Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse
Introdução
A guerra, a fome e a pestilência são também encontradas no livro do Apocalipse sob a forma de três cavaleiros sentados respectivamente num cavalo vermelho, preto e descorado (literalmente amarelo-esverdeado), precedidos por um quarto cavaleiro, um arqueiro, sentado num cavalo branco. – Apocalipse 6:1-8.
A questão principal aqui é saber se a visão envolvendo estes quatro cavaleiros representa uma descrição do tempo do fim aplicável a algum período logo antes do dia do julgamento final e constituindo, por esse motivo, um sinal da iminência desse dia.
Uma leitura do próprio relato nada revela que atribua a cavalgada destes cavaleiros a um período específico. É verdade que a visão destes cavaleiros faz parte de uma série de “selos” que foram abertos, sete ao todo, e que depois da abertura do sexto selo, relacionado com um grande terremoto, os homens tentaram esconder-se, reconhecendo que ‘o grande dia da ira de Deus chegou.’ (Apocalipse 6:12-17) Mas isto por si só não fornece base sólida para dizer que os “selos” anteriores se encaixam todos em algum período de tempo particular logo antes daquele dia de julgamento. Nada se diz que indique que estes selos formam parte de um “sinal” destinado a alertar as pessoas para a proximidade do julgamento divino. A guerra, a fome e a pestilência foram, conforme já se mostrou, uma constante na vida humana ao longo de todas as eras. Não são mais constantes em nossos dias do que em gerações anteriores.
Num esforço de atribuir a cavalgada destes cavaleiros a um período específico, a liderança das Testemunhas de Jeová focaliza a atenção no cavaleiro do cavalo branco. Afirma-se que ele representa Cristo Jesus e que o fato de se falar dele como tendo “recebido uma coroa” fixa o tempo da profecia no período desde e a partir de 1914 quando, segundo a doutrina da liderança das Testemunhas de Jeová, Cristo Jesus foi entronizado no céu e começou a exercer autoridade real sobre toda a terra. Que validade tem este ensino?
Quem é o cavaleiro no cavalo branco?
É claro que os cavaleiros não representam pessoas literais. Eles são símbolos, assim como seus cavalos e as cores destes.1 Três deles são facilmente identificáveis. Existe um consenso geral entre os comentaristas de que o segundo cavaleiro, tendo uma grande espada, é um símbolo da guerra, mais frequentemente guerra civil, apropriadamente ilustrada pela cor vermelha de seu cavalo, um reflexo do derramamento de sangue.2 O terceiro cavaleiro é um símbolo da fome e este flagelo também está bem representado pela cor de seu cavalo, sendo o preto a cor das colheitas atingidas pela praga nos campos. O quarto cavaleiro simboliza a morte por pestilência, e a cor pálida ou amarelo-esverdeada de seu cavalo denota a cor de uma pessoa doente, atingida pela peste. Todas estas identificações são também confirmadas pelas missões dadas a cada um deles. Mas quem é o arqueiro montado no cavalo branco?
Aqui começam os problemas, e várias sugestões têm sido dadas por diferentes comentaristas. Alguns acreditam que este cavaleiro é o símbolo do cristianismo ou o progresso triunfante do evangelho cristão. Outros acham que ele representa a conquista militar, em oposição ao segundo cavaleiro que, segundo esta interpretação, simboliza guerra civil ou de extermínio. O Dr. Graham apresenta a razão por que acredita que o cavaleiro simboliza o engano, tendo uma aparência superficial que é enganadora, e com tendência para a conquista voraz.3 Ainda outros, incluindo a organização das Testemunhas de Jeová, identificam-no com o próprio Jesus Cristo. Visto que a eles encaram toda a visão como sendo um paralelo dos acontecimentos descritos por Jesus em Mateus capítulo vinte e quatro versículos 6-8, e como eles proclamam que esses versículos se aplicam de 1914 em diante, alegam que os quatro cavaleiros começaram a sua cavalgada devastadora na terra naquele ano. Diz-se que uma evidência particularmente forte disto pode ser encontrada na coroa dada ao primeiro cavaleiro:
O cavaleiro neste meio de transporte veloz significa um rei recém-empossado, pois foi-lhe dada uma coroa régia…. O cavaleiro no cavalo branco, que cavalga vitorioso, portanto, não pode deixar de ser Jesus Cristo por ocasião de sua coroação no céu, no fim dos Tempos dos Gentios em 1914.4
Todavia, esta interpretação não pode estar correta porque baseia-se num sério equívoco lingüístico. O idioma grego tinha duas palavras diferentes para “coroa”. Uma é stefanos, a outra é diádema. A que significa uma “coroa régia” é diádema. Ela é usada, por exemplo, para se referir às muitas coroas usadas por Jesus em Apocalipse capítulo dezenove, versículo 12:
Seus olhos são chama ardente e na sua cabeça há muitos diademas. [diademata].
Estes muitos diademas simbolizam evidentemente a autoridade real de Cristo sobre todos os outros reinos, também confirmada pelo nome que, segundo o versículo 16, está escrito sobre sua roupa e sobre a sua coxa, “REI DOS REIS, E SENHOR DOS SENHORES”.
Este significado da palavra diádema é apresentado por todos os dicionários de grego. Assim, por exemplo, o Dicionário Expositivo de Vine (em inglês) diz na página 260:
DIADEMA … nunca é usada como stefanos: é sempre o símbolo da dignidade real ou imperial, e é traduzida como ‘diadema’ em vez de ‘coroa’ na R.V., a respeito das pretensões do Dragão, Rev. 12:3; 13:1; 19:12.
Mas a “coroa” dada ao cavaleiro do cavalo branco em Apocalipse capítulo 6, versículo 2, não foi um diádema. Foi uma stefanos. O que significa, então, esta palavra uma vez que não foi usada da mesma maneira que diádema? Vine explica adicionalmente na mesma página:
STEFANOS … denota (a) a coroa do vencedor, o símbolo de triunfo nos jogos ou outras competições similares; portanto, por metonímia, uma recompensa ou prêmio; (b) um sinal de honra pública por serviços distintos, proezas militares, etc., ou alegria nupcial, ou contentamento festivo, especialmente na parousia de reis.
Uma stefanos, portanto, denota normalmente a coroa da vitória, e isto é verdadeiro no Novo Testamento, onde ela é usada em conexão com a ilustração das competições atléticas.* (Compare com 1 Coríntios 9:25; 2 Timóteo 2:5.) É este tipo de coroa que os cristãos recebem como recompensa divina de Deus através do seu rei Cristo Jesus, assim como indivíduos eram honrados pela atribuição de uma stefanos quando de uma visita real ou parousia de um rei ou imperador. – 2 Timóteo 4:8; Tiago 1:12.
Curiosamente, a stefanos não era apenas dada como um prêmio depois de uma vitória. Assim como no caso do arqueiro no cavalo branco, era também dada a guerreiros antes da batalha como uma promessa de vitória. Assim os espartanos coroavam-se com uma stefanos quando saíam para a batalha como um sinal de vitória prometida. Os generais romanos faziam o mesmo. Supunha-se que a coroa ou grinalda influenciava o desfecho da batalha. Tanto entre os gregos como entre os romanos a stefanos era o símbolo da vitória, e Nike, a deusa da vitória, era representada vindo com uma coroa de vitória em sua mão.5
A coroa que foi dada ao cavaleiro montado no cavalo branco é uma coroa de vitória (stefanos), conforme representada nas imagens acima. Não é uma coroa régia (diadema), como as representadas nas imagens abaixo.
Portanto, quando se dá ao cavaleiro do cavalo branco uma stefanos, não lhe é dada uma “coroa régia”, como pretende a liderança das Testemunhas de Jeová. A cena não descreve alguma cerimônia de coroação no céu, e certamente não há razão para ligar a atribuição da grinalda ao arqueiro ao ano de 1914. A visão retrata um guerreiro armado saindo para a batalha, e como promessa de vitória nesta batalha é-lhe dada uma coroa, não uma coroa régia, mas uma coroa de vencedor. As palavras que se seguem – “e ele saiu vencendo e para completar a sua vitória” – explicam imediatamente o propósito da coroa que lhe é dada. Assim como ao segundo cavaleiro foi dada uma grande espada como um símbolo de sua missão – tirar a paz da terra – assim também a este primeiro cavaleiro foi dada uma coroa de vencedor como um símbolo da missão dele: conquistar. Por isso, o arqueiro pode simbolizar ou representar conquista vitoriosa. E isto estaria em harmonia com a cor do cavalo dele. De que modo?
É certamente verdade que a cor branca é muitas vezes usada como um símbolo de pureza e de justiça, como por exemplo em Apocalipse capítulo 19, versículo 8. Mas este não é automaticamente o caso. Em Zacarias capítulo seis, versículos 1-8, onde encontramos carros puxados por grupos de quatro cavalos, três deles tendo cores idênticas às dos que lhes correspondem no Apocalipse, não existe alguma qualidade específica atribuída ao carro puxado pelos cavalos brancos. Muito pelo contrário, é a respeito do carro puxado pelos cavalos pretos que se diz que estes “deram descanso ao meu Espírito na terra do norte.” – Zacarias 6:6, 8.
O branco era também um símbolo antigo de triunfo e vitória. “Quando um general romano celebrava um triunfo”, diz o comentarista bíblico William Barclay, “isto é, quando ele desfilava pelas ruas de Roma com seus exércitos, seus prisioneiros e seus despojos depois de alguma grande vitória, o carro dele era puxado por cavalos brancos, pois eles eram os símbolos da vitória.”6 Em Apocalipse capítulo 6, versículo 2, portanto, a cor branca do cavalo pode muito bem simbolizar vitória ou triunfo militares, de acordo com a missão dada ao seu cavaleiro.
Pode-se argumentar que, mesmo se o cavaleiro com o arco fosse um símbolo de conquista vitoriosa, ele ainda poderia ser um símbolo de Jesus Cristo, especialmente em vista do fato de Jesus também ser representado como montando um cavalo branco em Apocalipse capítulo 19, do versículo 11 em diante. Deve-se notar, contudo, que as duas visões são completamente diferentes, e os dois cavaleiros também são diferentes. No capítulo dezenove, o cavaleiro segura uma espada em vez de um arco; ele usa muitos diademas ou coroas régias (diademata), não uma stefanos ou coroa de vitória. Como tem sido às vezes enfatizado, “os dois cavaleiros não têm nada em comum além do cavalo branco.”7
O que é mais significativo, os outros três cavaleiros em Apocalipse capítulo 6 são todos símbolos de calamidades (guerra, fome, pestilência), não de pessoas reais. Seria tanto lógico como consistente, portanto, interpretar o primeiro cavaleiro de maneira similar, assim como foi sugerido, representando possivelmente o conceito de conquista militar. Esta é, de fato, também a conclusão da maioria dos comentaristas bem conhecidos. O Dr. Otto Michel, por exemplo, explica os dois primeiros cavaleiros do seguinte modo:
O cavalo branco representa o conquistador que chega de fora com um exército estranho e oprime o reino. Ele é seguido pelo feroz cavalo vermelho que leva embora a paz e desencadeia a luta civil.8
O espaço não permite um exame mais detalhado desta visão. Mas a informação já apresentada mostra claramente que a tentativa da liderança das Testemunhas de Jeová de associar esta visão à sua data 1914 não tem apoio no próprio texto. Baseando sua interpretação numa tradução errada da palavra stefanos tenta transformar a atribuição da grinalda ao arqueiro numa cerimônia de coroação, uma idéia que é completamente estranha ao contexto. Se aplicada a Jesus, seria mais razoável ele receber uma stefanos ou coroa de vitória e conquista por ocasião de sua ressurreição, quando ele alcançou suas grandes vitórias, tendo conquistado o mundo e derrotado o pecado, a morte e o Diabo, por meio de seu percurso fiel – e não em algum período dezenove séculos depois. (Compare com João 16:33; Apocalipse 3:21; 5:5.) A linguagem simbólica da visão dos cavaleiros é tirada de vários textos do Velho Testamento, como Zacarias 6:1-8; Ezequiel 5:12-17; 14:21 e Jeremias 49:36, 37, textos que tratam de julgamentos divinos contra os inimigos de Israel em tempos antigos. Para o nosso presente objetivo não há necessidade de entrar numa explanação sobre quando e como os julgamentos descritos simbolicamente em Apocalipse capítulo seis viriam sobre as potências opressoras que aparecem nas visões de João. É suficiente compreender que não há como provar que os quatro cavaleiros têm mais relação com 1914 ou com o século vinte, do que com algum período de tempo anterior da história.
Notas
1 – Conforme muitos comentaristas observam, estes símbolos são semelhantes àqueles encontrados em Zacarias 6:1-8, embora alguns dos detalhes sejam diferentes. As cores têm evidentemente significados diferentes nas duas visões. Na visão de Zacarias os quatro grupos de cavalos coloridos de maneiras diferentes são interpretados pelo anjo como sendo “os quatro espíritos dos céus, que acabam de sair da presença do Soberano de toda a terra.” (Versículo 5, NVI) Estes espíritos, por sua vez, evidentemente representavam a ira de Deus dirigida contra os inimigos do povo de Deus nos dias de Zacarias. – Compare com Isaías 66:15; Jeremias 4:13; 23:19; 30:23; 49:36.
2 – Ao cavaleiro do cavalo vermelho “foi dado que tirasse a paz da terra, de modo que os homens se matassem uns aos outros.” (ARC) Houve alguma vez paz universal na terra? Conforme se argumentou no capítulo cinco, dificilmente houve um ano de paz total na terra ao longo da história. No entanto, no tempo em que João escreveu as suas visões existia, de fato, uma espécie de “paz”. Esta era a bem conhecida Pax Romana, a “Paz Romana”, um período de paz e estabilidade dentro das fronteiras romanas, que durou de 29 A.C. até aproximadamente 162 A.D.. É verdade que existiam guerras constantes nas fronteiras do vasto império, contra os teutões (germânicos) ao norte, e especialmente contra os partos ao leste, sendo o Reino Parto a única grande potência além da própria Roma. Mas estas guerras nas fronteiras não eram vistas como uma ameaça à paz prevalecente dentro das fronteiras romanas. Portanto, quando os destinatários de João leram que foi concedido ao cavaleiro no cavalo vermelho “tirar a paz da terra”, eles poderiam naturalmente lembrar-se desta Pax Romana ou Paz Romana. Ainda mais, conforme é enfatizado pelo comentário de J. M. Ford sobre Apocalipse (Bíblia Âncora, Vol. 38 em inglês, Nova Iorque 1975, pág. 106), “A expressão allelous sphaxousin, ‘mataram-se uns aos outros’, indica luta civil.” Guerras civis dentro das fronteiras romanas iriam, é claro, “tirar a paz da terra”, sendo a “terra” compreendida como uma referência ao Império Romano. Seja qual for a aplicação exata, está fora de questão que, no mundo como um todo, lutas civis e agitações, freqüentemente acompanhadas por derramamento de sangue, têm destruído a paz ao longo de todos os séculos da era cristã.
3 – O Tropel que se Aproxima, págs. 78-81 em inglês.
4 – A Sentinela de 15 de novembro de 1983, pág. 18
* NOTA DO TRADUTOR: Conforme diz um artigo da Wikipédia (http://en.wikipedia.org/wiki/Laurel_wreath), “uma coroa de louros é uma coroa circular, feita de ramos entrelaçados e folhas de loureiro (Laurus nobilis, da família das laureáceas), uma planta aromática sempre-verde e de folhas largas. Na Mitologia Grega, o deus Apolo é representado usando uma coroa de louros na cabeça. Na Grécia Antiga, os louros eram concedidos aos vencedores, tanto de competições atléticas, incluindo as dos Jogos Olímpicos da antiguidade, como dos encontros de poetas; em Roma eles eram símbolos de vitória militar, servindo para coroar um comandante vitorioso durante sua marcha triunfal. Enquanto as antigas coroas de louros eram freqüentemente representadas em formato de ferradura, as versões modernas normalmente são círculos completos.”
5 – Dicionário Teológico do Novo Testamento, Kittel / Friedrich, Vol. VII, págs. 620, 621 em inglês. É claro que a liderança das Testemunhas de Jeová sabe que stefanos significa uma coroa de vitória e, de fato, admite isto quando fala sobre outros textos diferentes de Apocalipse 6:2. Comentando Tiago 1:12, A Sentinela de 1.º de julho de 1979, página 30, afirma que stefanos “deriva-se duma raiz que significa ‘rodear’, e assim é usada para se referir a uma coroa, grinalda, prêmio ou recompensa que se dava ao vencedor duma corrida.”
6 – A Revelação de João, William Barclay, Vol. 2, 2.ª ed. em inglês, Filadélfia 1960, pág. 4. Também H. B. Swete, em seu Comentário Sobre Revelação (reimpressão feita em 1977 da 3.ª ed. em inglês de 1911, Grand Rapids, Michigan, p. 86) confirma que “o branco era a cor da vitória”, dando vários exemplos disto provenientes de antigas fontes romanas.
7 – Swete, pág. 86 em inglês.
8 – Otto Michel no Dicionário Teológico do Novo Testamento, Vol. III, pág. 338 em inglês. Numa nota de rodapé ele diz ainda: “Não compreendemos a atividade destrutiva dos cavaleiros se identificarmos o primeiro com o Messias vingador ou guerreiro de 19:11-16, ou com o Evangelho em sua incursão pelo mundo (Mr. 13:10).”