A Besta e “Babilônia, a Grande”

PARTE 1

As Interpretações da Besta do Apocalipse

Dentre as visões do Apocalipse, poucas têm sido objeto de tantas interpretações como a visão da “besta de sete cabeças”, mencionada nos capítulos 13 e 17. Os primeiros escritores cristãos muitas vezes interpretaram a besta como o “Anticristo”, uma figura que por si só necessita de interpretação. Nos mais antigos escritos cristãos extra bíblicos do final do primeiro século e início do segundo século, o Anticristo foi identificado com o poder imperial romano e, particularmente, com a figura do imperador Nero. Victorino de Petau (por volta de 304 AD), autor do mais antigo comentário em latim totalmente preservado sobre o Apocalipse, entendia a besta como sendo o imperador Nero. (F. F. Bruce, Uma Mente Para o que Importa, Eerdmans, 1990, págs. 189-194, 198-212). Ao longo da Idade Média a besta foi frequentemente associada com Maomé ou com diversos imperadores ou papas. A partir dos anos 1100 a besta foi cada vez mais associada com o papado, uma interpretação que mais tarde se tornou dominante entre os reformadores até os anos 1800. A resposta do lado católico era identificar o animal com Lutero ou Calvino. Nos últimos tempos, alguns intérpretes associaram a besta com Napoleão, Hitler, Stalin ou outros ditadores. Uma vez que o Mercado Comum Europeu foi criado em 1957, tornou-se popular a identificação da besta com a CEE (Comunidade Econômica Européia). Outros escritores esperam que a besta apareça em breve, talvez na forma de um ditador mundial do mundo árabe.

No artigo “A Organização das Nações Unidas e a Besta”, publicado na edição anterior da Informationer, relatou-se um pouco da história da idéia de que o animal seria a Liga das Nações / Nações Unidas, uma interpretação que foi apresentada originalmente pelo darbyista W. E. Vine e outros milenaristas e depois foi adotada pela Torre de Vigia.

O que dizer destas diferentes interpretações? Existe algum apoio real para elas no próprio texto da Bíblia? Cremos que a maioria delas não só carece de apoio bíblico, como também está em conflito direto com o texto e o contexto. Primeiro daremos alguns exemplos disso, e depois apresentaremos a interpretação da visão que nos parece a mais realista e crível. O espaço não permite comentários detalhados sobre todos os versículos, mas apontaremos alguns fatores que são frequentemente ignorados, mas que acreditamos serem essenciais para uma compreensão adequada da visão. 

A visão da mulher sobre a besta

Em Revelação 17:1-2 João nos diz que um anjo promete mostrar-lhe “o julgamento da grande prostituta que está sentada sobre muitas águas, com quem os reis da terra se prostituíram; os habitantes da terra se embriagaram com o vinho da sua prostituição”. A visão que ele tem é então descrita nos versículos 3 a 6: 

“Então o anjo me levou no Espírito para um deserto. Ali vi uma mulher montada numa besta vermelha, que estava coberta de nomes blasfemos e que tinha sete cabeças e dez chifres. A mulher estava vestida de azul e vermelho, e adornada de ouro, pedras preciosas e pérolas. Segurava um cálice de ouro, cheio de coisas repugnantes e da impureza da sua prostituição. Em sua testa havia esta inscrição: MISTÉRIO: BABILÔNIA, A GRANDE; A MÃE DAS PROSTITUTAS E DAS PRÁTICAS REPUGNANTES DA TERRA. Vi que a mulher estava embriagada com o sangue dos santos, o sangue das testemunhas de Jesus.”

João ficou bem impressionado com a visão da mulher. Ele escreve: “Quando a vi, fiquei muito admirado.” (Versículo 6b). Ele não entendia o que a visão significava, e por isso o anjo lhe disse: “Por que você está admirado? Eu lhe explicarei o mistério dessa mulher e da besta sobre a qual ela está montada, que tem sete cabeças e dez chifres.” (Versículo 7).

De forma que se o anjo prometeu ‘explicar o mistério da mulher e da besta’, ele se propôs a explicar ou interpretar a visão para João, para que ele pudesse entendê-la e deixar de se admirar. O resto do capítulo, os versículos 8 a 18, contém a explicação da visão por parte do anjo. Não há evidência de que João não tenha entendido a explicação que lhe foi dada. Assim, é possível que nós também a compreendamos.

Uma coisa que pode causar problemas para nós é que esta visão foi transmitida há mais de 1900 anos, na época de João. Muito do que era familiar para ele e seus destinatários pode ser estranho para nós. Devemos, portanto, transportarmo-nos mentalmente ao tempo e ao mundo em que ele vivia, e tentar compreender a explicação a partir da perspectiva dele.

Aceitamos a explicação do anjo?

Falar sobre o mistério da visão significa de fato revelar o que ela significa. O anjo não substitui os símbolos enigmáticos por novos quebra-cabeças, que exigiriam novas interpretações. Infelizmente, muitos intérpretes presumiram que é assim e dedicaram muito espaço e muita imaginação para reinterpretar a interpretação do anjo. Todavia, uma vez que o anjo prometeu falar sobre o que a visão significava, faremos bem em tomar as declarações dele, e nada mais do que elas, como a explicação.

Por exemplo, quando o anjo diz no versículo 8 diz que a besta “era e já não é” e que se encontrava “no abismo”, estando para “subir” de lá no momento em que a visão foi transmitida, essa besta não poderia se referir à Liga das Nações. Esta organização não estava na condição de “era e já não é”, nem tinha ido para o “abismo” quando João estava em Patmos e ouviu a explicação do anjo. Afirmar que a besta caiu no abismo no ano de 1939 equivale a ignorar completamente a explicação do anjo de que a besta já naquela época tinha ido para o “abismo”. O mesmo se aplica a qualquer outra interpretação da besta como sendo algum personagem que apareceu muito tempo depois da época de João. Nem a Maomé, nem ao papado, Napoleão, Hitler, Stalin ou a CEE se aplicaria a frase “era e já não é” quando João recebeu a Revelação em Patmos, e nenhum destes personagens estava “no abismo” naquele momento.

Quando o anjo explica ainda no versículo 9 que as sete cabeças da besta são “sete colinas”, então devemos aceitar que elas são sete colinas literais. E quando ele acrescenta (no versículo 10) que “são também sete reis”, então eles são realmente sete reis, não sete impérios mundiais. A frase “cinco já caíram” (ainda no versículo 10) significa que cinco reis, e não cinco impérios mundiais tinham caído e o sexto rei estava reinando no momento em que a visão foi dada, e assim por diante. Temos de manter a explicação do anjo, e não interpretá-la ao nosso próprio modo. O mesmo princípio vale para o último versículo (18), onde o anjo explica que a mulher “é a grande cidade”. Ela é, portanto, uma cidade literal que existia nos dias de João. Ela não poderia ser algum “império mundial da religião falsa” ou algo similar. Voltemos nossa mente aos dias de João e vejamos onde isso nos leva.

A besta de sete cabeças

A idéia predominante entre os comentaristas bíblicos modernos é que a besta representa o poder imperial romano. De modo que voltamos à primitiva interpretação cristã sobre a besta.

O fato de um reino ser descrito como um animal não é novidade. Por exemplo, em Ezequiel 29:3 e 32:2 compara-se o Egito e seu rei, o Faraó, com um monstro nos mares. E em Daniel 7:2-8 fala-se de quatro animais que sobem do mar. Os três primeiros, que se assemelham a um leão, um urso e um leopardo, podem ser identificados facilmente com os impérios neobabilônico, persa e grego. O quarto animal, que muitas vezes é interpretado como o Império Romano, é muito semelhante à primeira besta do Apocalipse 13, a qual por sua vez é geralmente identificada com a besta do Apocalipse 17.

É verdade que no Apocalipse 17 o anjo não disse claramente que a besta é Roma. Mas a explicação dele seria totalmente compreensível para os cristãos que viviam no Império Romano na época. Quando ele diz no versículo 9 que “as sete cabeças são sete colinas [grego: oros] sobre as quais está sentada a mulher” os pensamentos se voltam para a cidade de Roma. A palavra grega oros significa “colina” ou “monte”, e é amplamente conhecido que a cidade de Roma estava edificada sobre sete montes: o Palatino, o Capitólio, o Aventino, o Célio, o Esquilino, o Quirinal e o Viminal. Os escritores e poetas romanos falavam frequentemente de Roma como a cidade das sete colinas. Para João e seus leitores contemporâneos, dificilmente poderia haver qualquer dúvida de que os sete montes ou colinas eram uma referência a Roma.  

Moeda do governo do imperador Vespasiano (69-79 DC). A cara mostra a efígie do imperador Vespasiano. A coroa mostra a deusa produtora da cidade de Roma, sentada sobre sete colinas.

“São também sete reis”

Mas as sete cabeças da besta não eram apenas sete montes. “São também sete reis”, disse o anjo. “Cinco já caíram, um ainda existe, e o outro ainda não surgiu; mas, quando surgir, deverá permanecer durante pouco tempo.” (Apocalipse 17:10)

Até o ano de 31 AC, o Império Romano, então com quase 500 anos de idade, tinha sido uma república, com o poder concentrado principalmente no Senado. Isso mudou a partir do imperador Otávio (Augusto, 30 AC – 14 DC), que, com a aprovação do Senado, era imperator (comandante) de todas as legiões romanas e ditador vitalício. Ele deu início a uma dinastia de imperadores com poderes absolutos. O título de “imperador” reverteria para o tio e predecessor de Augusto, Júlio César. Os reis no período imperial eram assim imperadores. (Compare com Revelação 19:15) Qual destes reis “caiu” nos dias de João?

Os cinco primeiros imperadores, começando por Augusto, são:

Augusto30 AC – 14 DC
Tibério14 DC – 37 AD
Calígula37 AD – 41 AD
Cláudio41 AD – 54 AD
Nero54 AD – 68 AD

Se estes foram os cinco que tinham “caído”, o sexto que ‘ainda existia’ (ou ‘era’), ou seja, o que estava no poder quando o anjo explicou a visão de João, era Galba. Ele reinou por pouco mais de sete meses, de 8 de junho de 68 AD a 15 de janeiro de 69 AD.

Aqui nos deparamos com um pequeno problema, que certamente não era um problema para João e seus leitores contemporâneos. Alguns intérpretes apontam que, mesmo Júlio César pode ser considerado como o primeiro “rei” porque no ano anterior ao de sua morte (44 AC) ele foi declarado como ditador vitalício. Se contarmos a partir de Júlio César, o imperador Cláudio torna-se o quinto. O sexto, que reinava quando João recebeu suas visões, passa a ser Nero. O apóstolo João obviamente saberia qual foi o imperador que reinou em seguida, e, portanto, poderia facilmente descobrir quem eram os cinco que tinham caído. Para nós hoje, porém, pode não estar inteiramente certo quem governava.

Se Nero ou Galba foi o sexto imperador, isso significaria que João recebeu suas visões na década de 60 AD. Mas, não foi o Apocalipse escrito na década de 90, após o falecimento do imperador Domiciano (81-96 DC)?

Quando João recebeu as visões?

A maioria dos pesquisadores nos anos 1800 datava a escrita do Apocalipse na década de 60 do primeiro século. O Dr. William Milligan escreveu em 1893 que “a pesquisa recente tem, com poucas exceções, pesado decisivamente a favor da datação anterior, não posterior.” (Discussões Sobre o Apocalipse, Londres 1893, pág. 75) Esta situação mudou durante a primeira metade dos anos 1900, quando a maioria dos pesquisadores se voltou para a datação posterior. Mais recentemente, uma nova mudança começou a ocorrer, e “os cientistas estão muito bem distribuídos” em escolher entre a datação precoce e a tardia, explica Daniel A. deSilva na Revista Teológica de Westminster, 54, 1992, páginas 273-274.

Os pesquisadores que datam o Apocalipse no fim do governo de Domiciano apontam que vários Padres primitivos afirmam isso. Mas foi mostrado que todos estes testemunhos remontam a uma única pessoa, Irineu de Lyon, que em sua obra Adversus Haereses (escrita entre 180-190 AD) menciona o apóstolo João como “aquele que viu a revelação”, e acrescenta: “Pois não faz muito tempo [ou ‘ele’] viu, foi quase em nossa própria época, no final do governo de Domiciano.” (História Eclesiástica Eusébio, V:8:5-6).

A declaração é ambígua, e os eruditos questionaram se foi a visão ou o próprio João, que “viu” ou foi “visto” por volta do fim do governo de Domiciano. Ambas as traduções são possíveis. Apontou-se também que certos detalhes biográficos que Irineu fornece sobre os apóstolos e Jesus são pouco confiáveis. Até mesmo Eusébio (260-340 AD), que muitas vezes citou o trabalho de Irineu, questionou a credibilidade dele. (História Eclesiástica, III: 39)

Alguns argumentam que a obra de Irineu foi apoiada por Clemente de Alexandria (150-215 AD) e por Orígenes (c. 185-254 AD). Mas nenhum deles disse o nome do imperador que baniu João para Patmos. Clemente só diz que foi um “tirano” quem fez isso. Mais do que qualquer outro, foi Nero quem recebeu esse nome. E Orígenes diz apenas que foi um “rei romano” que exilou João na ilha de Patmos. Ele não diz o nome desse rei. Outros pais da Igreja dizem que João foi banido para Patmos antes do tempo de Domiciano, como Tertuliano (c. 160-220 AD), o que sugere que ele estava sob Nero, e Epifânio (315-403 AD), que diz que ele estava sob Cláudio. Pode-se mencionar também que as duas mais antigas traduções siríacas do Livro da Revelação dizem numa legenda que o exílio de João ocorreu sob Nero.

Como o Apocalipse reflete um período de severa perseguição aos cristãos (Apocalipse 1:9), afirma-se muitas vezes que não só Nero, mas Domiciano deu início às perseguições graves contra os cristãos. Porém, pesquisas recentes mostraram que esta é uma tradição posterior, e que não há qualquer evidência contemporânea de que Domiciano perseguia os cristãos. Portanto, esta idéia foi rejeitada na maioria dos comentários modernos sobre o Apocalipse. Até a noção de que o culto ao imperador (conforme refletido por exemplo, em Revelação 13:14-16) foi mais pronunciado durante Domiciano do que sob imperadores anteriores foi refutada por estudos mais recentes. Por exemplo, não há evidência para a afirmação de que Domiciano fez com que o chamassem de Dominus et deus noster, “nosso Senhor e nosso Deus”. (Veja, por exemplo, o estudo completo sobre Domiciano no livro de Leonard L. Thompson sobre o Apocalipse, Apocalipse e Império, Oxford 1990, págs. 95-167).

O testemunho externo da datação do Apocalipse é, portanto, contraditório. Portanto, não deve ser este testemunho, e sim o testemunho interno, as visões proféticas do livro, que têm condições de determinar o momento e a situação a que pertencem. Voltemos então aos sete reis.

Tabuinha de argila do período sumério, datada em aproximadamente 2600 AC. Ela retrata um herói de joelhos, atacado por uma fera de sete cabeças com corpo de leão. Uma das cabeças recebeu um golpe ou golpes e fica pendurada. A besta de sete cabeças é um símbolo antigo. Veja Revelação 13:3.

A besta no abismo

Aqueles que desejam datar o Apocalipse na década de 90 do primeiro século confrontam-se com o problema de explicar como apenas cinco reis podem ter caído, se Domiciano era, de fato, o décimo primeiro imperador contado a partir de Augusto. Apresenta-se uma contagem alternativa com base na idéia de que alguns imperadores foram omitidos. Mas essa proposta é caracterizada pela arbitrariedade.

Outro problema é como poderia a “besta” – o Império Romano – ter ido para “o abismo” em algum momento na década de 90 AD. Muitas vezes se faz referência ao mito do Nero redivivo, conforme circularam rumores de que Nero não morreu no ano 68, e sim fugiu para a Pártia, mas logo voltaria para reassumir o poder. Mas esses boatos não eram verdadeiros. Nero nunca saiu do “abismo”, nem na década de 90, nem em qualquer outro momento.

Porém, é possível argumentar razoavelmente que a “besta” foi para o “abismo” por um curto período de tempo no final da década de 60 AD. A evidência é a seguinte:

O desgoverno do Imperador Nero, nos últimos dez anos de seu governo, por fim gerou uma ampla rebelião que se espalhou por todas as partes do império e deu início a um ano de caos, o que, segundo o historiador romano Tácito “quase significou a queda de Roma.” (Historiae I: 11) Isso foi no meio da guerra dos judeus contra os romanos. Nero foi condenado à morte pelo Senado e suicidou-se no dia nove de junho de 68. Três imperadores se sucederam em rápida sequência, sem conseguirem tomar as rédeas do império: Galba, que depois de sete meses foi assassinado em 15 de janeiro de 69; Otão, que depois de três meses cometeu suicídio depois de ser derrotado por Vitélio, o qual por sua vez foi linchado até a morte em 21 de dezembro de 69, depois de ter reinado por oito meses. O historiador Kenneth Wellesley apresenta um resumo vívido dos eventos de 69 AD:

“Nenhum observador razoável poderia duvidar da ira dos deuses… pois a Itália foi invadida duas vezes por exércitos romanos, as cidades e a capital foram invadidas e tomadas, os três imperadores, por sua vez morreriam por assassinato, suicídio e linchamento; todo o império, do País de Gales até Assuã e do Cáucaso ao Marrocos, seria marcado por agitação violenta e se tornaria um caos, algo que ninguém poderia imaginar ou pensar. Ainda não havia passado mais de um século desde a miséria do período da república. No entanto, este único longo ano agora oferecia um espetáculo de acidentes, sofrimento e sobrevivência, que até então não tivera precedentes na história de Roma.” (Kenneth Wellesley, The Long Year A.D. 69 [O Longo Ano de 69 DC], Londres, 1975, pág. 1).

Estátua de 3 m de altura, do que se acredita ser a mão de Nero. Museu do Vaticano.

Foi apenas com a chegada de Vespasiano ao poder em 69 AD que as rebeliões se acalmaram e a ordem no império foi restaurada. Desta forma, pode-se dizer que a “besta” romana voltou à vida e saiu do “abismo”. Se o imperador Galba foi o sexto rei, Otão foi o sétimo, que “permaneceu durante pouco tempo.” (Apocalipse 17:10) Ele reinou por apenas três meses, menos tempo do que qualquer um dos outros imperadores. Se, no entanto, Nero for contado como o sexto rei, Galba torna-se o sétimo. Naturalmente, mesmo os sete meses dele no poder foram “pouco tempo” em relação aos reinados de seus antecessores.

Mas se a besta era o Império Romano e seu imperador, quem era a “prostituta”, “Babilônia, a Grande”, montada nas costas dela? Segundo a explicação do anjo a “mulher” era uma cidade, “a grande cidade” (Apocalipse 17:18), que a besta atacaria e ‘destruiria com fogo’ (Apocalipse 17:16) Que cidade poderia ter sido esta? Na Parte 2 deste artigo, ofereceremos uma resposta para esta questão.

PARTE 2

Na Parte 1, examinamos a visão da besta de sete cabeças do Apocalipse 17:3-6. O anjo deu explicações (Rev.17:7-18) mostrando que o animal pertencia à própria época de João e nos ajudou a identificá-lo com o Império Romano e seu imperador tirânico. Quem é a mulher, que, conforme previsto, está montada na fera, mas depois é vítima dum ataque por parte desta? Essa é a pergunta à qual tentaremos responder neste artigo.

“O que deve acontecer em breve”

Que as visões do Apocalipse foram transmitidas aos cristãos daquela época fica claro a partir da introdução do livro, onde lemos que Deus deu esta revelação por meio de Jesus Cristo “para mostrar aos seus servos o que em breve há de acontecer.” (Apocalipse 1:1) No versículo 3, eles são chamados de bem-aventurados ou felizes ao lerem ou ouvirem as palavras da profecia “porque o tempo está próximo.” A razão para a felicidade deles era que eles logo começariam a ver a profecia cumprida. As palavras “em breve” e “próximo” não podem significar que levaria séculos ou até milênios antes de eles terem a alegria de ver as visões cumpridas. Se interpretarmos estas palavras tão simples e compreensíveis – “em breve” e “próximo” – dessa maneira, isso faria com que elas perdessem todo o seu significado, tornando-as completamente sem sentido.

O último capítulo enfatiza mais uma vez que a profecia mostrou “as coisas que em breve hão de acontecer.” (Apocalipse 22:6) e Jesus “em breve” viria para fazer cumprir as visões que transmitiu (22:7, 20). A instrução dada ao apóstolo João no versículo 10 dificilmente poderia ser mal interpretada:

“Não sele as palavras da profecia deste livro, pois o tempo está próximo.” – Revelação 22:10.

Isto é exatamente o contrário do que o profeta Daniel foi instruído a fazer com a profecia que ele recebeu:

“Mas você, Daniel, feche com um selo as palavras do livro até o tempo do fim. Muitos irão ali e acolá para aumentarem o conhecimento.” – Daniel 12:4

“Selar” um documento significa que o original seria selado e escondido, ou seja, arquivado e armazenado para uso futuro, embora houvesse cópias disponíveis para leitura. (A Profecia de Daniel, Dr. E. J. Young, 1949, pág. 257) Uma instrução semelhante foi dada em relação à profecia das 2300 “tardes e manhãs” do oitavo capítulo de Daniel:

“A visão das tardes e das manhãs que você recebeu é verdadeira; sela porém a visão, pois refere-se ao futuro distante.” – Dan. 8:26.

Passariam vários séculos antes de se cumprirem as visões registradas nos capítulos 8, 11 e 12 do livro de Daniel. Por conseguinte, os rolos foram selados e armazenados até que estas visões se tornassem correntes. Não foi este o caso das visões do apóstolo João. O tempo da realização delas estava próximo. Portanto, os escritos contendo as visões não foram selados e escondidos em algum arquivo sem serem imediatamente usados, copiados, distribuídos, e estudados nas igrejas cristãs. (Apocalipse 1:3).

Livro selado de papiro do quarto século AC, encontrado numa caverna em Wadi Daliyeh, perto de Jericó.

“O mistério da mulher”

Segundo Revelação 17:1 um anjo mostraria a João o “julgamento da grande prostituta”. Portanto, este é o tema da revelação que vem em seguida. Na visão da mulher sobre o animal, ele viu que “estava escrito em sua fronte um nome, um mistério, ‘Babilônia, a grande, a mãe das prostitutas e das coisas repugnantes da terra’.” (Apocalipse 17:5, Bíblia Mensagem de Deus) O nome era “um mistério” porque ele não tinha qualquer relação com a cidade literal de Babilônia. O que se escondia por trás desse nome?

Segundo o versículo 7, o anjo prometeu ‘explicar o mistério dessa mulher.’ Ele se saiu bem, embora hoje possamos achar a explicação dele muito superficial. Mas esta explicação era sólida o suficiente para João e seus leitores contemporâneos. Depois de dar as pistas necessárias para identificar a besta, o anjo deu a seguinte informação sobre a identidade da mulher:

“A mulher que você viu é a grande cidade que reina sobre os reis da terra”. – Apocalipse 17:18

Assim, a “mulher” era uma cidade. Deve-se enfatizar que esta foi a explicação do anjo. Ele não substituiu o ‘mistério da mulher’ por um novo mistério, uma “cidade”, que não significava realmente uma cidade, e sim algo totalmente diferente. Se ele tivesse feito isso, não teria explicado nada. O tempo presente dos verbos – ela “é” a grande cidade que “reina” (“tem” um reino, Tradução do Novo Mundo) sobre os reis da terra – mostra que a cidade existia naquele momento. Perguntamos, portanto: Que cidade grande tinha um “reino sobre os reis da terra” nos dias de João?

Era a “mulher” a cidade de Roma?

A resposta pode parecer óbvia: A “grande cidade” é, seguramente, Roma, a capital do Império Romano. Essa conclusão atraiu a maioria dos comentaristas bíblicos modernos, embora haja uma grande quantidade de eruditos que tem uma opinião divergente.

É verdade que Roma era na época uma grande cidade, não só em importância política, como também em população. Estima-se que o número de habitantes dela nos dias de João era de aproximadamente um milhão ou mais. Poderíamos dizer também que Roma tinha um “reino sobre os reis da terra” se limitarmos o significado da palavra “terra” aos países da bacia do Mediterrâneo e partes da Europa, ou seja, a área que era dominada pelo Império Romano.

Em julho de 64 AD, grande parte do centro da cidade de Roma foi destruído pelo fogo. Para eliminar os boatos espalhados de que o fogo havia sido ateado pelo imperador Nero jogou-se a culpa nos cristãos, o que levou à perseguição generalizada e execuções em massa destes. O incêndio de Roma foi associado com a predição de Revelação 17:16 de que a “besta” atacaria a “prostituta” e a destruiria com fogo.

Há, porém, problemas sérios com esta interpretação. Segundo o versículo 16 não só a “besta”, mas também “os dez chifres” – que são “dez reis” (segundo o versículo 12) – odiariam e destruiriam a “prostituta”. Mas não há qualquer evidência de que Nero ou qualquer outro imperador odiasse Roma e, em colaboração com diversos reis aliados, tenha atacado e queimado a cidade.

É também extremamente improvável que Nero estava por trás do incêndio no ano 64. Ele nem estava em Roma quando o fogo começou, e depois do fogo ele rapidamente tomou medidas para limpar e reconstruir o bairro devastado. Os incêndios não eram incomuns em Roma e em outras cidades. Partes centrais de Roma foram igualmente devastadas por graves incêndios, por exemplo, nos anos 69 e 80 DC.

Nenhum desses desastres correspondeu ao cumprimento da profecia da destruição da “grande cidade”. Por isso, alguns intérpretes têm feito referência aos godos e aos vândalos saqueando Roma, nos séculos V e VI AD, quando a cidade há muito já tinha perdido o status de capital do império. Outros aplicaram a profecia à Roma papal, quando a cidade se tornou o centro da cristandade. Todavia, essas interpretações não levam a sério as palavras que salientam que o tempo estava “próximo”, ou que a profecia se cumpriria “em breve”. Será que existem outras opções?

‘A cidade onde foi crucificado o seu Senhor’

É bem duvidoso que João tenha sequer chegado a pensar em Roma, quando o anjo explicou que a “mulher” era “a grande cidade”. Note-se que o anjo usou a forma definitiva, como se “a grande cidade” já fosse conhecida de João e, portanto, desnecessário ser descrita. Na verdade, “a grande cidade” apareceu várias vezes nas visões de João. Já no capítulo anterior havia sido mencionada a destruição da “grande cidade”:

“A grande cidade foi fracionada em três partes, e as cidades das nações se desmoronaram. Deus lembrou-se da grande Babilônia e lhe deu o cálice do vinho do furor da sua ira.” – Revelação 16:19.

“A grande cidade” é associada aqui, assim como nos capítulos 17 e 18, com a “grande Babilônia”. Anteriormente, em Apocalipse 14:8, um anjo anunciou a queda de Babilônia (compare com Rev. 18:2). A primeira vez que se menciona a “grande cidade”, porém, é em Revelação 11:8. O cenário é Jerusalém com seu templo e o altar (11:1). Deus dá a suas “duas testemunhas” poder para profetizar por 1.260 dias, vestidas de saco, enquanto a “cidade santa”, durante o mesmo período de tempo (42 meses) será pisada pelos gentios (11:2-3). Em seguida, as “duas testemunhas” são mortas pela “besta que vem do abismo” (11:7). Estes eventos ocorreram na “grande cidade”, uma cidade que é identificada como segue no versículo 8:

“Os seus cadáveres ficarão expostos na rua principal da grande cidade, que figuradamente é chamada Sodoma e Egito, onde também foi crucificado o seu Senhor.” – Apocalipse 11:8

A grande cidade é associada com “Sodoma” e “Egito”. Mas a última observação de que a cidade é “onde também foi crucificado o seu Senhor”, aparece como uma explicação, não como uma alegoria. É difícil entender como poderia Jesus, em qualquer sentido, ter sido crucificado em Roma. A única conclusão razoável é que “a grande cidade” é Jerusalém.

“Babilônia” – um pseudônimo para Roma?

Em Apocalipse, o nome “Jerusalém” refere-se unicamente à “nova Jerusalém”, a “noiva” de Cristo de fiéis seguidores. (Apocalipse 21:2, 9-10) A Jerusalém antiga, no entanto, está rodeada por eufemismos para caracterizar a apostasia e maldade da cidade. Em Revelação 11:8 a cidade é comparada com Sodoma e Egito em sentido espiritual. Ser a mesma cidade de que fala o Apocalipse 14:8, 16:19, e os capítulos 17 e 18, também conhecida como Babilônia, não deve surpreender.

Mesmo no Antigo Testamento descreve-se a Jerusalém apóstata várias vezes como Sodoma. (Isaías 1:10; 3:9; Jeremias 23:14; Ezequiel 16:46-48) Babilônia e Egito representaram idolatria e tirania, o que também veio a caracterizar a Jerusalém apóstata. (Compare com Sofonias 3:1 em diante) Houve conluio entre pessoas de Jerusalém e representantes de Roma para oprimir, perseguir e matar cristãos. (Atos 8:1 em diante; 12:1 em diante; 23:12 em diante)

Para apoiar a interpretação de que “a grande Babilônia” é Roma afirma-se muitas vezes que “Babilônia” nos dias de João era um pseudônimo para Roma. Em seguida, faz-se referência a 1 Pedro 5:13 e a alguns escritos apócrifos, tais como o Livro de Baruque 67:7 e os Oráculos Sibilinos 5:143. Todavia, não há qualquer evidência de que Pedro estava em Roma quando enviou saudações da ‘igreja em Babilônia’. Ele pode ter escrito da própria Babilônia, onde havia na época pelo menos 600 mil judeus. (História Mundial Bons Livros, Parte 3, pág. 123) Se ele usou “Babilônia” como um pseudônimo, ele pode até ter escrito a carta de Jerusalém!

Ao passo que os escritos apócrifos citados acima chamam Roma de “Babilônia”, eles são retardatários, sendo do segundo século, e, portanto, não influem na maneira como o nome “Babilônia” é usado no Apocalipse. Os poucos exemplos são insuficientes para atestar que “Babilônia” era um termo usado geralmente para Roma, quando eles foram incluídos nos apócrifos.

“A grande cidade”

É verdade que a cidade de Jerusalém no tempo dos apóstolos não era particularmente notável em termos do número de habitantes. As estimativas variam de 55.000 (Joachim Jeremias) a até 250.000 (A. Edersheim). Durante as três principais festividades anuais a população se incrementava, chegando a provavelmente mais de um milhão. (Anthony Byatt, “Josefo e os Números Populacionais na Palestina do Primeiro Século”, Palestine Exploration Quarterly, Vol. 105, 1973, págs. 56-58)

Todavia, Jerusalém tinha muito status e importância como o centro do judaísmo. Até mesmo Jeremias chamou Jerusalém de “grande cidade”, quando profetizou que após o julgamento da cidade apóstata muitos passariam pela cidade e perguntariam uns aos outros: ‘Por que o Senhor fez uma coisa dessas a esta grande cidade?’ (Jeremias 22:8-9). Josefo também chamou Jerusalém de “grande cidade”, quando, depois de sua destruição em 70 AD ouviu Eleazar, líderes dos sicários em Massada, último reduto judaico, descrever em seguida o que restou da cidade:

“E onde está agora a grande cidade, a metrópole de toda a raça judaica, abrigada por trás de todas essas muralhas, resguardada com todos estes acessórios e torres fortes, onde quase não havia espaço para todos os seus braços e que alojava dezenas de milhares de seus defensores? O que aconteceu com ela, que se acreditava ter Deus como fundador? Ela foi simplesmente erradicada e varrida, e a única coisa que se assemelha a ela é o morto que ainda se mantém em suas ruínas! Infelizes velhos sentados nas cinzas do santuário, e algumas mulheres que o inimigo poupou para violar da forma mais miserável.” (A Guerra Judaica, Josefo, VII, 375)

Outros escritores extra bíblicos descreveram com frequência Jerusalém como uma cidade “grande”. David E. Aune aponta em seu comentário sobre o Apocalipse 11:8 entre outros para Sib. Or. v.154, 226, 413; Apoc. Elias 4:13 e Hist Nat. de Plínio v 14. 70 (Apocalipse 6-16. Vol. 52b em Word Biblical Commentary, Nashville 1998, pág. 619)

“Um reino sobre os reis da terra”

Então, em que sentido se poderia dizer que Jerusalém “reina sobre os reis da terra”? Algumas traduções dizem “reina”, mas conforme aponta W. E. Vine em seu Dicionário Expositivo das Palavras do Novo Testamento, o texto original diz na íntegra “tem um reino sobre”, “sugerindo uma diferença entre a soberania da mística Babilônia e a soberania que os governantes geralmente têm.” (pág. 951) Como é que João, com sua experiência no ponto de vista judaico e bíblico do mundo, teria entendido a descrição da relação de Jerusalém com os “reis da terra”?

Segundo os escritores do AT, Jerusalém era a “Cidade de Deus”, para a qual todas as nações acabariam se voltando para serem ensinadas. (Sal 48:2, 68:17, Isa 2:1-3, 60:3, 10-14; Jeremias 3:17) Por isso se diz no rabínico Êxodo Rabá (23:10) que Jerusalém “destinava-se a ser a capital do mundo.” Sob um ponto de vista religioso, Jerusalém, a “cidade do grande Rei” (Sal 48:3, Mat 5:35), era na verdade “um reino sobre os reis da terra”.

Este conceito do status especial de Jerusalém se reflete, por exemplo, no lamento de Jeremias sobre a destruição da cidade em 587 AC, quando ele diz que Jerusalém “grandiosa entre as nações” e era “princesa das províncias”:

“Como está sentada solitária a cidade que estava cheia de povo! Tornou-se viúva a que era grande entre as nações; Ficou sujeita ao trabalho forçado a que era princesa entre as províncias.” – Lamentações. 1:1, Sociedade Bíblica Britânica

Pode-se notar que Revelação 18:7 usa a mesma linguagem para descrever como “Babilônia, a Grande” perderia sua posição elevada:

“Em seu coração ela se vangloriava: ‘Estou sentada como rainha; não sou viúva e jamais terei tristeza’. Por isso num só dia as suas pragas a alcançarão: morte, tristeza e fome, e o fogo a consumirá, pois poderoso é o Senhor Deus que a julga.”

Certamente a terminologia aqui é tomada com base na descrição que Isaías faz da antiga Babilônia como “rainha dos reinos”, que pensa arrogantemente ‘Continuarei sempre sendo a rainha eterna!’, e que e diz a si mesma: ‘Somente eu, e mais ninguém. Jamais ficarei viúva nem sofrerei a perda de filhos’. Estas duas coisas acontecerão a você num mesmo instante, num único dia, perda de filhos e viuvez; virão sobre você com todo peso.” (Isaías 47:1-9) Conforme vimos Jeremias podia descrever Jerusalém em termos praticamente idênticos.

Finalmente, pode-se acrescentar que Jerusalém ocupava uma posição única, não só no pensamento judaico, como também durante o Império Romano. Estima-se que havia cerca de 8 milhões de judeus no Império Romano, dos quais 2 a 3 milhões viviam na Palestina. O restante, 5 a 6 milhões, estavam espalhados por todo o Império Romano e constituíam 10-15% de sua população. (W. A. Meeks, Os Primeiros Cristãos Urbanos, 1983, pág. 34) Jerusalém era a capital dos judeus no mundo, e assim poderia ser dito que ela estava “assentada sobre muitas águas” (Apocalipse 17:1), tendo o anjo interpretado isso como “povos, e multidões, e nações e línguas”. (Rev. 17:15, compare com Atos 2:5, 9-11). Desde o tempo de Júlio César fora concedido a todos esses judeus, onde quer que eles vivessem, privilégios especiais por causa de sua religião. Eram isentos do serviço militar. Eles não tinham de tomar parte no culto imperial. Tinham seus próprios tribunais, com o Sumo Sacerdote em Jerusalém sendo a autoridade central. Tinham permissão para pagar o imposto no Templo em Jerusalém. (Josefo, Antiguidades XIV,185-267) Nenhum outro povo do império gozava destes benefícios.

A cidade que se tornou uma “prostituta”

No AT, a aliança entre Deus e Israel é comparada com um casamento. (Isaías 54:5 em diante; Jeremias 2:2) Quando o povo se rebelou contra Deus e violou o Pacto da Lei, isto poderia ser comparado com fornicação e adultério. Nações e cidades pagãs que nunca estiveram em aliança com Deus não poderiam traí-lo. No AT, é na maioria dos casos Israel, Judá e Jerusalém que são comparados com prostitutas e adúlteros. (Isaías 1:21; Jer 3:1-20, 5:7; Eze 16:22; Ose 2:1-5, 3:3, 4:10-12; Miq 1:7) Até mesmo o profeta Isaías chorou sobre a apóstata Jerusalém em seus dias:

“Vejam como a cidade fiel se tornou prostituta! Antes cheia de justiça e habitada pela retidão, agora está cheia de assassinos!” – Isa. 1:21.

Em apenas dois casos, o termo “prostituta” é atribuído às cidades pagãs de Tiro (Isaías 23:15-18) e Nínive (Naum 3:4). Mas ambas as cidades haviam se comprometido com o Deus de Israel; Tiro, por meio de sua aliança com Salomão (1 Reis 5:12; Amós 1:9) e Nínive, por sua conversão a Deus devido à pregação de Jonas (Jonas 3:5-10). A cidade de Roma na época de João nunca havia entrado em qualquer tipo de relação de aliança com o Deus de Israel, sugerindo que ela poderia ser a “prostituta” do Apocalipse 17. Foi Jerusalém, e não Roma, que Jesus denunciou por sua infidelidade e falta de disposição de se arrepender. (Mateus 23:37, 38).

Os “dez chifres”

Quem eram os “dez chifres” que ajudariam a “besta”, Roma, no ataque a Jerusalém? Conforme explicado no versículo 12, os chifres “são dez reis que ainda não receberam reino, mas que por uma hora receberão autoridade como reis, juntamente com a besta.”

Reis que ainda não tinham ‘recebido reino’ não poderiam ter sido quaisquer governantes independentes de qualquer reino. A explicação mais simples é que eles eram reis vassalos, governantes dos países que eram nações sob a autoridade de Roma. Eram reis que não tinham seus próprios reinos, pois governavam sobre eles em nome de Roma. Herodes era um rei na Palestina na época em que Jesus nasceu.

A maior parte do Império Romano foi dividida em províncias, administradas por governadores romanos. Entretanto, no Mediterrâneo oriental havia diversos estados que eram reinos remanescentes, governados por reis locais, vassalos de Roma. A maior parte deles foi abolida por Vespasiano no início dos anos 70 do primeiro século, mas na década de 60 daquele século ainda havia uma dúzia de nações nesta situação.

Durante a guerra romana contra os judeus, 67-70 DC a maior parte desses reis-vassalos alinhou tropas do lado de Roma. Quando Tito cercou Jerusalém, na primavera de 70, a força principal de seu exército compunha-se, segundo Josefo, de quatro legiões romanas de 6.000 homens cada. Todavia, junto com as tropas das nações vassalas o exército mais que dobrou de tamanho, chegando a bem mais de 60 mil homens. (Guerra VII,17-19) Desse modo, Roma interagiu com diversos reis – “10” pode ser um número redondo, mas, segundo Josefo havia quase uma dúzia de reinos envolvidos – quando Jerusalém foi capturada e destruída no ano 70 DC. 

Estados vassalos do leste do Mediterrâneo nos anos 60 do primeiro século: Reino Bosforano, Ponto, Armênia, Pequena Armênia, Commagene, Cilícia, Ituréia, Homs, Arqa (Líbano) e o Império Nabateano (Eliezer Paltiel, Vassals and Rebels in the Roman Empire [Vassalos e Rebeldes no Império Romano], 1991, págs. 321-330)

“O julgamento da grande prostituta”

O julgamento da “grande prostituta” é descrito de maneira breve no Apocalipse 17:16:

“A besta e os dez chifres que você viu odiarão a prostituta. Eles a levarão à ruína e a deixarão nua, comerão a sua carne e a destruirão com fogo.” – Apocalipse 17:16

O cenário é novamente emprestado do AT. O profeta Ezequiel falou nos mesmos termos em suas profecias de julgamento contra a Jerusalém contemporânea. Ele assemelhou a Jerusalém que existia no tempo dele a uma prostituta que seria despida e queimada no fogo, o que ocorreu quando Nabucodonosor capturou e destruiu a cidade em 587 AC. (Eze 16:36-43, 23:22-29. Compare com Gên. 38:24 e Lev. 21:9.)

Quando Jerusalém foi capturada no outono de 70 DC os edifícios do templo foram queimados e a cidade foi arrasada. Josefo testifica o ódio que os governantes vassalos auxiliares de Roma mostraram durante a guerra. (Josefo, Guerra II, 457-512) Neste respeito, eles tinham “um mesmo intento” e “uma mesma idéia” que os romanos. Eles não haviam sido forçados a participar na guerra. Os “dez reis” contribuíram voluntariamente com tropas e as colocaram sob a autoridade de Roma. (Apocalipse 17:13, 17, Almeida Revisada e Corrigida Fiel)

Segundo Apocalipse 17:12, esses reis teriam o poder por “uma hora” junto com a besta. Quanto tempo foi isso? A palavra grega para “hora” foi muitas vezes usada para caracterizar um curto período de tempo. A “hora” durante a qual os “dez reis” tiveram o poder foi o curto período em que o instrumento de Deus (Apo 17:17) recebeu o poder, colaborando com Roma no julgamento de Deus sobre a prostituta. O mesmo período ao qual o Apocalipse 14:7 se refere como “a hora do seu [de Deus] juízo” e o capítulo 18, versículo 10, onde se lê: “Em apenas uma hora chegou a sua condenação!” (Compare com Apocalipse 18:17, 19.).

O cerco romano de Jerusalém em 70 DC. (De Bible Readings for the Home Circle [Leituras da Bíblia Para o Círculo Doméstico], Londres 1896, pág. 398)

“Saí dela, povo meu”

Em Revelação 18:2 um anjo anuncia a queda de “Babilônia, a Grande”. Ele retrata a cidade profética como uma cidade em ruínas, onde demônios e pássaros imundos acham refúgio. Para escapar desta devastação o povo de Deus é incentivado a fugir:

“Sai dela, povo meu, para não serdes participantes dos seus pecados, nem terdes parte nas suas pragas” – Revelação 18:4, Sociedade Bíblica Britânica.

Nos tempos antigos, era normal que as pessoas que viviam em áreas rurais procurassem abrigo em tempos de guerra dentro dos muros da cidade fortificada. Mas, numa cidade que estivesse condenada, isto seria uma armadilha. Por isso, o povo de Deus é incentivado aqui a salvar sua vida por deixar a cidade com antecedência. Em sua profecia sobre a destruição de Jerusalém, Jesus deu a mesma instrução:

“Quando virem Jerusalém rodeada de exércitos, vocês saberão que a sua devastação está próxima. Então os que estiverem na Judéia fujam para os montes, os que estiverem na cidade saiam, e os que estiverem no campo não entrem na cidade. Pois esses são os dias da vingança, em cumprimento de tudo o que foi escrito. Como serão terríveis aqueles dias para as grávidas e para as que estiverem amamentando! Haverá grande aflição na terra e ira contra este povo.” – Lucas. 21:20-23.

Eusébio nos diz em sua História Eclesiástica (III.5.1-7) que os cristãos em Jerusalém seguiram essas instruções, e colocaram-se em segurança antes de Jerusalém sofrer a “vingança”. Isso também envolve a cidade em sentido duplo, segundo Revelação 18:6: “Retribuam-lhe na mesma moeda; paguem-lhe em dobro pelo que fez; misturem para ela uma porção dupla no seu próprio cálice.” A retribuição em dobro no AT foi aplicada apenas a Jerusalém e Israel (Isa 40:2; Jer 16:18, 17:18.), o que apóia a conclusão de que a cidade é Jerusalém.

A cidade “matadora dos profetas”

Segundo Rev. 18:11-19 o extermínio de “Babilônia, a Grande” faria com que os comerciantes que negociavam com a cidade sentissem um revés considerável em suas atividades. Apesar de sua localização, Jerusalém era uma cidade comercial importante. Especialmente nas três principais festividades anuais, quando a população da cidade se multiplicava, os negócios galopavam. (Veja J. Jeremias, A Jerusalém no Tempo de Jesus, 1969, págs. 1-57) Os produtos listados (vv. 12, 13) eram todos típicos das cidades orientais contemporâneas. A maioria deles é também mencionada por Josefo em sua descrição da enorme riqueza de Jerusalém. (Guerra, VI.387-391; VII.132-152)

O capítulo 18 termina descrevendo a enorme dívida de sangue da cidade, e que foi a principal causa do julgamento que viria sobre ela:

“Nela foi encontrado sangue de profetas e de santos, e de todos os que foram assassinados na terra.” – Rev. 18:24.

Esta acusação é uma repetição do que Jesus falou contra a Jerusalém e seus líderes religiosos contemporâneos dele:

“…para que venha sobre vós todo o sangue justo derramado na terra, desde o sangue do justo Abel até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem assassinastes entre o santuário e o altar. Deveras, eu vos digo: Todas essas coisas virão sobre esta geração.”

“Jerusalém, Jerusalém, matadora dos profetas e apedrejadora dos que lhe são enviados — quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, assim como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo de suas asas! Mas vós não o quisestes.” – Mateus 23:35-37, TNM (Compare com Lucas 11:49-51, 13:33; Atos. 7:52)

Se “todo o sangue justo derramado na terra” viria sobre a Jerusalém contemporânea e seus habitantes, e “Babilônia, a Grande” seria punida pela mesma dívida de sangue, então isso não pode ser um caso de duas cidades diferentes. A conclusão lógica é que ambos os textos estão falando da mesma cidade.

Deve-se ressaltar que a profecia de Jesus é sobre a geração e espécie de judeus que vivia naqueles dias. As gerações de judeus que viveram depois daquele tempo obviamente não podem ser responsabilizadas por aquilo que eles fizeram.

O “casamento do Cordeiro”

A profecia sobre “a grande prostituta” é concluída no Apocalipse 19:1-10. Após a destruição da cidade ouve-se uma voz potente como de uma grande multidão no céu, louvando a Deus por seus justos julgamentos. João fica sabendo que “chegou a hora do casamento do Cordeiro, e a sua noiva já se aprontou.” (Apocalipse 19:7) Ele pediu para escrever: “Felizes os convidados para o banquete do casamento do Cordeiro!” (Apocalipse 19:9)

Assim, na sequência do julgamento da “prostituta” infiel aparece uma nova “noiva” que já está pronta. A Jerusalém antiga é substituída pela “nova Jerusalém”, a “esposa do Cordeiro”. (Veja Apocalipse 21:2,9,10) O paralelo mais próximo do “banquete do casamento do Cordeiro” é a parábola de Jesus sobre a festa de casamento em Mat. 22:1-14:

Um rei iria fazer o casamento de seu filho, e, portanto, enviou servos para chamar os convidados para o casamento. Mas eles ignoraram a festa e alguns deles ainda prenderam os servos e os espancaram e mataram. “O rei ficou irado e, enviando o seu exército, destruiu aqueles assassinos e queimou a cidade deles.” Então, enviou os servos para convidar outras pessoas, quem quer que encontrassem, até que a sala do banquete ficou repleta de convidados.

O significado da parábola é óbvio. Os primeiros convidados, os judeus, não vieram e mataram os mensageiros. Sua cidade, Jerusalém, foi queimada e o convite para o banquete do casamento foi estendido a outros, os gentios.

O paralelo disso com o Apocalipse 17-19 é impressionante. Uma cidade indigna é queimada no fogo, então é tempo para o casamento e os convidados são chamados para a recepção. O casamento é, em ambos os casos, o “casamento do Cordeiro”. A cidade que em ambos os textos foi queimada no fogo dificilmente pode ser outra senão Jerusalém.

Tem a profecia um cumprimento maior?

Ter a visão da “mulher montada numa besta” se cumprido na época de João não quer dizer que ela não é mais atual. Vimos que João, em sua descrição do “julgamento da grande prostituta” tomou emprestado sua linguagem das profecias do Antigo Testamento, referentes a julgamentos de Deus sobre cidades perversas daquela época do antigo Israel. Essas profecias já haviam se cumprido, mas a mensagem contida nelas ainda era relevante e aplicável.

Isso não quer dizer que João teve visões de cumprimento duplo. Não existe nada no texto que sugira isso. Mas nada nos impede de voltar a usar a linguagem dele para descrever traidores atuais de Deus e de Sua Palavra. “Prostitutas” infiéis existem também nos dias de hoje. 

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Este artigo foi publicado originalmente em duas partes no site Kristen Frihet. As referências bíblicas nesta tradução são da NVI, a menos que se especifique outra versão.

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