A “Guerra no Céu” e a “Expulsão” de Satanás

Na linguagem figurativa da Bíblia, a elevação de uma pessoa a uma alta posição pode ser comparada com tal pessoa ser “exaltada ao céu” ou “aos céus” onde ela pode ser comparada a uma estrela. 1Similarmente, no idioma português podemos falar de uma pessoa ser “colocada nas alturas” [correspondente em inglês: “praised to the skies” (“exaltada aos céus”)]. De maneira correspondente, a humilhação de uma pessoa, sua derrota ou queda de uma alta posição, podem ser comparadas a tal pessoa ser lançada para baixo ou cair “do céu”. 2As mesmas metáforas são encontradas em fontes extrabíblicas dos tempos antigos. Por exemplo, tanto Cícero como Horácio (1º século A.E.C.) compararam a queda de uma alta posição política com “cair do céu”. — Veja O Livro de Isaías, Edward J. Young (em inglês – Grand Rapids:  Wm. B. Eerdmans Publ. Co., 2º ed. 1972), pág. 440, nota 77. Em sua predição da queda do orgulhoso e arrogante rei de Babilônia, o profeta Isaías usou esta imagem retórica: 

“Como caíste do céu, ó tu brilhante, filho da alva! . . . No que se refere a ti, disseste no teu coração: ‘Subirei aos céus. Enaltecerei o meu trono acima das estrelas de Deus e assentar-me-ei no monte de reunião, nas partes mais remotas do norte. Subirei acima dos altos das nuvens; assemelhar-me-ei ao Altíssimo.’“Todavia, no Seol serás precipitado, nas partes mais remotas do poço. — Isaías 14:12-15. 3Compare com Daniel 8:9-12, que usa a mesma linguagem figurativa para descrever as ações presunçosas do “chifre pequeno”, que geralmente se entende ser uma referência à tentativa do rei selêucida Antíoco IV Epifânio (175-164 A.E.C.) de eliminar a adoração de Jeová no templo judaico.

Jesus também usou uma linguagem similar ao falar sobre a cidade de Cafarnaum, que ele tinha escolhido como sua moradia e onde ele tinha executado muitos de seus milagres. (Mateus 4:13-16) Esta, porém, não haveria de ser uma razão para a cidade se orgulhar: 

E tu, Cafarnaum, serás por acaso enaltecida ao céu? Até o Hades descerás! — Lucas 10:15

Outro exemplo deste modo de discursar é encontrado nos versículos subseqüentes, que falam dos setenta discípulos enviados por Jesus e que então retornaram com alegria dizendo: “Senhor, até mesmo os demônios nos ficam sujeitos pelo uso do teu nome.” O alegre relatório deles foi evidentemente devido ao seu sucesso em expulsar demônios, graças ao poder que lhes foi conferido por Jesus ao enviá-los. (Lucas 10:1, 19) Em resposta, Jesus disse: “Comecei a observar Satanás já caído como relâmpago do céu.” — Lucas 10:17-18.

Não parece provável que Jesus quis dizer que viu Satanás caindo literalmente do céu. Em vez disso, sua declaração expressou vividamente a excitação que ele sentiu diante do relatório dos discípulos, pois ele sabia que o ministério bem-sucedido deles (assim como o seu próprio) pressagiava a iminente queda de Satanás de sua posição de poder.

Que a morte, ressurreição e exaltação de Jesus Cristo significariam uma derrota decisiva para Satanás é também indicado pelo que ele disse aos judeus quando chegou a Jerusalém, alguns dias antes de sua morte: 

Agora há um julgamento deste mundo; agora será lançado fora o governante deste mundo. — João 12:31.

Evidentemente é esta vitória sobre Satanás e seus anjos que é descrita num cenário simbólico em Revelação 12:1-12. Em uma visão o apóstolo João viu “no céu” uma mulher grávida, “vestida do sol e tendo a lua debaixo dos seus pés, e na sua cabeça havia uma coroa de doze estrelas”. Um grande dragão com sete cabeças, identificado depois como “a serpente original, o chamado Diabo e Satanás”, foi visto parado diante da mulher, pronto a devorar seu filho. A mulher “deu à luz um filho, um varão, que há de pastorear todas as nações com vara de ferro. E o filho dela foi arrebatado para Deus e para o seu trono.” — Revelação 12:1-5. 

A mulher vestida do sol, o dragão de sete cabeças e o filho arrebatado para o trono de Deus, conforme representados na revista A Sentinela de 1º de novembro de 1981, pág. 20. Segundo o ensino atual da Torre de Vigia, este cenário profético se cumpriu em 1914, momento em que se afirma que o reino de Cristo (o filho) foi estabelecido (nasceu) da “organização celestial de Deus” (a mulher), apesar dos esforços de Satanás (o dragão) para impedir a entronização de Cristo.

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Não é possível que isso represente o estabelecimento do reino de Cristo no céu em 1914, como defende a organização Torre de Vigia. Como poderia o reino de Cristo estar tão frágil em 1914, a ponto de correr o risco de ser devorado por Satanás, tendo de ser “arrebatado” das mandíbulas dele para o trono de Deus? Esta ideia está no mais gritante contraste com o ensino do Novo Testamento segundo o qual, desde sua ressurreição, Cristo está de posse de “toda a autoridade no céu e na terra” e está exaltado “muito acima de todo governo, e autoridade, e poder”. — Mateus 28:18; Efésios 1:21.

Houve apenas uma vez em que Jesus Cristo esteve evidentemente em uma situação tão vulnerável que Satanás achou que poderia “devorá-lo”, e isso foi durante a vida terrestre dele. Foi durante este período que Satanás tentou frustrar o “nascimento” de Cristo como rei do mundo. Desde os infanticídios em Belém até a execução final dele sob Pôncio Pilatos, Jesus foi seu alvo principal. Todavia, Satanás não foi bem-sucedido, pois Cristo foi ressuscitado e “arrebatado para Deus e para o seu trono”.

Conforme já se observou muitas vezes, a apresentação da entronização de Cristo como um “nascimento” em Revelação 12:5 é uma alusão ao Salmo 2:6-9: 

“Eu é que empossei o meu rei em Sião, meu santo monte.” Cite eu o decreto de Jeová; Ele me disse: “Tu és meu filho; hoje eu me tornei teu pai. Pede-me, para que eu te dê nações por tua herança e os confins da terra por tua propriedade. Tu as quebrantarás com um cetro de ferro, espatifá-las-ás como se fossem um vaso de oleiro.”

Os escritores do Novo Testamento aplicam repetidamente este salmo à exaltação de Cristo à direita de Deus. (Atos 13:32-33; Romanos 1:4; Hebreus 1:5; 5:5)  4Observe também como o “alvoroço” dos “reis da terra” contra “Jeová e contra o seu ungido” mencionado no Salmo 2:1-3 é aplicado diretamente pelo apóstolo Pedro em Atos 4:25-28 às ações que as autoridades judaicas e romanas tomaram contra Jesus. Faz-se também referência à mesma passagem em Revelação 11:15-18, que primeiro fala sobre o início do reinado universal de Cristo no meio dos inimigos furiosos dele e então sobre a ‘fúria’ de Deus contra estes inimigos. Da mesma forma que Revelação 12:5, este salmo messiânico também fala de Cristo como tendo recebido o poder para quebrantar as nações “com um cetro de ferro”. 5Conforme Cristo explicou à congregação em Tiatira, ele já estava naquele momento de posse desta “vara de ferro” e, desta forma, podia prometer compartilhar sua “autoridade sobre as nações” com “aquele que vencer e observar as minhas ações até o fim”. — Revelação 2:26-27.

Em Revelação 12:7-12, outro cenário “no céu” é apresentado a João, um cenário de guerra: “Miguel e os seus anjos batalhavam com o dragão, e o dragão e os seus anjos batalhavam” com eles. A batalha terminou com uma completa derrota para Satanás e seus anjos: 

Assim foi lançado para baixo o grande dragão, a serpente original, o chamado Diabo e Satanás, que está desencaminhando toda a terra habitada; ele foi lançado para baixo, à terra, e os seus anjos foram lançados para baixo junto com ele. E ouvi uma voz alta no céu dizer: “Agora se realizou a salvação, e o poder, e o reino de nosso Deus, e a autoridade do seu Cristo, porque foi lançado para baixo o acusador dos nossos irmãos, o qual os acusa dia e noite perante o nosso Deus!” — Revelação 12:9-10.

A exclamação que se segue à “expulsão” de Satanás e seus anjos, segundo a qual “agora se realizou a salvação, e o poder, e o reino de nosso Deus, e a autoridade do seu Cristo” aponta claramente para o tempo da morte, ressurreição e exaltação de Cristo, a quem havia sido dada naquele momento toda a autoridade no céu e na terra.

Que a “guerra no céu” dificilmente poderia ser entendida como uma guerra literal é indicado pelos versículos seguintes. Quando Satanás foi lançado à terra, ele perseguiu a “mulher” celestial e então “foi travar guerra com os remanescentes da sua semente” que “têm a obra de dar testemunho de Jesus” (Revelação 12:13-17). O versículo 11 declara que os seguidores de Cristo que se tornaram os mártires nesta guerra “o venceram [isto é, a Satanás] por causa do sangue do Cordeiro e por causa da palavra do seu testemunho”.

Isto explica a natureza da “guerra”: Por meio de sua morte como cordeiro sacrificial, Cristo venceu Satanás e provocou sua “queda do céu.” Os mártires cristãos são apresentados como participantes nesta vitória, sendo habilitados a vencer Satanás “por causa do sangue do Cordeiro”. Satanás, o “acusador”, não é mais capaz de acusá-los “dia e noite perante o nosso Deus” porque, através da morte de Cristo, os pecados deles são perdoados. Ou seja, para todos os efeitos, a “guerra no céu” é uma representação figurativa da vitória de Cristo sobre Satanás por meio de sua morte sacrificial como Cordeiro. É óbvio que esta “guerra” não tem nada que ver com o ano de 1914. 

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Trecho extraído do livro Os Tempos dos Gentios Reconsiderados (capítulo 6). Todas as referências bíblicas citadas são da Tradução do Novo Mundo das Escrituras Sagradas (Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados – EUA).

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Imagem em destaque: Livro Revelação – Seu Grandioso Clímax Está Próximo! (Sociedade Torre de Vigia de Bíblias e Tratados, EUA, 1988), pág. 181.

2 thoughts on “A “Guerra no Céu” e a “Expulsão” de Satanás

  • março 5, 2022 em 8:05 pm
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    Olá!

    Sou uma chamada Testemunha de Jeová inativa, faz uns 4 anos. Estou em busca da verdade bíblica, do entendimento correto das Escrituras Sagradas. Achei muito interessante a explicação acima. Embora eu ainda não tenha lido o livro “Os tempos dos gentios…”, ainda assim, por outras matérias que li/assisti, percebo que a explicação da Torre de Vigia gradualmente está ficando distante da minha mente e do meu coração. Que assim possa se dar plenamente! Porém, de forma respeitosa, gostaria que me esclarecessem o seguinte: visto que a escrita do livro de Apocalipse foi posterior à morte e ressurreição de Cristo, e seu retorno ao céu, e Apocalipse diz no seu primeiro versículo que o mesmo foi escrito para mostrar as coisas que “aconteceriam” (futuro), como, então, a guerra no céu e o seu desfecho pode ser atribuída a um acontecimento “passado” (morte, ressurreição e enaltecimento de nosso Senhor Jesus Cristo)?

    Cordialmente,

    Giovani MC
    Brasil

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    • março 10, 2022 em 12:06 am
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      Em primeiro lugar, agradecemos pelo contato, bem como pela polidez demonstrada.

      Conforme talvez já saiba, com o passar do tempo surgiram diversas correntes de interpretação das visões registradas no livro do Apocalipse. Entre estas temos o preterismo e o futurismo. Na visão preterista, tudo o que está no Apocalipse se restringiria a eventos ocorridos no passado, no primeiro século mesmo, enquanto os futuristas defendem que as visões tratavam exclusivamente de ocorrências futuras, posteriores ao primeiro século. No nosso caso particular, não adotamos nenhuma das duas, já que há sérios questionamentos em ambos os extremos. Preferimos entender que o livro faz referência tanto a ocorrências presentes naquela época como a eventos posteriores. Em favor dessa tese, podemos citar o que o próprio capítulo 1 do livro diz adiante. É claro que se você se apegar exclusivamente ao que diz o primeiro versículo, a conclusão óbvia é que o livro só iria tratar de eventos futuros. Porém, um pouco adiante Jesus disse a João:

      “Escreva, pois, as coisas que você viu, tanto as presentes como as que estão por vir.” (Apocalipse 1:19, NVI)

      Isso mostra que o livro não registra apenas eventos futuros, mas também situações que já tinham ocorrido e já eram realidade naquele momento e que levariam a estes eventos futuros. Por exemplo, as 7 igrejas mencionadas nos capítulos 2 e 3, e tudo o que se descreve lá em conexão com cada uma delas, eram realmente igrejas existentes na época e situações daquele momento. Embora haja quem interprete essas 7 igrejas como “períodos” da história cristã, no final das contas essas ideias não passam disso: interpretações que mudam com o tempo e que tanto você pode aceitar, como não. É muito mais coerente o entendimento de que João teria de endereçar suas mensagens a igrejas que realmente existiam e ele daria conselhos e até repreensões quanto a situações que estavam ocorrendo naquele exato momento nessas igrejas, e isso serviria de alerta para os cristãos em qualquer parte do mundo e em qualquer tempo.

      Com relação ao conteúdo do capítulo 12, que foi o objeto de sua pergunta, aplica-se o mesmo raciocínio. Os versículos 13 e 17 falam de perseguição e de guerra do “dragão” contra a “mulher” e os ‘filhos’ dela que “obedecem aos mandamentos de Deus e se mantêm fiéis ao testemunho de Jesus.” Essa perseguição contra os cristãos não começaria a acontecer só no futuro distante, mas já ocorria lá no primeiro século mesmo e o próprio João estava na prisão justamente por causa disso. Mas, para entendermos porque o “dragão” fez isso, temos a informação dos primeiros versículos, que descrevem a “guerra no céu”, a “expulsão de Satanás” de lá, etc. Ou seja, dentro desse entendimento, vemos novamente eventos que haviam ocorrido recentemente à época da escrita do livro explicando outros eventos que estavam ocorrendo no momento e que haveriam de ocorrer depois.

      Um detalhe final que convém mencionar é que ao falar dessas ocorrências posteriores o Apocalipse 1:1 usa o termo “em breve” (versículo 1) e depois diz que tais coisas haveriam de acontecer ‘depois das atuais’ (versículo 19). E é justamente no significado óbvio dessas expressões que se concentram os questionamentos das muitas interpretações escatológicas que colocam o cumprimento das visões no futuro distante. Conforme sabe, os líderes de organizações religiosas tais como a Adventista do Sétimo Dia, as Testemunhas de Jeová, os Estudantes da Bíblia e outros grupos defendem que a visão do capítulo 12 só se cumpriu séculos depois (entre as Testemunhas de Jeová afirma-se até hoje que essa “guerra” foi uma batalha literal entre dois exércitos no céu, e isso só teria ocorrido 19 séculos depois, em 1914!). Sendo assim, a expressão “em breve” não teria qualquer sentido para os cristãos que receberam essa informação lá no primeiro século. As informações recebidas por João não estariam dizendo coisa alguma a eles! A motivação por trás dessas incoerentes interpretações desses líderes religiosos é, claro, aplicar tudo ou quase tudo o que se diz no Apocalipse à história de seu próprio sistema religioso.

      Esperamos que esta consideração ajude a entender melhor o ponto e o incentive a mais pesquisas. No artigo A Besta e “Babilônia, a Grande” você encontrará uma consideração sobre outra visão do Apocalipse, dentro da mesma linha de raciocínio expressa acima.

      Que o “Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Apo. 19:16) o oriente na busca pela verdade e que o Pai Celestial dele e nosso esteja com o espírito que mostra!

      MB

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