia”, tanto profundo como em perfeita concordância com a fé cristã. Assim, Agostinho afirmava que as formas platônicas existiram dentro da mente criativa de Deus e que a base da realidade estava além do mundo dos sentidos, disponível só por meio de uma reviravolta radical da alma. Não menos platônica, embora pronunciadamente cristã, foi a afirmação paradigmática de Agostinho de que “o verdadeiro filósofo é o amante de Deus”. E foi a formulação do platonismo cristão de Agostinho que deveria permear praticamente tudo no pensamento cristão medieval no Ocidente. Tão entusiástica era a integração cristã do espírito grego que Sócrates e Platão foram frequentemente considerados como santos pré-cristãos divinamente inspirados, primitivos comunicadores do Logos divino já presentes nos tempos pagãos – “cristãos antes de Cristo”, como alegou Justino, o Mártir. Em antigos ícones cristãos, Sócrates e Platão foram retratados entre os redimidos, que Cristo conduziu do mundo inferior depois de seu assalto ao Hades. Por si só, a cultura clássica pode ter sido finita e perecível, mas deste conceito estava renascida através do cristianismo, dotada de nova vida e novo significado. Assim, Clemente declarou que a filosofia tinha preparado os gregos para Cristo, assim como a lei tinha preparado os judeus.
– págs. 102-104.
Pedro Laín Entralgo, Cuerpo y Alma, Espasa Calpe, Madri, Espanha, 1991 (Em português, Corpo e Alma, 2003 – Edições Almedina, Portugal):
“Nem Jesus nem São Paulo dizem que a morte humana consiste na separação entre uma alma imortal e um corpo mortal. A tão conhecida distinção paulina entre “sarx” (carne), “psykhé” (alma) e “pneuma” (espírito) não é mencionada nem aludida nos textos que falam da ressurreição dos mortos. Como foi, então, que surgiu e se tornou tradicional e quase canônica a concepção do homem como a união de uma alma e um corpo?…
A “alma separada” – a alma após a morte do corpo – existe numa situação “inconveniente” à sua natureza, e até mesmo “contra a natureza”. Sua condição no corpo é mais perfeita do que fora dele; ligada ao corpo ela é mais parecida com Deus, do que estando separada dele…
Esta concepção estruturista da inteira realidade do homem leva necessariamente à ideia da ‘morte total’, ou Ganztod, como a chamam os atuais teólogos alemães. Ao morrer, o homem inteiro morre. Ante sua morte física, e mais além da permanência no mundo – fama, lembrança e afeto dos que nos amaram – a que se referia exclusivamente a sentença horaciana, todo homem pode dizer: omnis moriar [morrerei completamente]. Porém, após a morte física, um misterioso desígnio da sabedoria, do poder e da misericórdia infinita de Deus faz com que o homem que morreu, o homem inteiro, ressuscite a uma vida essencial e misteriosamente diferente da que neste mundo se mostrava como matéria, espaço e tempo. Mais além da materialidade, do caráter espacial e da temporalidade, o homem viverá de acordo com o que tinha sido sua vida no mundo. Nesta vida duradoura é que tem seu objeto apropriado a esperança do cristão. Portanto, depois de dizer esse radical ominis moriar, morrerei por inteiro, o cristão diz sobre si mesmo e pensa que todos os homens podem dizer: omnis resurgam, ressuscitarei por inteiro.”
– págs. 284, 286, 289.
Der Geist des lebens, Jürgen Moltmann, Gütersloher Verlagshaus, Alemanha, 1991. (Em inglês: The Spirit of Life, Fortress Press, Minneapolis, EUA, 1992. Em português: O Espírito da Vida – Uma Pneumatologia Integral, Editora Vozes, Rio de Janeiro, Brasil, 1999):
À medida que o cristianismo cortou-se de suas raízes hebraicas e adquiriu a forma helenística e romana, ele perdeu sua esperança escatológica e renunciou à sua alternativa apocalíptica a este mundo de violência e morte. Ele se amalgamou à religião gnóstica da redenção da antiguidade posterior. De Justino em diante, a maioria dos Pais reverenciou Platão como um “cristão antes de Cristo” e exaltou seu mundo espiritual. A eternidade de Deus agora tomava o lugar do futuro de Deus, o céu substituiu o reino vindouro, o espírito que redimiu a alma do corpo suplantou o Espírito como “a fonte da vida”, a imortalidade da alma dispensou a ressurreição do corpo e o anseio por outro mundo tornou-se um substituto para a mudança deste.
– pág. 89 (da edição em inglês).
The Hermeneutical Spiral – A Comprehensive Introduction to Biblical Interpretation, Grant R. Osborne, Intervarsity Press, Illinois, EUA, 1991 (Em português: A Espiral Hermenêutica: uma nova abordagem à interpretação bíblica, Ed. Vida Nova, São Paulo, Brasil, 2009).
Não baseie doutrinas sobre as parábolas sem conferir detalhes comprobatórios em outro lugar. Isto está intimamente ligado ao ponto anterior, mas por causa do abuso generalizado das parábolas exatamente nesta área, eu o apresento aqui como um ponto separado. Por exemplo, a parábola do homem rico e Lázaro (Luc. 16:19-31) é apresentada muitas vezes como prova de um Hades compartimentalizado. Porém, esse tipo de doutrina não se encontra no ensino de Jesus em Lucas, e, na verdade, em qualquer outro lugar nas Escrituras. Logo, a ambientação da parábola no Hades é uma nuança da parábola, não um dogma, e isso não deve ser enfatizado demais.
– pág. 249 (traduzido da edição em inglês. Na edição em português, o parágrafo acima está na pág. 392.)
Holman Bible Dictionary [Dicionário Bíblico Holman], Holman Bible Publishers, Nashville, TN, EUA, 1991:
Alma. A existência vital de um ser humano. A palavra hebraica nephesh é um termo-chave do Antigo Testamento (755 vezes) que se refere aos seres humanos. No Novo Testamento, o termo psyche abriga-se atrás das ideias de corpo, carne, espírito para caracterizar a existência humana. Na Bíblia, uma pessoa é uma unidade. Corpo e alma ou espírito não são termos opostos, e sim termos que se complementam uns aos outros para descrever aspectos da pessoa inseparável completa. Veja Antropologia; Humanidade.
Essa imagem holística de uma pessoa é mantida também no Novo Testamento, mesmo contra a cultura grega que, desde Platão, separou nitidamente corpo e alma com uma exatidão analítica e que encarava a alma como a parte valiosa, imortal e imorredoura do ser humano. No Antigo Testamento, o uso e a variedade da palavra é muito maior, enquanto no Novo Testamento seu significado teológico parece muito mais forte.
A alma designa a vida física. A vitalidade em toda a sua abrangência e amplitude de significado define a alma. O significado básico de nephesh é garganta. Assim, a Bíblia refere-se à alma faminta, sedenta, satisfeita (Salmos 107:5, 107:9, Provérbios 27:7, Jeremias 31:12, 31:25). A alma significa o ser humano inteiro em sua vida física que necessita de comida e roupas (Mateus 6:25). Os órgãos respiratórios e a respiração expelida por eles também expressam a vida individual em animais, bem como em seres humanos (Jó 11:20; Jó 41:21; Atos 20:10). Às vezes, então, a alma pode ser intercambiada com a vida (Provérbios 7:23; Provérbios 8:35-36) e pode ser idêntica ao sangue (Deuteronômio 12:23). Uma pessoa não tem alma. Uma pessoa é uma alma viva (Gênesis 2:7). Isso significa um ser vivo que deve a própria vida ao Criador assim como o animal (Gênesis 2:19). Por esta vida ou alma, alguém dá tudo o que tem (Jó 2:4). Deus permite que Satanás tome a saúde, isto é carne e sangue, mas Satanás não pode tirar a própria vida de uma pessoa (Jó 2:5-6).
Alma designa os sentimentos, os desejos e a vontade dos seres humanos. O trabalho da garganta, sua fome e apetite, representa o desejo e o anseio do ser humano por poder e por sexo, por satisfação e até mesmo pelo mal (Provérbios 21:10), mas também por Deus (Salmo 42:2-3). A alma pode ser incitada, amargurada, confirmada, desestabilizada ou mantida em suspense (Atos 14:2, 14:22; Atos 15:24 e João 10:24). A palavra reflete a escala inteira dos sentimentos sob a influência do ser humano, até mesmo o psicológico. A alma amargurada dos que não têm filhos, dos doentes ou dos ameaçados (1 Samuel 1:10; 2 Reis 4:27; 2 Samuel 17:8) nos lembra a nephesh como o órgão da sensação que representa também a inteira pessoa amargurada.
A alma também conhece emoções positivas. A alma se alegra, louva, espera e é paciente. Jamais nestes casos o sentido se refere a apenas uma parte do ser humano. É sempre a alma poderosa como expressão da personalidade completa (Salmo 33:20). No mandamento de amar (Deuteronômio 6:5, Marcos 12:30), a alma está ao lado de outras expressões referentes ao ser humano para enfatizar a energia emocional e a força de vontade do ser humano, como uma unidade.
A alma designa a pessoa humana. Alma não é apenas um sinônimo de vida. Pode-se também falar da vida da alma (Provérbios 3:22). Cada alma humana (Atos 2:43 e Romanos 2:9) significa cada pessoa individual. A expressão popular usada hoje “salvar nossas almas” remonta a esta maneira bíblica de pensar (1 Pedro 3:20). Significa salvar a pessoa inteira. Nos textos legais, a alma é a pessoa individual com responsabilidades jurídicas (Levítico 17:10, uma alma comendo sangue). Associada com um quadro que mostra estatísticas ou números de pessoas, a alma torna-se uma ideia no campo do estatístico (Gênesis 46:26-27 e Atos 2:41). Às vezes, a alma simplesmente substitui uma preposição como a expressão “deixe minha alma viver”, que significa “deixe-me viver” (1 Reis 20:32). É até mesmo possível que todas as nuances do significado se juntem na mesma expressão. Por exemplo, no Salmo 103:1, lemos: “Bendize Iavé, ó minha alma”. Isto inclui a garganta como o órgão da vida, a alma como a totalidade das capacidades; minha própria vida pessoal que experimenta os atos salvadores de Iavé nosso Deus; minha pessoa; meu próprio “eu”; e o ser vital e emocional.
Alma designa a vida essencial. A vida física é dada e mantida por Deus (Mateus 6:25-34). A vida significativa e realizada só vem quando é livre para se entregar a Deus como discípulo de Jesus Cristo. A vida é o bem supremo quando é vivida de acordo com as intenções de Deus e não esgotada na busca de bens materiais e culturais (Marcos 8:34-37). Esta vida é mais forte do que a morte e não pode ser destruída por seres humanos (Mateus 10:28). Porém, a alma não representa uma parte divina, imortal, imorredoura do ser humano após a morte, como os gregos frequentemente pensaram. Assim, Paulo evita a palavra alma em conexão com a vida eterna. Há uma continuidade entre a vida terrena e a ressuscitada que não reside nas capacidades ou na natureza dos humanos mortais. Encontra-se unicamente no poder do Espírito de Deus (1 Coríntios 15:44). Segundo a Bíblia, um ser humano existe como uma unidade inteira e permanece também como uma pessoa inteira na mão de Deus após a morte. Uma pessoa não é vista em momento algum como uma alma desincorporada.
Imortalidade. A qualidade ou estado de ser isento de morte. No verdadeiro sentido da palavra, só Deus é imortal (1 Timóteo 6:16; veja 1 Timóteo 1:17; 2 Timóteo 1:10), pois somente Deus é vivo, no verdadeiro sentido da palavra (veja Vida). Os seres humanos podem ser considerados imortais somente na medida em que a imortalidade é o dom de Deus. Paulo nos aponta nessa direção. Em Romanos 2:7, Paulo diz: “Àqueles que com paciência fazem o bem, buscam glória, honra e imortalidade, ele dará a vida eterna” (NRSV). Paulo explicou também que a natureza perecível da vida humana se revestirá da imperecibilidade e que a natureza mortal da vida humana se revestirá de imortalidade. Quando isso acontecer, o pronunciamento acerca da vitória sobre a morte terá sido cumprido (1 Coríntios 15:53-55, veja Isaías 25:8; Oséias 13:14). Assim como é, os seres humanos em sua vida terrena são mortais; eles estão sujeitos à morte.
Assim, a vida eterna não é nossa porque temos o poder inerente de viver para sempre; a vida eterna e a imortalidade são nossas somente porque Deus decide concedê-las a nós. Na maioria das vezes, recebemos imortalidade após a morte. Aqueles que escaparam da morte – Enoque (Gênesis 5:24) e Elias (2 Reis 2:10-11) – fizeram isso tão somente pelo poder de Deus e não por algum poder inerente que eles tinham de viver para sempre. Veja Vida Eterna.
Ressurreição. A doutrina, o evento e o ato de pessoas sendo trazidas da morte para a vida infindável no fim da era.
Antigo Testamento. Os trechos pré-exílicos do Antigo Testamento não contêm declarações que apontam certamente para uma esperança de ressurreição dos mortos, ainda que alguns dos vizinhos de Israel tivessem tal crença. A morte é o fim da existência humana, a destruição da vida (Gênesis 3:19; Jó 30:23). Em ocasiões isoladas ocorre a revivificação (ser trazido de volta à vida, mas apenas como uma fuga temporária da morte final; 1 Reis 17:17-22; 2 Reis 4:18-37; 2 Reis 13:21). Além disso, Deus tirou da terra dois personagens do Antigo Testamento antes de suas mortes: Enoque (Gênesis 5:24) e Elias (2 Reis 2:9-11). A escassez dessas afirmações e a falta de reflexão sobre seus significados, porém, apontam para a ausência de qualquer concepção doutrinária consistente de ressurreição dos mortos.
Da mesma forma, os Salmos não têm um pensamento claro sobre a ressurreição. Muitas das canções, porém, expressam a esperança de que a comunhão com Deus, iniciada na Terra, não terá fim (como no Salmo 16:11; Salmo 49:15; Salmo 73:24). O Cântico de Moisés (Deuteronômio 32:1) e o Cântico de Ana (1 Samuel 2:1) afirmam que Iavé mata e dá vida. Essas expressões de esperança em Deus podem não sugerir uma doutrina de ressurreição dentre os mortos. Elas pelo menos expressam uma convicção de que o Deus vivo é capaz de intervir nas horas mais sombrias da vida. Elas procuram uma firme esperança na justiça e ajuda além do túmulo. Elas podem refletir o começo de uma doutrina de ressurreição.
Os profetas proclamaram esperança para o futuro em termos da renovação nacional (veja Oséias 6:1-3 e Ezequiel 37:1). A expressão profética da esperança nacional é tão apontada de que os escritores do Novo Testamento às vezes usaram a linguagem dos profetas para expor a doutrina da ressurreição (compare Oseias 13:14 com 1 Coríntios 15:55). As declarações proféticas, porém, não necessariamente atestam a esperança da ressurreição individual dos mortos, mas professam a soberania de Deus sobre todos os seus súditos, mesmo a morte.
Por outro lado, Isaías 26:19 e Daniel 12:2 decididamente ensinam uma crença na ressurreição. A ênfase do Antigo Testamento na soberania de Deus em todos os assuntos facilmente levou às declarações proféticas.
As afirmações do Antigo Testamento sobre a ressurreição são escassas e não revelam uma reflexão teológica clara. A ênfase em Iavé como o Deus da vida atual tendia a fazer do Judaísmo uma religião deste mundo. O futuro era geralmente interpretado como um futuro nacional sob o domínio soberano de Iavé. Nos tempos do Novo Testamento, os saduceus ainda não acreditavam na ressurreição. Porém, a crença em Deus como Senhor soberano sobre todos, até mesmo a morte, por fim floresceu nas afirmações breves mas salientes dos Livros de Isaías e Daniel e possivelmente nos Salmos. Veja Escatologia; Esperança Futura; Seol.
Novo Testamento. A pregação de Jesus pressupunha uma doutrina da ressurreição. A oposição dos saduceus, que negavam a ressurreição, deu a Jesus a oportunidade de afirmar seu próprio pensamento sobre o assunto (Marcos 12:18-27, Mateus 22:23-33, Lucas 20:27-38, compare com Deuteronômio 25:5-10).
O Evangelho de João apresenta Jesus como o mediador da ressurreição que dá aos crentes a vida dada por Seu Pai (João 6:53-58). Jesus é a ressurreição e a vida (João 11:24-26). Jesus indicou a ressurreição dos justos para a vida eterna e a dos ímpios para a punição eterna (Mateus 8:11-12; Mateus 25:31-34, 25:41-46; João 5:28-29). Em suas aparições pós-ressurreição Jesus tinha um corpo que era de natureza tanto espiritual (João 20:19, 20:26) como física (João 20:20, 20:27; João 21:13, 21:15).
O maior expoente bíblico da ressurreição foi Paulo. Para ele, a ressurreição era o evento final que levaria os cristãos da luta corporal da era atual para a glória corporal que se seguirá à segunda vinda de Jesus (Filipenses 3:20-21). Na ressurreição, a nova criação de Deus chegará à conclusão (2 Coríntios 5:17-21). A base da esperança para a ressurreição cristã é a ressurreição de Cristo, o fundamento da pregação do evangelho (1 Coríntios 15:12-20). Aqueles que seguem a Cristo estão organicamente relacionados com Cristo na Sua ressurreição dentre os mortos; Cristo é os primeiros frutos de uma colheita vindoura (1 Coríntios 15:20-23). A destruição aguarda aqueles que não seguem a Cristo (Filipenses 3:19).
Os discursos de Paulo sobre a natureza do corpo ressuscitado ampliam a ideia do Antigo Testamento de um Israel restaurado para incluir a redenção de pessoas completas com corpos. Paulo encarava a pessoa humana como uma unidade psicossomática. Ele não reconhece verdade alguma na ideia grega de uma separação de corpo e alma. (Veja 2 Coríntios 5:1-10). Os que estão unidos a Cristo na fé se tornam um com ele não só em espírito, mas também um com ele em corpo (1 Coríntios 6:15). O corpo ressuscitado será um corpo espiritual, diferente do corpo físico atual (1 Coríntios 15:35-50); mas terá continuidade com o corpo atual, porque Cristo redime a pessoa inteira (Romanos 8:23).
O Novo Testamento afirma inquestionavelmente uma doutrina da ressurreição de todas as pessoas dentre os mortos. A humanidade tem um destino coletivo para encontrar uma resposta justa e divina à fidelidade e à infidelidade (Atos 24:15). Um corpo da ressurreição e a vida no reino consumado de Deus caracterizarão a ressurreição daqueles que seguem a Cristo.
– Verbetes “Alma”, “Imortalidade” e “Ressurreição” (versão online).
Word Biblical Commentary: Ecclesiates [Comentário Bíblico Word], Roland E. Murphy, Word, Incorporated, Dallas, Texas, EUA, Vol. 23A, 1992:
“A nota de morte continua. O processo aqui descrito é o inverso de Gen 2:7. O fim da vida é a dissolução (não aniquilação, os israelitas nunca especularam sobre como o “eu” estava no Seol, veja Ecle. 9:10). Os seres humanos retornam ao pó (Gen. 3:19) de onde vieram, enquanto o fôlego da vida dado por Deus retorna ao seu possuidor original. Este é um quadro de dissolução, não de imortalidade, como se houvesse um reditus animae ad Deum, “o retorno da alma a Deus”. Não há discussão alguma sobre “alma” aqui, e sim sobre fôlego de vida, uma categoria totalmente diferente de pensamento. Portanto, não há razão para negar a autoria deste versículo a Coheleth [o autor do Eclesiastes]. K. Galling, A. Lauha e outros argumentaram que ele deve pertencer a um glosador [comentarista] porque contradiz o versículo 3:21, onde Coheleth nega a afirmação de que o רוּחַ rûah humano sobe em contraposição ao רוּחַ rûahi de animais. Mas, o contexto de 3:21 é polêmico. Alguns afirmam que há uma diferença entre o fôlego de vida dos seres humanos e o dos animais; a pergunta de Coheleth (“quem sabe?”) nega qualquer diferença qualitativa. Mas ele certamente compartilha com o resto do AT que Deus é o dono e doador da vida, isto é, o fôlego de vida (Sal. 104:29-30, Jó 33:4; 34:15, veja também Sir 40:11b, Texto hebraico).”
– Comentário sobre Eclesiastes 12:7, pág. 120.
George Huntston Williams, The Radical Reformation (A Reforma Radical), Truman State University Press, Kirksville, MO, EUA, 1992 (a capa acima é da terceira edição, 1995), pág. 65:
O psicopaniquismo (literalmente vigília da alma), chamado de mortalismo cristão no inglês do século 17 e de condicionalismo no meio anglo-americano do século 19, ou seja, a vida após a morte condicional na vindoura ressurreição, era a posição do Novo Testamento e de vários Pais Apostólicos e Antenicenos de Clemente de Roma a Irineu de Lyon.