A “Vida Após a Morte” no Conceito Bíblico – Parte 3

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Onsterfelijkheid of Opstanding (Imortalidade ou Ressurreição), Gerardus van der Leeuw, Van Gorcum & Comp, Assen, Holanda, 1933, págs. 20, 30, 32, 36:

A imortalidade [inata] é uma concepção que se encaixa na filosofia do panteísmo. À morte diz respeito, não a imortalidade, e sim a Ressurreição.

A igreja – não importa o quão helenizada ela possa ser na doutrina e prática – sempre manteve a ressurreição do corpo… O corpo morre, a morte não está sendo negada de maneira alguma. Mesmo o Espírito, a alma que eu sou, não existiráA alma também morrerá. Mas toda a vida do homem será renovada por Deus. Deus me levantará “no último dia.”

Muitos pregadores de tempos recentes são bem hesitantes em pregar sobre a imortalidade. Mas, em dias anteriores, quando pregavam sobre a vida eterna, era sem esforço que davam asas a imaginações de um corpo corruptível e uma alma imortal. Os mais antigos livros devocionais e hinários de igreja estão repletos disso. Mesmo agora as pessoas nas casas de luto e nos cemitérios estão sendo consoladas pelas mesmas fontes – ainda assim estas representações não são cristãs sob aspecto algume sim puramente gregas e contrárias à essência da fé cristã.

Somente Deus é imortal (1 Tim. 6:16). Ao homem Ele fez a promessa da ressurreição… A Criação será mudada para a recriação. E recriação é ressurreição, um levantamento por Deus.

A Man in Christ: the Vital Elements of St. Paul’s Religion [Um Homem em Cristo: Os Elementos Vitais da Religião de S. Paulo], James Stuart Stewart, Harper & Row – Publishers, Nova Iorque, EUA, 1935. (A capa acima é de uma edição de 2002), pág. 267:

Ora, para as mentes gregas, o inteiro conceito de uma ressurreição era estranho, novo e intrigante. A primeira reação natural de um grego diante da nova ideia seria perguntar, “Com que corpo eles vêm?” A filosofia ensinara aos gregos a crer em uma imortalidade puramente espiritual, sem um corpo de qualquer tipo. Os sábios consideravam o corpo como um túmulo no qual o espírito vivo estava sepultado. σῶμα σῆμα [“o corpo é o túmulo”], eles costumavam dizer. A morte era o escape da alma aprisionada. Mas Paulo não pôde conceber desse modo um reino de espíritos desencarnados. Para ele, a simples ideia teria sido repulsiva: testifica a seriedade de seu desejo de ‘não ser encontrado nu’ após a morte, e sim ‘revestido de nossa habitação que é do céu.’ É claro que o verdadeiro ponto em questão, conforme Paulo viu bem claramente, era a continuação da identidade pessoal. Algum tipo de corpo deveria existir, se a individualidade essencial da alma haveria de sobreviver.

Agape and Eros [Ágape e Eros], Anders Theodor Samuel Nygren, um tratado publicado originalmente em sueco em dois volumes em 1930 e 1936. Traduzido para o inglês em volume único por Philip S. Watson, em 1953 (a capa acima é da edição de 1969), págs. 224 e 225 (da edição em inglês):

Quando Platão fala da alma, a ideia da imortalidade da alma está sempre presente. A imortalidade é um dom natural da alma, que sugere sua origem divina. Tudo o que é preciso é que a alma se purifique e se liberte da escravidão aos sentidos, para retornar à sua origem divina. A vida de imortalidade divina é sua condição normal. Esta ideia da imortalidade natural da alma é completamente alheia ao motivo Ágape. Em vez disso, encontramos uma crença na ressurreição dos mortos. No curso da história estas duas – a crença na imortalidade da alma e a crença na ressurreição dos mortos – têm sido constantemente misturadas; embora na verdade elas pertençam a dois mundos religiosos e éticos opostos. Onde quer que a imortalidade natural da alma se torne o dogma religioso fundamental, podemos estar certos de que estamos dentro da esfera de Eros. Mas onde o motivo Ágape é dominante, ele se expressa regularmente na crença na ressurreição dos mortos. Se a participação na vida eterna de Deus é possível para o homem, a possibilidade não se baseia em qualquer qualidade ou dom natural do homemmas única e exclusivamente em um ato poderoso de Deus. Assim como é Deus quem torna o pecador justo, é Deus quem faz os mortos viverem. A ressurreição é a assinatura do Ágape Divino. Ela não tem nada que ver com o contraste entre a alma e o corpo, como se uma parte do ser do homem fosse de natureza divina e imortal, enquanto a outra fosse impura e perecível. A morte é o julgamento de Deus sobre a vida humana em sua totalidade, e a ressurreição é a renovação da vida humana, da mesma maneira em sua totalidade, através do amor de Deus.

Oliver Chase Quick, Doctrines of the Creed – Their Basis in the Scripture and Their Meanings Today (As Doutrinas do Credo – Suas Bases nas Escrituras e Seus Significados na Atualidade), Nova Iorque, EUA, 1938, págs. 264-266. (A capa acima é de uma edição de 1963):

3. O ENSINO DA BÍBLIA SOBRE A VIDA APÓS A MORTE

Uma vez esclarecida essa distinção, voltemos ao ensino da Bíblia. Sua característica mais óbvia talvez seja a falta de informações positivas sobre o que acontece com a alma humana quando o corpo morre. De fato, no Antigo Testamento existem muitos trechos que negam categoricamente que a alma humana continue após a morte em qualquer vida que valha a pena ter. E mesmo o Novo Testamento, por toda a ênfase na gloriosa esperança da ressurreição, não dá qualquer tipo de resposta às perguntas feitas pelos que estão interessados em espiritualismo ou no que é comumente chamado de “pesquisa psíquica”.

Por que existe, a princípio, tanta negação e, afinal, tão pouca informação na Bíblia? A questão tem deixado perplexos os cristãos sinceros que anseiam por algum conhecimento definitivo sobre a condição dos entes queridos falecidos.

… Do princípio ao fim, a Bíblia está primariamente preocupada em ensinar-nos que nossa fé e esperança devem estar em Deus, que ela é no Reino de Deus, não é na sobrevivência pessoal e em suas fases e circunstâncias particulares, que nossos objetivos e afetos devem se basear.

Já no Antigo Testamento, é bem significativo que, quando os salmistas negam explicitamente qualquer valor à vida do espírito falecido, eles imediatamente passam a declarar que, exatamente por esse motivo, sua esperança está mais firmemente ancorada em Deus. Parece haver boa razão para pensar que o quadro do Seol como uma prisão para espectros insubstanciais, uma imagem que representa a crença ortodoxa de Israel antes do cativeiro, foi originalmente destinada a desencorajar um falso espiritismo ou culto a espíritos que afastariam os homens da adoração de Jeová. Era aos videntes e profetas de Jeová, não às bruxas e feiticeiros que professavam ressuscitar os fantasmas dos mortos que o israelita fiel deveria se dirigir em busca de orientação. Foi quando Saul não conseguiu resposta de Deus por meio de profetas, sonhos ou divinação que ele se voltou em desespero para a feiticeira de Endor. Só depois do cativeiro, quando a idolatria e a necromancia deixaram de ser perigos, encontramos uma nova esperança do pós vida tomando forma vagamente na mente hebraica. E esta nova esperança se baseia inteiramente na presença e no poder onipresentes de Jeová. Finalmente, desponta a fé de que nunca e em nenhum lugar do universo os fiéis podem ser “cortados da mão de Deus”, nem mesmo pela morte ou pelas trancas do próprio Seol. “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo.”

No Novo Testamento, a resposta de Cristo a seus questionadores saduceus segue a mesma linha de ensino. Que há vida além do túmulo, ele diz a eles, foi provado quando Deus disse a Moisés: “Eu sou o Deus de Abraão, Isaque e Jacó”; pois Deus não é o Deus dos mortos, mas de vivos. Em outras palavras, um homem tem vida permanente, na medida em que o Jeová vivente é realmente seu Deus. Para os servos fiéis de Deus, portanto, não pode haver prisão ou existência vazia entre as sombras. Pois “os portões do Hades” (ou as cadeias do Seol) não prevalecem contra a vida e a comunhão da própria eclesia de Deus. Essa é a grande conclusão a que a Bíblia chega. A imortalidade do homem é um presente do Deus vivo que vence a morte. Disso a Bíblia nos assegura; mas ela não responde às nossas perguntas sobre o que acontece com a alma quando o corpo morre. E seria difícil citar qualquer texto fora dos apócrifos que sugira que a alma do homem seja imortal por conta de sua própria natureza criada.

‘Dogmernas Insida’, Herdabrev till Vasterds stift [No Interior dos Dogmas, Carta Pastoral à Diocese de Västerås], John Olof Cullberg,1940:

A natureza do homem não é responsável pela crença na ressurreição, mas apenas o poder criativo do amor de Deus nos dá a garantia de uma vida após a morte. Não há nada em mim que mereça sobreviver à morte. Em si mesma, a minha alma é tão mortal como meu corpo. Mas a vida eterna, a qual Deus pode criar aqui mesmo em meu coração, envolve a promessa de uma existência nova, pessoal, que não conhece a morte e a corrupção, uma vida em comunhão eterna com Deus e com aqueles a quem o Seu amor incomensurável salvou. Assim também ressoa a fé na ressurreição nas palavras apostólicas: “Pois estou certo de que nem a morte, nem a vida… será capaz de nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor.”

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The Doctrine of Our Redemption [A Doutrina de Nossa Redenção], Nathaniel Micklem, Taylor & Francis, Londres, 1943, págs. 78, 79 (A capa acima é da edição de 1960):

A imortalidade da alma é uma doutrina grega; ela não é bíblicaOs hebreus e os cristãos falavam sobre a ressurreição. Essa é a linguagem, não de sobrevivência, mas de vitória… Pessoas irrefletidas frequentemente supõem que sobreviverão à morte e esperam que, fazendo isso, encontrarão a existência um tanto menos difícil no além-túmulo… Estamos aptos a argumentar que a ressurreição de Cristo, se pudermos crer nela, assegura-nos de nossa própria sobrevivência. Mas isso é enxergar na ressurreição de Cristo pouco mais do que o retorno de Lázaro do túmulo. Isto é muito inferior à convicção triunfante da igreja primitiva de que Cristo tinha conquistado a vitória, não só sobre a morte física, mas também sobre o pecado, o desespero e todo tipo de escravidão espiritual.

The Distinctive Ideas of the Old Testament [As Ideias Distintivas do Antigo Testamento], Norman Henry Snaith, Epworth Press, Londres, Inglaterra, 1944, págs. 9, 89, 146-148, 159-161, 183-185. (A capa acima é da edição de 1983):

Estas [as ideias distintivas da religião do Antigo Testamento] são diferentes das ideias de qualquer outra religião. Em particular, elas são bem distintas das ideias da religião grega. Em particular, elas são bem distintas das ideias dos pensadores gregos. O alvo da religião hebraica era Da’ath Elohim (o Conhecimento de Deus); o alvo do pensamento grego era Gnothi seauton (Conheça a ti mesmo). Entre estes dois objetivos há um grande abismo. Não vemos como possa haver qualquer harmonia entre eles. Eles são fundamentalmente diferentes na premissa a priori, no método de abordagem e na conclusão final.

O cristianismo tradicional tem procurado encontrar um meio termo, combinar Sião e a Grécia no que se defende ser uma síntese harmoniosa. O Novo Testamento tem sido interpretado de acordo com Platão e Aristóteles, e as ideias distintivas do Antigo Testamento foram deixadas de lado. Aqui está a causa da negligência moderna do Antigo Testamento. A “justiça” de Aristóteles substituiu a “justiça” do Antigo Testamento. O logos spermatikos dos estoicos suplantou amplamente o Espírito Santo. A doutrina inteiramente não bíblica da imortalidade da alma humana é amplamente aceita como uma doutrina cristã típica. Platão é de fato ‘divino’, e Aristóteles ‘o mestre daqueles que sabem’…

Encontramos apenas dois trechos [bíblicos] que falam de uma ressurreição à vida além do túmulo, e absolutamente nenhum que fale sobre alguma imortalidade da alma, que não é uma ideia bíblica de maneira alguma. Um trecho é Isaías 26:19, onde os mortos israelitas deverão se levantar do pó e viver. Isso está no trecho de Isaías 24-26, provavelmente do início do terceiro século A.C., na época das rivalidades dos ptolemaicos com os selêucidas na Palestina. O outro é Daniel 12:2 (primeira metade do século II AC), onde lemos sobre uma ‘ressurreição geral’ parcial, ‘alguns para a vida eterna, e alguns para vergonha e desprezo eterno’.

‘Ruach’ [espírito] como um termo psicológico para denotar a disposição dominante.

A ideia de poder envolvida na palavra ruach [espírito] está englobada no que hoje chamaríamos de psicologia, para denotar o impulso ou disposição dominante de um indivíduo. Por exemplo, Gênesis 26:35 afirma que as duas esposas hititas de Esaú eram uma “amargura de espírito” (morath ruach) para Isaque e Rebeca …

A ideia de ruach como aquilo que impera em um homem ocasionando-lhe uma determinada linha de ação é vista na frase, “vou incitar o espírito de…” Esta frase é pós-exílica, sendo encontrada três vezes em Ageu 1:14; quatro vezes no cronista, 1 Crônicas 5:26; 2 Crônicas 21:16, 36:22, com seu equivalente Esdras 1:1… As referências restantes ao “espírito de um homem” serão encontradas no Eclesiastes. Elas são 6:9, 10:4; e na comparação entre o espírito de um homem e o espírito de um animal, 3:18-21. Neste último caso, o espírito é considerado como sendo o centro de vida do corpo, intimamente aliado à “alma” no sentido em que os que acreditam na imortalidade da alma usam a palavra.

Este último uso de ruach como o espírito do ser vivo torna a palavra praticamente um sinônimo de nephesh, a alma-fôlego. Deus forma este ruach no homem, Zacarias 12:1; preserva-o, Jó 10:12; e ele [o espírito] retorna a Ele na morte, Eclesiastes 12:7. Em Isaías 26:9 ruach é exatamente paralelo com nephesh, e assim também em Jó 7:2. Há ao todo uns de vinte e cinco casos, onde ruach é equivalente a nephesh.1 Porém, tornar nephesh o equivalente geral de ruach por conta disso é mostrar uma completa falta de entendimento do significado próprio de ambas as palavras. Tal equação é errada e não pode conduzir a nada a não ser erro e confusão. Só nos casos em que o sentido da palavra ruach se aproxima da margem mais externa do âmbito de seu significado é que a palavra entra em contato com o âmbito de ideias representado por nephesh. Tais instâncias são incomuns. Isso só acontece quando o ruach como poder dominante no homem vem a significar o próprio homem como uma entidade determinante e ativa, e quando ao mesmo tempo nephesh passa a significar a mesma coisa, sendo ela também estendida, desta vez ao seu significado mais verdadeiro, daquilo que faz a diferença entre os vivos e os mortos.

[NOTA:] 1) O significado principal de nephesh deve ser visto em Gênesis 2:7: “Jeová Elohim formou o homem, do pó da terra, e soprou nas suas narinas o fôlego de vida (neshamah), e o homem tornou-se vivo (nephesh).” É isso o que faz a diferença entre um ser vivo e um morto

A Septuaginta é a Ponte entre os Dois Testamentos

A abordagem geralmente aceita para o Novo Testamento é insistir em primeiro lugar que o Novo Testamento está escrito no grego comum (Koiné) do período, e daí passar a interpretá-lo muito como qualquer outro livro helenístico. Isto deu margem a aramaismos, latinismos, e similares, pois o grego helenístico variava até esse ponto de lugar em lugar. Mas, principalmente, isto envolveu o estudo do grego helenístico nas inscrições, nos papiros e em escritores helenísticos como Políbio e Josefo. Não envolveu, de forma significativa, o estudo da Bíblia Grega, a Septuaginta, que durante 400 anos foi a Bíblia da Igreja Cristã.

Este procedimento foi crucial no que diz respeito à sintaxe e gramática, e um grande passo em direção à velha abordagem na qual o Novo Testamento grego foi comparado com o grego clássico, pesado na balança e achado deficiente. Estudar a gramática e a sintaxe da Septuaginta teria sido ainda mais inútil, já que a Septuaginta é em grande parte uma tradução grega. Mas negligenciar a Septuaginta do ponto de vista do significado das palavras foi sério. É cada vez mais claro, graças a estudos como o do Dr. C. H. Dodd, “A Bíblia e os Gregos” que deveria ter sido dada considerável atenção à maneira como os tradutores da Septuaginta verteram as palavras hebraicas. A palavra grega na Septuaginta tende a incorporar o significado da palavra hebraica original, e não o seu próprio significado como uma palavra grega normal. Em muitos casos, talvez na maioria deles, a negligência desta distinção é de pouca importância e não resulta em erro grave. Mas os casos em que isso faz muita diferença são precisamente aqueles casos em que estamos lidando com as ideias distintivas do Antigo Testamento. Estes são os únicos casos que importam… É essencial, principalmente se o termo em questão é uma palavra religiosa, começar com a Septuaginta, e perceber até que ponto a Septuaginta usou a palavra como o equivalente da palavra hebraica original, daí observar até que ponto o uso do Novo Testamento em qualquer escritor é abrangido por este uso da Septuaginta e, em seguida, examinar em que medida, como por exemplo em Paulo no caso de nomos-torah, o uso grego também está envolvido.

Até que ponto o grego da Septuaginta é realmente hebraico-grego não foi reconhecido no passado como deveria ter sido reconhecido. É particularmente assim, visto que o meio pelo qual as ideias do Antigo Testamento chegaram aos cristãos era grego em primeiro lugar. Somos da opinião de que esta negligência causou um dano incalculável. Isso começou muito cedo. A confusão aparece tão cedo quanto em Clemente de Alexandria e Orígenes, e decorreu do fato de que estes eruditos eram helenistas em primeiro lugar e cristãos em segundo. Foi promovido pelo fato de que todos os homens até Jerônimo tinham a tendência de ler a Bíblia grega como se fosse um livro grego, e com olhos helenísticos. Isto durou até o quinto século, e tanto eruditos como iletrados estavam igualmente em erro. Eles interpretaram as palavras como palavras gregas, como se o grego tivesse sido a língua original. Posteriormente isto foi feito durante séculos com a Bíblia Latina, e tem sido o destino da Bíblia em todas as línguas para as quais ela foi traduzida. O resultado disso foi que, desde muito cedo, o próprio cristianismo tendeu a sofrer de uma tradução afastada dos Profetas e em  direção a Platão. Mais tarde, o mestre foi Cícero, e com o Renascimento, Aristóteles. Platão foi realmente tornado ‘divino’, e Aristóteles ‘o mestre daqueles que sabem’. A tragédia da teologia cristã ao longo dos anos é a extensão em que essas afirmações são verdadeiras na questão de ‘conhecer a Cristo’. A Reforma foi uma tentativa de restaurar o cenário hebraico original do Evangelho e, teologicamente, quebrar os grilhões dos gregos. O reavivamento da erudição clássica [grega]  foi um novo aprisionamento da fé, ao qual muitos dos reformadores sucumbiram…

Geralmente há acordo que, em sua antítese entre pneuma (espírito) e sarx (carne), Paulo é dependente das ideias do Antigo Testamento, assim como também no caso de todo o conceito dele sobre a constituição do homem. Paulo estabelece um forte contraste entre as coisas de Deus e as coisas do homem. Nessa distinção ele é fiel à tradição do Antigo Testamento do ruach-adonai como aquele Poder de Deus que desce sobre um homem, muda seu coração e espírito, dá a ele nova vida e, na frase do Novo Testamento, faz dele um filho de Deus. Não nos propomos a entrar em uma discussão detalhada sobre o uso e significado do termo “Espírito Santo” nos escritos de Paulo, mas apenas com referência ao ponto específico da relação entre a “alma” (psique) e o pneuma (Espírito) do homem de um lado, e o Espírito de Deus do outro. Aqui principalmente, encontramos durante os séculos de interpretação cristã, uma marcante tendência de interpretar erroneamente o material paulino numa estrutura grega em vez de hebraica.

O Espírito do Homem

Paulo certamente usa a palavra pneuma falando do espírito de um homem, por exemplo em Romanos 1:9, “a quem sirvo em meu espírito…”, e Gálatas 6:18: “A graça de nosso Senhor Jesus Cristo esteja com o vosso espírito, irmãos.” Paralelo aos casos, e mais significativo, visto que estes dois casos se referem a homens convertidos, está 1 Coríntios 2:2: “Porque quem dentre os homens conhece as coisas de um homem, senão o espírito de um homem que está nele?” Orígenes sustentou que a palavra pneuma (espírito) aqui inclui tanto o intelecto como a consciência, mas é melhor não definir o significado preciso além de dizer que Paulo está se referindo ao poder controlador, diretivo no homem. Particularmente, consideramos lamentável que a consciência seja introduzida aqui, já que a consciência é uma faculdade humana, incluída na psyche (“alma”) e não no pneuma (“espírito”). Desprezamos, portanto, uma interpretação como “a inteira natureza intelectual e moral do homem”, uma vez que Paulo está pensando em termos do hebraico ruach (espírito) e não em termos do “ho entos anthropos” (o homem interior) de Platão.

O uso principal da palavra pneuma por Paulo como o espírito do homem está em contraste definitivo com o Espírito de Deus, sendo isto, como indicamos, uma herança do Antigo Testamento. A distinção é muito clara em 1 Coríntios 2. Aqui está o Espírito de Deus que revela a verdadeira sabedoria de Deus aos homens. Estas coisas de Deus são recebidas pelo homem  espiritual (pneumatikos), e não pelo homem “natural” (psychikos) – ou seja, não pelas faculdades humanas. O homem, como homem não pode saber essas coisas. Elas não estão dentro da esfera da “alma” (psyche). À base disso, é claro que Paulo não usa a palavra psyche no sentido homérico daquilo que sobrevive à morte ou no sentido dos filósofos gregos como alma imortal ou espírito do homem

Não encontramos essa abordagem dos gregos em nenhum lugar da Bíblia. Toda a Bíblia, o Novo Testamento, bem como o Antigo Testamento, baseia-se na atitude e abordagem hebraicas. Somos da firme opinião de que isso deveria ser mais reconhecido por todos. Está claro para nós, e esperamos ter deixado claro nestas páginas para outros, que existe muitas vezes uma grande diferença entre a teologia cristã e a teologia bíblica. Ao longo dos séculos, a Bíblia foi interpretada num contexto grego, e até mesmo o Novo Testamento foi interpretado com base em Platão e Aristóteles. Isto pode ser justificável, mas consideramos que aqueles que adotam esse método de interpretação deveriam perceber o que estão fazendo e deveriam deixar de sustentar que estão baseando sua teologia na Bíblia.

Joachim Jeremias, Die Gleichnisse Jesu [As Parábolas de Jesus] Zwingli Verlag, Lübbenau, Alemanha, 1947. O que segue foi extraído de The Parables of Jesus [As Parábolas de Jesus], Segunda Edição Revisada em inglês, SCM Press Ltd., New Jersey, EUA, 1972 (baseada na 8ª edição em alemão, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen, Alemanha, 1970), págs. 183-187:

Para entender a parábola [do Rico e Lázaro] em detalhes e como um todo, é essencial reconhecer que a primeira parte deriva de material folclórico bem conhecido que se refere à inversão da sorte na vida após a morte. Este é o conto popular egípcio da jornada de Si-Osiris, filho de Setme Chamois para o mundo inferior; que conclui com as palavras: “Aquele que foi bom na terra será abençoado no reino dos mortos; e aquele que foi mau na terra sofrerá no reino dos mortos.” Os judeus de Alexandria trouxeram essa estória para a Palestina, onde ela se tornou muito popular como a estória do escriba pobre e do coletor de impostos rico Bar Ma’jan. Que Jesus estava familiarizado com essa estória é provado pelo fato de que ele a usou na parábola do Grande Banquete (ver págs. 178 e seguintes [do livro].). Já relatamos lá o começo da estória: como o funeral do escriba não foi acompanhado, enquanto que o publicano foi sepultado com grande pompa. Aqui está o final da história. Um dos colegas do escriba pobre pôde ver em um sonho o destino dos dois homens no outro mundo: “Poucos dias depois, esse escriba viu seu colega em jardins de beleza paradisíaca, regados por correntes de água. Ele também viu Bar Ma’jan, o publicano, parado na margem de um riacho e tentando chegar à água, mas sem conseguir fazer isso. V.19: O homem rico, que não tinha necessidade de trabalhar, banqueteava-se todos os dias, vestido com um manto caro de lã roxa, com roupa de baixo de linho fino egípcio. A falta de ênfase em sua culpa, ainda que, conforme seu destino mostra, ele seja representado como um ímpio, explica-se pelo fato de que Jesus estava usando material que era bem conhecido de seus ouvintes. V.20: Lázaro é o único personagem nas parábolas a quem se dá um nome; o nome (Deus ajuda), portanto, tem um significado especial. Lázaro é um estropiado (ἐβέβλητο = reme = “derrubado, caído”), sofre de uma doença de pele (v. 21b). Como um mendigo (πτωχοῖς cf. João 13.29), ele tem o seu ponto na rua, no portão da mansão do rico, onde ele implora uma esmola dos transeuntes. V. 21: ἐπιθυμῶν com o infinitivo, em Lucas sempre indica um desejo não realizado: “ele ficaria contente (se pudesse) se saciar”… πίπτειν = nephal, o idioma semítico tende a evitar a voz passiva: “ser jogado”. Por isso, deve ser traduzido: “o que era jogado no chão pelos que se sentavam à mesa do rico”. Não devemos pensar naquilo ‘que caía da mesa do rico’ como “migalhas”, e sim como pedaços de pão que os convidados mergulhavam no prato, limpavam as mãos com eles e jogavam debaixo da mesa. Quão feliz ficaria Lázaro de saciar sua fome com eles. Os cães são cachorros rotos que perambulavam pela rua e não conseguiam deixar de farejar o mendigo desamparado e maltrapilho. De acordo com a perspectiva do judaísmo posterior, sua condição miserável indicaria que ele era um pecador que estava sendo punido por Deus. Portanto, a sequência deve ter sido totalmente inesperada para o público. V. 22: ς τὸν κόλπον ββαάμ é uma designação do lugar de honra no banquete celestial à direita do Pai Abraão (confira em João 13:23); este lugar de honra, o mais alto que se poderia esperar, indica que Lázaro ocupa o lugar mais alto na assembléia dos justos. Ele vivenciou uma reversão completa da sorte: na terra, ele via o homem rico sentado à sua mesa, agora ele mesmo tem o direito de se sentar à mesa festiva; na terra ele era desprezado, agora ele usufrui da mais alta honraria. Ele descobriu que Deus é o Deus dos mais pobres e destituídos… o funeral do homem rico foi, como mostra o material folclórico mencionado acima, um evento magnífico. Os versículos 22-31 não se ocupam do destino final, e sim da condição imediatamente após a morte. Isto é evidente com base em uma comparação com o conto popular no qual Jesus estava se baseando, e é confirmado pelo uso da palavra ᾅδῃς (v. 23); já que o Novo Testamento faz uma distinção nítida entre o estado intermediário de ᾅδῃς e o γεέννῃ final. Por isso, é o estado intermediário que está em discussão aqui. V. 23: É uma concepção comum do judaísmo posterior que os justos e os ímpios podem ver uns aos outros no estado intermediário. V. 24: O homem rico apela ao seu parentesco com Abraão, isto é, a sua parte (por direito de descendência) no mérito vicário de Abraão. Seu modesto pedido mostra quão terrível era a tortura dele: uma única gota de água em sua língua das fontes que fluem da morada dos justos seria um alívio de seu sofrimento. V. 25: O parentesco dele com Abraão foi reconhecido (τέκνον), mas não para dar-lhe direito à salvação. De acordo com o enunciado do versículo 25, pode parecer que a doutrina da retribuição exposta aqui é de aplicação puramente externa (na terra, riqueza, no além, tormento; na terra, pobreza, na próxima vida, alívio). Mas, independentemente da contradição no contexto (vv. 14 e seguintes), onde foi que Jesus sugeriu que a riqueza em si merece o inferno e que a pobreza em si é recompensada com o paraíso? O que o versículo 25 realmente diz é que a impiedade e a falta de amor são punidas e que a piedade e a humildade são recompensadas; isto é claramente mostrado pela comparação com o material folclórico usado por Jesus. Uma vez que o material era bem conhecido, Jesus apenas sugere, sem elaborar o cenário, a condição dos dois homens, por um lado, pelo uso do nome “Lázaro”, que significa “Deus ajuda”, veja o v. 20, e por outro lado pela oração nos vv. 27 e seguintes, nos quais o homem rico revela seu estado impenitente. V. 26: O “abismo” expressa a irrevogabilidade do julgamento de Deus; portanto, Jesus nada sabe de doutrina do purgatório. V. 27: πέμψῃς sugere uma aparição do morto Lázaro “talvez em um sonho ou em uma visão”. V. 28: Διαμαρτύρηται significando “adjurar” (isto é, com referência à retribuição após a morte). V. 31: Ἀναστῇ introduz o ponto final. Até então, era só uma questão de uma aparição do morto Lázaro, “talvez em um sonho ou uma visão”, agora surge realmente a ideia de sua ressurreição corporal. Mesmo uma maravilha tão grande, transcendendo todas as evidências diárias do poder de Deus, deixa indiferentes os homens que não ‘ouvirão Moisés e os Profetas’, ou seja, que não os obedecerão. A referência a “Moisés e os Profetas” como a substância da revelação (vv. 29, 31) é pré-ressurreição (isto também se aplica bem a Lucas 13,28); a expressão não exclui a obediência à revelação messiânica, mas, conforme mostra Lucas 24:27, 44, também a inclui, pois traz a revelação na Lei e nos Profetas ao seu cumprimento (Mat. 5.17).

A parábola é uma das quatro parábolas de “dois gumes”. O primeiro ponto diz respeito à inversão da sorte no pós-vida (vs. 19-26), o segundo (vs. 27-31) trata do pedido do rico a Abraão para que envie Lázaro aos seus cinco irmãos. Como a primeira parte é extraída de material folclórico bem conhecido, a ênfase está no novo “epílogo” que Jesus acrescentou à primeira parte. Como todas as outras parábolas de “dois gumes”, esta também enfatiza o segundo ponto. Isso significa que Jesus não quer comentar sobre um problema social, nem tem a intenção de dar um ensinamento sobre a vida após a morte, mas ele conta a parábola para alertar do perigo iminente os homens que se assemelham aos irmãos do rico. Portanto, o mendigo Lázaro é só uma figura secundária, introduzida a título de contraste. A parábola é sobre os cinco irmãos, e não deveria ser chamada de parábola do Rico e Lázaro, e sim de Parábola dos Seis Irmãos. Os irmãos sobreviventes, que têm sua contraparte nos homens da geração do Dilúvio, que levavam uma vida despreocupada, sem se importar com o estrondo da enchente que se aproximava (Mat. 24.37-39), são homens deste mundo, assim como seu irmão morto. Como ele, eles vivem no luxo egoísta, surdos à palavra de Deus, na crença de que a morte acaba com tudo (v. 28). Desdenhosamente, esses mundanos céticos pediram a Jesus uma prova válida de vida após a morte, como condição para darem ouvidos ao aviso dele. Jesus queria abrir os olhos, mas atender à exigência deles não seria o caminho certo para fazê-lo. Por que Jesus se recusou? Porque a concretização da prova teria sido sem sentido; até a maior maravilha de todas, uma ressurreição, seria em vão. Quem não se submete à Palavra de Deus não será convertido por um milagre… A exigência de um sinal é uma esquiva e uma evidência de impenitência. Por isso a sentença é pronunciada: ‘Deus não dará um único sinal a esta geração.’ (Marcos 8:12).

Life After Death – The Biblical Doctrine of Immortality [A Vida Após a Morte – A Doutrina Bíblica da Imortalidade], Norman Henry Snaith, Interpretation: A Journal of Bible and Theology [Interpretação: Uma Revista Sobre Bíblia e Teologia], Vol. 1, nº 3, julho de 1947, págs. 309, 324:

Qual é a doutrina bíblica sobre a vida após a morte? Os credos históricos da igreja usam a frase “ressurreição do corpo”. O que significa isso? Muitos cristãos creem na imortalidade da alma. É isso, na prática e na interpretação, a mesma coisa que a frase nos credos? Em todo caso, será que isso é a doutrina bíblica?…

Nem aqui nem em lugar algum da Bíblia há qualquer sugestão sobre uma alma imortal que sobreviva à morte. Nada sobrevive se não for levantado por Deus, e a condição é que o homem deve estar “em Cristo” e, desta forma “nascido do espírito”.

The Faith of the Christian Church [A Fé da Igreja Cristã], Gustaf Aulén (traduzido do sueco por Eric Wahlstrom e Everett Arden). The Muhlenberg Press, Filadélfia, EUA, 1948 (a capa acima é duma edição de 2002), págs. 154, 220:

Quando se examina o argumento referente à condenação e aniquilação, é evidente no início que a discussão repousa muitas vezes em postulados estranhos à fé cristã, especialmente a teoria de que a “imortalidade da alma” é algo dado axiomaticamente. Esta linha de pensamento, que emanou de uma matriz filosófica e idealista, contrasta fortemente com o ponto de vista característico da fé cristã. Para a fé cristã, a “vida eterna” não é uma prerrogativa auto evidente do homem, mas é antes uma dádiva que se dá na e com a comunhão do homem com Deus e se realiza na e por meio da “ressurreição”.

… Está inteiramente fora da esfera da teologia sistemática tomar decisões em relação àquelas questões históricas e exegéticas que estão relacionadas com a fé na ressurreição dos primeiros discípulos, ou com o túmulo vazio, ou com a maneira pela qual Cristo se deu a conhecer aos seus. A teologia só pode afirmar que, de acordo com as evidências, diferentes concepções de como a ressurreição ocorreu eram correntes no cristianismo primitivo. Às vezes, afirma-se que o Cristo ressuscitado apareceu para os seus praticamente da mesma forma que nos dias de sua carne, e outras vezes se diz que um corpo está enterrado na terra e um outro, um organismo espiritual, surge (1 Cor. 15). Paulo não concebe uma existência corporal contínua da mesma natureza que a terrena. Mas em nenhum dos casos encontramos uma concepção puramente espiritualizada. É evidente que a fé primitiva da ressurreição cristã é de natureza diferente da doutrina filosófica que considera a “alma” imortal em si mesma, e a imortalidade como a libertação da alma da prisão do corpo. Essa distinção entre “alma” e “corpo” é absolutamente estranha à fé na ressurreição da igreja primitiva. É evidente que no Novo Testamento encontramos várias ideias sobre a manifestação do Cristo ressuscitado, mas é também evidente que os discípulos o consideravam como tendo certa “corporalidade”, por mais espiritualizada e “transfigurada” que esta pudesse ter sido. Estas ideias enfatizam o contraste com a concepção filosófica e idealista da imortalidade.

How Came Our Faith: a Study of the Religion of Israel and Its Significance for the Modern World [Como Nossa Fé Chegou: Um Estudo da Religião de Israel e seu Significado para o Mundo Moderno], William Alexander Leslie Elmslie, Charles Scribner’s Sons, Nova Iorque, EUA, 1948, pág. 124. (A capa acima é da edição de 1950, publicada pela Cambridge University Press):

Quando um homem morre, o que acontece? Obviamente, para o pensamento hebraico, sua nephesh não existe mais; pois essa palavra significava unicamente o Ser causado pela coexistência do fôlego ativador com carne, ossos e sangue. O corpo morto dele, de carne e sangue deve ser enterrado na sepultura, e então retorna ao pó da terra. Seu fôlego-vitalidade (ruach ou neshamah) retorna a Deus que o deu.

The Thought of the Old Testament [O Pensamento do Antigo Testamento], Christopher North, Epworth Press, Inglaterra, 1948, págs. 56, 57. (A capa acima é de uma edição de 2009, Wipf & Stock Publishers, Eugene, Oregon, EUA):

“… foi só depois do exílio que o problema do sofrimento imerecido dos indivíduos começou a atrair seriamente a atenção dos pensadores judaicos… Parece que as primeiras declarações explícitas de que este presente não é a única vida surgiram das tentativas de relacionar a sorte dos judeus individuais com a bem-aventurança do esperado Reino de Deus. Em dois trechos do Antigo Testamento, um dos quais é certamente, e o outro provavelmente, tão tardio quanto o segundo século AC, afirma-se que os indivíduos viverão novamente para compartilhar as bênçãos do Reino. Um é Isaías 26.19, que, em comparação com o versículo 14 do mesmo capítulo, afirma que os judeus individuais viverão novamente, enquanto os ímpios pagãos não viverão. O outro é Daniel 12.2, onde a implicação é que os judeus justos participarão do Reino, que o conscientemente ímpio também se levantará, mas para a vergonha e desprezo eterno, enquanto aqueles que não foram bons nem maus deverão presumivelmente permanecer no Seol. Os detalhes, como se pode observar, são diferentes; mas ambos os trechos estão de acordo em falar de uma ressurreição dos mortos. Foi este o rumo que, nas premissas do Antigo Testamento, as antecipações da vida vindoura inevitavelmente tomaram. Vimos que o Antigo Testamento não encarava o homem como uma alma imortal encarnada, e sim como um corpo animado; que o corpo, para ele, era um constituinte essencial da personalidade humana. Assim, quando os judeus por fim vieram a acreditar na vida após a morte, eles falaram em termos da ressurreição do corpo, e não da imortalidade da alma, à maneira grega. Esta é, historicamente, a razão pela qual, quando recitamos o Credo, não dizemos ‘creio na imortalidade da alma’, e sim ‘creio na ressurreição do corpo’. Naturalmente, sinto-me tentado a fixar o caso como sendo entre as concepções grega e judaico-cristã; e não tenho dúvidas de que você gostaria que eu fizesse isso. Mas esse é um tema que está além do escopo dessas breves palestras. Vou me contentar com uma observação relevante, e ela é que, de acordo com o pensamento do Antigo Testamento, qualquer vida futura é decorrente da graça de Deus, não uma porção inalienável da natureza humana.

An Approach to Christology [Uma Abordagem à Cristologia], Aubrey Russell Vine, Independent Press, 1948, págs. 311 (nota de rodapé), 314, 315, 322:

Não se deve aplicar a palavra ‘imortal’ a um espírito humano, se reconhecemos claramente que ele só é imortal na graça e no agrado de Deus. Só Deus é imortal por sua própria natureza e sem restrição.

A imortalidade natural do espírito é um conceito grego, não um conceito cristão.

Contra a ideia da imortalidade natural do espírito devemos estabelecer o fato de que Deus é o único auto-existente e que nada existe ou continua a existir exceto por Sua graça e vontade, dentro deste esquema ou dentro de qualquer outro Deus. Só Deus está à parte do esquema. Portanto, quando usamos a palavra ‘imortal’, em relação a qualquer coisa, além de Deus, devemos perceber sempre que só Deus é imortal por sua própria natureza e sem qualquer restrição.

O homem não é um espírito que habita um corpo. Ele é um espírito naturalmente integrado num corpo, o que é um assunto muito diferente. Enquanto um homem vive, ele não é um espírito: ele é um homem, e o “homem” inclui o corpo com a mesma certeza que inclui o espírito. Ele é um complexo, e ele reage como um complexo, embora esse complexo seja uma unidade natural e, portanto, atua como uma unidade.

Life and Immortality (Vida e Imortalidade), Eric Lewis, 1949, pág. 79:

1. Que o homem é mortal. Que a imortalidade não é dele por natureza, e sim uma dádiva de Deus para ele em Cristo, condicionada à fé e obediência, que o penhor da imortalidade, é o Espírito de Deus. E sua imortalidade é aplicada na ressurreição.

2 Que, na morte, a alma do homem, seu organismo físico, morre, e que o homem retorna ao pó.

3. Que na morte seu espírito, que não é uma entidade pessoal à parte de seu corpo, retorna a Deus que o deu, enquanto o próprio homem vai para o sono inconsciente até a ressurreição.

4. Que na ressurreição Deus chama o homem morto de volta à vida, soprando novamente dentro dele o seu Espírito… O corpo da ressurreição, dado aos justos por ocasião da vinda de Cristo, será um corpo espiritual, um corpo glorificado, assim como o seu próprio [o de Cristo] depois da ressurreição dele.

5. Que haverá uma ressurreição para o julgamento, bem como para a vida. Aqueles cujos nomes não forem encontrados escritos no livro da vida serão lançados no lago de fogo, para perecerem definitivamente lá, queimados como a palha. Quanto tempo durará o sofrimento deles, é conhecido por Deus, apenas. O julgamento deles será segundo as ações de cada um. Esta é a ‘segunda morte’, da qual não haverá ressurreição.

Basic Christian Teachings [Ensinos Cristãos Básicos], Martin J. Heinecken, Muhlenberg Press, Filadélfia, EUA, 1949, págs. 36-38, 133-136:

No relato bíblico da criação somos informados que Deus formou o homem do pó da terra, e que Ele então lhe soprou nas narinas e o homem se tornou uma alma vivente. Geralmente isso é interpretado como significando que Deus fez uma alma, que é a verdadeira pessoa, e que daí Ele deu a essa alma uma habitação temporária num corpo, feito do pó da terra. Mas este é um dualismo ou dualidade falsa. Conforme veremos, a Bíblia realmente fala de uma dualidade no homem; a do antigo homem, o natural e a do novo homem em Cristo. Isto é bem diferente de um dualismo de mente e matéria ou corpo e alma. O homem deve ser considerado como uma unidade

Estamos tratando de um ser unificado, uma pessoa, e não de algo que é chamado de alma e que habita numa casa chamada corpo, como se o corpo fosse apenas uma ferramenta para a alma usar, mas que não é realmente uma parte da pessoa – como se fosse possível separar o olhar nos olhos de alguém, ou o tom de sua voz, ou a pressão de sua mão, da pessoa real…

Imortalidade da Alma

Em contraste com este mundo em mudança e desintegração das coisas, defende-se que existe dentro de cada homem um núcleo imutável e indestrutível, imortal por direito próprio. Não é afetado pelo tempo; não teve princípio, nem pode ter um fim. Sempre existiu e sempre existirá. Veio para este mundo de coisas mutáveis do reino da eternidade e voltará para ele. Os conceitos variam quanto a como e quando isso ocorrerá. Geralmente, é um longo processo de libertação gradual do mundo das coisas, às vezes por meio de reencarnações sucessivas, às vezes através de domínios cada vez mais elevados de existência, até chegar a uma perfeição final. Às vezes, afirma-se que a alma individual perde a sua identidade à medida que ela finalmente se funde com a grande alma do mundo com a qual ela é basicamente uma.

Ressurreição

O conceito cristão não deve de modo algum ser identificado com a crença na imortalidade da alma acima. A crença cristã é na imortalidade do relacionamento com Deus, e na ressurreiçãoO dualismo cristão não é o da alma e corpo, mente eterna e coisas transitórias, e sim o dualismo do Criador e da criatura. O homem é uma pessoa, um ser unificado, um centro de responsabilidade, apresentando-se perante seu Criador e Juiz. Ele não tem qualquer vida ou imortalidade dentro de si mesmo. Ele surgiu por meio do poder criativo de Deus. Ele passa tantos anos nesta terra quantos a providência de Deus atribui a ele. Ele enfrenta a morte como o salário do pecado. A morte é, como dissemos, o limite que Deus estabelece para as pretensões orgulhosas do homem de ter vida dentro de si mesmo. Mas, seria um grande erro se o homem pensasse que a morte, dessa forma, acaba com tudo, e que ele pode escapar de Deus morrendo. “O homem está destinado a morrer uma só vez e depois disso enfrentar o juízo” (Hebreus 9:27).

A perspectiva, portanto, é esta: por meio do poder de Deus, todos os homens serão ressuscitados, isto é, trazidos da morte para a vida, para encarar o julgamento. Esta ressurreição e julgamento são colocados no fim dos tempos. Isso está ligado ao retorno de Cristo em glória …

Nenhum Estado Intermediário

Tudo isso é colocado no fim dos tempos. Isso acontece de repente, abruptamente, simultaneamente para todos os homens. Em todas as palavras e promessas de Cristo, e em todo o testemunho do Novo Testamento, não há uma única justificativa para a crença em um estado intermedio consciente interveniente entre a morte e a ressurreição geral que se inicia no reinado de Cristo em glória e o novo céu e a nova terra. Não há nada sobre qualquer purgatório em que as almas sejam gradualmente purgadas e aprontadas para o céu…

É quando o homem é falsamente dividido em corpo e alma que surgem as especulações relativas a um estado intermediário. Eles também surgem de uma preocupação com os mortos que morreram no Senhor e estão presumivelmente em casa com ele e não apenas adormecidos em suas sepulturas, esperando que a última trombeta soe. Visto que tal pensamento era intolerável, os homens especularam da seguinte maneira: No momento da morte, a alma se separa do corpo. Daí ela comparece perante Deus em um juízo preliminar (que não é mencionado em lugar algum nas Escrituras) e entra num estado preliminar ou de bem-aventurança ou de condenação. Daí, quando a última trombeta soar, o corpo é ressuscitado e se junta novamente à alma, e estando completo novamente, o corpo e a alma reunidos comparecem na cena do julgamento público final, para de lá entrar na bem-aventurança definitiva ou na condenação final. Não é à-toa que, com este conceito, os homens devem ter pouca utilidade para a ressurreição, e por fim descartaram completamente o conceito e ficaram satisfeitos com o resgate apenas da alma.

A única maneira de lidar com isso é levar a sério a transição do tempo para a eternidade. Como não há nada nas Escrituras sobre um estado intermediário e um julgamento preliminar, cada pessoa deve ser mantida para passar da morte imediatamente para uma e única ressurreição e julgamento. Quando um homem morre, o tempo acabou para ele. Todas estas pessoas que morreram ao longo da linha do tempo, e continuarão a morrer ao longo dela, passarão da morte para esse outro reino da eternidade. Este reino não está simplesmente em algum ponto longínquo no futuro. Ele cruza o nosso, como a dimensão vertical cruza a horizontal. Morrer, então, significa passar para a ressurreição e o julgamento no fim dos tempos. Ainda que digamos que todos os homens dormem até que a trombeta final toque, qual é a passagem do tempo para os que estão dormindo? A transição do momento da morte para o da ressurreição ainda seria instantânea para eles. Ela não seria diferente de ir para a cama à noite e acordar pela manhã.

Não devemos nos preocupar com o pensamento de que os amados que morreram antes de nós não estejam em casa com o Senhor. O tempo acabou por eles; eles chegaram; eles não estão esperando. Somos nós que ainda estamos no tempo, e ainda sob prova, e ainda vivendo pela fé, que estamos à espera. Os santos estão no lar com o Senhor.

I Believe In… [Creio Em…], Norman Snaith, SCM Press Ltd., Londres, Inglaterra, 1949, págs. 115-121:

‘CREIO NA RESSURREIÇÃO DOS MORTOS, E NA VIDA NO MUNDO VINDOURO’.

Todos os credos falam de uma ressurreição e não de uma sobrevivência. Na maioria deles consta “da carne”, embora aqui no chamado Credo Niceno diz “dos mortos”. Parece haver pouca dúvida de que a Igreja durante séculos pensou em termos do reavivamento da vida no corpo verdadeiro de carne e osso. Esta era a crença de Clemente de Roma e de Orígenes, mas foi Agostinho o principal responsável pelo estabelecimento da crença tradicional. Essa crença está consagrada na paráfrase da Versão Autorizada de Jó 19:25-6, que é bem claramente uma declaração da ressurreição do corpo, e é mantida fresca na memória pública pela popularidade do Messias de Handel. Agostinho disse que Jó “profetizou sem dúvida a ressurreição da carne”, e declarou que o trecho significava “eu estarei na minha carne, quando eu vir Deus”. A Vulgata Latina de Jerônimo (contemporânea de Agostinho e datada de 390-405 D.C.) diz: “E no último dia, levantarei da terra. E serei revestido novamente com a minha pele; e na minha carne, eu verei Deus.” Esta é a interpretação da versão oficial católica romana Douay, e isso é uma interpretação, em vez de uma tradução do hebraico original. Nossa Versão Autorizada, em alguns aspectos, foi ainda mais longe. No hebraico original não se encontra absolutamente nada sobre uma ressurreição dos mortos, e este é um fato geralmente aceito pelos eruditos hebraicos.

Eu encontro dois trechos apenas no Antigo Testamento que falam de alguma vida após a morte para alguém. Estes são Isa. 26:19 e Dan. 12:2 [ambas passagens ressurreicionais] (eu tomo passagens tais como Sal. 73:23-26 e Sal. 139:7-10 como geográficas, como está, penso eu, claro em hebraico.) Ambos os versículos são um tanto tardios ​​e ambos estão em apocalipses. O primeiro trecho pode ser datado aproximadamente por volta de 300 A.C., e o outro por volta de 165 A.C. O primeiro declara que os mortos justos de Israel serão ressuscitados para participar das bênçãos da libertação de Israel. O segundo diz que “muitos dos que dormem no pó da terra (hebreus portanto) despertarão, uns para a vida eterna, e uns para grande vergonha e horror eterno”. A antiga ideia era a do Seol, a vasta e espaçosa morada subterrânea dos mortos, toda ela negativa e não positiva, e que deve ser considerado como a persistência da morte e não da vida. Tentativas foram feitas, e às vezes ainda são feitas, para ver nesses sombrios pensamentos do Seol o começo das ideias hebraicas de uma vida real após a morte. Todas essas tentativas são equivocadas. As ideias hebraicas da ressurreição não vieram de ideias sobre o Seol, assim como as ideias gregas da imortalidade não surgiram das noções tradicionais e populares do Hades. Para o filósofo, a ideia veio por meio de Platão, enquanto que para o homem comum veio muito posteriormente, e das religiões de mistério com seus cultos de deuses salvadores.

A crença hebraica na vida após a morte surgiu da firme convicção de que Deus ainda é o Salvador de Israel, por mais que as nações possam estar furiosas e seus governantes tomem conselho contra o Senhor e contra Seu Ungido. Às vezes e em algum lugar eles acreditavam que esta deveria ser uma era da felicidade primeva restaurada, quando Deus será tudo em todos e Israel estaria à frente das nações. O intenso aspecto prático e “deste mundo” do judeu requeria que este novo mundo deveria ser aqui na Terra, uma Terra transformada talvez, mas certamente aqui e real. Isto seria anunciado por um grande Dia do Juízo, e depois disso a vida do mundo vindouro começaria. Chegou um momento em que eles começaram a suspeitar que, afinal de contas o Reino de Deus não se concretizaria aqui em uma terra como essa, e sim em lugares celestiais, embora a ideia de corpos revividos nunca morreu completamente, assim como a ideia ainda é mantida entre alguns cristãos hoje.

O cenário mais instrutivo do que os judeus do tempo de Cristo (embora não os saduceus) acreditavam que acontece após a morte é encontrado em Enoque 22 (datado de cerca de 170 A.C.). Encontramos lá um relato dos três lugares no Seol, onde se acreditava que os espíritos dos mortos estariam reunidos até o Dia do Juízo. Entre os três lugares, havia grandes golfos, de modo que qualquer intercâmbio era impossível. Um lugar era para os justos, e ali eles eram preservados em segurança até o Dia do Juízo, quando eram julgados e entravam na felicidade do mundo vindouro que tinha sido preparado para eles. O segundo lugar era para os perversos que padecido na terra pelos seus pecados. Nada mais acontecia com eles. Eles não eram ressuscitados. Eles tinham pecado e pagaram a penalidade. Era o que era, e isso era tudo. O terceiro lugar era para os pecadores que não haviam sofrido na terra pelos seus pecados. Este era um lugar de grande tormento; eles pagavam a penalidade por seus pecados. No dia do julgamento, eram julgados e destruídos.

Este, como é evidente, é o cenário da estória de Dives e Lázaro. Lázaro está no “seio de Abraão”, isto é, na morada dos justos que aguardam o Último Dia. Dives não está no inferno da imaginação popular, mas está pagando o preço no Seol pelos pecados não pagos cometidos na Terra. Ele morreu impenitente, e é aí que ele paga. Quando Jesus diz ao ladrão moribundo que eles estarão juntos naquele dia no Paraíso, a referência é à morada dos justos. A parábola das cinco virgens sábias e das cinco virgens tolas enfatiza o caráter final do julgamento de Deus que vem antes do banquete messiânico, que deveria inaugurar o Reino Messiânico. Realmente, de todas maneiras, é evidente que Jesus falou e pensou substancialmente como está estabelecido em Enoque 22. Há um Dia do Juízo para os justos e para os ímpios que não se arrependeram de sofrerem na Terra. Há uma ressurreição de vida para os justos e para os ímpios que não se arrependeram ou sofreram na terra.

Nos escritos de São Paulo, há uma distinção nítida entre ‘o homem natural (psychikos)’ e ‘o homem espiritual (pneumatikos)’. Nada do homem natural sobrevive na vida do mundo por vir, mas apenas o homem espiritual, isto é, o homem que nasceu do espírito (pneuma). A frase “homem natural” inclui tudo o que Paulo considerava pertencer à psyche. Esta é a palavra que, em Platão e entre os gregos, representa a alma imortal do homem, mas a palavra nunca é usada dessa maneira na Bíblia grega, nem no Antigo nem no Novo Testamento. No Antigo Testamento grego, a palavra representa o hebraico nephesh, a vivacidade do apetite e do desejo que deixa de existir na morte. No Seol não há nephesh alguma, nenhum desejo, nenhum anseio, nenhuma vida. Este uso da palavra grega psyche é transferido para o Novo Testamento, de modo que em parte alguma da Bíblia em inglês [e outros idiomas modernos] a palavra “alma” deveria ser entendida como uma parte imortal do homem que sobrevive à morte. De acordo com a Bíblia, não há nada no homem, enquanto homem que sobreviva à morte, mas se ele durante a vida nasceu do espírito, ele é levantado para ser participante na vida do mundo vindouro.

A grande diferença que o Novo Testamento faz é em matéria de mérito. Segundo o pensamento judaico contemporâneo, um homem poderia ganhar seu lugar no mundo vindouro por cumprir a Lei. Paulo deixa claro que não existe essa maneira, mas que tudo é de graça. O que se exige da parte do homem é a fé, uma confiança total e absoluta em Deus.

Se, portanto, mesmo no momento da morte, um pecador realmente se arrepende e confia em Deus, então está tudo bem. O que foi verdade para o ladrão moribundo pode ser verdade para qualquer homem vivo. E ninguém pode dizer que por causa do que ele fez, a vida no céu está assegurada. Nós, cada um de nós, devemos depender inteiramente dos méritos e da morte do Senhor Jesus Cristo. Embora seja verdade que a fé sem obras está morta, o fator decisivo é a fé e não as obras. O ladrão moribundo teve fé e, na natureza das coisas, não teve tempo para mostrar quaisquer obras.

Mas “como são levantados os mortos e com que tipo de corpo eles vêm?” Neste capítulo (1 Cor. 15), Paulo distingue entre um corpo espiritual e um corpo natural. Até certo ponto, ele se afasta da visão contemporânea e tradicional da revivificação do corpo real de carne e osso. Eu julgo que na fraseologia moderna a visão dele é: Todas as coisas que pertencem a esta vida física chegam ao fim na morte. Isto inclui todos os elementos emocionais e todas as qualidades estéticas e mentais. Mas se um homem nasceu de novo, se ele nasceu do espírito, seu “corpo” (soma) atua como uma espécie de portador e a identidade do homem é preservadaÉ o mesmo homem que é ressuscitado. O espírito persiste; não uma alma no sentido de algo que era naturalmente dele porque ele era um homem, e sim um espírito que nasceu nele quando ele veio até Cristo em fé. Muito do mesmo ensinamento encontra-se no Quarto Evangelho em relação à bios (vida física comum) e a zoe (a vida eterna) é o “transportador” para os lugares celestiais. Isto eu considero ser a interpretação moderna correta da frase no credo.

Está bem claro para mim quanto à doutrina bíblica sobre a vida após a morte que a crise final ocorre por ocasião da morte. Isso, como eu entendo os Evangelhos, é o formato claro das palavras do próprio Jesus, e não vejo qualquer razão para supor qualquer outra coisa, exceto com base em desejo de acreditar em algo [wishful thinking] com base em alguma doutrina de mérito pessoal que está excluída. É por isso que é tão importante que os pecadores se convertam agora, antes de morrerem. Aliás para mim, este é um argumento final contra o enforcamento como uma penalidade pelo assassinato. É uma coisa terrível cair nas mãos do Deus vivo, e eu não cortaria nenhum homem da oportunidade do arrependimento. Nenhum homem é tão perverso e está tão completamente abandonado, mas a graça de Deus pode realizar seu trabalho salvador no coração e na vida. É também claro para mim que existe uma ressurreição para a vida eterna para o pecador arrependido que tem o que nossos pais costumavam chamar de “mortos em fé”, isto é, para os que morreram na esperança do Evangelho. Pode haver uma ressurreição para o pecador não arrependido, pois o ensino da Bíblia varia aqui, mas, se houver, é uma ressurreição para a condenação e a morte. Se nos afastarmos desta doutrina, devemos reconhecer com bastante franqueza que estamos nos afastando da doutrina bíblica e do ensino da Igreja dos primeiros séculos. Para mim, é uma coisa bem notável que os primeiros pensadores cristãos se mantiveram tão livres da doutrina grega da imortalidade da alma. Ela estava lá, completamente desenvolvida, mas eles se mantiveram afastados dela. Eu creio que isto é significativo.

O que acontece com o pecador não arrependido após a morte? Eu acredito que ou ele sofre os tormentos do inferno, ou ele é destruído na morte. Inclino-me para a segunda ideia porque não consigo conceber Deus punindo alguém exceto para levá-lo ao arrependimento. Portanto, se existe algum castigo dos ímpios após a morte, deve ser com o objetivo de levá-los ao arrependimento, e a doutrina romana do Purgatório é substancialmente sólida.

Não encontro em parte alguma da Bíblia qualquer doutrina de que o indivíduo sobrevive necessariamente, isto é, da imortalidade da alma, no sentido de que há uma parte de todo homem que nunca pode morrer. Certamente é a vontade de Deus que todos os homens sejam salvos. É verdade agora como sempre foi que Deus ‘não deseja a morte de um pecador, mas sim que ele se desvie de sua maldade e viva’. Mas é também verdade, como implica essa oração, que se ele não se arrepender, então ele morre. Deus deu ao homem esta liberdade para escolher, e é uma liberdade real. É, de fato, a liberdade de viver ou de morrer. E nem mesmo Deus pode ter isso nos dois modos [ao mesmo tempo]. Parece-me que não é senão um pensamento confuso e sentimental afirmar que, se um homem está perdido, Deus foi derrotado. A vitória de Deus é uma vitória sobre o pecado. O pecado, por fim, será destruído, e com ele tudo o que está ligado a ele. Nenhuma planta pode viver em solo envenenado, e o pecado envenena a vida de um homem para que a planta do espírito nunca possa crescer lá.

… Se os homens cristãos realmente entendessem o veneno mortal do pecado, eles levariam mais a sério as palavras de Jesus e perceberiam que há um terrível julgamento ordenado por Deus para todos os pecadores impenitentes e que um homem pode de fato morrer eternamente.

The Truth of the Gospel: A Primer of Christianity [A Verdade do Evangelho: Uma Cartilha de Cristianismo], George Bradford Caird, Oxford University Press, Inglaterra, 1950, pág. 122. (A capa acima é da edição de 1956):

Há muitos que creem firmemente em uma vida após a morte que preferem não se incomodar com uma doutrina tão complexa quanto a ressurreição do corpo, especialmente se tiverem problemas suficientes com o próprio corpo devido à saúde fraca. Eles prefeririam acreditar que, na morte, a alma deixa o corpo para trás como uma roupa velha e fica desimpedida para o céu. Ora, há muito apoio para essa crença na filosofia grega, mas nenhum na Bíblia. Os gregos acreditavam que o corpo é a raiz de todo mal – uma prisão na qual a alma está encarcerada até a sua libertação na morte. Mas os hebreus acreditavam que o corpo é bom, já que Deus o criou. Uma crença na imortalidade da alma significaria que apenas parte da personalidade humana sobreviveu à morte. Ao ensinar a ressurreição do corpo, a Bíblia está afirmando que a personalidade inteira sobrevive.

Basic Christian Ethics [Ética Cristã Básica], Robert Paul Ramsey, Westminster John Knox Press, 1950 (a capa acima é de uma edição de 1993), págs. 263, 277:

A terceira imagem de Deus, a imortalidade, o homem não possui nem por criação nem por aquisição. O homem não é inerentemente imortal, como ele é agora inerentemente racional e como ele seria completamente feliz enquanto permanecesse obediente. A imortalidade vem como uma dádiva escatológica, sempre mais uma possessão de Deus do que do homem, mesmo quando isso é dado a ele.

… Em primeiro lugar, ao encarar o homem como um animal teológico somos levados a considerar todo valor verdadeiramente humano como derivado, não inerente. As interpretações cristãs da dignidade do homem afirmam algo sobre o homem em relação a Deus, não apenas algo sobre o homem em si. A doutrina platônica da inerente e substancial imortalidade da alma dotou a alma com tal poder que corpos desgastados como que alcançam a divindade, e os primeiros cristãos consideraram este ponto de vista como uma espécie de roubo de Deus. O mesmo acontece com muitas das nossas noções sobre a sacralidade inerente à personalidade humana. Para o cristão, tanto a ‘imortalidade de um mortal’ quanto seu valor pessoal são derivados, derivados da designação de Deus.

In the End, God…: A Study of the Christian Doctrine of the Last Things [No Final, Deus… – Um Estudo da Doutrina Cristã das Últimas Coisas], John Arthur Thomas Robinson, James Clarke & Co. Ltd., Cambridge, Reino Unido, 1950 (a capa acima é da edição de 2011, Cascade Books, Eugene, OR, EUA, págs. 74, 75:

… existe ainda um grande ponto de diferença entre a doutrina da imortalidade e a da ressurreição, que requer um tratamento mais extenso. Assim como no caso da primeira, o homem inteiro morre, e não apenas a parte material dele; da mesma forma, o homem inteiro será ressuscitado, e não apenas o “espiritual” nele. A Bíblia opõe a imortalidade da alma com a ressurreição do corpo.

A Theological Word Book of the Bible (Vocabulário Teológico da Bíblia), Alan Richardson (Ed.) The MacMillan Company, Nova Iorque, EUA, 1951 (a capa acima é de uma edição de 1962), págs. 111, 112:

IMORTAL, IMORTALIDADE

Esta não é uma palavra muito comum na Bíblia, já que a pregação apostólica dava testemunho de um evento que é descrito como Ressurreição… e não como a sobrevivência da alma de Jesus após a morte do corpo. Na doutrina g[rega] da imortalidade o corpo morre, mas a alma, libertada das restrições impostas pelo corpo, continua sua vida. A imortalidade é tida como uma das qualidades distintivas de uma vida verdadeiramente humana, de modo que não há qualquer morte real, e sim apenas um descarte do invólucro desgastado do corpo. ‘Aparentemente estão mortos aos olhos dos insensatos’ (Sab[edoria] 3:2, que reflete a influência grega). Os escritores da Bíblia, apegando-se à convicção de que a ordem criada deve a sua existência à sabedoria e ao amor de Deus e é, portanto, essencialmente boa, não poderiam conceber a vida após a morte como uma existência desencarnada (‘não seremos encontrados nus’, 2 Cor. 5:3), e sim como uma renovação sob as condições da íntima unidade de corpo e alma, que era a vida humana como eles a conheciam. Assim a morte era encarada como a morte do homem inteiro, e frases tais como ‘libertação da morte’, incorruptibilidade ou imortalidade só poderiam ser adequadamente utilizadas para descrever o que se entende pela expressão Deus eterno ou vivo (v. VIDA, VIVO), ‘o único que tem imortalidade’ (1 Tim. 6:16). O homem não possui dentro de si a qualidade da imortalidade, mas deve, se ele há superar o poder destrutivo da morte, recebê-la como um dom de Deus que ‘levantou Cristo dentre os mortos’, e pôs a morte de lado como uma peça de roupa (1 Cor. 15:53-54). É através da morte e ressurreição de Jesus Cristo que esta possibilidade para o homem (2 Tim. 1:10) foi trazida à existência e foi confirmada a esperança de que a corrupção (Rom. 11,7), que é uma característica universal da vida humana será efetivamente superada. (V. também INFERNO, RESSURREIÇÃO.)

The Interpreter’s Dictionary of the Bible [Dicionário Bíblico do Intérprete], George Arthur Buttrick, Abingdom Press, EUA, 1952.

Vol. I, 1952, pp. 370, 371:

1. O Problema da Morte. A única área que esta fé na redenção de Israel tinha mais dificuldade em penetrar era a do sofrimento e da morte do homem individual. Os conceitos de Israel sobre a morte foram tão fortemente condicionados pelos de seus vizinhos pagãos, excetuando o Egito, que a invasão e transformação desse campo pela nova e exclusiva teologia de Israel foi um processo lento, completado no período intertestamental, muito depois que a era clássica tinha chegado ao fim. Na morte, a unidade do ser humano é destruída e ele perde vitalidade. A nephesh ou “alma” (veja acima, pags. 367-68), portanto, não continua a existir. Ela se desintegra, ou como no caso do servo sofredor, diz-se que ela é “derramada” como uma oferenda à morte (Isaías 53:12). Os mortos são como “águas derramadas na terra que já não se podem juntar.” (2 Sam. 14:14).

Isso não significa, porém, que a existência cessa. O homem continua a viver, embora em um estado muito fraco, no mundo inferior do Seol, junto com os que passaram para este reino antes dele. Lá ele subsiste na escuridão (Jó 10:21-22), numa espécie de sono (Naum 3:18), na fraqueza (Isaías 14:10), no esquecimento (Salmo 88:12). Assim, a existência no Seol era concebida como o oposto da vida. A terra é o lugar da luz; o Seol está cheio da treva primordial (Gen. 1:2). Vida significa vitalidade e energia; a morte é fraqueza, inação, uma mera sombra da vida. Uma vez que Deus é eminentemente o Dador de vida e o Senhor dos vivos, era uma questão para o israelita quanto a que relação Ele tinha com os mortos. Não é a morte a separação da vida e, portanto, do Deus da vida? Conseqüentemente, o salmista questiona se Deus mostrará suas maravilhas aos mortos, se sua misericórdia e sua justiça serão conhecidas na terra do esquecimento (Salmo 88:10-12, veja Isaías 38:18). Ele ora mais fervorosamente, portanto, para ser liberto do poder da morte. Muitos dos salmistas viviam em grande perigo de morte ou em doença grave; e qualquer forma de fraqueza que lhes roubasse o livre exercício de seus poderes era para eles uma espécie de morte, embora as portas do Seol ainda não tivessem finalmente fechado sobre eles. Suas orações eram para Deus salvá-los e trazê-los de volta do “poço” ou das ondas das profundezas através das quais eles tinham sido forçados a ir na jornada para o mundo subterrâneo (Jonas 2:2-6). Nas mãos de Deus estão as questões da vida e da morte, pois é Ele que “mata e faz viver; Ele faz descer ao Seol e de lá faz subir” (1 Samuel 2:6, compare com Deut. 32:39).

A ênfase dominante nas orações de indivíduos doentes e atribulados estava assim no poder redentor de Deus para salvá-los da morte. A maior bênção na vida é andar com Deus e habitar em sua presença, pois há “plenitude de alegria” e “prazeres para sempre” (Salmo 16:11). O homem fiel tinha certeza, portanto, de que Deus redimiria sua vida (nephesh) do poder do Seol (Salmo 49:15, Ose. 13:14). Significa isso que a morte seria abolida? Um trecho como o Sal. 23:6 (“Eu habitarei na casa do SENHOR para sempre.”) é um tanto ambíguo e obscuro. Porém, não há dúvida de que durante o período pós-exilíco, alguns crentes começaram a responder afirmativamente à questão. Na nova era de Deus não haverá mais morte, e as lágrimas serão enxugadas de todas as faces (Isaías 25:8, 1 Cor. 15:26, 54, Apo. 21:4). A principal dificuldade que o homem de fé tinha com a morte era que esta o separava da vida com Deus. Conseqüentemente, era inevitável que mais cedo ou mais tarde ele afirmasse que a causa dessa separação seria removida (compare com o Sal. 139:8), pois Deus na vida o guiará com seu conselho e depois o receberá com glória (Sal. 73:24). A ilustração do pensamento no ultimo trecho estava à mão nos casos de Enoque e Elias, nenhum dos quais sofreu a morte, mas foi levado diretamente para a morada celestial de Deus (Gen 5:24; 2 Reis 2:11). Isso facilitou que alguns cressem que Deus enviaria Elias de volta à terra novamente como o precursor da nova era (Mal. 4:5, compare com Marcos 9:11-13). No entanto, se a morte haveria de ser abolida por Deus na nova era, para que o homem redimido nunca precisasse ser separado dele, e os que morreram antes dessa época? Dois trechos tardios afirmam sua ressurreição: Isa. 26:19 e Dan. 12:2. De acordo com a visão unitária do homem, esta doutrina da ressurreição dos mortos é a única que seria compatível com o ponto de vista bíblico. Muitas pessoas sob a influência derradeira do pensamento grego acharam mais simples acreditar na imortalidade da alma, embora do ponto de vista da razão essa separação da alma do corpo pareça tão difícil quanto a crença na ressurreição do corpo, isto é, da pessoa completa. O conceito primitivo, porém, exclui todo o pensamento de uma imortalidade natural e concentra a atenção no milagre gracioso de Deus em levantar os mortos para a comunhão com Ele mesmo na nova era na terra. Foi neste contexto que a doutrina [da continuação da vida da alma à parte do corpo] tornou-se generalizada no período intertestamental, embora continuassem a existir os que mantiveram a posição da literatura anterior do Antigo Testamento e que, portanto, não acreditavam nisso (compare com Eclesiastes 3:20, 21, e os saduceus da época do Novo Testamento, Mat. 22:23). Contudo, para a maioria dos judeus, a fé no poder redentor de Deus finalmente havia conquistado sua vitória sobre a morte.

Vol. II, 1953, pág. 1015:

A tradução tradicional do hebraico néphesh por alma levou os comentaristas mais antigos a associar este versículo [1 Sam. 25:29] com uma crença em uma vida após a morte, e esta interpretação ainda é aceita por alguns judeus modernos. Mas a ideia do homem como consistindo de corpo e alma que são separados na morte não é hebraica, e sim grega. De acordo com a história da criação hebraica, Deus soprou o fôlego de vida no barro de Adão e ele se tornou uma néphesh ḥayyāh – uma criatura viva (Gênesis 2:7). A néphesh, então, não é a alma, e sim a vida, e Abigail está prometendo a Davi uma longa vida sob a proteção de Deus. A imagem é a de bens preciosos embrulhados num pacote para que não se percam. Foi muitos anos depois disso que Israel teve qualquer referência de imortalidade.”

Vol. I, 1962, págs. 802, 870:

“A partida da nefesh [alma] deve ser encarada como uma figura de linguagem, pois ela não continua a existir independentemente do corpo, mas morre com ele (Num. 31:19; Juí. 16:30; Eze. 13:19). Nenhum texto bíblico autoriza a afirmação de que a ‘alma’ se separa do corpo no momento da morte.

“… No Antigo Testamento o homem é considerado como um todo “psicossomático”. A ideia de um espírito desencarnado, ou de uma alma separada de seu corpo, não era própria do pensamento judaico. E foi só nos períodos persa e helenístico que os autores judaicos conseguiram entreter uma doutrina de pré-existência da alma.”

Vol. IV, 1962, pág. 428:

“A palavra ‘alma’ em inglês, embora tenha naturalizado em certa medida o idioma hebraico, freqüentemente carrega consigo nuanças que, em última análise provêm do grego filosófico (platonismo) e do orfismo e gnosticismo que estão ausentes na ‘nephesh’. No AT ela jamais significa a alma imortal, mas é essencialmente o princípio da vida, ou o ser vivo, ou o eu como sujeito de apetite e emoção, ocasionalmente de volição [vontade própria].”

Collected Works of Georges Florovsky, Vol. III: Creation and Redemption [Coleção de Obras de Georges Florovsky, Vol. III: Criação e Redenção], Georges Vasilievich Florovsky, Nordland Publishing Company: Belmont, Mass., 1976, Capítulo VI, “Dimensions of Redemption” [Dimensões da Redenção], págs. 213-240. Este artigo apareceu originalmente como “The Resurrection of Life” [A Ressurreição de Vida] no Bulletin of the Harvard University Divinity School, XLIX, No. 8 (abril de 1952), págs. 5-26:

Um erudito anglicano do século XVII, Henry Dodwell (1641-1711, certa vez Camden “Preletor” de História na Universidade de Oxford), publicou em Londres um livro curioso, sob um título bem desconcertante:

Um Discurso Epistolar, provando, pelas Escrituras e pelos Primeiros Pais, que a Alma é um Princípio naturalmente Mortal; mas é realmente imortalizada pela Vontade de Deus, para Punição; ou para Recompensa, por sua União com o Divino Espírito Batismal. Dentro está provado que, Ninguém tem o poder de conceder esse Divino Espírito Imortalizador, desde os Apóstolos, mas só os Bispos (1706).

O argumento de Dodwell muitas vezes era confuso e complicado. O principal valor do livro, porém, estava em sua imensa erudição. Dodwell, provavelmente pela primeira vez, juntou uma enorme massa de informações sobre a primitiva doutrina cristã do homem, ainda que ele não pudesse aplicá-la corretamente em si mesmo. E ele estava certo em sua afirmação de que o Cristianismo não estava preocupado com uma “imortalidade” natural, e sim com a Comunhão sobrenatural da alma com Deus: “o Único que tem imortalidade” (1 Tim. 6:16). Não é de admirar que o livro de Dodwell tenha provocado uma violenta controvérsia. Uma acusação formal de heresia foi movida contra o autor. No entanto, ele encontrou alguns fervorosos apoiadores. E um escritor anônimo, “um Presbítero da Igreja da Inglaterra”, publicou dois livros sobre o assunto, apresentando um cuidadoso estudo da evidência patrística de que “o Espírito Santo (era) o Autor da Imortalidade, ou a Imortalidade (era) um Graça Peculiar do Evangelho, (e) não um Ingrediente Natural da alma”, e que “a Imortalidade (era) preternatural[não inerente] às Almas Humanas, o Dom de Jesus Cristo, coligido pelo Espírito Santo no Batismo.””…

O Homem É Mortal

No pensamento dos dias de hoje, a “imortalidade da alma” é geralmente superestimada, de tal forma que a “mortalidade do homem” é quase despercebida. Só nas recentes filosofias “existencialistas” é que somos novamente lembrados fortemente de que a existência do homem é intrinsecamente sub specie mortis. A morte é uma catástrofe para o homem. Ela é o seu “último (ou melhor, definitivo) inimigo”, eschatos echthros (I Cor. 15:26). “Imortalidade” é obviamente um termo negativo; ele é correlativo com o termo “morte”. E aqui novamente nós encontramos o Cristianismo em um conflito aberto e radical com o “Helenismo”, sobretudo com o platonismo. W. H. V. Reade, em seu recente livro, The Christian Challenge to Philosophy [O Desafio Cristão à Filosofia], coloca aptamente em confronto duas citações: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1:14) e “Plotino, o filósofo de nosso tempo, estava como que envergonhado de estar na carne” (Porfírio, Life of Plotinus [A Vida de Plotino], I). Daí, Reade prossegue: “Quando a mensagem do Dia de Natal e um breve resumo de Porfírio do credo de seu mestre são postos dessa forma em comparação direta, deve ser suficientemente claro que eles são totalmente incompatíveis: que nenhum cristão pode possivelmente ser um platonista, nem algum plantonista ser cristão; e deste fato elementar os platonistas, para ser justo com eles, estavam perfeitamente cientes.” Eu só acrescentaria que, infelizmente, os cristãos não parecem estar cientes “deste fato elementar”.

Através dos séculos, até a nossa própria época, o platonismo tem sido a filosofia favorita de eruditos cristãos. Não é nosso propósito neste momento explicar como isso poderia acontecer. Mas este lamentável mal-entendido (para não dizer mais) resultou numa absoluta confusão no pensamento moderno sobre morte e imortalidade. Podemos ainda usar a velha definição de morte: é uma separação da alma do corpo, psyhi horismos apo thomatos (Nemesius, De natura hominis, 2; ele cita Chrysippus). Para um grego, isso era uma libertação, um “retorno” para a esfera nativa dos espíritos. Para um cristão era uma catástrofe, uma frustração da existência humana. A doutrina grega da Imortalidade nunca poderia resolver o problema cristão. A única solução adequada foi oferecida pela mensagem da Ressurreição de Cristo e pela promessa da Ressurreição Geral dos mortos. Se nos voltarmos novamente para a antiguidade cristã, encontramos esse ponto estabelecido claramente numa época remota. São Justino foi bem enfático nesse ponto. “As pessoas que dizem que não há ressurreição dos mortos, e que suas almas, quando morrem, são levadas para o céu, não são cristãs de modo algum”. (Dial. 80).

O autor desconhecido do tratado Sobre a Ressurreição (atribuído tradicionalmente a São Justino) declara o problema com muita precisão. “Pois o que é o homem senão um animal racional composto de corpo e alma? É a alma, por si só, homem? Não, mas a alma do homem. Será que o corpo é chamado de homem? Não, mas é chamado o corpo do homem. Se nenhum destes é por si só o homem, mas o que é composto dos dois juntos é que é chamado homem, e Deus chamou o homem à vida e ressurreição, Ele chamou não uma parte, mas o todo, que é a alma e o corpo.” (Sobre a Ressurreição, 8). Atenágoras de Atenas desenvolve o mesmo argumento em seu admirável tratado Sobre a Ressurreição dos Mortos. O homem foi criado por Deus para um propósito definido, para existência perpétua. Ora, “Deus não deu existência e vida independente nem à natureza da alma por si só, nem à natureza do corpo separadamente, mas sim aos homens, compostos de alma e corpo, de modo que, com estas mesmas partes de que eles se compõem, quando eles nascem e vivem, eles devem atingir após o término desta vida o fim comum delas; a alma e o corpo compõem no homem uma entidade viva”. Ele não mais seria um homem, argumenta Atenágoras, se a totalidade de sua estrutura fosse quebrada, pois então a identidade do individuo também seria quebrada. A estabilidade do corpo, sua continuidade em sua própria natureza, deve corresponder à imortalidade da alma. “A entidade que recebe intelecto e razão é o homem, e não a alma sozinha. Em consequência o homem deve permanecer para sempre composto de corpo e alma.” Caso contrário, não haveria homem, e sim apenas partes do homem. “E isso é impossível, se não há ressurreição. Pois se não há ressurreição, a natureza dos homens como homens não continuaria.”.

O pressuposto básico de todo o argumento é que o corpo pertence intrinsecamente à plenitude da existência humana. E, portanto, o homem, como homem, deixaria de existir, se a alma tivesse de permanecer para sempre “desencarnada”. Isto é precisamente o oposto do que os plantonistas sustentavam. Os gregos sonhavam em vez disso, com uma desencarnação completa e final. Uma encarnação era só a escravidão da alma. Para os cristãos, por outro lado, a morte não era um fim normal da existência humana. A morte do homem é anormal, é um fracasso. A morte do homem é “o salário do pecado” (Rom. 6:23). É uma perda e corrupção. E desde a Queda o mistério da vida é desalojado pelo mistério da morte. Misteriosa como a “união” da alma e do corpo realmente é, a consciência imediata do homem dá testemunho em favor da totalidade orgânica de sua estrutura psicofísica. Anima autem et spiritus pars hominis esse possunt, homo autem nequaquam, disse São Ireneu (Adv. haereses V, 6.1) Um corpo sem alma é só um cadáver, e uma alma sem corpo é um fantasma. O homem não é um fantasma sem corpo, e cadáver não é uma parte do homem. O homem não é um “demônio sem corpo”, simplesmente confinado na prisão do corpo. É por isso que a “separação” da alma e do corpo é a morte do próprio homem, a descontinuação de sua existência, de sua existência como homem. Consequentemente, a morte e a corrupção do corpo constituem uma espécie de apagamento da “imagem de Deus” no homem. Um homem morto não é completamente humano.

São João de Damasco, em um de seus gloriosos hinos no Serviço Fúnebre, diz sobre isto: “Eu choro e lamento, quando eu contemplo a morte, e vejo nossa beleza, feita segundo a imagem de Deus, jazendo no túmulo desfigurada, desonrada, destituída de forma.” São João esta falando, não do corpo do homem, mas do próprio homem. “Nossa beleza à imagem de Deus” não é o corpo, mas o homem. Ele é de fato uma “imagem da insondável glória de Deus”, mesmo quando “ferido pelo pecado”. E na morte, revela-se que o homem, esta “estátua racional” moldada por Deus, para usar a frase de São Metódio (Da ressurreição, 34,4: to agalma to logikon), é nada mais que um cadáver. “O homem nada mais é que ossos secos, um cheiro fétido e alimento de vermes.” Pode-se falar do homem como sendo “uma hipóstase em duas naturezas”, e não só de, mas precisamente em duas naturezas. E na morte esta hipóstase humana é quebrada. E não existe mais homem algum. E, portanto, o homem espera ansiosamente pela “redenção do seu corpo” (Rom. 8:23: ten apolytrôsin tou sômatos hêmôn). Conforme diz São Paulo em outros lugares “porque não queremos ser despidos, mas revestidos da nossa habitação celestial, para que aquilo que é mortal seja absorvido pela vida.” (2 Cor. 5:4). O aguilhão da morte está precisamente em ser “o salário do pecado”, ou seja, a consequência de uma relação distorcida com Deus. Não é apenas uma imperfeição natural, nem é apenas um impasse metafísico. A mortalidade do homem reflete a alienação do homem de Deus, que é o Único Dador da Vida. E, nesse afastamento de Deus, o Homem simplesmente não pode “perdurar” como homem, não pode permanecer totalmente humano.

status de mortalidade é essencialmente “sub-humano”. Enfatizar a mortalidade humana não significa oferecer uma interpretação “naturalística” da tragédia humana, e sim, pelo contrário, significa rastrear a condição humana até sua raiz religiosa definitiva. A força da teologia patrística era precisamente o seu interesse na mortalidade humana, e, consequentemente, na mensagem da Ressurreição. A miséria da existência pecaminosa não foi de forma alguma subestimada, mas foi interpretada não só nas categorias ética ou moral, como também na teológica. O fardo do pecado consistia não só em autoacusações da consciência humana, não só na consciência de culpa, mas também numa desintegração completa de todo o tecido da natureza humana. O homem caído não era mais homem, ele estava existencialmente “degradado”. E o sinal dessa “degradação” era a mortalidade do homem, a morte do homem. Na separação de Deus a natureza humana torna-se desajustada, sai de sintonia, como estava antes. A própria estrutura do homem torna-se instável. A “união” da alma e do corpo torna-se insegura. A alma perde seu poder vital, ela não é mais capaz de vivificar o corpo. O corpo é transformado no túmulo e prisão da alma. E a morte física torna-se inevitável. O corpo e a alma não estão mais, por assim dizer, assegurados e ajustados entre si.

A transgressão do mandamento divino “reinstaurou o homem no estado da natureza”, como Santo Atanásio coloca, — eis to kata physin epestrepsen. “Que, como ele foi feito do nada, assim também em sua própria existência ele sofreu corrupção no devido tempo, de acordo com toda a justiça.” Pois sendo feita do nada, a criatura também existe sobre um abismo de nulidade, sempre pronta a cair nele (De incarnatione, 4 e 5). “Que teremos que morrer um dia, é tão certo como não se pode recolher a água que se espalhou pela terra.” (2 Sam. 14:14). “O estado de natureza”, do qual Santo Atanásio fala, é o movimento cíclico do Cosmos, no qual o homem caído está irremediavelmente enredado, e este enredamento significa a degradação do homem. Ele perde sua posição privilegiada na ordem da Criação. Mas esta catástrofe metafísica é apenas uma manifestação da relação interrompida com Deus.

The Body – A Study in Pauline Theology [O Corpo – Um Estudo da Teologia Paulina], John A. T. Robinson, SCM Press, Inglaterra, 1952, pág. 14. (A capa acima é da edição de 1977):

Segue-se daí que a terceira e talvez mais abrangente de todas as antíteses gregas, entre corpo e alma, é também alheia ao hebraico. A concepção helênica do homem foi descrita como a de um anjo em uma máquina caça-níqueis, uma alma (o ego invisível, espiritual, essencial) aprisionada em uma estrutura de matéria, da qual ela espera ser finalmente libertada. O corpo não é essencial para a personalidade: é alguma coisa que um homem possui, ou então é possuída por ele. “A ideia hebraica de personalidade”, por outro lado, escreveu o falecido Dr. Wheeler Robinson em uma frase que ficou famosa, “é um corpo animado e não uma alma encarnada” (The People and the Book [O Povo e o Livro], pág. 362). O homem não tem um corpo, ele é um corpo. Ele é carne-animada-pela-alma, o todo concebido como uma unidade psico-física: “O corpo é a alma em sua forma externa” (J. Pedersen, Israel, I-II, 171). Não há qualquer sugestão de que a alma seja a personalidade essencial, ou que a alma (nephesh) é imortal, enquanto a carne (basar) é mortal. A alma não sobrevive a um homem, ela simplesmente desaparece, escoando-se com o sangue.

Ingen död kan döda oss” [“Morte Alguma Pode Eliminar-nos”], Nils Fredrik Bolander, Estocolmo, Suécia, setembro de 1952:

Às vezes encontramos uma religiosidade vaga que fala da morte como redenção e libertação. Na libertação por meio da morte, dizem eles, o homem vai para casa, para Deus. Mas isto não é verdade. Em todo o caso, a Bíblia não ensina isso. Ela afirma clara e definitivamente que não é a morte, e sim o dia de Jesus Cristo que vem com a ressurreição dos mortos e a redenção.

… Devemos alcançar uma fé pessoal em Cristo. Jesus diz: ‘Eu sou a ressurreição e a vida: Aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá.’ … Onde essa fé simples, sem artifícios e abençoada arde em um coração humano solitário, uma nova luz vem sobre o ser.

A History of Western Philosophy – The Classical Mind [Uma História da Filosofia Ocidental – O Pensamento Clássico], William Thomas Jones, Harcourt, Brace & World, EUA, 1952 (a capa acima é da Segunda Edição, 1969), pág. 168:

Há algumas semelhanças óbvias entre o deus de Platão e o Deus cristão. Assim como o Deus cristão, o deus de Platão é bom; ele é um criador; o que ele cria é um universo orientado e ordenado em termos do destino humano. Por causa dessas semelhanças e também por outras razões, o platonismo, conforme veremos mais adiante, teve uma influência marcante no CristianismoGrande parte do pensamento do início da Idade Média era platônico, no sentido de que muitos dos pais da Igreja formularam suas percepções cristãs específicas dentro de uma filosofia cujos conceitos básicos foram tomados emprestados de Platão.

The Art of Dodging Repentance [A Arte de Esquivar-se do Arrependimento], David Richard Davies, Canterbury Press, Atlanta, GA, EUA, 1952, págs. 84, 85:

A alma do homem não necessariamente é automaticamente imortal. Ela é passível de ser destruída. A Bíblia não oferece qualquer fundamento para se acreditar que a alma é imune à morte e destruição. A alma pode ser destruída.

A imortalidade da alma não é uma doutrina bíblica, e sim filosofia grega. A doutrina bíblica sobre a alma é a da ressurreição dos mortos. O homem é um ser criado. Deus o criou a partir do nada. O homem foi criado para a imortalidade, mas por sua própria rebelião contra Deus, fez-se mortal.

A ideia da imortalidade da alma deriva da filosofia grega que concebia a vida após a morte do Hades, um mundo inferior fantasmagórico e sombrio, no qual a alma vivia uma existência decaída. Traduzimos a palavra grega, Hades, pela nossa palavra inglesa inferno, que pensamos ser um lugar de dor e tormento. Mas o Hades grego não era um lugar de tormento. O inferno como tormento derivou mais da Geena hebraica do que do Hades grego, que era uma existência inferior e sombria, desprovida de paixão e sofrimento. Era o produto do conceito grego dos homens como um composto de matéria e alma, que a morte separava, libertando a alma da prisão da matéria para uma existência independente.

O conceito hebraico do homem era totalmente diferente. Na Bíblia o homem é considerado como uma unidade de ‘vida’ ou espírito, que se manifesta como alma e corpo. Uma vez que o homem se fez mortal, sua alma, em consequência, também participa da mortalidade. O homem não é um composto de duas entidades diferentes, matéria e espírito, e sim uma unidade de espírito funcionando como matéria e alma. É esta unidade que é mortal.

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Essai sur la pensée hébraïque [Ensaio Sobre o Pensamento Hebraico], Claude Tresmontant,éd. O.E.I.L., Paris, França, 1953. (A capa da versão em francês, acima, é de uma edição de 2017. Título em inglês: A Study of Hebrew Thought [Um Estudo do Pensamento Hebraico], Nova Iorque: Desclee, 1960), pág. 94 (da edição em inglês):

… devemos ter o cuidado de evitar interpretar o conceito hebraico de alma em termos do dualismo platônico. Visto que não reconheciam qualquer dicotomia corpo-alma, os hebreus não consideravam a alma como a coisa desencarnada que nós imaginamos ser. E é só porque nós a opomos ao “corpo” que pensamos nela deste modo. Em hebraico, a alma é o homem. De fato, não devemos dizer que o homem tem uma alma, e sim que ele é uma alma; nem, conseqüentemente, que ele tem um corpo, e sim que ele é um corpo.

Thomas Walter Manson, The Servant Messiah – A Study of the Public Ministry of Jesus (O Messias Servo – Um Estudo do Ministério Público de Jesus), Cambridge University Press, Cambridge, Inglaterra, 1953, págs. 89-91. (A capa acima é da edição de 1961):

Há muitas incertezas a se ter em conta ao traçar a história de Jesus e da Igreja primitiva, mas aqui está uma certeza: o Ministério de Jesus não foi interrompido. As autoridades romana e judaica mal haviam começado a se cumprimentar por terem lidado com outra crise de maneira política, quando a crise estava de novo sobre eles, em uma nova forma. Os discípulos, intimidados e desanimados, mal começaram a se perguntar o que deveriam fazer a seguir ou aonde poderiam ir com segurança, quando a resposta lhes foi dada da maneira que menos esperavam. O crucificado estava vivo novamente e ativo entre eles. Desde o primeiro domingo de Páscoa, o refrão recorrente na fala dos discípulos, seja entre eles ou em contato com outras pessoas, é: ‘Ele ressuscitou’, ‘Deus o ressuscitou dentre os mortos’. É a ressurreição de Jesus que é afirmada e crida, não a imortalidade das almas, incluindo a alma de Jesus.

Desse modo, é imprtante esclarecermos o que a palavra ‘Ressurreição’ significava nos tempos do Novo Testamento. Isso não tinha nada que ver com a sobrevivência de espíritos desencarnados em alguma esfera celestial. Pelo contrário, era essencialmente uma restauração à vida neste mundo, trazer de volta a pessoa morta do mundo inferior frio e sombrio para retomar seu lugar entre seus parentes e amigos e recuperar a saúde e o vigor que eram dela antes de morrer. Ainda que as condições da existência tivessem mudado drasticamente antes de a ressurreição ocorrer, era reconhecidamente a mesma pessoa que retornava para se juntar às pessoas, que a reconheceriam. E, por mais que as condições tivessem mudado, presume-se que haveria uma real continuidade de propósito e atividade entre a nova vida e a antiga, assim como há uma real continuidade de personalidade entre o homem que morreu e o homem que retorna à vida.  Em nossa experiência comum, a coisa mais próxima do conceito judaico e cristão primitivo de morte e ressurreição é adormecer e acordar; e é um fato muito significativo que a primeira referência inconfundível à ressurreição dos mortos no Antigo Testamento é feita em termos de dormir e acordar: ‘E muitos daqueles que dormem no pó da terra despertarão, alguns para a vida eterna e alguns para vergonha e desprezo eterno.’ E igualmente, quando não há expectativa de uma ressurreição, a maneira natural de expressar isso é em termos de um sono do qual não se acorda:

O homem se deita, e não se levanta; até que não haja mais céus, não acordará nem despertará de seu sono. (Jó 14:12)

Ora, uma das maravilhas da vida é justamente o fato de que quando saio do estado de inconsciência em qualquer boa manhã, percebo ao mesmo tempo que sou a mesma pessoa que estava viva em minha casa ontem e dormiu lá ontem à noite. A tarefa que deixei inacabada ontem ainda está lá, ainda é minha tarefa, e posso continuar de onde parei. Os planos que eu estava fazendo ontem ainda estão lá, aguardando mais considerações e elaboração. Essa continuidade da personalidade e da vida é uma grande maravilha: e é apenas uma familiaridade excessiva com ela que esconde sua maravilha de nós. Quando tentamos pensar na morte e na ressurreição como os primeiros cristãos as concebiamo melhor que podemos fazer é pensar em termos de dormir e acordar e a maneira maravilhosa como o eu governa todas as noites para atravessar o abismo escuro da inconsciência e chegar ao outro lado, com todas as suas esperanças e medos, alegrias e tristezas, lembranças do passado e planos para o futuro.

É um corolário disso que, quando as pessoas buscam evidências da imortalidade da alma, tendem a se contentar com argumentos filosóficos, dos quais o Fédon [de Platão] é um exemplo magnífico, ou com as alegadas comunicações do mundo espiritual. As evidências da ressurreição precisam estar mais intimamente conectadas com este mundo; e esse é o caso das evidências da ressurreição de Jesus. 

The Pocket Commentary of the Bible, Part One: Book of Genesis [Comentário Bíblico de Bolso, Parte Um: Livro de Gênesis], Basil Ferris Campbell Atkinson, publ. por Henry E. Walter, Inglaterra, 1954, pág. 32:

Pensou-se às vezes que a transmissão do princípio da vida, como é trazido diante de nós neste versículo, implicou imortalidade do espírito ou da alma. Afirma-se que, ser feito à imagem de Deus envolve a imortalidade. A Bíblia nunca diz isso. Se isso envolve a imortalidade, por que não envolve também a onisciência ou onipresença, ou qualquer outra qualidade ou atributo do Infinito? Por que se aplicaria a um só atributo? O fôlego da vida não foi soprado no coração do homem, e sim em suas narinas. Ele envolveu vida física. Ao longo da Bíblia o homem, à parte de Cristo, é concebido como feito de pó e cinzas, uma criatura física, a quem o princípio da vida é emprestado por Deus. Os pensadores gregos tendiam a conceber o homem como uma alma imortal aprisionada num corpo. Esta ênfase é oposta à da Bíblia, mas encontrou um amplo espaço no pensamento cristão.

Eternal Hope [Esperança Eterna], Emil Brunner, 1954, págs. 100, 101, 105-107:

Depois de considerar o conceito histórico generalizado, da ‘sobrevivência da alma após a morte’ como ‘a separação da alma do corpo’, ele afirmou:

“Para a história do pensamento ocidental, o ensino platônico da imortalidade da alma veio a ser de significado especial. Ele penetrou tão profundamente no pensamento do homem ocidental que, ainda que com certas modificações, foi assimilado pela teologia cristã e pelo ensino da Igreja, sendo até mesmo declarado pelo Concílio de Latrão de 1512 [1513] como um dogma, contradizê-lo era uma heresia.”

Daí, ele acrescentou:

“Só recentemente, como resultado de um entendimento aprofundado do Novo Testamentolevantaram-se sérias dúvidas quanto à sua compatibilidade com a concepção cristã da relação entre Deus e o homem.”

Segundo o platonismo:

“O corpo é mortal, a alma imortal. A casca mortal, esconde esta essência eterna que na morte é libertada de sua concha externa.”

Depois de observar que ‘esta concepção dualista do homem não corresponde à perspectiva cristã’, Brunner então comentou:

“Uma vez que esta maneira de roubar do mal o seu aguilhão corre necessariamente em paralelo com a representação inócua da morte por meio do ensino sobre a imortalidade, esta solução do problema da morte está em oposição irreconciliável com o pensamento cristão.”.

Comentando ainda sobre a ‘doutrina da imortalidade da alma’, que o cristianismo medieval ‘extraiu da filosofia grega’, ele observa que isso era` ‘totalmente estranho ao seu [do Cristianismo] próprio ensino fundamental.’ E acrescenta:

“A opinião de que nós homens somos imortais porque nossa alma é de uma essência indestrutível, por ser divina, é, de uma vez por todas, irreconciliável com o conceito bíblico de Deus e do homem.”

“A crença filosófica na imortalidade é como um eco, que tanto reproduz como falsifica a Palavra primária desse Criador divino. Ela é falsa porque não leva em conta a perda real desse destino original, devido ao pecado”.

The Nature and Destiny of Man [A Natureza e o Destino do Homem], Karl Paul Reinhold Niebuhr, Scribners, 1955, (Gifford Lectures at Edinburgh, 1939), Vol. 1, págs. 5, 7, 13, 153 (nota de rodapé), 172; Vol. 2, págs. 294, 295, 298:

“o conceito de uma mente imortal em um corpo mortal permanece desconhecido até o final.”

“O Platonismo de Orígenes destrói completamente o sentido bíblico da unidade do homem.”

“A concepção inteiramente platônica de Gregório [de Nissa] da relação da alma para com o corpo é vividamente expressa em sua metáfora do ouro e da liga.”

“A ideia da ressurreição do corpo é um símbolo bíblico que as mentes modernas tomam como a maior ofensa e que há muito foi substituído na maior parte das versões modernas da fé cristã pela ideia da imortalidade da alma. Esta última é considerada como uma expressão mais plausível da esperança de vida eterna.”

“A ressurreição não é uma possibilidade humana no sentido que se pensa que a imortalidade da alma é. Todas as evidências plausíveis e implausíveis da imortalidade da alma são esforços por parte da mente humana de dominar e controlar a consumação da vida. Todos tentam provar, de uma maneira ou de outra que um elemento eterno na natureza humana é merecedor e capaz de sobrevivência além da morte.”

“A esperança cristã da consumação da vida e da história é menos absurda do que as doutrinas alternativas que buscam compreender e efetuar a conclusão da vida por meio de algum poder ou capacidade inerente ao homem e sua história.”

Christian Words and Christian Meanings [Palavras Cristãs e Significados Cristãos], John Burnaby, Hodder e Stoughton, Londres, Inglaterra, 1955, págs. 148, 149:

Os filósofos gregos argumentavam que a dissolução que chamamos de morte não ocorre com nada além dos corpos, e que as almas dos homens são por sua própria constituição imortais. A palavra grega para “imortalidade” ocorre apenas uma vez no Novo Testamento, e não pertence a ninguém a não ser o Rei dos Reis… A imortalidade da alma não faz parte do credo cristão, assim como não é parte da antropologia cristã dividir alma e corpo e restringir o verdadeiro homem, a essência da personalidade, à alma supostamente separável para a qual a encarnação é um aprisionamento… Jesus não ensinou doutrina alguma de vida eterna para almas desencarnadas, assim como nenhum judeu leal à fé de seus pais poderia ter aceitado ou mesmo compreendido isso. Mas a crença judaica era na ressurreição dos mortos no Último Dia.

The Resurrection of the Body and the Life Everlasting  (The Doctrines of the Apostles’ Creed Series, Number 6) [A Ressurreição do Corpo e a Vida Eterna (Série As Doutrinas do Credo Apostólico, Número 6)], Carroll Eugene Simcox, Forward Movement Publications, EUA, 1955, trechos das págs. 3-8:

Nosso primeiro passo lógico é fazer uma distinção entre duas coisas bem diferentes: imortalidade e ressurreição.

… A maior parte dos não-cristãos sempre acreditou em algum tipo de imortalidade do homem e, portanto, em alguma vida além-túmulo. Muitos vislumbraram uma vida futura que é realmente bela e gloriosa. Mas eles basearam sua esperança nesta vida por vir inteiramente na teoria da imortalidade do homem. A essência desta teoria é que há algo imperecível no próprio homem, que a morte não pode destruir: como esse algo não pode morrer, o próprio homem não pode morrer. Esta teoria de algo imperecível no homem se recomendou à razão da maioria dos homens mais sábios. Porém, ela nunca pode ser mais do que uma teoria. Se a teoria for falsa, a esperança do homem pela vida além da morte baseia-se num mau palpite.
  
… O cristão tem uma razão completamente diferente para crer na vida por vir. Ele crê na ressurreição e acredita ter razão suficiente para considerar a ressurreição não como teoria e sim como um fato estabelecido.
  
… [Segundo esta teoria da imortalidade] enquanto o homem está nesta vida atual, sua alma e seu corpo estão em uma parceria temporária de ação. A alma é por natureza imortal: ela não pode morrer. É o algo imperecível. O corpo é mortal e deverá morrer. O que acontece, então, na morte? A parceria da alma e do corpo é desfeita. O corpo se desintegra em pó e, para todos os efeitos práticos, deixa de existir.

… Porém, isso é tudo um palpite sobre o Grande Talvez, quer pensemos que ele é um palpite razoável, quer não. Isso jamais pode ser estabelecido como uma certeza. Devemos entender que isto pode ser nada mais do que aquilo que os psicólogos chamam de projeção de desejo: uma fantasia decorrente de puro wishful thinking [desejo de acreditar em alguma coisa].
  
… Esta doutrina da imortalidade não é distintamente cristã. A maioria dos cristãos acredita nisso, mas não nos fundamentos bíblicos e cristãos. A Bíblia não ensina isso. A Bíblia não conhece tal distinção nítida e desmembramento radical entre alma e corpo. Esta doutrina, em sua forma familiar, chegou até nós, não do povo de Israel e dos primeiros cristãos, e sim dos filósofos da Grécia: os conjecturadores mais brilhantes de toda a história, mas ainda assim conjecturadores.
  
… Uma diferença importante entre ela [a ressurreição] e a doutrina da imortalidade é esta: a doutrina da ressurreição encara o homem como um todo. Ela não divide o homem em duas ou mais partes. Isso [a divisão em partes] permite-nos chamar algo no homem de “alma”, algo mais no homem de “mente”, algo mais de “corpo”; mas a Bíblia nunca teoriza sobre isso. Se o homem vive, o homem inteiro vive; se o homem morre, o homem inteiro morre; se o homem sofre, o homem inteiro sofre – alma, mente, corpo, tudo dele. Quaisquer que sejam os elementos que compõem uma vida humana, sua união – e não sua diversidade – é o fato importante sobre eles. O homem é um ser único na vida e na morte.

… Se basearmos nossa esperança de vida após a morte na teoria da imortalidade, estaremos colocando nossa fé no homem, nesse algo imortal no homem. Se basearmos nossa esperança no fundamento cristão da ressurreição, estaremos depositando nossa fé em Deus e não no homem, no poder e bondade divinos, e não na natureza humana. Certamente isto faz uma tremenda diferença, se acreditarmos em Deus acima de tudo. A teoria da imortalidade diz que viveremos além do túmulo porque somos incapazes de morrer. A afirmação cristã da ressurreição (é uma afirmação, não uma teoria, como veremos mais adiante) assevera que nós viveremos além do túmulo porque Deus, em Seu poderoso amor e poder amoroso, nos levanta da morte para a vida. Em quem depositaremos nossa confiança: em Deus ou em nós mesmos?
  
… Eu afirmo que a pessoa inteira – como poderíamos dizer hoje “a personalidade completa” – é levantada da morte para a vida eterna pelo poder de Deus.

The Pauline View of Man in Relation to its Judaic and Hellenistic Background [O Conceito Paulino do Homem em Relação ao Seu Contexto Judaico e Helenístico], Walter David Stacey, MacMillan & Co, Londres, Inglaterra, 1956, pág. 88 (os termos em hebraico na citação foram transliterados):

… nephesh met em Num. 6:6 não se refere a um cadáver, mas significa que a alma ainda estava presente, apesar de a morte já ter ocorrido. Ele cita Jó 14:22: “Mas a sua carne sobre ele terá dor, e sua alma dentro dele pranteará”, para provar que a corrupção afetava tanto o corpo como a alma juntos.

O Dr. Oesterley argumenta que a nephesh poderia “entrar e sair do corpo à vontade”. Ele ressalta que a partida da alma de Raquel significava a morte (Gênesis 35:18) e o retorno da alma da criança (1 Reis 17:22) significava vida. Não se pode negar isto, mas devemos ter cautela em inferir, com base nestas referências, uma noção dualista de corpo e alma que está em desacordo com a inclusividade fundamental que é a chave para a psicologia hebraica. Essas referências mostram que a nephesh pode deixar o corpo e retornar, mas ao lado delas devem ser postadas referências tais como Prov. 25:25 e 27:7, onde água e mel deleitam a alma, mostrando que corpo e alma estão inseparavelmente ligados. A única solução é que o Antigo Testamento não é inteiramente consistente em seu entendimento de nephesh. Ela é nutrida por meio do corpo, mas pode partir dele. Todavia, não se segue que a nephesh poderia levar uma existência independente fora do corpo. A partida da nephesh coincidia com a cessação da vida, o que significa que nephesh era a força vital. A vida incorpórea para a nephesh jamais foi visualizada. A morte afetava a alma (Núm. 23.10), tanto quanto o corpo, e se a nephesh aparece novamente no Seol, é apenas para uma existência inferior, e mesmo essa existência não é imaterial.

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The Siege Perilous: Essays in Biblical Anthropology and Kindred Subjects [O Terreno Perigoso: Ensaios em Antropologia Bíblica e Assuntos Afins], Samuel Henry Hooke, S.C.M. Press, Londres, Inglaterra, 1956, págs. 201, 202:

O que o Cristianismo Herdou do Judaísmo?

A forma como a Igreja recebeu e continuou a manter a crença na ressurreição foi, e continuou sendo judaica. O falecido professor H. Wheeler Robinson bem enfatizou esta conexão:

‘É uma vida na terra, porém com novas condições, e é uma vida de ressurreição, envolvendo a restauração do corpo morto. Esta forma de crença é considerada como inevitável, a partir do momento em que entendemos o conceito hebraico da personalidade; uma ressurreição do corpo era a única forma de triunfo sobre a morte que a psicologia hebraica poderia conceber para os que estão realmente mortos. Até S. Paulo recua diante da ideia da existência sem corpo.’ (Inspiration and Revelation in the Old Testament [Inspiração e Revelação no Antigo Testamento], págs. 101-2).

A doutrina grega da imortalidade, que encontra sua primeira expressão judaica na Sabedoria de Salomão, e que concebe uma imortalidade da alma à parte do corpo, não ocorre no Novo Testamento nem nos Credos. Até os Pais Alexandrinos parecem presumir a identidade do “corpo espiritual” mencionado por São Paulo com o corpo terrestre, sem, porém, explicar a natureza da identidade. O valor permanente deste elemento da herança judaica é, no mínimo, aberto à questão, e o Quarto Evangelho parece representar uma tentativa de reinterpretar a escatologia cristã primitiva e, especialmente, a expectativa da Parousia, de modo a remover alguns dos seus aspectos menos desejáveis.

Body and Soul: A Study on the Christian View of Man [Corpo e Alma: Um Estudo Sobre o Conceito Cristão do Homem], Derwyn Randolp Grier Owen, Westminster Press, Filadélfia, EUA, 1956, págs. 29, 41, 59, 61, 62, 77, 163, 164, 177 e 178:

Se nos voltarmos para a Bíblia, porém, conforme veremos depois, descobrimos que um conceito bem diferente sobre o homem é assumido ao longo dela. Aqui não há dualismo e dificilmente alguma ideia da imortalidade da alma individual e independente

Platão permanece até o fim como um dualista antifísico. É ele, e seus seguidores, que são, acima de tudo, responsáveis ​​por impor a antropologia ‘religiosa’ no pensamento ocidental…

Esta última crença em especial – a ideia de que a alma pode existir sem o corpo – obviamente implica alguma forma de dualismo corpo-alma… Esse dualismo corpo-alma era uma ideia implícita necessária para a doutrina grega da imortalidade da alma

Ora, há alguns trechos bíblicos isolados que podem sugerir a ideia da imortalidade da alma, no sentido grego, mas o conceito bíblico normal é bem diferente: no Novo Testamento é a ressurreição do corpo que está enfatizada, e esta doutrina é quase uma contradição direta da escatologia “órfica”. Porque, então, os Pais [da Igreja] se inclinaram para essa noção em grande parte não bíblica?…

O fato é que a adoção da ideia “religiosa” da imortalidade da alma separável pelos Pais [da Igreja] obrigou-os à doutrina do dualismo corpo-alma

A ideia do estado intermediário por fim redundou na doutrina do purgatório

Os Pais [da Igreja] ficaram, sem dúvida, impressionados com a força dos argumentos apresentados pela filosofia grega para provar a imortalidade da alma. E, finalmente, é claro, a ideia de um estado intermediário deu ao ser humano outra chance de ser purgado de seus pecados antes do julgamento final. Foi o desenvolvimento desta noção que levou à doutrina do purgatório, com todas as superstições e práticas questionáveis ​​que, com o tempo formaram o sistema purgatorial e, no fim, forneceram parte da causa imediata da Reforma

A resultante antropologia deles [os Pais da Igreja] era uma mistura de ideias bíblicas e gregas. À doutrina do Novo Testamento sobre a ressurreição do corpo eles acrescentaram a ideia de um estado intermediário em que a alma existe à parte do corpo, aguardando sua recuperação no fim…

A antropologia “religiosa”, tanto quanto se refere ao pensamento ocidental, é grega e não bíblica na origem. Ela é também típica das religiões orientais em geral, como o Hinduísmo e o Budismo. Ela aparenta ser caracteristicamente “religiosa”, e por este e outros motivos tende a insinuar-se e corromper o conceito cristão do homem. Isto aconteceu, conforme vimos, nos períodos patrístico e medieval, e o catolicismo e o protestantismo modernos tendem a perpetuar esse antigo erro…

O conceito bíblico do homem é totalmente diferente do conceito ‘religioso’…

Os pontos em questão giram em torno dos conceitos de “corpo” e “alma”. A “antropologia religiosa” (em contraposição com a bíblica) adota um dualismo extremo, afirmando que o corpo e a alma são duas substâncias diferentes e distintas. Ela afirma que a alma é de origem divina e imortal por natureza e que o corpo é a fonte corruptível de todo pecado e maldade. Ela recomenda o cultivo da alma na separação do corpo, e defende a supressão de todos os apetites físicos e impulsos naturais. Ela considera o corpo como o túmulo ou prisão da alma da qual ela anseia por se libertar. Finalmente, ela tende a supor que a alma, mesmo em sua existência ligada à terra, é totalmente independente do corpo e por isso goza de uma liberdade de escolha e ação irrestrita pelas leis que reinam no mundo físico…

Os hebreus não tinham ideia alguma da imortalidade da alma, no sentido grego… Para eles, era impossível até mesmo conceber a existência humana sem corpo

A ideia da imortalidade da alma, no sentido grego pode ser sugerida em algumas passagens da literatura sapiencial e é definitivamente encontrada em lugares nos Apócrifos. Esta linha de raciocínio foi desenvolvida posteriormente no Judaísmo Helenístico da Escola Alexandrina, no período intertestamental, dentro do qual o filósofo religioso Filo é o exemplo notável.

Gerhard von Rad, Theologie des Alten Testaments [Teologia do Antigo Testamento] (Bd. 1: Die Theologie der geschichtlichen Überlieferungen Israels; Bd. 2: Die Theologie der prophetischen Überlieferungen Israels) [Vol. 1: A Teologia das Tradições Históricas de Israel; Vol. 2: A Teologia das Tradições Proféticas de Israel], 1957 (a capa acima é do Volume 1 da edição de 1958). O que segue foi extraído de Teologia do Antigo Testamento – Volumes 1 e 2, Gerhard von Rad, 2ª edição em português, Edições Targumim, São Paulo, Brasil, 2006; págs. 150, 151, notas de rodapé omitidas):

As concepções da natureza do ser humano não são nada uniformes no Antigo Testamento. Aliás, nem sequer é possível esperar tal uniformidade, porque no material de documentação do Antigo Testamento encontramos elementos que refletem as concepções das mais variadas épocas e contextos. Além disso, para Israel era de interesse ainda mais remoto querer uniformizar e normalizar esse sistema de concepções antropológicas, do que fazê-lo com as suas tradições teológicas. O conceito mais importante dessa antropologia é o da néfesh. Ela representa o que é vivo. A palavra ainda foi conservada, algumas poucas vezes, no seu significado básico, “garganta, goela” (Is 5.14, etc.). Designa, no sentido mais amplo, o aspecto vital no ser humano: A néfesh passa fome (Dt 12.15), ela tem nojo (Nm 21.5; Ez 23.18), ela odeia (2Sm 5.8), ela se irrita (Jz 18.25), ama (Gn 44.30) e fica de luto (Jr 13.17); e sobretudo: ela pode morrer (Nm 23.10; Jz 16.30), isto é, ela “sai” (Gn 35.18); às vezes, ela “retorna” (lRs 17.21s). Como o hebreu não fazia uma separação entre as funções espirituais e as vitais do corpo (basar), deveríamos abster-nos, sempre que de alguma forma fosse possível, de traduzir néfesh por “alma”. Ela mora na “carne” (Dt 12.23 ), mas dela se distingue nitidamente (Is 10.18). Os animais também têm uma néfesh; as plantas, porém, não. Ao aspecto espiritual no ser humano se aproxima mais a palavra ruah, nos casos relativamente raros em que aparece e em que é usado no sentido antropológico e não para designar um carisma. A sede de todas as atividades mentais do ser humano é o “coração” (leb). Mas o exegeta sempre precisa lembrar que esse conceito é muito mais amplo que o nosso “coração”. Leb é a sede não só de toda vivência emocional, mas também da razão e da vontade. As emoções psíquicas mais secretas se situavam nos rins (kelayot, Sl 73.21; Jr 17.10, etc.).

Gilbert Thiele, The Resurrection of the Body and the Immortality of the Soul [A Ressurreição do Corpo e a Imortalidade da Alma], artigo originalmente não publicado, 1957, págs. 5, 6. (Depois este artigo foi publicado com o título “Easter Hope” [A Esperança da Páscoa] em The Seminarian [O Seminarista] (Lutheran Theological Seminary, Filadélfia, EUA), março de 1958):

Que tragédia que esta perversão, compreensível e derivada da visão socrática e do pressuposto platônico, mas imperdoável como primeira ou última palavra para os cristãos, tenha se tornado parte da soma e substância de muita teologia que é conhecida nossa! Quando falamos: Você tem uma alma imortal que Cristo morreu para salvar; e quando você morre sua(s) alma(s) vai(ão) para Deus e para o céu. Isso não é reconfortante? – quando falamos assim, estamos essencialmente falando a linguagem de Platão, de Lessing, dos pensadores iluministas ingleses e continentais, da maçonaria, do pior de toda a oposição à Igreja primitiva, do gnosticismo e do docetismo…

Ademais, a morte é final. Este é o mais sombrio de todos os aspectos da morte – ela é o fim. Quando você morre, “você acabou.” Não há “qualquer lembrança” – de Deus [Sal. 6:5], de você mesmo, não obstante os poucos trechos [bíblicos] que parecem indicar uma medida de esperança. Cremos, portanto, que é justo dizer, com franqueza, que quando um homem morre, ele está morto. A Bíblia, quando examinada em sua largura e profundidade, não conhece qualquer condição desencarnada em que o homem vive, temporariamente e certamente não permanentemente; não conhece nem uma imortalidade temporária nem permanente como tal. O homem, conforme o relato do Gênesis parece indicar, pode até ter sido originalmente criado para viver para sempre, como ele era ou mesmo ainda mais enobrecido do que era; mas certamente desde sua queda ele é um Todes-Kandidat [no “corredor da morte”] (goner [caso perdido {ou: liquidado}]). Nem a dicotomia corporal nem a psíquica e, consequentemente, nem uma imortalidade corporal nem psíquica separadas são ensinadas nas Escrituras.

Christian Belief: An Exposition of the Basic Christian Doctrines [A Crença Cristã: Uma Exposição das Doutrinas Cristãs Básicas], Alec Roper Vidler, SCM Press, Inglaterra, 1957, trechos das págs. 110-113:

A imortalidade da alma – se isto significa que há uma parte de todo homem, uma espécie de substância da alma, que é imortal – não é uma doutrina cristã, embora com frequência se tenha suposto ser, e ainda seja frequentemente confundida com a doutrina cristã. A expressão “imortalidade da alma” não ocorre na Bíblia. A Bíblia se preocupa com Deus e sua relação com a humanidade. Ela não fala sobre qualquer capacidade inerente à alma humana de sobreviver à morte

Não é da imortalidade da alma, e sim da ressurreição do corpo que a crença cristã, assim como a Bíblia, fala. Na nova criação imortal de Deus, os homens não são fantasmas; eles não são espíritos desencarnados; eles não são absorvidos em uma alma cósmica inconsciente. Eles retêm sua identidade pessoal, pois o propósito de Deus para eles é uma herança na qual nada faltará para um relacionamento totalmente pessoal. A obra de Cristo é trazer não só almas, mas homens inteiros a um relacionamento completo e eterno com Deus…

Há outro ponto sobre a doutrina da ressurreição do corpo, distinta daquela da imortalidade da alma, que não deve ser menosprezado. A palavra “imortal” significa não estar sujeito à morte e, aplicada ao homem, deve significar que há, de qualquer maneira uma parte de um homem que não precisa e de fato não pode morrer. A palavra “ressurreição”, por outro lado, pressupõe a morte do homem inteiro, cada parte dele. E isso está de acordo com todo o período do Novo Testamento, pois o fato da morte universal é levado a sério. “Em Adão todos morrem.” Não se usam eufemismos como “passar” ou “partir”, que são populares hoje em dia. A morte com tudo o que ela ocasiona de separação, tragédia e mistério é uma necessidade amarga. A morte de um homem não é só natural como a morte dos animais ou vegetais; ela é também antinatural. Nós nos rebelamos contra ela.

The Oxford Dictionary of the Christian Church [Dicionário da Igreja Cristã de Oxford], Oxford University Press, Nova Iorque, EUA, 1957. (A capa acima é da Terceira Edição Revisada, 2005), O que segue foi extraído da 3ª Edição, F. L. Cross e E. A. Livingstone (eds.), 1997, págs. 822, 1520, 1521:

imortalidade. Embora em nenhum sentido seja uma doutrina especificamente cristã, a esperança da imortalidade é um elemento integral na crença cristã, onde recebe insistência enfática e uma forma característica. Nos tempos pré-cristãos, os gregos especialmente desenvolveram uma doutrina arrazoada sobre o assunto. A racionalidade do intelecto humano parecia implicar um parentesco essencial da alma com os princípios da razão, de forma tal que participaria de sua eternidade. À base deste parentesco, Platão inferiu a existência da alma antes do nascimento, bem como a sua sobrevivência após a morte e viu no processo de aprendizagem a reminiscência (αναμνήσις) do conhecimento possuído numa vida anterior. A luta do homem virtuoso em prol dos princípios eternamente válidos da moralidade também apontava para a mesma crença. Platão e outros gregos insistiam nas limitações que a matéria impunha à alma. O corpo era um impedimento, até mesmo uma prisão, da qual a morte traria a libertação da alma para uma existência mais completa.

Essas concepções filosóficas da imortalidade estavam comumente restritas a poucos. Nos primeiros tempos, o pensamento hebraico sobre o mundo vindouro dificilmente ia além da concepção de uma existência muito sombria [ou irreal] no Seol. No judaísmo pré-cristão posterior, desenvolveu-se um maior senso da realidade da vida futura, em parte através da reflexão sobre o problema do sofrimento, em parte pelo ardente desejo de uma comunhão permanente com Deus, em parte pela reformulação da expectativa messiânica. A esperança judaica tornou-se cada vez mais ligada à crença na ressurreição do corpo, especialmente entre os escritores apocalípticos. Especialmente fora da Palestina, o judaísmo tomou emprestado extensivamente do pensamento grego; no Livro da Sabedoria, por exemplo, a doutrina da imortalidade tem uma forte inclinação platônica

alma. A ideia de uma distinção entre a alma, o princípio imaterial da vida e inteligência, e o corpo é de grande antiguidade, embora só gradualmente tenha sido expressa com alguma precisão. O pensamento hebraico fez pouco desta distinção, e praticamente não há ensinamento específico algum sobre o assunto na Bíblia além de um pressuposto subjacente de alguma forma de vida após a morte (veja IMORTALIDADE). O pensamento grego, por outro lado, desenvolveu várias maneiras de entender a relação entre o corpo e a alma: desde a ideia platônica de que a alma imortal é o verdadeiro eu, preso por um tempo num corpo estranho, até o conceito estóico da alma como o ‘elemento principal’ (ἡγεμονικόν / hégemonikon) de uma unidade que inclui o corpo. Nenhum ensino preciso sobre a alma recebeu aceitação geral até a Idade Média.

Esta incerteza se reflete nos escritos dos Pais [da Igreja]. Tertuliano, apoiando seu conceito no entendimento material da parábola de Dives e Lázaro e influenciado por noções estoicas, defendia a corporeidade da alma, um erro do qual nem mesmo S. Irineu parece ter estado inteiramente livre. Orígenes, por outro lado, foi levado por sua erudição fortemente platônica a afirmar a pré-existência dela e explicou seu confinamento em um corpo como um castigo por pecados cometidos em seu estado incorpóreo anterior. No período pós-Niceno, estas divergências desapareceram em grande parte, e um conceito platônico modificado, que encarava a alma como o verdadeiro eu, imortal, mas não pré-existente, ganhou aceitação. A alma passou a ser universalmente considerada como uma imagem de Deus (Gên. 1:26). S. Agostinho deu a esta doutrina um novo giro por encarar a alma (constituída por memoria, intelligentia e voluntas [memória, inteligência e vontade]) como uma imagem da Trindade; esta formulação haveria de ter grande influência no Ocidente. Nemésio e S. Máximo, o Confessor fornecem a declaração mais elaborada da posição patrística grega.

De acordo com S. Tomás de Aquino, que segue Aristóteles na sua definição da alma humana, a alma é uma substância espiritual individual, a “forma” do corpo. Ambos, corpo e alma juntos, constituem a unidade humana, embora a alma possa ser separada do corpo e levar uma existência separada, como acontece após a morte. A separação, porém, não é final, visto que a alma, nesta forma diferente dos anjos, foi feita para o corpo. Como é puramente espiritual, a alma não é, como afirma o Traducianismo, um produto dos poderes geradores e, portanto, inteiramente materiais do homem, mas cada alma individual é uma nova criação de Deus, infundida no corpo destinado a ela (“Criacionismo”).

A partir do século 17, a dicotomia entre a alma e o corpo extremamente simplificada de R. Descartes (res cogitans e res extensa [mente e corpo]) teve um efeito marcante no pensamento teológico subsequente. Em tempos mais recentes, as perplexidades filosóficas sobre tal dicotomia e a recuperação do insight [discernimento] bíblico sobre a unidade do homem significam que a doutrina da alma, se considerada no todo, é pensada em relação à inteira doutrina bíblica do homem.

Life, Death and Destiny [Vida, Morte e Destino], Roger Lincoln Shinn, The Westminster Press, Filadélfia, EUA, 1957, págs. 81-84:

Os filhos fazem perguntas difíceis sobre cemitérios. Talvez todos nós façamos, mas as crianças as fazem em voz alta. A avó ficou doente, daí morreu. Alguém diz ao filho que a avó foi para Deus. Mas um dia a criança pergunta sobre o cemitério. A avó está no cemitério ou com Deus?

Uma resposta é: o corpo da avó está no túmulo, mas sua alma está com Deus. Com sorte essa resposta encerra as questões.

Daí, um dia a criança ouve o Credo dos Apóstolos: “Creio na… ressurreição do corpo.” A pergunta dela geralmente traz a resposta: “Isso quer dizer realmente a alma.” De vez em quando alguém insiste em que significa realmente o corpo. Talvez ele se oponha à cremação, porque quer seu corpo pronto para ser ressuscitado por Deus nos Últimos Dias – embora não esteja claro por que Deus haveria de ter mais problemas com as cinzas do que com carne decomposta.

Logo depois um argumento sem sentido está a caminho. Observe como o Novo Testamento rejeita estas suposições fúteis:

1 – Os saduceus contendedores perguntam a Jesus sobre a viúva que volta a se casar. (Só para bancar os espertalhões, eles dão a ela sete maridos sucessivos.) Quem será o marido dela no céu? Jesus, que nunca evita uma pergunta sincera, dá uma reprimenda nesta. Você não pode responder a perguntas sobre o céu em termos terrenos, ele lhes diz. Vocês não entendem o poder de Deus. (Veja Marcos 12:18-27).

2 – Alguém pressiona Paulo com uma pergunta sobre os corpos dos que são ressuscitados dentre os mortos. O apóstolo, que sempre aprecia uma boa pergunta, explode: “Ó insensato!” (1 Cor. 15:36).

Algumas perguntas são simplesmente fúteis. Sempre que usamos palavras da experiência comum para descrever as obras de um Deus infinito, as palavras não se encaixam perfeitamente. Respostas literais para perguntas sobre a vida após a morte são, em sua maioria, tolices.

Quando nos damos conta disso, podemos ir um passo além. Um artista espalha tintas numa tela plana para sugerir não só dimensões de profundidade, mas experiências ocultas do espírito humano. Um músico usa cordas vibratórias de intestinos de animais para transmitir alegria, humor, ou tristeza. As palavras têm um poder simbólico semelhante. Elas podem nos dizer mais quando percebemos suas inadequações do que quando pensamos que elas nos dão a verdade literal.

Quando os primeiros cristãos disseram “ressurreição do corpo”, eles não estavam enganando a si mesmos. Eles não eram pessoas de raciocínio lento que não tinham pensado na questão que a criança levanta sobre o cemitério. Eles disseram claramente que “carne e sangue não podem herdar o reino de Deus.” A decomposição de cadáveres não era problema para eles. No entanto, eles encontraram motivos para se apegar a essa ideia de um corpo – um “corpo espiritual”, como o chamaram. (Você pode encontrar tudo isso discutido em 1 Coríntios, cap. 15.).

O Novo Testamento poderia ter usado uma linguagem diferente. Todas as pessoas instruídas ouviram a teoria de que na morte a alma ascende ao céu, enquanto o corpo vai para a sepultura. Mas essa linguagem não se ajusta com os cristãos judeus que escreveram o Novo Testamento.

Os judeus nunca acreditaram que uma pessoa é uma alma mais um corpo – uma combinação separável conectada temporariamente. Hoje praticamente todos os psicólogos concordam com os judeus neste assunto. Quando falamos sabiamente da medicina psicossomática ou delineamos a disposição de uma pessoa pela atividade de suas glândulas, estamos fazendo (com precisão mais ou menos científica) o que os escritores bíblicos fizeram intuitivamente. Na história cristã, Agostinho fez o mesmo quando ele disse, nas palavras que todo o nosso conhecimento moderno justifica: “Pois o corpo não é um ornamento ou uma ajuda procedente do exterior, e sim parte da própria natureza do homem”.

Algumas pessoas de “mentalidade espiritual” argumentaram contra essa crença cristã. Elas citaram o Fédon, de Platão: “De onde vêm as guerras, e contendas, e facções? De onde, além do corpo e dos desejos do corpo?… E o que é a purificação, senão a separação da alma do corpo?” Para os cristãos isto era uma fraude completa. Significava aversão doentia do corpo e cegueira para com os pecados do espírito.

Assim, a Igreja apegou-se à sua preocupação com uma pessoa completa, e não com uma alma mais um corpo separável. Ela pregou a salvação de pessoas reais por Deus, não de almas místicas que poderiam ser absorvidas em alguma alma divina. Ela ensinou a preocupação de Deus para com a história, percebendo que a maior parte da história está conectada com corpos humanos. Assim, sob o risco de ser mal interpretada, ela continuou falando de uma ressurreição do corpo – o que significa, não os componentes químicos do corpo, e sim a totalidade do ser humano.

Nada disso nos diz literal e exatamente o que vai acontecer. É claro que não. “Ó insensato!” Não temos como saber.  A fé cristã, conforme vimos, fala de uma nova criação tão milagrosa como a primeira criação. A única base para a crença nela é a confiança em Deus. Se isso não nos convencer, não será alguma sedutora antecipação das próximas atrações que o fará.”

Biblical and Classical Views of Personality (thesis of Master of Arts) [Os Conceitos Bíblico e Clássico da Personalidade (tese de bacharelado)] – http://hdl.handle.net/10150/319602. Dana Prom Smith, Universidade do Arizona, EUA, 1958, págs 12-17:

O que acontece com o israelita quando ele morre? Qual é o seu destino final? A morte é encarada como uma forma de vida fraca. O homem se torna uma mera sombra de seu antigo eu. Há uma relativa fraqueza por parte dos mortos em comparação com a vitalidade do estado dos vivos. É precisamente por isso que o israelita ansiava por uma longa vida. Isto era um sinal do favor do Senhor. “Em suma, o conceito israelita normal, que domina a concepção do homem no Antigo Testamento, é que estar doente no corpo ou em fraqueza de circunstância é experimentar o poder desintegrador da morte e ser levado por Iavé aos portões do Seol; mas gozar de boa saúde e prosperidade material é ser permitido andar com Ele em plenitude de vida”. Portanto, não é bem apropriado dizer que o israelita não tinha qualquer concepção de vida após a morte. Ele tinha uma. A vida após a morte era fraqueza e falta de vitalidade. Isto está muito longe da ideia da indestrutibilidade de uma alma imortal que deixa o corpo na morte para desfrutar da felicidade perpétua.

Isso nos leva ao Novo Testamento e ao conceito do homem que prevalece ali. É muito bom começar com S. Paulo, pois aqui encontramos um certo conjunto de crenças atribuíveis a um homem. O restante do Novo Testamento, especialmente os Evangelhos, estará relacionado com o pensamento de Paulo …

É fácil ver como surgiu a confusão sobre o pensamento de Paulo acerca do corpo e da alma. As pessoas vêem a palavra sarx usada neste último sentido [o físico], e a identificam com o corpo físico. Paulo, como um bom hebreu, jamais poderia dizer que qualquer coisa que Deus tinha feito era intrinsecamente má. Neste uso da palavra sarx ainda vemos a mesma unidade da personalidade. A personalidade se pôs contra Deus. O conflito no homem entre espírito e sarx é um conflito moral e não um choque metafísico

A doutrina de Paulo sobre a ressurreição está diretamente relacionada ao nosso problema. Vimos como o Antigo Testamento não teve muito a dizer sobre o destino final do homem. Paulo não declara em sua doutrina da ressurreição que a alma e o corpo se separam. Ele afirma que o corpo físico é transformado em um corpo espiritual, o corpo mortal é transformado em um corpo imortal (1 Coríntios 15: 42-49).

Em outras palavras, o homem como um todo não se divide em duas ou três partes na morte com algumas continuando e outras deixando de existir. O homem como uma personalidade completa continua a sua existência. O homem não é um dualismo metafísico, mas uma unidade e esta unidade não é quebrada pela morte. A unidade é mudada de física para espiritual, e Paulo admite, que este é um mistério. O ponto importante para nossa consideração é que o homem não possui uma alma indestrutível que sobrevive à morte, enquanto o corpo destrutível perece. É a sarx ou a alienação que morre, não o soma ou a personalidade. Não há uma imortalidade da alma, e sim a ressurreição do corpo.

An Introduction to the Theology of the New Testament [Uma Introdução à Teologia do Novo Testamento], Alan RichardsonSCM Press, Londres, Inglaterra, 1958 (a capa acima é da edição de 1969), págs. 196, 197:

O fato de que o túmulo [de Cristo] foi encontrado vazio na manhã do domingo de Páscoa parece ser uma parte da παράδοσις [tradição] original da ressurreição, e não apenas uma adição posterior projetada para fins apologéticos (como talvez a história da guarda [romana] de Mateus seja; Mat. 27:62-66; 28:11-15). O manuscrito mais antigo de São Marcos termina com o achado do túmulo vazio pelas mulheres que tinham ido ‘bem cedo no primeiro dia da semana’ para ungir o corpo do Mestre crucificado (Marcos 16:1-8; compare com Mat. 28:1-7; Lucas 24:1-12, João 20:1-10). O conceito de que a ressurreição de Cristo foi uma questão puramente “espiritual”, enquanto seu cadáver permaneceu no túmulo, é muito moderna, baseada nas teorias derivadas da física do século 19 quanto à impossibilidade de um milagre. Os defensores deste conceito alegaram que não há referência ao Túmulo Vazio na παράδοσις [tradição] que S. Paulo recebeu (1 Coríntios 15:3-8) e que isso não poderia, portanto, ter sido parte da tradição primitiva. Contra este argumento, pode-se responder que S. Paulo e outros podem ter omitido a história da visita das mulheres ao túmulo porque não queriam que se pensasse que o argumento da ressurreição de Cristo dependia da evidência de mulheres histéricas. Porém, mais importante é a consideração de que, para S. Paulo, assim como para qualquer outro judeu da época, uma ressurreição meramente “espiritual” teria parecido ininteligível. Ao contrário dos gregos, os judeus não pensavam num homem como sendo constituído de corpo e alma; um homem era um corpo vivo. Se Cristo tinha ressuscitado dentre os mortos, ele fora ressuscitado no corpo. Assim, Paulo não podia conceber aqueles que ressuscitaram em Cristo como existindo em um estado desencarnado: eles têm um ‘corpo espiritual’ (1 Coríntios 15:44). As realidades espirituais, celestes ou terrestres, divinas ou humanas, são corporificadas em seus próprios estados corpóreos apropriadas (1 Coríntios 15:35-41). Quando a casa terrestre de nosso tabernáculo for dissolvida, seremos revestidos de nossa habitação do céu, de modo que não seremos encontrados nus (2 Coríntios 5:1-3), ou seja, com o tipo de nudez na qual os espíritos desencarnados estão. O conceito de uma pessoa desencarnada é repugnante para a mente hebraica; um πνεῦμα [espírito] é algo não natural, monstruoso e maligno, e a ideia de que o Cristo ressuscitado é um πνεῦμα [espírito] desse tipo é rejeitada com horror (Luc. 24:37). É extremamente improvável que S. Paulo teria considerado qualquer conceito da ressurreição de Cristo diferente da ressurreição física no sentido das narrativas do Túmulo Vazio.

A Murtonen, The Living Soul: A Study of the Meaning of the Word Næfæš in the Old Testament Hebrew Language [A Alma Vivente: Um Estudo do Significado da Palavra Næfæš na Linguagem Hebraica do Antigo Testamento], Studia Orientalia Edidit Societas Orientalis Fennica XXIII: 1, Helsínque, Finlândia, 1958, págs. 29-34:

Já estabelecemos que é bem natural que a alma morra. No OT, a palavra næfæš aparece expressamente nesta conexão 46 vezes. Nas versões – mais antigas bem como mais novas – ela é geralmente vertida nesses casos pelas palavras “morto”, “corpo”, um pronome ou algo assim. A seguir, damos alguns exemplos característicos:

Lev 22:4 afirma que qualquer sacerdote que toca qualquer coisa que seja impura por meio do contato com uma alma será impuro até a noite. A AV e a ARV traduzem næfæš aqui como “mortos”. Mas como pode næfæš, cujo significado usual é “o ser vivo do homem”, ter adquirido o significado de “morto”? Deve-se observar que a Bíblia em nenhuma parte fala de uma alma morta. Fala-se da morte de uma alma e a alma de um morto, mas nunca de uma alma morta. Em outras palavras, a alma é, de acordo com a antiga concepção israelita, passível de morrer, mas o resultado não é uma alma morta, e sim a alma de um morto. Isso torna provável que quando næfæš aparecem significando “morto”, uma abreviação está em questão, cujo equivalente mais distante é apenas “a alma de um morto”, næfæš met. Esta expressão mais completa aparece em Num. 19:13: “Quem tocar um morto, a alma do homem que está morrendo …” AV traduz: “… que está morto…”, ARV: “… que tiver morrido…”, mas o texto hebraico tem o imperfeito yamût “morre, está morrendo”. Creio que isso nos dá a solução do enigma. Aparentemente, a morte era concebida como um processo mais ou menos longo durante o qual o homem ainda era chamado de næfæš por conta da “vida” ou ação que ocorria em seu cadáver; talvez até o odor que vinha do cadáver tivesse alguma influência no assunto (confira I: 1: c).

Era possível usar a abreviação, porque só quando o homem (e muitos animais) estava morrendo ficava em tal estado no qual tocar nele normalmente causava impureza. Assim, todos entenderam sem mais explicações o que significava a expressão “impuro por meio de uma alma”. De modo similar, a tradução “corpo” está correta; conforme Johs. Pedersen diz, o corpo é a alma em sua forma externa, sua forma de manifestação de valor total e, neste caso, é justamente o corpo no qual se toca que causa impureza. Conseqüentemente, podemos dizer que, nestes casos, alma é = corpo, ou talvez mais apropriadamente – considerando a natureza funcional da alma – que o corpo representa a alma neles.

Num. 35:9 em diante designa cidades de refúgio para aqueles que sem intenção matavam uma alma, e em Jos. 20 lemos como esse mandamento é cumprido. O contexto mostra claramente que alma aqui, também significa o homem como ser individual (veja, por exemplo, Num. 35:16 em diante.); A AV e a ARV traduzem concordemente: “pessoa”. O desejo de Balaão em Num. 23:10: “Que minha alma morra a morte dos retos…” aparentemente deve ser interpretado de acordo com isso, particularmente porque o versículo seguinte que está em paralelismo com este, apoia essa interpretação em todos os aspectos: “que meu fim seja como o dele”. A mesma categoria é representada adicionalmente por Pro. 28:17 que fala do homem que é atormentado por causa do sangue de uma alma, ou seja, por ter matado alguém, e também por outros trechos nos quais se menciona o sangue das almas, Jer. 2:34, etc.

As palavras de Jó 7:15 são muito iluminativas e concretas: “Portanto, minha alma escolheria o estrangulamento…” À primeira vista, pode parecer como se alma aqui pudesse significar “pescoço, garganta”, mas a palavra “escolher” torna isso impossível. Evidentemente, o significado é o homem como um ser corporal. Eze 22:27, também, parece ter næfæš com esse significado, quando o Senhor diz acerca dos príncipes de Israel que “derramam sangue, destroem almas para obter lucro desonesto”, de modo semelhante 17:17: “destruir muitas almas”, mas em 13:19 o significado espiritual parece prevalecer (confira da pág. 55 em diante).

A concepção de “alma vivente e falecida” torna-se consideravelmente mais interessante e, à primeira vista, contraditória em si mesma, quando næfæš aparece – encarada no aspecto da vida – no seu significado normal “o ser vivo de seu possuidor” ou “seu possuidor como ser vivente”. A contradição seria inevitável se com a palavra “morte” a Bíblia quisesse dizer o que nós – pelo menos no uso diário – queremos dizer com essa palavra, a saber, que a morte seria o contraste da vida e, consequentemente, o fim absoluto desta última. Quando falamos deste modo estamos querendo dizer a chamada morte corporal, que pode ser melhor definida pela afirmação de que o corpo humano nele deixa de viver e de agir. Uma vez que o corpo é a forma de manifestação de valor completo da alma, e necessário para a existência da alma – sem o qual essa alma jamais existiria, Gen. 2:7 – temos razão suficiente para dizer que a morte corporal é ao mesmo tempo a morte da alma. Este mesmo é o significado das palavras em Deut. 19:11: “… e o feriu na alma, de modo que ele morreu…” O texto nada mais fala do que golpear um homem para que ele morra. É um homem que é golpeado, mas ele não é golpeado como um mero homem, e sim como uma alma, um ser vivo. O golpe atingiu sua alma; em consequência disso, ele morre, e, portanto, a morte dele é a morte de uma alma. Deve-se ter em mente que a concepção de “ser vivo e atuante do homem” não deve ser concebida espiritualmente demais. Abrange mesmo e acima de tudo, o corpo humano através do qual o homem age principalmente.

Mas existem trechos no AT que mostram que a existência de um homem como ser individual não terminava na morte. 1 Sam. 28:7 e seguintes nos conta que Saul recebeu informações de Samuel em En-Dor por meio de uma ba’alat ‘ob, “invocadora de espíritos”. Todavia, a história pode ser interpretada em outros aspectos, em todo caso, mostra que, de acordo com a concepção do OT, a existência individual de um homem continua após sua morte. Como prova da afirmação dessa crença, citamos Deut. 18:10, 11: “Não haverá entre vós… quem consulte espírito, nem feiticeiro, nem necromante”.

1 Sam. 28:3 diz também que Saul expulsou os médiuns e feiticeiros do país. Estes – e outros – trechos mostram que entre o povo havia pessoas que, apesar das proibições, praticavam esse tipo de feitiçaria, e, consequentemente, outras pessoas que usavam seus serviços, o que novamente indica que eles acreditavam que a existência dos homens continuaria após sua morte, e visto que em nenhum trecho do OT (nem mesmo Ecle 3:19, comp. com o  v. 21, nem Sal. 49:12, comp. com v. 15, 20), esta crença é negada expressamente – só a consulta aos mortos é proibida – temos razão suficiente para supor que esta é também a opinião de todo o AT. Ademais, 1 Sam 28:15, 20 pressupõe que o escritor realmente acreditava que Samuel havia aparecido, e não só que Saul ou a médium acreditavam nisso.

Todavia, uma outra questão ainda permanece: será que a forma de existência em que os mortos estão é uma do tipo que pode ser chamada de vida? Em outras palavras: a existência da alma continua após a morte de acordo com a Bíblia? Conforme sabemos, a residência dos mortos é comumente chamada no AT de seol. Esta palavra, que pode significar “uma cova, cavidade, poço”, significa às vezes uma única sepultura, às vezes o conjunto de todas as sepulturas ou o “mundo inferior”, conforme o contexto. Isto não é de modo algum excepcional na linguagem do AT; Como paralelo, podemos mencionar uma palavra como ‘es, que às vezes significa uma única árvore (por exemplo, Gen 2:17), às vezes o conjunto de várias, ou de todas as árvores (por exemplo, Gen. 1:11, 3:8). O homem moderno que não vive no mundo das ideias do AT tem uma tarefa difícil ao tentar entender como os túmulos cuja localização às vezes estava muito distante um do outro podiam formar um todo orgânico no qual se pensava que a unidade real existia, porque o homem moderno costuma usar a maneira individual de pensar. A Bíblia, porém, não pensa individualmente, e sim coletivamente, como os antigos semitas em geral. Todas as palavras que podem ser usadas como nomes de espécies são potencialmente coletivas, ou seja, elas podem significar tanto um simples indivíduo como um conjunto de vários indivíduos sem mudar sua forma externa, por ex. ‘ådåm, båqår, zera’, næfæš, ‘es, assim como seol também. Os plurais árabes fracti são também um tipo de paralelo. Este uso linguístico seria inexplicável, se não tivesse correspondência no mundo das ideias.

De acordo com o mesmo princípio, os túmulos eram concebidos como um todo orgânico, que unia todos os túmulos individuais uns com os outros de alguma forma que talvez não foi definida de maneira muito exata.

Eze. 32:18 em diante parece nos dar uma descrição detalhada deste “reino dos mortos”. Pareceria como se houvesse algum tipo de ação lá, já que o v. 21 afirma: “O poderoso dos heróis falará dele do meio do Seol…”, mas deve-se observar que uma parábola está em questão, e mesmo assim, a situação é bem excepcional. Aquele que entra no Seol é o Egito, e os poderosos entre os heróis que já habitam no Seol são Assíria, Elão, Meseque e Tubal, Edom, etc., países e reinados inteiros. Por conseguinte, o discurso deles deve ser entendido de modo que, quando o Egito vir a destruição chegando, deverá entender que seu destino será o mesmo que os outros países poderosos e, em todo caso, o caráter excepcional da situação nos impede de usar este trecho para descrever a condição dos mortos. O mesmo se aplica a Isa 14:9 em diante, onde se descreve a descida do rei de Babilônia ao Seol. Que a descrição é uma parábola cujo propósito é ilustrar o alcance da destruição de Babilônia é bem provado pelo v. 8: “Até os ciprestes se regozijam por tua causa, os cedros do Líbano: “já que você caiu, o lenhador não é virá contra nós”. Ninguém poderia afirmar que o profeta estava dizendo isso literalmente. Ademais, mesmo aqui a situação é descrita como excepcional, a julgar pelo que diz o v. 9: “O Seol lá embaixo se agitado por ti… os refaim (= “fracos”) despertam por ti…” A destruição de Babilônia é um evento tão notável que até os mortos devem ser despertados para contemplá-la.

Com base em Isa. 9 em diante, podemos, porém, tirar uma conclusão sobre a condição normal entre os mortos. Uma vez que esta parábola descreve o despertar dos mortos como excepcional, temos a maior razão para supor que normalmente se pensa que eles estão no estado de inconsciência ou de sono, como isto é geralmente expresso. Outros trechos do AT em que se fala da condição dos mortos, corroboram essa conclusão. Por ex., Isa 38:18: “Porque o Seol não te dá graças, nem a morte te louva…”, Sal. 6:6: “Porque na morte não há lembrança de ti, no Seol que te dá graças?”, 88:11-13: “Farás maravilhas para os mortos? Ou os refaim se levantam (e) te louvam? Selah. É tua misericórdia contada no túmulo, a tua fidelidade na destruição? São tuas maravilhas conhecidas nas trevas, ou a tua justiça na terra do esquecimento?” As perguntas são, obviamente, retóricas. No Sal. 115:17, a condição real é declarada de forma direta novamente: “Os mortos não louvam a Já, nem qualquer pessoa que vai ao silêncio”. A última palavra descreve  a condição entre os mortos: ela é dominada pelo silêncio.

Consequentemente, parece que não podemos considerar a condição dos mortos no Seol como vida real. Que a opinião dos antigos israelitas era a mesma é mostrada pelo fato de que os mortos no Seol jamais são chamados de almas no AT. De fato, o nome mais comum dos habitantes do Seol, refaim, parece ser bastante oposto à palavra næfæš, uma vez que esta última expressa implicitamente que seu possuidor tem poder vital e atuante, enquanto os primeiros são “privados de poder”. A conclusão é que, de acordo com a opinião do AT, a alma não continuava sua vida – ou existência, que para a alma é o mesmo que vida – no Seol após a morte.

The Concept of the Soul in Plato and in Early Judeo-Christian Thought [O Conceito de Alma em Platão e na Concepção Judaico-Cristã Primitiva], Lester I. Newman, Universidade de Boston, Boston, MA, EUA, 1958. O que segue é o sumário:

Capítulo I: Introdução. O objetivo desta tese é estudar dois grandes conceitos históricos da alma e mostrá-los como estando, não só em marcante contraste entre si, como também em forte oposição entre si. Estes dois importantes conceitos históricos da alma são; o conceito platônico, tal como se encontra nos escritos de Platão; e o conceito judaico-cristão primitivo, como está registrado nos cânones do Antigo e Novo Testamentos. Eles representam dois mundos religiosos e éticos inteiramente diferentes; contudo, entraram em contato um com o outro, misturaram-se livremente e influenciaram-se mutuamente. Alguns dos primeiros Pais da Igreja viram a tremenda distinção entre o conceito platônico da alma e o conceito judaico-cristão primitivo e expressaram forte oposição à invasão do conceito platônico da “alma” na vida e nos ensinamentos da comunidade cristã primitiva. Todavia, estes homens foram substituídos por outros Pais da Igreja que usaram a filosofia platônica para interpretar a teologia cristã na Igreja Cristã primitiva, um processo que ainda está em andamento nesta era moderna. Esta tese é direcionada a um estudo cuidadoso de todos os escritos de Platão e à busca das próprias fontes originais; exatamente o que Platão ensinava a respeito da alma. Com o fim de determinar o verdadeiro conceito platônico da “alma”, os escritos dele foram estudados de acordo com os vários períodos em que foram elaborados. De acordo com o eminente erudito em platonismo, Lutoslawski, os escritos de Platão podem ser divididos em quatro períodos bem definidos: o período socrático, o primeiro período platônico, o período platônico médio e o último período platônico. O propósito desta tese foi estudar o uso do termo “alma” em cada um dos períodos de seus escritos para determinar como ele comumente usa a palavra “alma”, quão consistente ele é em seu uso do termo, e como o seu uso da “alma” no último de seus escritos se compara com o uso mais antigo nas obras dele. À base deste estudo, esta tese procurou definir o conceito platônico de “alma” à base de seu uso mais consistente, mais comum e mais recente. Esta tese também focou o estudo igualmente meticuloso do conceito judaico-cristão do termo “alma”. Com o fim de obter uma compreensão de seu uso nos primeiros escritos dos judeus e cristãos, os cânones do Antigo e Novo testamentos foram estudados livro a livro. No cânon do Antigo Testamento, cada ocorrência da palavra hebraica para “alma”, nephesh, foi estudada em seu contexto, e no cânon do Novo Testamento cada ocorrência da palavra grega para “alma”, psuche, foi estudada dentro do seu contexto.Certos termos hebraicos relacionados também foram estudados, tais como, ruach, neshamah, e leb para averiguar a relação deles com nephesh. Também foram estudados alguns termos gregos relacionados a psuche, tais como pneuma e zoe para se certificar de seu uso e sua relação com psuche. Verificou-se que esses termos não podem ser usados ​​de forma intercambiável, pois seus significados são muito diferentes.

Capítulo II: O Conceito Platônico de Alma. Nos quatro períodos do pensamento platônico: o período socrático, o período inicial, o período médio e o último  dos períodos, um estudo do uso de Platão do termo “alma” revela que ele usa “alma” em pelo menos seis modos filosóficos: (1) “alma” usada em um sentido ético-moral-filosófico, 308 vezes; (2) “alma” usada em um sentido filosófico-religioso, 66 vezes; (3) “alma” usada num sentido epistemológico, 36 vezes; (4) “alma” usada em sentido sócio-político, 17 vezes; (5) “alma” usada em um sentido metafísico, 354 vezes; (6) “alma” usada em um sentido estético, 19 vezes. Houve diversas vezes em que a “alma” foi usada em um sentido tão obscuro que foi impossível classificar seu significado filosófico. O uso frequente do termo “alma” e os muitos usos filosóficos de Platão para ela, indica sua importância para o pensamento platônico. De fato, este estudo revela que a metafísica, a ética e a epistemologia de Platão se baseiam diretamente em sua definição de psuche. À luz dos usos filosóficos que Platão faz do termo “alma”, é possível definir o termo a partir de seu uso mais comum, consistente e mais recente. Platão define a alma como uma entidade simples, pura, não organizada, não composta, invisível e racional. Diz que a alma é simples em sua verdadeira natureza e não pode ser composta de muitos elementos, que a alma é pura em seu estado divino original, e que qualquer impureza na alma vem de seu contato com a terra. A alma não é visível, a não ser para a mente. Ela é racional, pois é isso o que interessa ao verdadeiro conhecimento. Platão descreve a alma como inteligência divina nutrida pelo verdadeiro conhecimento. Por meio do uso, Platão também define a alma como pré-existente, suprema e independente. A teoria de Platão sobre o conhecimento baseia-se na reminiscência de sua existência anterior por parte da alma, pois, para Platão, a alma vem antes de todas as coisas e tem conhecimento de primeira mão sobre o mundo das Formas Puras. Platão define a alma, por meio do uso, de outra maneira; como imaterial, fixo, divina, indestrutível e imortal. Platão argumenta que a alma é de natureza tão indestrutível que nem mesmo o mal pode destruir a alma, pois a alma, em sua própria essência, é imortal e, portanto, indestrutível. Platão também sustenta que as almas são fixas, de modo que o número delas permanece sempre o mesmo; portanto, a alma deve ser imortal por natureza. Relacionado a isso, ele também enfatiza a natureza simples, pura, não-composta dessa alma e sua pré-existência a todas as coisas.

Capítulo III: O Conceito Bíblico-Judaico da Alma. A palavra hebraica para “alma” é nephesh. Esta palavra é usada mais de 700 vezes nos trinta e nove livros do cânon do Antigo Testamento. Cada ocorrência da palavra “alma” na Versão Padrão Revisada é a palavra hebraica nephesh, mas com quatro exceções: Salmo 57:8, 108:1, Provérbios 23:16, e Lamentações 1:20. O leitor pode saber que está lendo a palavra hebraica nephesh cada vez que ele lê a palavra “alma”, exceto nos quatro trechos mencionados, mas o que ele não sabe é que a palavra nephesh em mais de trezentas ocorrências, não é traduzida como “alma”, e sim por mais de trinta palavras e frases diferentes, tais como “vida”, “fôlego de vida”, “pessoa”, “pessoas”, “eu”, “coração”, “mente”, “criatura” e uma série de outras palavras e no mesmo versículo nephesh será muitas vezes traduzida de duas ou três maneiras diferentes, tornando extremamente difícil que o leitor mediano saiba que os mesmos termos estão sendo usados cada vez. Se o termo fosse traduzido consistentemente a cada vez pela palavra “alma”, seria possível para o leitor do idioma moderno chegar a uma melhor compreensão quanto à sua definição por meio do uso, mas, sob as atuais circunstâncias, isso é muito difícil, se não impossível. O leitor atento da Bíblia deve ter o direito e o privilégio de chegar às suas próprias conclusões, determinar suas próprias definições e formular sua própria doutrina quanto ao uso bíblico do termo “alma”. Esta oportunidade foi disponibilizada ao leitor interessado nesta tese, através da enumeração de todas as ocorrências da palavra hebraica para “alma”, nephesh, no Antigo Testamento da Versão Padrão Revisada. Com base num estudo cuidadoso de todas as 754 ocorrências de nephesh no Antigo Testamento, o leitor observa que alma deve ser definida pelos seguintes termos: (1) Como sendo um ser movente e um organismo vivo, criado por Deus. Isso está em contraste direto com a alma platônica incriada, auto-movente e  não organizada. (2) Como sendo a mais elevada criação de Deus – o homem inteiro. Todos os organismos vivos e moventes são almas, mas o organismo mais elevado criado por Deus é o homem. Fala-se deste homem criado, a “alma”, como sendo criado como uma entidade complexa, composta, racional, e organizada, em contraste direto com a alma platônica, simples, não composta e não organizada. O cânon do Antigo Testamento também define a alma, por meio do uso, como sendo um substância material, mortal e destruível por natureza, mas também como uma candidata à ressurreição e à vida eterna. Isso está em contraste direto com a alma imaterial, imortal, indestrutível de Platão. A ideia de uma ressurreição corporal de vida eterna, por um ato de Deus, é também algo completamente alheio ao pensamento platônico.

Capítulo IV: O Conceito Bíblico-Cristão da Alma. A palavra grega para “alma” é psuche. Esta palavra é usada 111 vezes no cânon do Novo Testamento, de acordo com o manuscrito do Codex Vaticanus. Na Versão Padrão Revisada da Bíblia Sagrada não há outra palavra, além de psuche, que seja traduzida como “alma”. Porém, a palavra psuche nem sempre é traduzida como “alma”, e sim em grande número de maneiras. Algumas das palavras e frases usadas para traduzir psuche, além de “alma”, são: “vida”, “vidas”, “mente”, “mentes”, “pessoas”, “nós” e “ser humano”. Das 111 vezes que psuche é usada no Novo Testamento, ela é traduzida como “alma” apenas quarenta vezes. No caso das setenta e uma vezes restantes, o  leitor do idioma moderno é mantido desinformado que a palavra que ele está lendo é a palavra grega psuche. Como a tradução da palavra grega psuche é feita de muitas maneiras diferentes, é de grande ajuda que o leitor do idioma moderno tenha uma lista completa de cada ocorrência de psuche, como nesta tese. Um estudo delas mostra que a psuche, a partir de seu uso, define-se como sendo um organismo vivo e movente criado por Deus como, como no caso do Antigo Testamento. O uso também define psuche como sendo a mais elevada criação de Deus – o homem inteiro. Este homem é criado, complexo, composto, material, organizado e racional. É também mortal, sujeito à morte, mas também é um candidato à ressurreição e à vida eterna através de um ato poderoso de Deus. Como se pode ver facilmente, a definição de “alma” no Antigo e no Novo Testamento é a mesma e em forte oposição à alma platônica.

Capítulo V: O Conceito de “Alma” Platônico e Judaico-Cristão Comparados e Contrastados. Nos escritos dos primeiros Pais da Igreja, nos primeiros dois séculos da era cristã, encontramos forte oposição ao conceito platônico de “alma” à medida em que ele tentava se infiltrar na teologia da igreja cristã primitiva. Eles resistiam à filosofia platônica da alma como sendo subversiva à própria essência do cristianismo, com sua doutrina da imortalidade natural da alma, em comparação com a crença cristã da mortalidade de cada alma, e sendo cada alma necessitada de uma ressurreição corporal a fim de obter a vida eterna. Palavras e frases que entraram em uso comum posteriormente na história da igreja cristã, não foram usados ​​pelos mais primitivos Pais da Igreja. Referimo-nos a termos familiares tais como “a alma imortal”, “o homem imortal”, “a alma que não morre”, “o ser imortal”, “o pecado e a miséria sem fim”, “o tormento infindável”, “a morte que nunca morre”, e outras expressões tão familiares que claramente têm suas raízes no pensamento platônico. Muitos pensam que a doutrina platônica da imortalidade natural da alma entrou natural e facilmente nos ensinamentos e na teologia da igreja cristã primitiva, mas isso não é assim, pois a oposição foi grande, em primeiro lugar por parte dos primeiros Pais da Igreja, cuja aguda perspicácia enxergou que isso era subversivo às doutrinas básicas da Igreja Cristã e que sua filosofia pertencia a um mundo religioso e ético completamente diferente. O principal meio para a entrada do platonismo no cristianismo, foi através dos volumosos escritos e a grande pregação do bispo de Hipona, Aurélio Agostinho, no quarto século. Agostinho tomou a doutrina de Platão sobre a imortalidade inerente da alma, desligou-a da metempsicose e da transmigração e conseguiu para a doutrina essa credibilidade geral que ela tem mantido até hoje.

Capítulo VI: Conclusões. Quando Platão fala da alma, o pensamento da imortalidade da alma está sempre presente, sendo a imortalidade a dotação natural da alma, devido à sua origem divina ter sido eternamente pré-existente. Tudo o que se exige da alma, a partir do momento em que ela entrou na prisão do corpo, é purificar-se e libertar-se de seu cativeiro do mundo dos sentidos e retornar à sua origem divina no mundo supra-sensível. O mundo da imortalidade natural, então, é o seu verdadeiro lar e sua condição normal. A imortalidade natural da alma também foi a base sobre a qual Platão baseou sua metafísica, sua ética e sua teoria do conhecimento. Isso estava no coração do conceito platônico da alma. Este estudo também mostrou que a ideia da imortalidade natural da alma é completamente alheia ao uso de nephesh e psuche na Bíblia. Aqui se lê que a alma foi criada do pó por seu Criador e retorna ao pó por ocasião de sua morte. O próprio fato de Deus ter chamado o primeiro homem Adamah, “feito da terra”, indica a natureza terrena da alma bíblica, em contraste com a origem celestial da alma platônica. Se o homem foi feito alma viva por seu Criador do pó e do “fôlego da vida”, e se, ao morrer, ele retorna ao solo de onde ele foi tirado, e seu “fôlego” (espírito) retorna a Deus de onde ele veio, então deve ser necessário que os dois se juntem para que o homem possa viver novamente. Não só a ressurreição, mas a ressurreição do corpo para a vida eterna, é central para os ensinamentos da fé cristã. O pensamento de uma ressurreição corporal para a vida eterna é completamente alheio e desnecessário ao pensamento platônico. É neste ponto que os dois grandes conceitos de “alma” se encontram e se separam para sempre.

Mélanges offerts à Karl Barth à l’occasion de ses 70 ans, Reinhardt, Bâle, 1956. (Em francês: Immortalité de l’âme ou résurrection des morts?; em inglês: Immortality of the Soul or Resurrection of the Dead? The Witness of the New Testament [Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos? O Testemunho do Novo Testamento], Oscar Cullmann, Epworth Press, Inglaterra, 1958. A capa acima é da edição de 2000, Wipf & Stock Publishers, Eugene, Oregon, EUA), trechos extraídos da Introdução e da Conclusão:

“Se reconhecermos que a morte e a vida eterna no Novo Testamento estão sempre ligadas ao evento de Cristo, torna-se evidente que para os primitivos cristãos a alma não é inerentemente imortal, mas só se tornou imortal por meio da ressurreição de Jesus Cristo, e através da fé nele. Fica claro também que a morte não é intrinsecamente a Amiga, e sim que seu “aguilhão”, seu poder, é tirado por meio da vitória de Jesus sobre ela com sua morte. E, finalmente, torna-se claro que a ressurreição já realizada não é o estado de cumprimento, pois este é futuro, momento em que o corpo é também ressuscitado, o que só ocorrerá no “último dia”

“A resposta à questão “Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos” no Novo Testamento é inequívoca. Não há maneira de harmonizar o ensino dos grandes filósofos Sócrates e Platão com o ensino do Novo Testamento. Que as pessoas envolvidas, as vidas delas, e a atitude delas por ocasião da morte podem até ser respeitadas pelos cristãos, os apologistas do segundo século mostraram.”

The Standard Jewish Encyclopedia [Enciclopédia Judaica Padrão], Cecil Roth (Ed.). Doubleday & Company, Inc., Nova Iorque, EUA, 1959, Edição Revisada, 1966, Cols. 955, 956 e 1743. (A capa acima é da The New Standard Jewish Encyclopedia [Nova Enciclopédia Judaica Padrão], Virgin Books, 1970):

IMORTALIDADE DA ALMA: Na religião, a crença direta em uma existência contínua após a morte; na filosofia, a ideia de que há uma parte da personalidade humana cuja eternidade pode ser comprovada ou, pelo menos, tornada aceitável para a razão. As religiões primitivas geralmente consideram a vida como inteira e indivisível; o conceito de uma vida pós-vida, portanto, refere-se à personalidade como um todo e não à ALMA no sentido mais limitado. Os mortos existem em uma condição de vitalidade reduzida; esse tipo de vida sombria no submundo era conhecido, por exemplo, entre os gregos (Hades) e os antigos hebreus (Seol). Quando o espírito de vida partia, o homem continua a existir na terra das sombras, mas “os mortos não louvam ao Senhor, nem os que descem ao silêncio” (Salmos 115:17). Por outro lado, a alma é considerada uma substância imaterial, cuja relação com um determinado corpo é mais ou menos incidental. De acordo com esse conceito, a existência antes do nascimento e após a morte é uma questão de percurso e é a descida da alma até a matéria e o corpo mortal que requer explicação. A tarefa moral e religiosa da vida é, então, proteger a alma de perder sua pureza enquanto estiver no mundo material. Essas ideias já eram correntes no helenismo e aparecem como lugares comuns [ou: clichês] na literatura rabínica. Outra possibilidade dentro desta gama de ideias é a METEMPSICOSE. Ainda outra abordagem à imortalidade, preservando a concepção mais antiga da vida como uma totalidade de corpo e alma, manifesta-se na crença da RESSURREIÇÃO do corpo, que se tornou um artigo de fé no judaísmo e foi incorporado aos 13 Artigos de Maimônides. A combinação [ou: confusão] dos dois tipos de crença produziu o conceito judaico tradicional de um futuro onde as almas que partiram são recompensadas (paraíso, jardim do Éden, etc.) e os ímpios são punidos (inferno, Geena) por suas ações nesta vida até o grande Dia da Ressurreição quando o julgamento final será seguido por uma era completamente nova (olam-ha-ba).

ALMATodas as expressões bíblicas que denotam alma (nephesh, ruah, neshamah) entendem a vida como a animação do corpo e derivam de raízes que significam “vento”, “fôlego”, etc. (confira Gên. 2:7); após a morte, há apenas uma existência sombria no submundo (seol). Só no último século AEC foi que o dualismo alma-corpo e o conceito de que a alma era uma substância independente que se juntava ao corpo ganhou credibilidade geral; a alma se origina no céu e desce para a terra, unindo-se a um corpo material no momento da concepção ou nascimento e perdendo a perfeição original. Esta dicotomia, plenamente desenvolvida na literatura helenística (Filo, etc.), também é aceita pelo Talmude, onde se diz que todos as almas existem desde a criação do mundo e são armazenadas no céu até que chegue o tempo de se juntarem a corpos destinados a elas. Os rabinos não igualavam simplesmente a alma e o corpo com o bom e o mal; é sempre a alma que peca e não o corpo. Na filosofia medieval, o principal problema relativo à alma era o da IMORTALIDADE. A tradição neoplatônica que presumia uma substância da alma espiritual independente pôde conceber uma crença na imortalidade mais facilmente do que os filósofos aristotélicos para quem a alma era a “forma” do corpo orgânico. Maimônides e outros judeus aristotélicos assumiram que apenas a parte da alma que o homem desenvolve por seus esforços intelectuais (o “intelecto adquirido”) é imortal; outros pensadores definiram a alma de modo a estender a imortalidade também aos não filósofos. Os cabalistas geralmente aceitaram a crença em METEMPSICOSE (gilgul). O desejo de se expressar o amor pelas almas que partiram e, se possível, melhorar sua sorte no futuro, deu origem (em grande parte sob influência não judaica) a vários ritos, sendo que alguns destes (por exemplo, YIZKOR, HASHKAVAH, KADDISH) tornaram-se características permanentes do serviço da sinagoga.

La Parole de Dieu. Approches du mystère des Saintes Écritures [A Palavra de Deus. Abordagens do Mistério das Escrituras Sagradas], Georges Auzou, Editions de l’Orante, Paris, França, 1960, pág. 128:

O conceito de ‘alma’ no sentido de uma realidade puramente espiritual ou imaterial, separada do ‘corpo’,… não existe na Bíblia.

The New Bible Dictionary [Novo Dicionário da Bíblia], J. D. Douglas, Inter-Varsity Fellowship, Londres, Inglaterra, 1962, pág. 1376. O que segue foi extraído da versão em português, baseada na Edição Revisada, em inglês, de 1982 – Edições Vida Nova, 2006):

1. Inerente na palavra “vida” (hayim) há a ideia de atividade. Vida é aquilo que “se move” (Gn 7.21 e seg.; SI 69.34; cf. At 17.28) em contraste com o estado relaxado, dormente ou inerte daquilo que não tem vida (cf. Rm 7.8; Tg 2.17,20). A água corrente é chamada de “viva” (Gn 26.19), e o parto rápido indica que a mãe é “viva” (em nossa versão, “vigorosas” (Êx 1.19)). A frequente forma plural desse vocábulo frisa a intensidade do conceito. A vida é associada com a luz, com a alegria, com a plenitude, com a ordem e com o ser ativo (SI 27.1; Jó 33.25s.; Pv 3.16; Gn 1) e é contrastada com as trevas, com a tristeza, com a vaidade, com o caos e com o silêncio que são características de seres mortos e inanimados (Ec 11.8; SI 115.17).

2. Alma (nefesh) no sentido de “ser” ou “eu”, é comumente empregada para o homem ou os animais, vivos ou mortos (Lv 21.11; Jó 12.10; Ap 8.9; 16.3). Porém seu estado prenhe de significação é “alma vivente” (nefesh hayah, Gn 2.7) e isso, por conseguinte, pode simplesmente significar “vida”. Morrer é deixar sair (ou expirar) a própria alma, e ressuscitar é o retorno da alma (Jr 15.9; 1 Rs 17.21; cf. At 20.10); ou, quando a vida é reputada como tendo sua sede no sangue, morrer é “derramar” o sangue (Lv 17.11; Lm 2.12; Is 53.12). Apesar de que a alma pode continuar em sangue derramado (Ap 6.9; Gn 4.10), ou, corporalmente, no nome ou descendentes de alguém, a “vida” e o “eu” estão de tal modo ligados que perder a própria vida significa praticamente perder o próprio “eu” (Pedersen, Israel, I, 1926, 151s.; Jó 2.4; Ez 18).

3. Semelhantemente, espírito (ruah) ou hálito (neshamah), como o princípio que distingue os vivos dos mortos, frequentemente podem ser traduzidos por vida (ISm 30.12; Jó 27.3s.). Morrer é perder o próprio fôlego ou espírito (Jó 27.3; SI 104.29 e seg.; cf. Mt 27.50); ressuscitar é tê-lo de volta (cf. Lc 8.55; Ap 11.11; 13.15).

4. A vida é proporcionada ao indivíduo como uma unidade psicossomática na qual “nossas próprias distinções entre a vida física, a vida intelectual e a vida espiritual não existem” (von Allmen, p. 231 e seg.); e o ponto de vista do AT sobre o homem pode ser descrito sumarizadamente como “corpo animado” (Robinson, p. 27). Dessa maneira, alma pode ser paralela à carne (SI 63.1; cf. Mt 6.25; At 2.31), à vida (Jó 33.28), ou ao espírito (SI 77.2 e seg.; cf. Lc 1.46 e seg.), bem como a todos os termos que indicam o “eu”. É o “eu” que vive — e que morre (cf. Gn 7.21; Ez 18.4).

Law and Grace: Must a Christian Keep the Law of Moses? [Lei e Graça: Deve Um Cristão Guardar a Lei de Moisés?], George Angus Fulton Knight, SCM Press (Série: Religious Book Club 146), Londres, Inglaterra, 1962, pág. 79:

No Antigo Testamento, o homem jamais é considerado como uma alma que habita em um corpo, uma alma que um dia será libertada da opressão do corpo, por ocasião da morte desse corpo, como um pássaro libertado duma gaiola. Os hebreus não eram dualistas em sua compreensão do mundo de Deus.

Life after Death [Vida Após a Morte], Taito Almar Kantonen, Filadélfia, EUA: Fortress Press, 1962, págs. 14, 15:

Uma vez que o neoplatonismo era a filosofia espiritual prevalecente durante o período de formação da teologia cristã, não surpreende que muitos dos Pais tenham identificado a doutrina cristã da vida eterna com a imortalidade platônica. Através dos séculos, esta crença não bíblica continuou a permear o pensamento cristão e fundir-se com o animismo popular, em um aparentemente auto evidente e formidável “verdade”, de tal forma que parecia ser uma verdadeira pedra angular da fé cristã. No Quinto Concílio de Latrão (1512-1517), a igreja romana na realmente proclamou-a como um dogma oficial da igreja. Os reformadores estavam satisfeitos com os antigos credos que ensinam a “ressurreição do corpo”, não a “imortalidade da alma”. Mas a última crença ficou embutida com tanta firmeza no pensamento protestante também, que se imagina que o teólogo ou o ministro que é levado a rejeitá-la pelas Escrituras está explodindo a rocha eterna. Assim, quando o erudito suíço Oscar Cullmann, conhecido por sua profunda interpretação do Novo Testamento e suas positivas convicções cristãs, publicou um estudo no qual destacou o contraste entre a concepção grega da imortalidade da alma e a doutrina cristã da ressurreição dos mortos, ele despertou uma tempestade de protestos. Ele foi acusado de ser um monstro que se delicia em causar angústia espiritual, um que oferece pedras, senão serpentes, às pessoas famintas do pão da vida. No prefácio à [na época] recente tradução do estudo para o inglês (Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?) o professor Cullmann afirma que nenhum crítico sequer tentou refutá-lo pela exegese bíblica, que é a inteira base de sua apresentação, e implora aos seus leitores para que ouçam o que as Escrituras têm a dizerNão podemos esperar compreender o conceito cristão, a menos que estejamos dispostos a escutar as Escrituras, mesmo quando ela contradiz os nossos próprios desejos acalentados e opiniões tradicionais… O homem não tem uma parte mortal, o corpo, e uma parte imortal, a alma. Ele é uma unidade indivisível, um corpo animado pela alma. Como tal, se encarado sob o aspecto do corpo ou o da alma, ele existe apenas por sua relação com Deus.”

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