O Professor Robert R. Newton, o “Cânon de Ptolomeu” e “O Crime de Cláudio Ptolomeu”

Introdução

A matéria que segue é uma adaptação da consideração que está nas páginas 44-48 da primeira e segunda edições de meu livro, Os Tempos dos Gentios Reconsiderados (publicado em 1983 e 1986), com algumas atualizações e inclusões.

O PROFESSOR ROBERT R. NEWTON (que morreu em 1991) foi um físico notável que publicou uma série de obras bem conhecidas sobre as acelerações seculares da lua e da terra. Ele examinou detalhadamente centenas de observações astronômicas que foram feitas desde o momento presente até por volta de 700 AC, a fim de determinar a lenta taxa de alteração da duração do dia ao longo deste período. A melhor informação sobre as pesquisas dele nessa área é encontrada em seu livro, A Aceleração da Lua e Suas Origens Físicas, Vol. 1, publicado em 1979. Os resultados a que ele chegou foram aperfeiçoados mais recentemente por outros eruditos, especialmente por Richard F. Stephenson. (Eclipses Históricos e a Rotação da Terra, Cambridge: Editora da Universidade de Cambridge, 1997).

As acusações contra Cláudio Ptolomeu não são novas

A alegação de que Cláudio Ptolomeu “forjou deliberadamente” muitas de suas observações não é nova. Os astrônomos têm questionado as observações de Ptolomeu há séculos. Já em 1008 AD, ibn Yunis concluiu que elas continham erros graves, e por volta de 1800 os astrônomos reconheceram que quase a totalidade das observações de Ptolomeu estavam erradas. Em 1817, Delambre perguntou: “Será que Ptolomeu fazer alguma observação? Não são as observações que ele alega ter feito apenas cálculos baseados nas tabelas dele, e exemplos para ajudar a explicar suas teorias?” – J. B. J. Delambre, Histoire de l’Astronomie Ancienne, Paris 1817, Vol. II, pág. XXV, conforme citado por Robert R. Newton em A Aceleração da Lua e Suas Origens Físicas [sigla em inglês: MAPO], Vol. I, (Baltimore e Londres: Editora da Universidade Johns Hopkins, 1979), pág. 43.

Dois anos depois (em 1819) Delambre concluiu também que Ptolomeu forjou algumas de suas observações solares e demonstrou como essa manipulação foi feita. (Newton, MAPO I, pág. 44) Mais recentemente, outros astrônomos reexaminaram as observações de Ptolomeu e chegaram a resultados semelhantes. Um deles é o Professor Robert R. Newton. Em seu livro, O Crime de Cláudio Ptolomeu (Baltimore e Londres: Editora da Universidade Johns Hopkins, 1977), Newton afirma que Ptolomeu falsificou não só um grande conjunto de observações que ele alegou ter feito por si mesmo, como também diversas observações que Ptolomeu atribui a outros astrônomos, incluindo algumas que ele cita com base em fontes babilônicas. Estas incluem as três observações mais antigas registradas no Almagesto de Ptolomeu, datadas no primeiro e segundo anos do rei babilônico Merodaque-Baladã (chamado Mardokempados no Almagesto), correspondendo a 721 e 720 AC. 

Eruditos que discordam de R. R. Newton

No debate que se seguiu, uma série de eruditos repudiaram as conclusões de Newton. Eles assinalaram que os argumentos de Newton “estão marcados por toda sorte de distorções” (Bernard R. Goldstein, da Universidade de Pitsburgo, na revista Science, 24 de fevereiro de 1978, pág. 872), e que o caso criado por ele entra em colapso porque “baseia-se em análises estatísticas falhas e na desconsideração para com os métodos da astronomia antiga” (eruditos Noel M. Swerdlow, da Universidade de Chicago, Victor E. Thoren da Universidade de Indiana, e Owen J. Gingerich da Universidade de Harvard, na revista Scientific American de março de 1979, pág. 93, edição americana). Comentários semelhantes foram feitos por Noel M. Swerdlow, “Ptolomeu Sob Julgamento”, em O Erudito Americano (em inglês), outono de 1979, págs. 523-531, e por Julia Neuffer, “‘O Cânon de Ptolomeu’ Desmascarado?” em Estudos Seminaristas da Universidade Andrews, Vol. XVII, Nº. 1, 1979, págs. 39-46. Um artigo de Owen Gingerich J. com uma refutação feita por R. R. Newton encontra-se na Revista Trimestral de Sociedade Astronômica Real, Vol. 21, 1980, págs. 253-266, 388-399, com uma resposta final de Gingerich no Vol. 22, 1981, págs. 40-44.

Apoio erudito para R. R. Newton

A maioria desses críticos, porém, são historiadores sem especialização particular no campo da astronomia grega. Algumas resenhas escritas por astrônomos bem informados têm sido favoráveis ​​às conclusões de Newton. Um historiador que também está bem familiarizado com a astronomia grega, K. P. Moesgaard, concorda que Ptolomeu forjou seus dados astronômicos, embora ele ache que isso foi feito por algum motivo honesto. (K. P. Moesgaard, “Falhas de Ptolomeu”, Revista de História da Astronomia, Vol. XI, 1980, págs. 133-135) Rolf Brahde também escreveu uma análise favorável do livro de Newton em Astronomisk Tidskrift, 1979, Nº. 1, págs. 42, 43.

B. L. van der Waerden, professor de matemática e perito em astronomia grega, discute as alegações de Newton em seu livro Die Astronomie der Griechen (Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1988). Embora ele não tenha ido tão longe como Newton em seu ataque a Ptolomeu, ele concorda que Ptolomeu falsificou suas observações, afirmando: “Que Ptolomeu falsificou sistemática e intencionalmente suas observações, para fazer seus resultados observacionais concordar com sua teoria foi demonstrado de maneira convincente por Delambre e Newton.” (pág. 253)

Críticas recentes de R. R. Newton

G. J. Toomer, o bem conhecido tradutor do Almagesto de Ptolomeu (Londres: Gerald Duckworth & Co., 1984), discute a afirmação de Newton num artigo publicado em 1988 (“Hiparco e a Astronomia Babilônica”, em Um Humanista Científico. Estudos em Memória de Abraham Sachs, editado por E. Leichty, M. Dej. Ellis, & P. ​​Gerardi, Filadélfia, 1988, págs. 353-362), no qual ele argumenta convincentemente que todas as observações de períodos anteriores registradas por Ptolomeu foram extraídas do matemático grego Hiparco (2º século AC).

Em 1990, o Dr. Gerd Grasshoff incluiu uma longa seção sobre as acusações contra Cláudio Ptolomeu em sua obra, A História do Catálogo Estelar de Ptolomeu (Londres, Paris, Tóquio, Hong Kong: Springer-Verlag, 1990, págs. 79-91). Ele conclui que os argumentos de Newton contra Ptolomeu são “superficiais” e “injustificados”.

Mais recentemente, Oscar Sheynin discutiu as acusações de Newton um tanto extensamente, argumentando que a razão de as observações de Ptolomeu concordarem tão bem com a teoria dele é, não que ele tenha forjado as observações, e sim que ele selecionou as observações que melhor se ajustavam à sua teoria. Embora este tipo de seletividade de dados não seja permitido na ciência de hoje, isso era muito comum nos tempos antigos. Por esta razão Sheynin declara que Ptolomeu não pode ser considerado como uma fraude. – O. Sheynin, “O Tratamento das Observações na Astronomia Antiga”, em C. Truesdell (ed.), Arquivo de História das Ciências Exatas, Vol. 46:2, 1993, págs. 153-192.

Em resumo, parece haver pelo menos alguma evidência em apoio das alegações de que Cláudio Ptolomeu foi “fraudulento” na forma como ele manuseou suas observações, quer por “arranjar” os valores, quer por selecionar aqueles que melhor se ajustaram à sua teoria. No entanto, poucos eruditos iriam tão longe como R. R. Newton, que descartou Ptolomeu totalmente, como uma fraude. Conforme observa o Dr. James Evans “bem poucos historiadores da astronomia aceitaram as conclusões de Newton em sua inteireza.” – Revista de História da Astronomia, Vol. 24, Partes ½, fevereiro / maio de 1993, págs. 145-146.

R. R. Newton e o “Cânon de Ptolomeu”

Em uma resenha do livro de Newton, O Crime de Cláudio Ptolomeu, publicado na revista Scientific American de outubro de 1977, págs. 79-81, afirmou-se que “A falsificação de Ptolomeu pode ter ido até o ponto de inventar a duração de reinados de reis babilônicos.” Esta foi uma referência ao chamado “Cânon de Ptolomeu”, que Newton na época acreditava erroneamente que tinha sido composto por Cláudio Ptolomeu e, portanto, pode ter sido afetado pela “falsificação” dele. Essa declaração foi rapidamente captada e publicada na revista A Sentinela (15 de março de 1978, pág. 11). Na página 375 de O Crime de Cláudio Ptolomeu, Newton escreveu também: “Conclui-se que a lista de reis de Ptolomeu é inútil para o estudo da cronologia, e ela deve ser ignorada. O que é pior, grande parte da cronologia babilônica baseia-se na lista de reis de Ptolomeu. Toda a cronologia relevante deve agora ser revisada e qualquer dependência da lista de Ptolomeu deve ser eliminada.”

Newton não estava ciente do fato de que o “Cânon de Ptolomeu” não foi composto por Cláudio Ptolomeu. Ele não era um historiador e não era um perito em cronologia babilônica. Em seu trabalho, ele admitiu também que não estudou outras fontes, além de Ptolomeu para os anos anteriores a Nabucodonosor. (O Crime de Cláudio Ptolomeu, pág. 375) Ele explica que seus pensamentos sobre as relações entre a cronologia e a obra de Cláudio Ptolomeu foram influenciados por certo Sr. Philip G. Couture de Santee, Califórnia. No Prefácio de seu livro ele afirmou: “Agradeço ao Sr. Philip G. Couture, de Santee, Califórnia, pois a correspondência com ele me levou a compreender algumas relações entre a cronologia e a obra de Ptolomeu.” (O Crime de Cláudio Ptolomeu, pág. XIV) O mesmo Sr. Couture também induziu o Dr. Newton a rejeitar o Cânon Epônimo Assírio em sua obra, A Aceleração da Lua e Suas Origens Físicas. (Veja o Vol. 1, 1979, pág. 189 em inglês).

O que Newton provavelmente não sabia era que o Sr. Couture era e ainda é uma das Testemunhas de Jeová, e que alguns dos argumentos cronológicos que ele transmitiu a Newton foram retirados do dicionário bíblico da Torre de Vigia, intitulado Ajuda ao Entendimento da Bíblia. Estes argumentos não só se destinavam a apoiar a cronologia da Torre de Vigia, como também são comprovadamente insustentáveis!

Correspondência com R. R. Newton

Em 1978, o ano seguinte ao da publicação de O Crime de Cláudio Ptolomeu, eu mantive alguma correspondência com o Professor Newton. Numa carta de 27 de junho de 1978, enviei a ele um breve estudo que eu havia preparado, no qual o chamado “Cânon de Ptolomeu” foi comparado com fontes cuneiformes anteriores. Este estudo demonstrou brevemente que todos os reinados dos reis da Babilônia apresentados no Cânon, de Nabonassar (747-734 AC) a Nabonido (555-539 AC), estavam em completo acordo com estas fontes mais antigas. (Este estudo foi posteriormente ampliado e publicado num periódico britânico de estudos interdisciplinares, o fórum britânico para a discussão das teorias sobre catástrofes de Immanuel Velikovsky e outros: Chronology & Catastrofism Review, Vol. IX, 1987, págs. 14-23) Perguntei ao Professor Newton: “Como é possível que os dados astronômicos de Ptolomeu estejam errados, e a lista de reis, aos quais eles estão associados esteja correta?”

Em sua resposta, com data de 11 agosto de 1978, Newton disse: “Eu não estou propenso a acreditar que a lista de reis de Ptolomeu seja precisa antes de Nabopolassar [= antes de 625 AC], embora eu tenha grande confiança de que ela é bastante precisa para Nabopolassar e os reis posteriores.” Ele também salientou: “O ponto básico é que Ptolomeu calculou as circunstâncias dos eclipses na Syntaxis de suas teorias, e daí ele fingiu que seus valores calculados eram os valores que haviam sido observados em Babilônia. Suas teorias são precisas o bastante para dar o dia correto de um eclipse, mas ele errou na hora e na magnitude.

Assim os “ajustes” que Ptolomeu fez nas observações do eclipse eram pequenas demais para afetar o ano, o mês e o dia de um eclipse. Apenas a hora e a magnitude foram afetadas. De modo que os supostos “ajustes” de Ptolomeu dos registros dos antigos eclipses babilônicos, então, não mudaram as datas AEC que tinham sido estabelecidas por estas observações. Esses ajustes não alteraram a cronologia! Além disso, o professor Newton estava convencido de que a lista de reis era precisa de Nabopolassar em diante. Em outras palavras, ele estava convencido de que toda a cronologia neobabilônica de Nabopolassar até Nabonido (625-539 AC) era correta! Por quê?

O motivo foi que Newton havia feito um estudo muito aprofundado de alguns dentre os antigos registros astronômicos babilônicos que eram independentes do “Cânon de Ptolomeu”, incluindo os dois textos cuneiformes astronômicos designadas como VAT 4956 e Strm. Kambys. 400. Com base em seu exame desses dois registros, ele tinha estabelecido que o primeiro texto se refere ao ano de 568/67 AC e o segundo a 523 AC. Ele concluiu: “Assim, temos uma confirmação muito forte que a lista de Ptolomeu está correta para Nabucodonosor, e uma confirmação razoável para Cambises.” (O Crime de Cláudio Ptolomeu, 1977, pág. 375 em inglês). Estes resultados foram ainda mais enfatizados em seu trabalho seguinte, A Aceleração da Lua e Suas Origens Físicas, Vol. 1, publicado em 1979, onde ele conclui na página 49: “O primeiro ano de Nabucodonosor, portanto, começou em -603 [= 604 AC], e isso está de acordo com a lista de Ptolomeu.”

Portanto, citar algumas declarações de R. R. Newton numa tentativa de minar a cronologia estabelecida para a era neobabilônica seria citá-lo fora do contexto. Equivale a deturpar as opiniões e esconder as conclusões dele. Isso seria uma fraude. No entanto, isso tem sido repetidamente feito pela organização Torre de Vigia e por alguns defensores de sua cronologia. Mas as descobertas de Newton refutam esta cronologia e provam que ela é falsa.

Resumo

Se Ptolomeu falsificou suas próprias observações, e talvez também algumas feitas por astrônomos anteriores, é irrelevante para o estudo da cronologia neobabilônica. Hoje, esta cronologia não se baseia nas observações registradas por Ptolomeu em seu Almagesto.

Além disso, a alegação de que Ptolomeu pode ter “inventado” os períodos de reinado no “Cânon de Ptolomeu” baseia-se no conceito equivocado de que esta lista de reis foi composta por Cláudio Ptolomeu. Como é demonstrado nas páginas 94-96 da terceira edição de Os Tempos dos Gentios Reconsiderados (e também brevemente na segunda edição), a designação “Cânon de Ptolomeu” é “imprópria” (Otto Neugebauer), pois esta lista de reis, segundo Eduard Meyer, Franz X. Kugler e outros tinham sido usada pelos astrônomos de Alexandria por séculos antes da época de Cláudio Ptolomeu, e ela tinha sido transmitido e mantido atualizado geração após geração de eruditos.

Finalmente, a alegação de que essa lista de reis é hoje a base ou fonte principal para a cronologia neobabilônica, é falsa. Os que fazem essa afirmação são ignorantes ou desonestos. A verdade é que a lista de reis não é necessária hoje para estabelecer a cronologia dessa época, embora seus números para os reinados dos reis neobabilônicos sejam apoiados por pelo menos 14 linhas de evidência independentes baseadas em documentos cuneiformes, como é demonstrado no livro Os Tempos dos Gentios Reconsiderados

Acréscimo em 2003

Os eruditos modernos que examinaram detalhadamente o Cânon de Ptolomeu (chamado mais corretamente de “Cânon Real”) concordam que a lista de reis provou ser confiável do princípio ao fim. Isso é enfatizado, por exemplo, pelo Dr. Leo Depuydt em seu artigo, “Mais Valioso do Que Todo o Ouro: O Cânon Real de Ptolomeu e a Cronologia Babilônica”, publicado na Revista de Estudos Cuneiformes, Vol. 47, 1995, págs. 97-117. Depois, Leo Depuydt escreveu outro artigo no qual ele considerou a confiabilidade do Cânon de Ptolomeu, “A Mudança de Base da Cronologia Antiga”, que foi publicado nos Atos da Associação Europeia de ArqueólogosVIII Encontro.

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