Nenhuma religião verdadeira na terra até 1919? – O conceito dos líderes das Testemunhas de Jeová sobre a história da igreja

De acordo com o ensinamento da Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, nenhuma comunidade visível e organizada de cristãos fiéis existiu na terra por muitos séculos antes do surgimento da religião das Testemunhas de Jeová em 1919. Na opinião deles, logo após a morte dos apóstolos do primeiro século, uma “apostasia” efetivamente dizimou a religião cristã organizada que existia. Por cerca de dezoito séculos, não houve religião cristã verdadeira na terra. Havia apenas indivíduos isolados ou, na melhor das hipóteses, pequenos grupos desorganizados de indivíduos que eram verdadeiros cristãos vivendo em uma espécie de cativeiro espiritual.

O ensino da liderança das Testemunhas de Jeová

Já por muito tempo as Testemunhas de Jeová aprendem de sua liderança que a “apostasia” tinha começado durante o primeiro século e daí corrompeu radicalmente o Cristianismo depois que os apóstolos morreram:

Por mais de 60 anos, os apóstolos haviam ‘agido como restrição’, empenhando-se em impedir a onda de apostasia. (2 Tes. 2:7; 2 João 9, 10) Mas, quando a congregação cristã estava para entrar no segundo século, morreu o último apóstolo sobrevivente, João, por volta de 100 EC. A apostasia que aos poucos começara a se infiltrar na congregação estava então a ponto de irromper irrestritamente, com repercussões devastadoras em termos de organização e doutrina…Depois do primeiro século, a predita apostasia desenvolveu-se sem restrições. (Atos 20:29, 30; 2 Tes. 2:7-12) Por muitos séculos, a lâmpada do genuíno cristianismo teve bem pouco brilho. (Compare com Mateus 5:14-16.)

Livro Testemunhas de Jeová – Proclamadores do Reino de Deus (Watchtower, 1993), págs, 34-35, 705, 706.

Os líderes da organização ensinam que não havia qualquer verdadeira igreja cristã na terra no início do século vinte. “É óbvio que, quando o tempo do fim começou em 1914, nenhuma das igrejas da cristandade estava à altura dessas normas bíblicas para a única genuína congregação cristã.” (Proclamadores, pág. 706) Só as Testemunhas de Jeová surgiram como a única religião verdadeira. “Sua história moderna… mostra que, não só em base individual, mas também como organização, elas satisfazem os requisitos” (Proclamadores, pág. 709)

O estabelecimento formal desta “organização” como a única religião verdadeira é datada como tendo ocorrido em 1919. Um artigo publicado em 2014 apresenta a posição da liderança:

Jesus contou a ilustração do trigo e do joio para dizer que a apostasia tornaria difícil identificar a religião verdadeira… A “terminação do sistema” começou em 1914. Naquele tempo, havia apenas uns 5 mil cristãos ungidos na Terra. Durante a guerra que começou naquele ano, esses ungidos “filhos do reino” ainda não tinham se libertado de Babilônia, a Grande, ou seja, da religião falsa. Mas, em 1919, Jeová os libertou, e a diferença entre esses cristãos verdadeiros e os cristãos falsos ficou bem clara. Ele ajuntou “os filhos do reino” como povo organizado,…

– ‘Agora Vocês São Povo de Deus’, Revista A Sentinela (Edição Fácil de Ler), 15 de novembro de 2014, pág. 30.

Um artigo da revista A Sentinela de 2016 entra em detalhes significativos sobre este assunto. Descreve a apostasia como um período em que “o povo de Deus ficou sob o cativeiro de Babilônia, a Grande”, um “período em que havia muito mais apóstatas do que cristãos verdadeiros. A congregação cristã ficou, por assim dizer, presa a Babilônia, a Grande. Esse cativeiro começou em algum ponto depois do ano 100 EC e continuou até o templo espiritual ser purificado no tempo do fim.” Uma “obra de restauração espiritual” começou gradualmente “nos séculos que antecederam o tempo do fim.” Em seguida o artigo afirma que a restauração foi realizada de maneira mais completa na religião das Testemunhas de Jeová:

Então, perto do fim dos anos 1800, Charles Taze Russell e outros que o ajudavam se esforçaram muito para restaurar as verdades da Bíblia. Era como se carne e pele tivessem começado a cobrir esqueletos. A revista Zion’s Watch Tower (A Torre de Vigia de Sião) e outras publicações ajudaram os sinceros a descobrir verdades espirituais. Mais tarde, outras ajudas fortaleceram o povo de Deus como, por exemplo, o “Fotodrama da Criação”, em 1914, e o livro The Finished Mystery (O Mistério Consumado), em 1917. Por fim, em 1919, o povo de Deus recebeu vida em sentido espiritual e foi estabelecido na sua nova terra espiritual. Com o tempo, o restante ungido passou a ter o apoio de um novo grupo, os que têm a esperança de viver na Terra. Assim, eles se tornaram “um exército extremamente grande”.

– “Perguntas dos Leitores” Revista A Sentinela (Edição de Estudo), março de 2016, págs. 30, 31.

A história tendenciosa

O ensino da liderança das Testemunhas de Jeová sobre a história do Cristianismo precisa ser examinado criticamente. Essencialmente, o que eles fizeram foi partir da suposição de que a religião deles é a única verdadeira e daí julgam todas as expressões do Cristianismo com base nisso. ‘A verdadeira religião’, dizem eles, ‘deve satisfazer A, B, C, D e E; nenhuma religião do segundo século até o início do século vinte satisfez todos estes requisitos; portanto, não houve religião verdadeira durante aqueles dezoito séculos. Mas agora nós, as Testemunhas de Jeová, cumprimos A, B, C, D e E; portanto, somos a verdadeira religião.’ No caso deles, esses “requisitos” de religião verdadeira incluem coisas tais como usar o nome de Jeová, abster-se de transfusões de sangue, feriados e outras coisas “pagãs”, neutralidade política e assim por diante. [Para uma visão geral da história das Testemunhas de Jeová em 1994, veja Robert M. Bowman Jr., Testemunhas de Jeová, Guia Zondervan de Cultos e Movimentos Religiosos (Grand Rapids: Zondervan, 1995), págs. 9-13 em inglês. A melhor história abrangente do movimento continua sendo M. James Penton, Apocalipse Adiado: A História das Testemunhas de Jeová, 3ª Ed. – Toronto: Editora da Universidade de Toronto, 2015.]

Outros grupos religiosos que afirmam ser o verdadeiro Cristianismo restaurado, porém, têm seus próprios critérios. Alguns argumentam que sinais e maravilhas ou manifestações espirituais são indicadores cruciais da fé restaurada; outros alegam que só eles são a verdadeira igreja porque têm profetas e apóstolos vivos para guiá-los; outros ainda afirmam que são o verdadeiro povo de Deus porque guardam o sábado e as festividades do Antigo Testamento. Todos esses grupos citam vários textos bíblicos que alegadamente comprovam que estes são os verdadeiros critérios da restauração. Eles também podem contar a história do Cristianismo de tal maneira que pareça que toda a história estava esperando que o grupo deles surgisse no cenário.

A alegação de que a religião verdadeira foi formalmente estabelecida como “um povo organizado” em 1919 não se deriva, como a liderança das Testemunhas de Jeová se esforça tanto para argumentar, de um estudo cuidadoso e objetivo da cronologia bíblica. A base da data é que em 1919 J. F. Rutherford e seus associados foram libertados da prisão e autorizados a assumir o controle da Sociedade Torre de Vigia. Charles Taze Russell, o fundador da religião, havia morrido em 1916, e uma luta pelo controle da organização se seguiu. Em junho de 1918, enquanto os Estados Unidos intensificavam seus esforços para terminar a Primeira Guerra Mundial, Rutherford e seis associados foram presos sob a acusação de atentado contra a segurança nacional (dos Estados Unidos). Porém, logo depois da guerra, eles foram libertados em março de 1919, e Rutherford logo voltou a liderar a Sociedade Torre de Vigia. Ele iniciou uma série de mudanças que por fim lhe deram o controle total da organização. Enquanto isso, muitos dos “Estudantes da Bíblia” (como as Testemunhas de Jeová eram originalmente chamadas) tinham começado a se separar da Torre de Vigia logo após a morte de Russell e muitos mais o fizeram quando Rutherford apertou seu controle sobre o movimento. [Muitos desses fatos estão incluídos, embora de maneira defensiva e menos do que sincera, no livro Testemunhas de Jeová – Proclamadores do Reino de Deus, já citado.] É por isso que se diz às Testemunhas de Jeová que a religião verdadeira tornou-se organizada em 1919, muito embora a “organização” tenha sido fundada em 1881, quando Russell iniciou a Sociedade Torre de Vigia de Tratados de Sião.

A resposta bíblica

A premissa chave em termos de interpretação da profecia bíblica para a data de 1919 é a doutrina da Torre de Vigia de que a “presença” espiritual de Cristo como o rei legal ou legítimo sobre toda a terra começou em 1914. Alega-se que os três anos e meio entre o fim de 1914 e o início ou meados de 1919 é o cumprimento da profecia em Apocalipse 11:2-3 de um período de 1.260 dias (42 meses ou três anos e meio) durante o qual a “cidade santa” (interpretada simbolicamente como uma referência à organização Torre de Vigia) foi “pisoteada” (os problemas organizacionais e legais de Rutherford e seus associados). Este período também foi supostamente um período de “inspeção” e “limpeza” do “templo” (referindo-se ao fato de que durante este período de 1914 a 1919 muitos Estudantes da Bíblia que se opunham a Rutherford saíram ou foram expulsos da organização), sendo Malaquias 3:1-3 apresentado como a prova bíblica disso. (Veja “Quem são as duas testemunhas mencionadas no capítulo 11 de Revelação?” – Perguntas dos Leitores, Revista A Sentinela de 15 de novembro de 2014.)

Existem muitos aspectos duvidosos nesta argumentação em prol da data de 1919 (sem se mencionar a data de 1914). Se alguém simplesmente ler Malaquias 3 e Apocalipse 11, dificilmente verá qualquer base para afirmar que estes trechos bíblicos estão apontando profeticamente para o estabelecimento do poder de Rutherford como presidente da Sociedade Torre de Vigia. [Para mais informações e análises sobre essas questões, consulte o artigo O Ano de 1919 e Seu Significado “Profético”].

A questão mais básica aqui é se a Bíblia ensina a doutrina de uma apostasia quase total, durando quase dois milênios, seguida por uma restauração do verdadeiro Cristianismo.

Uma premissa básica da doutrina das Testemunhas de Jeová de apostasia e restauração é a suposição de que a religião verdadeira é uma organização. Ao contrário do mal-entendido popular, Jesus Cristo não estabeleceu uma organização. Ele fundou sua igreja (Mateus 16:18), mas a igreja não é uma organização (embora ela possa se expressar em organizações). Jesus não criou qualquer hierarquia organizacional, não instituiu qualquer estrutura organizacional e não deixou qualquer modelo organizacional para outros seguirem. Ele não deu à igreja algum nome oficial (referindo-se a ela simplesmente como “minha igreja”). A igreja não é uma organização, mas uma comunidade de aliança — uma associação de pessoas que se reúnem publicamente sob os termos da “nova aliança” que Jesus Cristo fez entre Deus e a humanidade por meio de sua morte sacrificial na cruz.

As informações que temos no livro de Atos e no resto do Novo Testamento mostram que a igreja do primeiro século jamais teve um sistema organizacional formal e uniforme. Naturalmente, logo no início da igreja, os apóstolos desempenharam funções de liderança, primariamente como instrutores autorizados (Atos 2:42). A designação de deveres ministeriais específicos para outros crentes ocorria conforme surgia a necessidade e normalmente de maneira informal. A falta de qualquer organização formal “dirigindo” a igreja é especialmente clara no caso de Saulo de Tarso – mais conhecido como Paulo. Ele se tornou um apóstolo como resultado do Senhor Jesus aparecer a ele diretamente, com o grupo de apóstolos existentes não desempenhando qualquer papel no recebimento dessa comissão. Na verdade, os crentes em Jerusalém inicialmente estavam com medo de Saulo porque não acreditavam que ele fosse um deles (Atos 9:1-28). Saulo e Barnabé faziam parte do grupo de “profetas e instrutores” da igreja de Antioquia, que sob a orientação do Espírito os enviou em uma missão evangelística (Atos 13:1-3). Sabemos que esta missão não foi conduzida sob a direção da igreja de Jerusalém porque mais tarde a igreja de Antioquia enviou Paulo e Barnabé numa viagem a Jerusalém para defender o ministério aos gentios incircuncisos (Atos 15:1-2). Como o resto de Atos 15 deixa claro, a liderança da igreja de Jerusalém ainda não havia adotado uma posição sobre o assunto (veja Atos 15:6,7).

A liderança das Testemunhas de Jeová afirma que representa a organização de Deus na terra. O status das Testemunhas de Jeová como “um povo organizado” reconhecido por Deus como a verdadeira religião é datado como tendo começado em 1919, conforme documentado acima. Isto quer dizer que antes de 1919 não havia qualquer “povo organizado” que Deus aceitasse (embora a liderança da Torre de Vigia dê a entender que havia um pequeno número de indivíduos que eram aceitos pessoalmente  por Deus). A lógica da doutrina deles leva à conclusão de que Cristo criou uma organização no primeiro século que se tornou apóstata e, portanto, inaceitável, nenhuma religião cristã verdadeira existiu na terra por dezoito séculos, e daí a religião verdadeira foi restaurada em um povo recém-organizado que se originou dos “Estudantes da Bíblia” no início do século vinte.

Qualquer pessoa que pesquisar o Novo Testamento em busca de apoio para esse cenário de apostasia e restauração fará isso em vão. O Novo Testamento realmente fala de apostasia, um termo que significa “cair”. Todavia, em lugar algum se fala de uma apostasia total da religião, igreja ou organização cristã como a Torre de Vigia ensina. No Novo Testamento, apostasia é algo que indivíduos fazem, nunca algo que aconteceria com a igreja inteira. Isto fica claro até nos próprios trechos que as Testemunhas de Jeová citam para apoiar sua doutrina de uma apostasia organizacional completa.

Por exemplo, em Atos 20:29-30, o apóstolo Paulo advertiu sobre “lobos” que atacariam o “rebanho” do povo de Deus, mas dai imediatamente exortou os anciãos a ficarem de guarda pelo rebanho (20:31-32). Claramente, Paulo estava incentivando os anciãos a fazer o trabalho de pastores (v. 28) e proteger o rebanho dos lobos que viriam (v. 29). É por isso que se fala dos lobos: a função dos anciãos era servir como pastores do rebanho e proteger os membros do rebanho dos lobos. Se fosse inevitável que a igreja rapidamente se tornaria uma religião apóstata dirigida por lobos, a mensagem de Paulo não teria sido para guardar o rebanho, e sim para abandoná-lo! (Para mais informações, veja o artigo Atos 20:29, 30 – Ensina esse texto uma apostasia total da Igreja?)

Similarmente, Paulo escreveu a Timóteo: “O Espírito diz claramente que nos últimos tempos alguns abandonarão a fé” (1 Timóteo 4:1 NVI). Observe que ele disse que algumas pessoas na igreja cairiam, não todas elas e não a igreja como grupo. Este é o ensino consistente do resto do Novo Testamento (Mat. 24:10-13; Marcos 4:16-20; Heb. 6:4-10; 2 Pedro 2:1, 2; 3:1, 14-18; 1 João 2:18-27; Apo. 2-3).

O Novo Testamento não só dá avisos de apostasia parcial de algumas ou muitas pessoas e nunca de toda a igreja, como também deixa claro que a igreja continuaria a existir na terra até o retorno de Cristo.

“E eu lhe digo que você é Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do Hades não poderão vencê-la.” (Mt. 16:18 NVI).

A expressão de Jesus “as portas do Hades” ecoa expressões semelhantes do Antigo Testamento e é uma metáfora para a morte (Jó 17:16; 38:17; Salmo 9:13; 107:18; Isaías 38:10). Seu significado, então, é que a morte não prevaleceria ou venceria a igreja – em outras palavras, que a igreja nunca morreria. Mateus confirma esse entendimento das palavras de Jesus quando relata que depois de sua ressurreição, Jesus fez a seguinte promessa aos seus discípulos:

“Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que eu lhes ordenei. E eu estarei sempre com vocês, até o fim dos tempos” (Mateus 28:19,20 NVI)

Aqui, o Senhor Jesus anuncia que seus discípulos iniciariam um processo de fazer discípulos de todas as nações do mundo, um processo que continuará com o apoio e a presença de Cristo “até o fim dos tempos”. Jesus não só não prevê algum hiato de dezoito séculos neste processo, como a promessa dele afirma explicitamente que ele estaria com seus discípulos “sempre” até que a tarefa de evangelizar as nações esteja completa e o fim dos tempos chegue. As Testemunhas de Jeová não podem negar razoavelmente que Jesus está falando da igreja aqui, porque os discípulos devem se engajar em pregar o evangelho, batizar pessoas e ensiná-las a obedecer a seus mandamentos, funções que vão além das ações particulares de indivíduos isolados. Por isso, as palavras de Jesus neste trecho da Grande Comissão levam claramente à conclusão de que a igreja continuaria a existir até o fim dos tempos, quando Cristo retornar.

Assim, a igreja nunca deixou de existir depois que Cristo a estabeleceu no primeiro século. As heresias vêm, vão e vêm novamente, pessoas têm se afastado da fé, e muitos professos cristãos são cristãos só de nome, não produzindo qualquer fruto e não mostrando evidência alguma de sua suposta fé. A igreja, porém, jamais deixou de existir. Cristo sempre teve seus discípulos fiéis, aqueles representados pela terra fértil em sua parábola dos quatro tipos de solo, aqueles que arriscaram a vida se necessário para fazer discípulos.

[Imagem: Joseph Franklin Rutherford, o segundo presidente da Sociedade Torre de Vigia (EUA)]

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