O Desafio da Liberdade Cristã

Introdução

Se vós permanecerdes na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará… Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres. ― João 8:31, 32, 36, Almeida Revista e Atualizada.

Onde está o Espírito do Senhor aí há liberdade. ― 2 Coríntios 3:17, Almeida Revista e Atualizada.

Os seguidores do Filho de Deus devem amar a liberdade que ele dá, prezá-la, defendê-la, sacrificar o que for necessário para preservá-la. Essa liberdade é mais que liberdade política. Ela nos liberta da frustração trazida pela escravização à decadência, da sensação de culpa diante de Deus, do temor da morte e do temor de homem ou demônios, pois traz consigo a esperança de sermos redimidos “do cativeiro da corrupção para a liberdade da glória dos filhos de Deus.”1

É também a liberdade de ser a pessoa que realmente desejamos ser, uma pessoa que reflete a vida Daquele a quem cada um de nós segue, embora individualmente manifestos como personalidades únicas que somos. Paulo não era Pedro e Pedro não era João, e tampouco Maria era Priscila ou Priscila era Dorcas. Todavia, cada um destes refletia em sua vida os ensinos, qualidades e o espírito do único a quem seguiam, do único em quem depositavam fé como Filho de Deus. Existe beleza nesta individualidade, beleza que a conformidade imposta e a uniformidade rígida com seu efeito despersonalizante ― e às vezes desumanizante ― sufocam e reprimem. Em vez de serem como “ervilhas numa vagem”, as pessoas podem ser como flores num jardim, distintas, variadas, até contrastantes, sem no entanto serem daninhas, feias ou cheirarem mal, todas se misturando e contribuindo para a beleza do jardim como um todo.

O controle totalitário, seja político ou religioso, teme a individualidade, encara-a como uma ameaça. Esse temor é sinal de fraqueza, não de força. Do mesmo modo, a falsidade teme a verdade, foge de sua luz, tenta esconder-se dela.2 Ela pode, quer agressivamente quer por meios escusos, tentar obscurecer essa luz, mas evita encarar a verdade frente a frente numa disputa honesta. A unidade baseada na uniformidade forçada, embora sólida na aparência externa, é na verdade, frágil. Ao contrário da unidade baseada na verdade e no amor, o perfeito vínculo de união, tal unidade imposta não tem força interior, natural, mas só sobrevive através da manipulação, da coerção e do medo.3

Penso aqui na carta de uma senhora da Califórnia, que, junto com as filhas, tinha estudado com as Testemunhas, e começou a participar das reuniões e do serviço de campo de porta em porta. Ela escreveu:

Há cerca de um ano venho estudando com as Testemunhas de Jeová e estou sob pressão cada vez maior para ajustar-me a todos os conceitos da organização. O que começou como um estudo bíblico agradável e instrutivo tornou-se a asfixia de nossa própria identidade espiritual. É interessante que enquanto sentimos este tipo de pressão, torna-se difícil pensar claramente. Implantou-se em nós o temor de que estaríamos seguindo o sistema de Satanás e afastando-se da organização “inspirada por Deus”.

É fácil elogiar o exemplo dado por pessoas do passado, as quais, geralmente pagando um alto preço, não permitiram que a intimidação as impedisse de buscar a verdade e torná-la conhecida. As publicações da Torre de Vigia trazem frequentemente artigos que enaltecem a integridade para com a verdade e a consciência demonstrada pelos antigos mártires e reformadores ― homens como Wycliffe, Tyndale, Miguel Servet ou João Huss, que resistiram ao poder asfixiante da censura religiosa e não se intimidaram com a pressão coercitiva e a condenação da autoridade religiosa. Outros artigos falam de modo positivo de vários grupos minoritários dissidentes e inconformistas, como os valdenses, os lolardos e os anabatistas, todos os quais declararam prestar lealdade à verdade bíblica acima da lealdade à autoridade e ao ensino das organizações.4 Em tudo isto, porém, não se pode deixar de se impressionar pelo paralelo com as autoridades religiosas dos dias de Jesus, as quais, como ele disse, ‘fizeram túmulos bonitos para os profetas e enfeitaram os monumentos dos que viveram de modo correto’, e diziam: “se tivéssemos vivido no tempo dos nossos antepassados… não teríamos matado os profetas.” Apesar do que afirmavam, o proceder daqueles líderes religiosos mostrou que tinham o mesmo espírito de seus antepassados, que levaram à morte os profetas rejeitados pela organização.5 De modo paralelo, enquanto elogia os indivíduos dissidentes e grupos inconformistas do passado, a organização Torre de Vigia utiliza armas idênticas às que foram usadas contra eles ― a censura, a intimidação, a pressão, a coerção e a excomunhão por parte da organização ― para silenciar hoje qualquer tentativa de discussão livre e aberta da validade de seus ensinos e do exercício da autoridade. Aqueles que ela agora chama de hereges devem ser considerados como mortos por todos os adeptos. Ela enaltece a coragem que fez com que homens e mulheres do passado se apegassem a suas convicções e condena a mesma atitude hoje como fruto do espírito desagregador e orgulhoso, evidência de rebelião contra Deus. Ao fazê-lo, usa uma linguagem que lembra muitíssimo as condenações eclesiásticas do passado. A história humana, todavia, é certamente mais rica de exemplos da posição em defesa da liberdade tomada por tais homens e mulheres.

Chegar ao crescimento espiritual como pessoas livres

Irmãos, não pensem como crianças. Quanto ao mal sejam crianças, mas no modo de pensar sejam adultos. ― 1 Coríntios 14:20, Bíblia na Linguagem de Hoje. 

Todo o objetivo do ensinamento cristão é levar-nos à maturidade espiritual, à condição de cristãos adultos, “à medida da estatura da plenitude de Cristo”.6 Conforme certa tradução apresenta as palavras de Paulo aos cristãos efésios:

Assim, nós não seremos mais crianças, jogados de um sentimento a outro, arrastados à deriva por todo vento de doutrina, ludibriados pelos homens e induzidos pela sua astúcia a transviar-nos no erro. Mas, confessando a verdade no amor, cresceremos sob todos os aspectos em direção àquele que é a cabeça, Cristo.7

A infância é uma época de pouca responsabilidade, de relativamente poucas opções e decisões pessoais. A criança deixa que os pais ou outros exerçam esta responsabilidade, que estabeleçam padrões. Especialmente quando pequena, ela sente que depende deles, teme ser abandonada, fica insegura sem a presença deles. A idade adulta normalmente traz a libertação dessa dependência, e com ela a responsabilidade por uma infinidade de opções e decisões pessoais. A transição não é fácil. É, no entanto, um passo que todos temos de dar, se não quisermos retardar nosso progresso. Apegarmo-nos à condição infantil nos incapacitará para ter êxito como adultos. A nossa felicidade e tudo o que de real valor conseguirmos na vida está inseparavelmente ligado à nossa disposição de assumir a responsabilidade de pessoas adultas. Como Paulo expressou:

Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das cousas próprias de menino.8

Só um sistema que visa exercer um controle extremo sobre outros e dominar seu pensamento, é que quer que as pessoas continuem na infância, impedindo ou bloqueando o crescimento que as tornaria cada vez menos dependentes desse sistema e cada vez mais fortes e capazes de tomar decisões saudáveis por conta própria. O apóstolo declara que Cristo deu a seus seguidores “dádivas em homens”, mas todos estes, quer apóstolos, profetas, evangelizadores, pastores ou instrutores, foram dados exatamente para ajudar as pessoas a “crescer”, a tornar-se, cada uma delas, como seu Cabeça, capazes de firmar-se sobre os próprios pés como adultos espirituais maduros, não a ser como crianças, dependentes de tais homens.9 Esses homens não deviam fazer as pessoas se sentirem endividadas para com eles, dizendo, como faz a organização Torre de Vigia: “Ora, onde aprenderam o que aprenderam? Não foi de nós?” Não deviam fazer as pessoas se sentirem na obrigação de seguir cegamente a liderança deles nesta base, e a se sentirem ingratas ou desrespeitosas se não o fizerem. Deviam, ao contrário, dizer como o apóstolo:

Afinal de contas, quem é Apolo? Quem é Paulo? Apenas servos por meio dos quais vocês vieram a crer, conforme o ministério que o Senhor atribuiu a cada um. Eu plantei, Apolo regou, mas Deus é quem fez crescer; de modo que nem o que planta nem o que rega são alguma coisa, mas unicamente Deus, que efetua o crescimento.10

Não ser “alguma coisa” equivale a não ser nada. O verdadeiro servo de Deus deve repelir a idéia de fazer outros se sentirem sob obrigação para com ele, reconhecendo sua própria insignificância e incapacidade relativas e a importância sobrepujante do poder e da sabedoria de Deus em tudo o que se consegue.11 Como Paulo explica:

Pois quem é que te distingue? [Quem te torna, meu amigo, tão importante? NEB] Que é que possuis que não tenhas recebido? E, se recebeste, por que haverias de te ensoberbecer como se não o tivesses recebido [por que tomas o crédito para ti mesmo, NEB]?… Vós já estais saciados! Já estais ricos! Sem nós, vós vos tornastes reis!… Somos loucos por causa de Cristo, vós, porém, sois prudentes em Cristo; somos fracos, vós, porém, sois fortes; vós sois bem considerados, nós, porém, somos desprezados.12

Tudo que tais servos cristãos tinham para usar no serviço cristão, conhecimento, compreensão ou habilidades, tudo foi recebido de Deus, como dádiva Dele. Quem quer que fossem, qualquer que tenha sido o serviço que prestaram, todos aqueles homens foram, eles próprios, “dádivas” para seus concristãos, não governantes designados sobre eles. O senso de dívida e de obrigação que a gratidão corretamente produz, vão para o Dador das dádivas, não para a coisa ou pessoa dada. Portanto, o apóstolo diz a seus concristãos:

Portanto, ninguém se glorie em homens; porque todas as coisas são de vocês, seja Paulo, seja Apolo, seja Pedro, seja o mundo, a vida, a morte, o presente ou o futuro; tudo é de vocês, e vocês são de Cristo, e Cristo, de Deus.13

Sim, quem quer que sejam, eles são, de fato, possessão daqueles a quem são dados, não seus possuidores; pertencem à comunidade dos crentes, a comunidade dos crentes não pertence a eles; eles se põem a serviço dessa fraternidade, em vez de fazer com que a fraternidade se sinta na obrigação de servi-los ou cumprir suas ordens.

Confiar como crianças ― em quem?

As Escrituras não desaprovam a atitude de ser como criança, ter um senso de dependência ou buscar orientação de uma fonte superior. O fator chave é: Para com quem é que se deve mostrar a atitude como a das crianças? Respondendo a uma pergunta de seus discípulos, Jesus chamou uma criancinha e a colocou diante deles, dizendo:

Deveras, eu vos digo: a menos que deis meia-volta e vos torneis como criancinhas, de modo algum entrareis no reino dos céus. Por isso, todo aquele que se humilhar, semelhante a esta criancinha, é o que é o maior no reino dos céus; e todo aquele que receber uma de tais criancinhas à base do meu nome, também a mim me recebe. Mas, todo aquele que fizer tropeçar a um destes pequenos que têm fé em mim, para este seria mais proveitoso que se lhe pendurasse em volta do pescoço uma mó daquelas que o burro faz girar e que fosse afundado no alto-mar…. Naturalmente, é necessário que venham pedras de tropeço, mas ai do homem por meio de quem vem a pedra de tropeço!14

Queira notar que a confiança e a fé como a das crianças não devia ser depositada em homens ou num sistema religioso, mas em Cristo ― “fé em mim”. Ter fé nele é também ter fé em seu Pai, de quem também nos tornamos filhos. É verdade que encontramos nas Escrituras ocasiões em que alguns apóstolos usaram as expressões “filhos”, “filhinhos” e “meus filhos”, ao escreverem a outros, ou falaram deles mesmos como numa posição de pais com filhos. A evidência, porém, mostra que se fazia isto quer expressando uma relação especial devido ao apóstolo ter sido o primeiro a apresentar as boas novas, a mensagem de vida, àquelas pessoas (como no caso da relação entre Paulo e os de Corinto, Galácia e Tessalônica), quer como um termo afetuoso usado por um instrutor idoso aos que eram mais jovens do que ele na fé, como no caso do apóstolo João.15 Eles manifestavam interesse paternal, não o controle autoritário de um pai. Tinham cuidado em não ir além deste sentido restrito, pessoal, e portanto não foram culpados de levar as pessoas a violar a ordem de Cristo: “Não chameis a ninguém na terra de vosso pai, pois um só é o vosso Pai, o Celestial.”16 Nossa fé ou confiança nos homens que prestam ou que afirmam prestar serviço espiritual nunca pode ser absoluta, mas sempre condicionada à medida que eles refletem fielmente a vontade e a sabedoria de nosso Dador celestial da vida. Se essa fé ou confiança chegou alguma vez a ser depositada em tais homens, ela foi longe demais.

Tampouco devemos deixar que nossa responsabilidade pessoal como cristãos nos seja usurpada pela tentativa de exercer a “paternidade” espiritual de outro modo, descartando engenhosamente a ordem de Cristo, e afirmando, não ser nosso Pai espiritual, mas ocupar o lugar da “Mãe” espiritual. O pai transmite vida aos filhos por meio da mãe; esta é, portanto, fonte de vida para os filhos. De modo algum Deus designou essa função a algum arranjo humano, a uma organização de qualquer espécie. Só seu Filho é Mediador entre Deus e os homens e só ele é “o caminho, a verdade e a vida”, já que ninguém vai ao Pai senão por ele.17 Portanto, qualquer organização que afirme que a obtenção da vida eterna depende de a pessoa subordinar-se a ela, é uma negação dessa verdade e uma usurpação do papel de Cristo.

Na ausência do pai, a mãe da família pode ser a fonte de orientação para os filhos, e até exercer autoridade matriarcal sobre a família. Já vimos (no capítulo 4) que a organização Torre de Vigia, enquanto argumenta que existe uma “mãe” celestial, denominada “organização universal de Deus”, afirma atuar em nome dessa “mãe” como um “canal” terrestre que provê instruções aos “filhos” dela e os alimenta. De fato, as afirmações feitas sobre a “mãe celestial” e sobre o respeito e a deferência que se devem a ela, aplicam-se na prática à organização terrestre que se torna assim uma espécie de mãe adotiva.18

The Watchtower, 1o de maio de 1957, pág. 273

Tradução:


MOSTRE RESPEITO pela ORGANIZAÇÃO DE JEOVÁ

“Filho meu, guarda os mandamentos de teu pai, e não abandones a instrução de tua mãe. Pois o mandamento é uma lâmpada, e a lei uma luz, e as repreensões da instrução o caminho da vida.“ — Pro. 6:20, 23

OS FILHOS da cristandade são os filhos deste sistema de coisas, pois a cristandade é uma parte dominante dele. Os filhos da cristandade têm uma lâmpada, a Bíblia, em centenas de milhões de exemplares, em muitos idiomas; mas, para eles, é uma lâmpada apagada. Por quê? Porque o pai dêste sistema de coisas e a sua prole desleixada, a “cristandade”, têm cegado as mentes dêles quanto à luz da lâmpada. Pior que isso, lançaram seus filhos deliberadamente para fora, sem a devida apreciação da sua lâmpada, e permitiram que perambulassem numa condição de trevas e de destituição. Até a lâmpada que êles levam, velada como é para êles, lhes teria sido arrancada se uma mão poderosa não o tivesse impedido. Êste é o quadro dos filhos do velho mundo na cristandade.
___
1. Quem são os filhos da cristandade, e qual é a sua condição?
Conforme a edição correspondente em português (A Sentinela de 1o de fevereiro de 1958, pág. 88).

Recordo-me que, durante o período tumultuado na sede mundial em 1980, um conhecido meu falou por telefone com um superintendente viajante (superintendente de circuito) no centro-oeste do país e mencionou sua preocupação com as sanções tomadas pela organização. A reação do superintendente viajante foi: “Bem, isto nós sabemos. Mamãe pode estar certa ou pode estar errada. Mas continua sendo a mamãe.” Para ele, “mamãe” era a organização sediada em Brooklyn, e não um corpo celestial. E assim pensa a maioria das Testemunhas de Jeová. Algumas religiões adotam um conceito similar visando a fortalecer sua autoridade. Este, porém, é um conceito estranho ao ensino cristão. Ele, de fato, debilita a verdade de que, enquanto Deus no passado falou com os homens por diversos meios, inclusive mensageiros angélicos da esfera celestial, Ele agora nos falou por meio de seu Filho e continua a guiar-nos por meio desse Filho e através da direção de seu Espírito santo.19 Em parte alguma das Escrituras somos exortados a olhar para uma “organização celestial” em busca de esclarecimento, mas somos orientados a voltar-nos para nosso Pai celestial e seu Filho em busca de ajuda para compreender e aplicar a mensagem que deram à humanidade.20

Nos tempos antigos, os filhos eram muitas vezes entregues aos cuidados de um “tutor” que, diferentes dos chamados de “tutores” atualmente, não ensinavam à criança, mas levavam-na ao professor ou à escola, além de dar-lhe a necessária disciplina.21 Usando isso como ilustração, Paulo escreve:

Antes que viesse essa fé, estávamos sob a custódia da Lei, nela encerrados, até que a fé que haveria de vir fosse revelada. Assim, a Lei foi o nosso tutor até Cristo, para que fôssemos justificados pela fé. Agora, porém, tendo chegado a fé, já não estamos mais sob o controle do tutor. Todos vocês são filhos de Deus mediante a fé em Cristo Jesus.22  

Se agora nos deixamos ficar em sujeição a um sistema terrestre e a suas leis, permitindo que definam e regulem nossa adoração e nossa conduta perante Deus, estamos recuando no tempo, para a época anterior à vinda de Cristo. Significaria, na prática, anular aquilo que Cristo realizou, anular a liberdade que sua ação nos trouxe. Reverteríamos à condição infantil que nos faz um pouco mais que escravos, até mesmo como o apóstolo descreve a questão ao dizer:

Digo, pois, que durante o tempo em que o herdeiro é menor, em nada difere de escravo, posto que é ele senhor de tudo. Mas está sob tutores e curadores até ao tempo predeterminado pelo pai. Assim também nós, quando éramos menores, estávamos servilmente sujeitos aos rudimentos do mundo; vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a lei, para resgatar os que estavam sob a lei, a fim de que recebêssemos a adoção de filhos.23  

Cristo Jesus estabeleceu a congregação sobre o alicerce dos seus apóstolos, e todavia jamais fomos exortados a olhar para essa congregação como nossa cabeça. “A cabeça de todo homem é”, não a congregação ou os que a compõem ou os que atuam como pastores dela, mas “o Cristo”.24 Isso significa aceitá-lo como fonte divinamente designada de direção em nossas vidas, aquele para quem olhamos, por meio do Espírito santo, em busca de orientação nas decisões e escolhas que fazemos em nossos caminhos. Toda exortação quanto a expressar respeito, confiança ou submissão a homens dentro do corpo dos crentes em Cristo ― sejam eles quem forem ― deve portanto ser sempre encarada como relativa, jamais absoluta. Se Cristo é deveras nosso Cabeça, temos conscienciosamente de pesar toda diretriz, conselho e orientação de qualquer fonte humana na balança de suas palavras e ensinamentos, de seu exemplo e das qualidades que manifestou. Aceitá-los indiscriminadamente seria não só tolice infantil, mas também perigoso.25 Seria também negar a chefia dele. Obediência ou submissão cegas a líderes religiosos não é sinal de fé em Cristo, não é evidência de forte devoção ou respeito à sua posição divina. Aceitar a chefia de Cristo traz a responsabilidade de discernir aquilo que genuinamente representa essa liderança e se procede dela ou não. E não podemos passar a outros essa responsabilidade; temos de levá-la nós mesmos.26

O chamado para a liberdade está implícito na Palavra de Deus. Por que então tantos hesitam ou deixam de procurá-la?

O temor da liberdade

Porque o temor implica um castigo, e o que teme não chegou à perfeição do amor.  1 João 4:18, Bíblia de Jerusalém.

A liberdade cristã não é simplesmente uma liberdade negativa ― a liberdade de não crer, de não fazer ― mas é primariamente uma liberdade positiva, a liberdade de crer, de fazer, de ser.

Embora pareça estranho, muitos se assustam com esta liberdade positiva ou a simples perspectiva dela. É porque essa liberdade significa assumir a responsabilidade de chegar a conclusões com base no entendimento e nas convicções da própria mente e coração, e não das mentes e corações de outros, ou em suas interpretações e raciocínios, a responsabilidade de fazer escolhas e decisões pessoais e aceitar suas consequências. Por esta mesma razão, grande parte da humanidade busca fugir da liberdade. O meio de fuga consiste geralmente em submeter-se a uma fonte que assume a autoridade de tomar decisões pela pessoa, de ser sua consciência, de dirigi-la em suas opções de vida. Se não fosse por essa disposição de trocar a liberdade pela submissão, as formas totalitárias de governo que emergiram após a Primeira Guerra Mundial jamais teriam obtido o poder que obtiveram. Sobre estas forças, e a incrível atração que exerciam sobre as massas, o sociólogo de origem alemã Erich Fromm escreve:

…a essência destes novos sistemas, que efetivamente assumiram o controle de toda a vida social e pessoal do homem, era a submissão de todos,  com exceção de um punhado de homens, a uma autoridade sobre a qual eles não tinham controle algum… [Milhões] estavam tão ansiosos de abrir mão de sua liberdade quanto seus pais tinham estado ansiosos de lutar por ela.27

Mostrando quão difundida é esta tendência humana, e uma razão subjacente para isto, outra fonte declara:

Sempre que procuramos evitar a responsabilidade por nossa própria conduta, nós o fazemos por tentar atribuir essa responsabilidade a alguma outra pessoa, organização ou entidade. Mas isto significa que abrimos mão de nosso poder para essa entidade, seja ela o “destino”, a “sociedade”, o governo, a empresa ou o nosso patrão…. Ao tentar evitar o peso da responsabilidade, milhões e até bilhões tentam diariamente fugir da liberdade.28

Na religião, como em outros setores, muitos acham mais fácil deixar que outros pensem por eles, escolham por eles, tomem decisões por eles. Não estariam, sem dúvida, tão desejosos de fazer isto em questões materiais, mas o fazem nas questões espirituais e éticas. Sua fé é uma “fé emprestada”. Crêem em algo principalmente porque outros creram, e aceitam as afirmações confiantes deles de que estão certos. Buscam a segurança de pertencerem a outros, por meio da filiação a uma organização. Buscam refúgio dos problemas morais por meio da submissão a um sistema que se oferece para assumir a responsabilidade de dirigir suas vidas por eles. O apóstolo dirigiu-se a pessoas na Galácia como “vós que quereis ser submissos à lei.”29 Hoje, igualmente, muitos querem as coisas ditadas nos mínimos detalhes, decretadas para eles em forma de regras de modo que se sintam livres da responsabilidade da decisão. Nas palavras do escritor de Hebreus, eles simplesmente ‘não cresceram’ como cristãos.30

Uma das verdades básicas da vida é que a própria vida é difícil. Em muitos aspectos, isto se dá porque enfrentar os problemas e trabalhar para solucioná-los é um processo penoso. Ninguém tem uma vida livre de problemas, e a dor que causam pode superar a dor física. Nossa tendência é tentar evitar a dor por ignorar os problemas, recusar enfrentá-los, ou buscar fugir deles pelos meios possíveis. Pessoas com experiência em saúde mental admitem que isto não só é comum como também prejudicial. Conforme expressa a fonte já citada:

A tendência de evitar os problemas e o sofrimento mental inerente a estes é a base principal de toda doença mental humana…. Alguns de nós irão a grandes extremos para evitar os problemas e o sofrimento que causam, afastando-se para bem longe de tudo aquilo que é claramente bom e sensível a fim de achar uma saída fácil, edificando as fantasias mais elaboradas nas quais viver, às vezes numa total exclusão da realidade. Nas palavras sucintamente elegantes de Carl Jung, “A neurose é sempre um substitutivo para o sofrimento legítimo.”31

O “alimento” mental provido pela organização Torre de Vigia não só estimula a transferência da responsabilidade pessoal para um sistema e seus líderes. Como vimos, ele também nutre um ponto de vista ilusório sobre a vida, estimulando o desejo de crer ― apesar de toda a evidência contrária ― que se está usufruindo de um ambiente espiritual ideal, virtualmente livre de problemas, que só é preciso ‘seguir as orientações da organização’ e tudo dará certo. Muitos, talvez a maioria, preferem crer nisto. Acham mais fácil. Todavia, no final, a fuga que pensam conseguir mostra-se mais custosa que o sofrimento legítimo evitado. É que a ilusão só pode ser mantida por meio da sujeição constante, pela vida toda, à doutrinação, e por uma rotina constante de ações que amenizam, temporariamente, a sensação de culpa incutida por se deixar de cumprir as exigências da organização. É preciso deixar que as próprias faculdades mentais sejam restringidas e direcionadas, que as próprias qualidades da compaixão e da afeição sejam circunscritas. Em longo prazo, as perdas mostram-se mais pesadas que a disciplina e o esforço que teriam de ser gastos para encarar a realidade e lidar com ela.

Em 1985, numa carta, um homem do estado de Nova Iorque, EUA, escreveu:

Eu também estive “na Verdade” por quarenta e oito anos e servi de todo o meu coração. Além disso, sofri todas as indignidades e prisões sofridas pela maioria das Testemunhas de nossa idade. Agora, olhar para a organização que aprendemos a amar e vê-la como insensível e impassível é muito traumático. O que me irrita mais ainda é que eu sei disso há algum tempo, mas ocultei estes sentimentos. Creio que o medo de deixar minha consciência se expressar tornou-me alguém inferior ao que era quando “entrei na Verdade”. Por causa disso, acho que não gosto de mim mesmo. Pelo menos, seu livro forçou-me a desvencilhar-me disso. Quão vividamente João trouxe à nossa atenção que o medo age como restrição, e enquanto o medo está presente não podemos exercer o perfeito amor. ― 1 João 4:18.

Creio que o que ele diz, em graus maiores e menores, tem se aplicado a todos nós. Todos nós fomos diminuídos de um modo ou de outro: no livre uso das energias mentais que Deus nos deu, em nossa livre manifestação de amor, compaixão e misericórdia, em nossa capacidade de falar a verdade onde for preciso e em quaisquer circunstâncias. É claro que nem todos são afetados na mesma extensão. Alguns conseguem manter certo grau de integridade pessoal, resistir, até certo ponto, à pressão para ajustar-se a um molde rígido. Mas não tenho a mínima dúvida de que, assim mesmo, todos sofrem perdas, e eles tornam-se inevitavelmente, para usar a expressão do missivista acima citado, ‘pessoas inferiores’ àquilo que de outro modo poderiam ser ― e que refletem menos a Cristo do que deveriam. Nas palavras do apóstolo, permanece sobre eles um véu figurativo, com um novo legalismo e seu “código escrito” no lugar do código da Lei. Esse véu está “deitado sobre os seus corações”, encobre e turva a visão deles do esplendor de sua nova posição diante de Deus, tornada possível pelo Filho dele.32 O medo de assumir o pleno sentido dessa posição obstrui sua “franqueza no falar”, leva muitas vezes a sentimentos ocultos, velados, expressões disfarçadas, em vez da abertura, sinceridade e franqueza que são características da liberdade cristã. Como diz o apóstolo:

Ora, o Senhor é o Espírito e, onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade. E todos nós, que com a face descoberta contemplamos a glória do Senhor, segundo a sua imagem estamos sendo transformados com glória cada vez maior, a qual vem do Senhor, que é o Espírito.33  

Algumas das perdas mais sérias resultantes desta sujeição a um sistema são do tipo sutil, gradual, cumulativo. Outras não, e os efeitos de deixar que outros pensem por nós são mais claramente evidentes.

Penso numa senhora do leste dos EUA cujo marido veio de uma família em que os membros estavam entre os mais antigos associados com a Torre de Vigia naquela região. Ele tornou-se “superintendente de congregação” e era uma “coluna” na comunidade das Testemunhas. Na meia idade, ele morreu repentinamente. Tinha sempre confiado nas garantias da organização quanto à proximidade do fim e nunca dera grande importância às preocupações materiais. Após sua morte, basicamente nada restou com que sua esposa pudesse sustentar-se, e então, com mais de 50 anos, ela viu-se obrigada a procurar emprego praticamente por questão de sobrevivência. Visto que o trabalho que conseguiu num lar de idosos exigia que usasse uniforme e o horário de trabalho dela era próximo ao de certas reuniões no Salão do Reino, ela as assistia de uniforme. Ela observou que, embora levantasse a mão regularmente para comentar, por alguma razão não mais a chamavam. Quando indagou aos anciãos, estes lhe disseram que era porque estava usando uniforme (visto como ‘traje inadequado’). Seus longos anos de serviço e os de seu marido, e as dificuldades que enfrentava como viúva pareciam não ter importância.

Falei recentemente por telefone com um homem que tivera, quando jovem, ótimo desempenho escolar. Abriu mão de bolsas de estudo e quando terminou o colégio tornou-se pioneiro e serviu por vários anos na sede internacional. Quando saiu da sede, tornou-se superintendente de circuito e depois superintendente de distrito. Casou-se e com o tempo vieram filhos. Logo achou emprego numa empresa de âmbito nacional e se deu bem. Recentemente, porém, mudanças no pessoal da administração puseram seu emprego em risco. Como ele disse, então com mais de 50 anos e sem diploma ― o que se tornou quase obrigação na sua área de atuação ― percebeu como nunca antes as consequências de depositar total confiança num sistema religioso e de se submeter às suas pressões, de ter sido cego a qualquer outra coisa que não fosse o que lhe ofereciam para crer.

Recordo de comentários semelhantes, quando eu estava ainda no Corpo Governante, feitos por um membro do pessoal da sede mundial, Ken Pulcifer, que fora superintendente viajante antes de trabalhar na sede da organização. Ele veio à minha sala certo dia, perguntou se eu dispunha de alguns minutos e então se mostrou preocupado com os jovens da organização. Em essência, ele disse: “Incentivamos nossos jovens a sair como pioneiros ou a vir para Betel tão logo terminam o colégio. Muitos fazem isso. Mais tarde casam e então vem uma gravidez. Deixam o serviço de pioneiro ou de Betel. Precisam achar trabalho mas não estão habilitados a empregos bem remunerados e têm de pegar o que puderem. Junto com outras despesas, têm contas médicas a pagar. As circunstâncias difíceis impõem grandes tensões ao casamento, que muitas vezes está ainda em fase de adaptação. Isso às vezes termina destruindo o casamento.” Ele disse que achava que não estávamos agindo certo com os jovens, desencorajando-os de preparar-se genuinamente para enfrentar a vida no mundo atual. Só pude concordar com ele, mas não via esperança realista de alterar o conceito da organização.

Durante uma viagem relacionada com uma série de congressos da Torre de Vigia no Oriente em 1971, uma das participantes era uma mulher muito bonita que minha esposa e eu tínhamos conhecido alguns anos antes. Notei que ela passara a mancar muito, e ao perguntar sobre isso a um amigo, soube que sofrera de uma enfermidade que lhe afetava o quadril. Quando perguntei se nenhuma solução médica tinha sido possível, o amigo disse que sim, que os médicos quiseram fazer uma cirurgia, mas ela a descartou. Quando perguntei o motivo, a resposta foi: “Bem, você sabe, 1975.” Sua perna afetada já estava alguns centímetros mais curta que a outra. 1975 veio e passou, mas o problema dela continuou, agora já sem remédio.

Estas são apenas uma amostra de milhares de casos similares. Embora a organização atualmente não promova nenhuma data específica para a “solução final” de todos os problemas, a contínua garantia de que estamos perpetuamente no “próprio limiar de uma nova ordem” afeta a atitude da pessoa para com a solução dos problemas, mostra uma visão distorcida da realidade. Poderiam ser dados inúmeros relatos sobre os efeitos de se fechar os olhos à realidade a fim de manter a crença em esperanças ilusórias. Normalmente temos repugnância por pessoas que induzem outras com recursos limitados a investi-los em negócios arriscados unicamente com base em especulações e que resultam em desastrosas perdas financeiras. Mas tratamos aqui de coisas ainda mais importantes, mais valiosas, e certamente mais insubstituíveis que dinheiro. O nosso tempo ― horas, dias, meses e anos envolvidos ― é a “moeda” da própria vida. Esses recursos são limitados. Podemos imaginar que, ainda que ultrapassemos os 80 anos de idade, tínhamos, ao nascer, um fundo de cerca de 30.000 dias à nossa disposição. Aos 40 anos, metade destes 30.000 dias já estão gastos; aos 50, apenas 11.000 dias ainda estão no fundo; aos 60, cerca de 7.000 dias, e daí em diante nossa “conta bancária” encolhe dramaticamente. Há muito tempo, o salmista escreveu:

Acabam-se os nossos dias como um breve pensamento. Os dias da nossa vida sobem a setenta anos, ou, em havendo vigor, a oitenta: neste caso o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente, e nós voamos… Ensina-nos a contar os nossos dias, para que alcancemos coração sábio.34

Em vista da preciosidade do tempo, como podemos ter a presunção de impor aos outros nossa opinião quanto a como investir seu tempo, ou tentar dirigir e controlar esse investimento? Na medida em que nos beneficiamos da sabedoria divina encontrada na Palavra de Deus, podemos encorajar outros e até aconselhá-los contra os investimentos infrutíferos e a favor de bons investimentos.35 Isto, porém, é muito diferente de exortar e pressionar pessoas a investir apenas nas atividades e interesses específicos que nós pessoalmente promovemos, sugerindo que eles são tolos esbanjadores se não o fizerem.

Pelo mesmo padrão, embora possamos ser gratos pelas idéias, experiência e relativa sabedoria de outros, jamais devemos deixar que qualquer pessoa assuma o controle do nosso tempo, de fato nos ditando o uso dos limitados fundos de nossa vida. Podemos ter feito isto no passado, e nossa tendência natural é resistir a reconhecer que  ao fazê-lo fizemos um mau investimento. Admitir para si próprio que anos e até décadas, foram gastos em percorrer um caminho ilusório é doloroso. Cogitar essa possibilidade pode ser tão penoso que preferimos recusar a considerá-la, fechar os olhos aos duros fatos e continuar o que vínhamos fazendo. Mas não podemos resgatar o investimento “acrescentando mais dinheiro ao que já foi perdido.”

Mais uma vez, o medo da liberdade pesa muito sobre muitas pessoas e a mera ideia de não estarem ligadas a uma organização as faz sentirem-se fracas. A matéria sobre saúde mental que já mencionamos dá esta explicação para o motivo de muitos hesitarem em se libertar:

Uma das raízes desta “sensação de impotência” da maioria dos pacientes é um desejo de fugir parcial ou totalmente à dor da liberdade, e, portanto, alguns falham em aceitar a responsabilidade, total ou parcial, por seus problemas e suas vidas. Sentem-se impotentes, porque, na verdade, abriram mão de suas forças. Mais cedo ou mais tarde, se quiserem se curar, terão de aprender que toda a vida adulta é uma série de escolhas e decisões pessoais. Se puderem aceitar isto plenamente, tornam-se então pessoas livres. Na medida em que não aceitarem isto, sentir-se-ão para sempre como vítimas.36

Outros temores que inibem o crescimento espiritual

Tive uma vez o privilégio de presenciar a conclusão de um parto. Quando o cordão umbilical foi cortado e o bebê posto sobre a barriga da mãe, ela disse: “Bem, amiguinho, você agora está por sua própria conta!” Era o começo de uma nova vida ― a vida de um indivíduo único ― e ainda recordo a emoção que senti ao ouvir as palavras dela para a criança. O “estar por sua própria conta” que o nascimento traz, todavia, não vai muito longe de início. O cordão umbilical foi cortado, mas na infância a pessoa ainda está vital e desesperadamente dependente dos cuidados de outros. Um bebê, ou mesmo uma criancinha maior, tem o medo inato de ser abandonado, a sensação íntima de vulnerabilidade. Para um bebê, ser deixado só por muito tempo significa a morte.

Crescer e amadurecer é um processo de aprender a lidar com o conceito de independência, de preparar-se gradualmente para assumir plena responsabilidade por si mesmo como pessoa. Não é um processo fácil, como qualquer pai ou mãe que buscou guiar um filho através dele bem sabe. A adolescência é a época em que o jovem aproxima-se do ponto de transição da dependência para a independência, e pode ser uma época penosa, problemática e geralmente confusa para a criança. O êxito ou a falha desta transição tem efeitos duradouros sobre o modo como vivemos nossas vidas dali em diante. O mesmo ocorre com nosso crescimento espiritual.

Tanto no crescimento emocional como no espiritual, bem como na nossa aceitação da responsabilidade que a liberdade traz, os fatores que dificultam podem incluir o medo da solidão e a sensação de insegurança e impotência. Embora não mais sejamos criancinhas, ainda sentimos a necessidade inata de outros, e com razão. Mesmo como adultos, geralmente dependemos de outros para muitas coisas da vida: protegem-nos contra uma variedade de perigos, cultivam o alimento de que precisamos ou o disponibilizam para nós, cuidam de nós quando doentes ou na velhice, e nos atendem em muitas outras necessidades. Junto com o crescimento, vem também a eventual conscientização de nossa própria pequenez e relativa insignificância quando comparados com o mundo em que vivemos. A sensação de solidão e isolamento pode, portanto, gerar sentimentos de insegurança, vulnerabilidade, impotência e incerteza, e pode criar em nós a compulsão de fugir destes sentimentos por submergirmos em algo maior que  nós. Algumas pessoas não têm senso de identidade pessoal, de segurança, senso de força ― nem sequer senso de sentido na vida ― sem pertencerem a algum sistema estruturado, sem se submeterem à autoridade externa que o sistema representa. Conseguirão até mesmo acalmar qualquer sentimento de dúvida e incerteza que possa depois surgir por simplesmente ampliarem sua submissão, e de fato, forçarem suas mentes a acatar as pretensões de certeza feitas pelo sistema. Visto que a pessoa suprime ou elimina a consciência dos problemas, é como se estes não existissem. O resultado é mais o entorpecimento dos sentimentos do que o genuíno alívio, analgésico em vez de cura.

A liberdade cristã não promove o isolamento. Mas tampouco nos incentiva a fugir do isolamento por meio do sacrifício de nossa individualidade e integridade pessoais em face de um sistema ou organização, em troca da mera sensação de “pertencer a algo”. Em vez disso, ela exorta a que se tenha com os outros relações motivadas pelo amor e com expressões espontâneas em ações de cooperação útil e produtiva.

Quando alguém foi submerso numa organização de qualquer tamanho, a ideia de desligar-se pode ser perturbadora. Tendo vivido numa sociedade fechada, cujos laços dão sensação de segurança e de pertencer a algo, a pessoa passa a enfrentar o desafio de viver fora dessa sociedade fechada. Essa perspectiva pode renovar a ansiedade e o sentimento de impotência. As organizações muitas vezes exploram esses sentimentos, fazendo a pessoa sentir que se deixar seus confinamentos estará essencialmente só e frágil num mundo hostil. “Se você sair, para onde irá?”, é a pergunta comumente feita entre as Testemunhas de Jeová.

Acho que podemos aclarar nossas ideias se considerarmos as condições que prevaleciam nos primeiros séculos e o problema que os cristãos então enfrentavam. Os homens já cumpriam a advertência dos apóstolos sobre aqueles que tentariam fazer que os discípulos fossem seguidores deles mesmos.37  As pessoas que não se submetessem às normas de homens como Diótrefes eram ameaçadas de expulsão da congregação.38 As mensagens de Jesus às sete congregações mencionadas nos capítulos 2 e 3 de Revelação revelam claramente que o campo do mundo tinha, conforme predito, sido “semeado” com joio por cima do trigo.39 Suas mensagens expunham os desvios da fé, do amor e da verdade, que precisavam urgentemente de correção, pois do  contrário ele lhes retiraria seu favor e apoio.

Que faria alguém, por exemplo, no terceiro século A. D., se achasse que as coisas em sua região tinham chegado ao ponto de a chefia de Cristo ser seriamente usurpada por homens, e que a submissão exigida só fosse possível com o sacrifício da consciência, e ele achasse que a verdade, o espírito e o amor cristãos estavam sendo sutilmente pervertidos, de modo tal que o cristianismo estivesse em descrédito? Talvez morasse num dos lugares onde o apóstolo Paulo tinha pessoalmente trabalhado, como Éfeso ou Tessalônica. Se expressasse a intenção de sair, outros poderiam reagir deste modo: “Como é possível que você queira sair? Não percebe que Paulo, o próprio apóstolo de Cristo, trouxe pessoalmente as boas novas a esta região, e iniciou a comunidade de cristãos que continua até o dia de hoje? Se algo está errado, Cristo certamente corrigirá isso e nós temos apenas de esperar até que Ele o faça. Onde você aprendeu o que aprendeu ― não foi nesta comunidade e através dela? Se sair, para onde irá? Lá fora só há hereges e pagãos. Onde encontraria outra comunidade do tamanho desta? Você correria perigo de ver-se totalmente só ou apenas como parte de um pequeno grupo dissidente.”

Qual teria sido o resultado se essa pessoa do terceiro século tivesse sido convencida por tal argumentação, tivesse suprimido seus sentimentos de consciência, fechado os olhos aos sérios erros, e ansiosamente acreditasse que estes se resolveriam, apesar de toda a evidência contrária? Daria este proceder de conformidade passiva qualquer garantia contra a possibilidade de ser achado entre aqueles a quem Cristo diria como disse às pessoas em Laodicéia: “Não és nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca.”?40 O proceder que muitos professos líderes cristãos tinham então adotado não mudou; continuou até que se criou um sistema hierárquico. Se a suposta pessoa do terceiro século tivesse tomado a atitude de conformidade passiva e encorajado seus filhos e netos a fazer o mesmo, todos teriam por fim se tornado súditos submissos deste sistema hierárquico. Se vivêssemos naquele tempo, teríamos considerado aceitável essa consequência? Só se nossa resposta fosse afirmativa poderíamos achar aceitável e convincente a argumentação que encoraja a conformidade passiva hoje.

As pessoas daquela época precisavam ter fé na promessa: “Se alguém me ama, guardará minha palavra e o meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada.”41 A necessidade de fé não é hoje menor que nos tempos passados. Com a fé, podemos enfrentar situações como a do perseguido Davi, e como ele dizer a Deus:

Não me abandones e não me deixes, ó meu Deus de salvação. Caso meu próprio pai e minha própria mãe me abandonassem, o próprio Jeová me acolheria.42

Examinar nossa motivação

A verdade nos põe à prova, e só temos a perder se fugirmos dela, escondermo-nos dela, fecharmos os olhos a ela. Quanta confiança temos em Deus e em seu poder de nos suster e resguardar? O auto-exame pode ser doloroso, mas necessário. O apóstolo escreve:

Examinai a vós mesmos se realmente estais na fé; aprovai a vós mesmos. Ou não reconheceis certamente que Jesus Cristo está em vós? Se não é que já estais reprovados.43

Não desejo pressionar ninguém a tomar determinada atitude para com a religião à qual está filiado. Tenho me correspondido com centenas de pessoas ainda associadas com a organização Torre de Vigia, algumas que até servem como anciãos. Nenhum deles pode dizer que alguma vez expressei desrespeito à sua posição ou busquei de algum modo induzi-los ao desligamento. Creio que esse passo, se dado, tem de ser baseado numa decisão completamente pessoal. As consequências em muitos casos são sérias o bastante para deixar claro que só a pessoa envolvida deve se responsabilizar por tal passo. A simples existência do erro não faz automaticamente do desligamento uma obrigação moral. Creio pessoalmente que não há nenhum sistema religioso livre de erros. Não foi só devido a certo número de ensinos errôneos que tomei as decisões que tomei e que deixei de fazer parte da religião das Testemunhas. Muitos que ali permanecem fazem isso, não por estarem convictos de que todo o conjunto de ensinos está correto, mas por não verem, ou acharem que não vêem, “nada melhor em outro lugar”. Isto, é claro, aplica-se a pessoas que pertencem a muitas outras religiões além das Testemunhas. Estou ciente de que nem todas as pessoas filiadas a uma religião acham que abriram mão da liberdade para sua denominação religiosa, e que, portanto, precisam se libertar dela para terem liberdade em Cristo. Não obstante, qualquer que seja nossa religião, é aconselhável fazer um escrutínio pessoal.

Há também pessoas que, embora discernindo as falhas nos vários ensinos e na ênfase e na falsa importância atribuída aos conceitos da organização, são cautelosas no que falam e fazem de modo a evitar a ruptura com a religião devido à preocupação com as relações familiares. Sei de alguns que têm pais em idade avançada, que estiveram na religião a vida toda. Estas pessoas acham que, se forem excomungadas pela organização, o choque poderia pôr em perigo a vida de seus pais, ou privá-los da ajuda ou apoio que pessoalmente recebem agora dos filhos. Outros mostram cautela por convicção de que a ruptura oficial com a religião certamente causaria igual ruptura do casamento, por terem um cônjuge cabalmente doutrinado. Ao que parece, suportar certas restrições e sofrimentos pode ser considerado por eles como um sacrifício válido, quando motivados pela preocupação com os outros. Isto pode, obviamente, ter seus limites, e nem mesmo as relações familiares podem justificar o apoio ativo aos ensinos ou normas que a pessoa crê que são distorções do cristianismo.44

Mas as pessoas que conseguiram certo grau de êxito na área secular podem simplesmente relutar em abandonar uma organização de tamanho razoável, com certa força e números. Talvez sintam desejo de empregar no cenário religioso as mesmas habilidades seculares que lhes trouxeram êxito no mundo, ou talvez doem ou emprestem dinheiro e, em resultado, usufruem uma relação mais íntima e privilegiada com os homens em autoridade. Creio que a religião das Testemunhas, bem como algumas outras, ajusta-se notavelmente a pessoas com esta tendência. Isto não acontecia tanto no início de sua história, mas acontece hoje. A grande atenção que a organização dá às obras, à expansão, às grandes reuniões e grandes projetos, cria um ambiente no qual podem destacar-se os que têm experiência e pendores administrativos seculares. Numa religião maior seriam, como diz o ditado, “pequenas gotas num grande lago”. A organização Torre de Vigia é suficientemente pequena para que nela causem impacto, ganhem destaque, e, todavia, grande o bastante para que a ascensão ali obtida lhes proporcione uma sensação extra de importância pessoal. Podem ser homens perspicazes, capazes de ver a natureza falha dos ensinos e normas organizacionais, a discrepância entre estes e os ensinos de Cristo e da Bíblia. Podem até sentir, e talvez cautelosamente expressar, preocupação com isto. Amiúde podem falar mais que os outros, e expressar suas opiniões aos homens de autoridade, como os membros do Corpo Governante, especialmente se se souber que dão forte apoio financeiro à organização. Conheço homens que fizeram isto. De modo geral eles se desapontaram ao verem que suas palavras geralmente tinham pouco efeito, não recebiam a mesma atenção que suas doações em dinheiro. Sem dúvida, reconhecem que se retirassem seu apoio financeiro o grau de intimidade que usufruem se desvaneceria, suas expressões de preocupação poderiam até pô-los em risco. Contudo, sem encontrarem outro sistema religioso de tamanho e força comparáveis para onde possam transferir sua satisfação, eles ali permanecem. Talvez não reconheçam prontamente, nem sequer conscientemente, a origem da hesitação que sentem. A atitude deles, porém, é no mínimo paralela à observação de João 12:42, 43:

Contudo, muitos dentre as próprias autoridades creram nele [Cristo], mas por causa dos fariseus não o confessavam, para não serem expulsos da sinagoga; porque amaram mais a glória dos homens do que a glória de Deus.45

Embora tendo tido, sem dúvida, proeminência igual ou superior a qualquer destes, Saulo de Tarso estava disposto a perder sua proeminência no sistema pelo qual tinha trabalhado arduamente, disposto a deixar a grande associação religiosa de seu povo e associar-se com pessoas cujo único “grande” evento foi o batismo de milhares de crentes no início de sua história religiosa, mas sem nada comparável durante o resto de toda a sua existência. Elas não tinham assembleias nacionais ou internacionais, projetos de construção, de fato nem tinham edifícios próprios dedicados a fins religiosos, não se empenhavam em grandes produções, não enfatizavam aspectos numéricos e não tinham nenhum arranjo administrativo centralizado ou de grande alcance ― como a Bíblia e a história revelam.46 Em flagrante contraste com a atitude de muitos, Paulo diz:

É porventura o favor dos homens que agora eu busco, ou o favor de Deus? Ou procuro agradar aos homens? Se eu quisesse ainda agradar aos homens, não seria servo de Cristo. Quando, porém, [Deus]… me chamou por sua graça, houve por bem revelar em mim o seu Filho… não consultei carne nem sangue, nem subi a Jerusalém aos que eram apóstolos antes de mim, mas fui à Arábia, e voltei novamente a Damasco. Em seguida, após três anos, subi a Jerusalém para avistar-me com Cefas e fiquei com ele quinze dias. Não vi nenhum apóstolo, mas somente Tiago, o irmão do Senhor. Isto vos escrevo e vos asseguro diante de Deus que não minto.47  

Ele com certeza não entrou na categoria daqueles a quem Judas escreve, aqueles “prontos a bajular, quando o seu interesse está em jogo.”48 Todavia, tal bajulação e os esforços de impressionar homens em autoridade são notavelmente comuns dentro da organização das Testemunhas, e o interesse em obter ou manter o favor da organização e a posição nela é geralmente óbvio na conduta de grande proporção de anciãos e representantes viajantes. Em grande medida, é este interesse nas posições que concede à organização o grau de poder e controle que tem sobre eles. Por causa disto, estes homens chegam até a fazer cumprir normas que creem que são erradas a fim de manter o favor da organização. Fazem isto à custa de sua liberdade e integridade moral.

Estes fatores motivadores não se restringem aos secularmente bem sucedidos e capacitados. Muitas vezes aplicam-se com igual força aos de origem mais humilde, e até aos desprivilegiados. O arranjo da organização Torre de Vigia possibilita a estes atingir notável ascensão na condição social em virtude da diligência em cumprir as metas da organização, do zelo no programa de atividades, do peso das horas que relatam. Tudo isto pode pavimentar o caminho para o eventual cargo de ancião. Poderão então proferir longos discursos para assistências de cem ou mais pessoas, enquanto que sem a posição oficial sabem que é difícil ser escutados por pelo menos uma dúzia de pessoas por qualquer espaço de tempo. Como os de origem mais notável, estes podem hesitar em fazer ou dizer qualquer coisa que ponha em risco a condição que agora usufruem. O cristianismo deve atrair os humildes, dar-lhes um senso de valor ― mas esta atração não deve ser na base acima descrita e tampouco seu senso de valor pessoal deve ser medido por tais padrões criados por homens. Se refletirem seriamente na questão, terão de reconhecer que o aparente apreço que se mostra por eles é basicamente fruto daquilo que podem dar em promover as metas da organização, não daquilo que eles próprios são como pessoas espirituais. Há nisto uma grande diferença. Muitos, no entanto, preferem ignorar essa diferença pelos aparentes benefícios recebidos. Isto também não é liberdade cristã, mas uma forma de servidão auto-induzida.

Em todo auto-exame, pois, é importante saber se estivemos dispostos a enfrentar a realidade, mesmo que dolorosa, da nossa situação, e tomar uma decisão consciente, genuinamente nossa. Evitar a decisão não é solução. Charles Davis, citado num capítulo anterior, faz  uma análise precisa ao dizer:

A felicidade não consiste em inércia, obtida por meio do cerceamento da consciência; ela requer que um homem aceite a autonomia que lhe cabe como pessoa livre…. Apenas seguir o que os outros fazem ou dizem e aguardar passivamente os eventos é viver uma existência pessoal rebaixada.

…Para pensar com honestidade ele tem de enfrentar as dúvidas e questionamentos que vão fundo e afetam os fundamentos… A tentação nesta situação é de simplesmente flutuar ― renunciando a uma escolha deliberada e pessoal e deixando-se levar pelo que os outros pensam, fazem e dizem.

Após afirmar que, enquanto muitos simplesmente deixam-se levar para fora de sua religião junto com outros, muitos permanecem em sua religião devido à mesma falta de autodeterminação e decisão consciente, ele acrescenta:

A submissão contínua à autoridade externa é mais cômoda que tomar pessoalmente uma decisão radical…. Mas a incapacidade ou recusa de ser livre traz eventualmente o enfado da vida, e exclui a genuína felicidade. Suportar as reviravoltas e os incômodos de tomar apenas decisões verdadeiramente pessoais é melhor em longo prazo.

Não estou me oferecendo como modelo… Tampouco me considero mais corajoso que outros homens. A questão da coragem jamais me passou pela mente até que me escreveram a respeito desse tema, depois que anunciei minha decisão. O que dominava meu pensamento na época era a minha absoluta necessidade de uma escolha pessoal. Tive de enfrentar minhas dúvidas, perguntar-me sobre o que eu na verdade acreditava, e depois agir em harmonia com minhas autênticas convicções, fossem quais fossem as consequências. Se tivesse deixado as coisas correrem soltas, deixado a questão empacar e me recusado a agir decisivamente, na vaga esperança de que todas as minhas dificuldades viessem a resolver-se por si próprias, eu teria destruído o meu verdadeiro eu e por omissão resvalado para uma condição rebaixada.49

A experiência e os sentimentos dele são paralelos não só aos meus, mas aos de muitos outros que conheço.

A relação pessoal ― o fator chave

A chave para enfrentar com êxito o desafio da liberdade cristã é  reconhecer que nossa relação com Deus e Cristo é primariamente uma relação pessoal. Tem de haver um profundo senso de responsabilidade pessoal para com Aquele que nos redimiu da escravidão ao pecado e à morte. Como escreveu o apóstolo:

Por preço fostes comprados; não vos torneis escravos de homens.50  

O preço que o Filho de Deus pagou por nós foi sua própria vida, derramada quando pregado no madeiro, carregando “em seu corpo… os nossos pecados, para que nós, mortos aos pecados, vivamos para a justiça.”51 O preço foi pago “pelo sangue precioso”.52 Esse preço foi alto demais para que encaremos de modo leviano aquilo que devemos em gratidão e devoção Àquele que o pagou. Por meio deste preço, segundo o propósito e a vontade de seu Pai, O Filho de Deus, e só ele, tornou-se nosso Amo e nós servos dele. Se o preço pago significa algo para nós, não podemos deixar que um homem ou grupo de homens se coloque entre nós e Aquele a quem servimos. Nenhum verdadeiro servo de Deus desejaria colocar-se nessa situação. Quando Paulo descobriu que os cristãos em Corinto tinham sérias desavenças por encararem certos homens, inclusive ele próprio, sob uma luz errada, ele lhes disse:

Explico-me: cada um de vós diz: “Eu sou de Paulo!,” ou “Eu sou de Apolo!”, ou “Eu sou de Cefas!”, ou “Eu sou de Cristo!” Cristo estaria dividido? Paulo teria sido crucificado em vosso favor? Ou fostes batizados em nome de Paulo? Dou graças a Deus por não ter batizado ninguém de vós a não ser Crispo e Gaio. Assim ninguém pode dizer que foi batizado em meu nome.53

Quando homens que professam ser seguidores de Cristo colocam-se como governantes sobre outros, exortam-nos a aceitar leal e escrupulosamente quaisquer diretrizes que determinem, e até incluem o conceito de lealdade à organização nas perguntas feitas às pessoas no batismo, de modo que este é realizado não só no “nome” ou “autoridade” de Deus e de Cristo, mas no “nome” da organização que eles lideram ― quando os homens fazem isto, eles têm de enfrentar a pergunta que Paulo formulou: Fostes vós crucificados em nosso favor? Pagastes o preço de vosso próprio sangue vital e por meio deste nos comprastes de modo a ter direito de exigir tal submissão? Se não puderem responder “Sim” a estas perguntas ― e é claro que não podem ― então não podemos conceder-lhes a submissão praticamente absoluta que exigem de nós e ainda permanecer leais àquele que de fato morreu por nós. Não podemos ser escravos de dois amos.54 

Visto que o Filho de Deus nos introduziu numa relação pessoal consigo mesmo e com seu Pai, o julgamento de nossa fidelidade não cabe a nenhum homem ou grupo de homens. Nossa relação com o Filho de Deus transcende a todas as outras relações. Paulo estava cônscio desse fato e deixou-se guiar por ele em todas as suas ações. Como vimos, ele não se preocupava com a aprovação dos homens. Pôde, portanto, dizer aos cristãos em Corinto:

Quanto a mim, pouco me importa ser julgado por vós ou por um tribunal humano. Eu também não julgo a mim mesmo. Verdade é que a minha consciência de nada me acusa, mas nem por isso estou justificado; meu juiz é o Senhor. Por conseguinte, não julgueis prematuramente, antes que venha o Senhor. Ele porá às claras o que está oculto nas trevas e manifestará os desígnios dos corações. Então cada um receberá de Deus o louvor que lhe for devido.55

Àqueles que não conseguiram entender o pleno impacto da relação pessoal de cada indivíduo com Deus e Cristo, ele escreveu:

Quem és tu que julgas o servo alheio? Para o seu próprio senhor está em pé ou cai; mas estará em pé, porque o senhor é poderoso para o suster… pois todos compareceremos perante o tribunal de Deus… cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus.56  

Na época do julgamento, nós, como Paulo, compareceremos como indivíduos perante o tribunal de Deus ― não como membros coletivos duma denominação ou organização religiosa. Não importa se acreditávamos no que outros de certo grupo acreditavam, não importa se fazíamos o que outros desse grupo faziam, não importa se manifestávamos lealdade em grupo por seguir as orientações dos que lideravam tal grupo, mas é com base no que somos e fazemos como indivíduos que seremos julgados. “Cada um de nós” responde por si individualmente, e nosso único Advogado e Mediador diante do Pai é Cristo ― não uma liderança organizacional.57  

Que a filiação a uma organização não nos faculta um julgamento favorável pode-se comprovar pelo fato de que não somos julgados, por acatarmos as normas e diretrizes duma organização, mas “pela Lei da liberdade”.58 Essa lei da liberdade é a “lei do reino”, a “lei régia”, a “lei soberana”, e é a lei do amor.59 Precisamos perguntar-nos continuamente se aquilo que fazemos, as próprias atitudes que tomamos, são genuinamente alicerçadas no amor.

Se adotarmos uma atitude autojusta baseada no cumprimento de atividades especificas, executadas rotineiramente semana após semana, ou nos considerarmos superiores a todos que não são de nossa comunidade religiosa específica com base em certas coisas de que nos abstemos, como podemos nos achar diferentes do fariseu da parábola de Jesus, com sua autoconfiança fundamentada na execução de ações prescritas na Lei?60 Jesus não condenou as ações desse homem nem o censurou por abster-se de diversas transgressões. O que ele condenou foi a atitude por trás disso, seu espírito de auto-aprovação e o conceito desamoroso sobre os outros, que tirava todo o valor de suas práticas. Como essa atitude era típica dos fariseus, Jesus disse a seus discípulos que “se a vossa justiça não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrareis no reino dos céus.”61 Os escribas e fariseus daquele tempo não existem mais, mas a atitude legalista e exclusivista que era típica deles existe, e é incompatível com o amor ao próximo.

É quando nos livramos de um ambiente que induz a essa atitude e a incentiva, de um sistema que tenta regular, dominar e sistematizar nossas atividades e nosso serviço a Deus, enquanto nos faz sentir que a respeitosa submissão a tudo isto nos torna algo “especial”, superiores a todos os outros que não fazem isso ― é aí que enfrentamos o verdadeiro desafio do cristianismo. Estamos agora livres para deixar que nosso coração e fé pessoal nos motivem. Até onde vai nosso amor? O que nos motiva a fazer? Até que ponto vai nosso interesse nos outros, nossa preocupação em beneficiá-los, ajudá-los e servi-los? Até que ponto a vida levada pelo Filho de Deus tocou nossos corações, nos reanimou, expandiu nossa perspectiva, aprofundou nosso apreço e ampliou nosso pensamento? A oração do apóstolo é:

…e assim habite Cristo nos vossos corações, pela fé, estando vós arraigados e alicerçados em amor, a fim de poderdes compreender, com todos os santos, qual é a largura e o comprimento, e a altura, e a profundidade, e conhecer o amor do Cristo que excede todo entendimento, para que sejais tomados de toda a plenitude de Deus.62  

Queiramos ou não, todos nós exercemos influência sobre os outros, para o bem ou para o mal. Não só aquilo que dizemos e fazemos na vida diária, mas também o espírito com que dizemos e fazemos as coisas, a maneira pela qual demonstramos aquilo que nos importa, que valores nos guiam, que interesses e objetivos nos impelem. Tudo isto é um constante exercício de influência. Se, como diz o escritor de Eclesiastes, “um único pecador pode destruir a muito bem”, é também verdade que uma única pessoa com o espírito correto pode trazer grande benefício aos que a cercam.63 Embora aparentemente pequena, essa influência pode ser como o seixo que cai na água e produz ondas em círculos que se ampliam continuamente. Seus efeitos imediatos necessariamente alcançam aqueles mais próximos de nós ― cônjuge, filhos, pais, parentes e amigos. Tanto por meio deles como por meio de nossos contatos além do círculo familiar e das amizades, essa influência se estende para fora e de modos que não percebemos.

O fato de não sermos parte de algo “grande”, parte de um movimento religioso que provê evidência visível de tamanho e poder, não deve diminuir nossa fé nem nos fazer sentir muito pequenos, fracos demais para realizar algo de genuíno valor em nossa vida. Ter um “impacto” visível, notável, no cenário mundial, não é o critério para determinar o valor da fé ou dos atos de fé de alguém, assim como não é prova de que um sistema de crenças religiosas é o certo. A influência cristã pode ser de natureza humilde, modesta, atuando silenciosamente como o fermento na massa de pão, e no entanto, realizar genuíno benefício, mesmo sem alarde e aclamação.64  De novo, nossa natureza humana pode preferir aquilo que aparenta poder e força do ponto de vista humano, mas a fé não precisa disto.

Segundo o Filho de Deus, servimos de luz para as pessoas por meio de nossas ações, ações que as induzem a louvar ao nosso Pai.65  Essas ações devem ser, não fruto de pressões externas ou programação, mas fruto de nossas próprias mentes e corações, que mostram que fomos iluminados pelas boas novas que preenchem nossas vidas, dando evidência de tê-las mudado. O cumprimento desta comissão não começa por meramente falar durante certos horários num “trabalho de pregação” programado, usando temas e expressões prescritos para nós em publicações religiosas. Como disse João, discípulo de Jesus, o “amor não deve ser somente de palavras e de conversa. Deve ser um amor verdadeiro, que se mostra por meio de ações.”66  Apenas se refletirmos o efeito iluminador das boas novas no que somos e fazemos ao longo de nossas vidas, a cada dia, o dia inteiro, é que podemos ser a luz do mundo.

Enfrentar a incerteza

Nossa tendência humana é querer resolver todas as questões de crença, a fim de nos livrarmos de qualquer incerteza. O que é “a verdade”? Em que cremos exatamente? Por gostarmos de fugir à dor que a incerteza traz, a maioria de nós fica feliz de ter alguém que nos diga isto, que nos alivie de termos de lidar nós mesmos com as questões, traçando um caminho preciso para nós. Uma organização que afirma ter respostas para todas as perguntas atrai a muitos. Como pessoas maduras, precisamos reconhecer que nenhum humano tem todas essas respostas, e que tampouco deve a falta delas impedir nosso progresso espiritual. Como afirma de modo perspicaz o autor do livro The Road Less Traveled:

Há muitos que, em virtude de passividade, dependência, medo e preguiça, buscam quem lhes mostre cada polegada do caminho e quem lhes prove que cada passo será seguro e proveitoso. Isto é impossível, pois a jornada do crescimento espiritual exige coragem, iniciativa e independência de pensamento e ações.67  

O cristianismo representa uma jornada que envolve tudo ao longo de nossas vidas. Não é realista pensar que se pode fazê-la totalmente livre de dúvidas ou incertezas. Todavia, o alvo, e a garantia de que estamos na direção desse alvo, jamais precisa estar em dúvida. Abraão é chamado de “pai” de todos os que partilham uma fé como a dele.68 Quando na Mesopotâmia, ele vivia entre pessoas conhecidas de longa data, em ambiente familiar, onde a vida seguia um padrão básico, e tudo isso ajudava a minimizar as dúvidas e a incerteza. Mas então Deus o chamou para que deixasse sua terra e seu povo e fosse para uma terra estranha, para viver entre pessoas que até então ele desconhecia.69 Desse ponto em diante Abraão enfrentou muitas dúvidas e incertezas, e algumas destas não foram plenamente respondidas durante sua vida. Todavia, o que se escreve sobre ele com relação ao nascimento de seu filho Isaque se aplica a toda a sua vida:

Não duvidou da promessa de Deus, por incredulidade; mas, pela fé, se fortaleceu, dando glória a Deus, estando plenamente convicto de que ele era poderoso para cumprir o que prometera.70

Ele nos serve de exemplo, e somos exortados a fazer uma jornada semelhante, caminhando na fé, confiando na orientação de Deus à medida que surge cada necessidade, sem temer as dores que as incertezas de nossa jornada possam trazer. Nossa natureza humana pode preferir outra coisa, e podemos decidir simplesmente nos “assentarmos”, adotando um conjunto pré-decidido e pré-empacotado de crenças e relaxando no esforço de ir adiante. A maioria dos professos cristãos parece ter feito esta opção, preferindo “acomodar-se” em sua religião, que aparente e convenientemente provê suas necessidades, em vez de se esforçarem em crescer no conhecimento, na compreensão e na capacidade de lidar com os problemas. Mas é este esforço pessoal que contribui imensamente para fortalecer a fé e o amor. A pessoa talvez não perceba, assim como eu não percebia, que a atividade intensa não é, por si, garantia contra a estagnação ― não se estiver restrita aos limites de um “sistema fechado”. Embora provendo muito exercício, toda a intensa atividade realizada deixa a pessoa, no final, exatamente onde começou. A consciência da realidade da sua situação talvez só venha quando ela começa realmente a mover-se, a continuar avante na jornada cristã, e então, talvez pela primeira vez, ela pode perceber a natureza capenga e restritiva de sua religião, perceber até que ponto a inércia e a inanição de fato caracterizavam e definiam sua vida religiosa.

Refletindo tendência similar, ao se desligar de um sistema que oferecia uma suposta certeza e livrar-se das crenças impostas, a pessoa talvez sinta o desejo de resolver todas as questões bíblicas rapidamente, de substituir cada crença rejeitada por uma nova, a “correta”. Mas em todos os setores a pressa é imprudente, e muitas vezes leva ao erro, envereda por uma tangente. Velhos erros podem simplesmente ser substituídos por novos, e quando se descobre isto os passos têm de ser reavaliados, no que se perde um tempo valioso. O que se precisa não é de pressa, e sim de constância e determinação de coração. O autodomínio, um dos frutos dos que têm o Espírito de Deus, pode habilitar-nos a exercer paciência, calma e persistência em nossa jornada da fé, entendendo que estas qualidades nos ajudarão mais a obter progresso no entendimento e na sabedoria do que a pressa.

A falsa liberdade do egocentrismo

A liberdade cristã nos livra da futilidade de guardar a lei como meio de agradar a Deus ou como modo de dar sentido e validade à vida, uma sensação de valor e realização pessoais. Livra-nos também da escravização que resulta da vida voltada para si mesmo. Ao exortar os concrentes a defender sua liberdade, o apóstolo disse que a vida deles devia ser uma vida de “fé que atua pelo amor”. (Gálatas 5:6, NVI) A liberdade cristã é alicerçada no amor, preservada pelo amor, não pode existir sem o amor, “o amor não procura seus próprios interesses”, não é egoísta.71  O amor tem de ser manifestado aos outros, buscar alcançá-los; sem manifestar-se ele murcha e se resseca. Quando nos interessamos voluntariamente nos outros, tentamos alcançá-los, beneficiá-los (quer sejamos ou não beneficiados por eles em troca), a extensão e o alcance de nossa liberdade não se contraem. Ela se expande em suas maiores dimensões, seu pleno potencial. Num mundo imperfeito, é preciso fé para crer e agir desta maneira. Os que se libertam de alguma forma de escravidão religiosa simplesmente para caírem numa existência gasta em satisfazer diariamente a si mesmos, apenas passaram de uma forma de escravidão para outra. Deixar de usar a liberdade para expressar amor e fé é levar uma vida estrita, sofrendo de uma espécie de “visão de túnel” que não consegue ver um horizonte amplo, mas só os próprios interesses, objetivos e aspirações. Isto nos deixa sujeitos a forças internas e externas que sutilmente nos dominam e lentamente nos restringem a personalidade e o potencial. Em vez de abrilhantar nossa vida, a busca da auto-satisfação apenas a priva e esvazia de seu genuíno valor e sentido.

Tendo aceitado a liberdade cristã, somos felizes por não estarmos presos num sistema rígido que dita regras específicas sobre como podemos expressar nosso amor. Nossa expressão desse amor é um fruto do Espírito de Deus e pode ser dado livre e espontaneamente, pois “contra estas coisas não há lei”.72

A difícil qualidade do equilíbrio

Seja moderado em tudo. 

Seja ajuizado em todas as situações.

Sê sóbrio em tudo. 

― 2 Timóteo 4:5; NVI, BLH e TEB respectivamente.

O equilíbrio indica estabilidade e tranquilidade mental e moral, capacidade de resistir às pressões que abalam, de evitar os extremos tanto em pensamento como em conduta. A palavra “equilíbrio” raramente aparece nas traduções da Bíblia.73 Mas está implícita em muitas exortações bíblicas com relação a compreensão, discernimento e percepção, pois é fruto dessas qualidades. Creio que seu melhor exemplo é a vida do Filho de Deus, naquilo que ele disse, fez e, acima de tudo, foi como pessoa. Seus apóstolos refletem a influência do equilíbrio que viram em seu Amo e aprenderam dele.

Como já vimos, grande parte da vida envolve uma questão de grau. O que é que transforma a atitude correta para com o alimento em glutonaria, ou a atitude correta para com o dinheiro e sua obtenção por meio do trabalho em ganância? É o grau em que nos concentramos em tais coisas. Obviamente, é muito mais fácil ver os extremos, como entre a preguiça e ser viciado em trabalho, ou entre o completo abstêmio e o beberrão. Todavia, embora seja difícil traçar a linha divisória entre os extremos e o ponto exato onde cada um começa, existe entre eles uma área razoavelmente ampla. O equilíbrio envolve tomar uma direção, em todos os aspectos da vida, que evite ambos os extremos; envolve sentir quando alguém está riscando uma linha divisória invisível, em qualquer direção.

Essa qualidade parece dolorosamente necessária para termos um conceito salutar da liberdade cristã e do seu exercício, e para que ela nos leve ao alvo da vida eterna que esperamos. Especialmente tendo passado anos num sistema religioso tão absolutista ― que afirma possuir a verdade absoluta em todas as questões importantes da crença e da vida ― e depois se desligando deste sistema, a pessoa talvez sinta não só incerteza, mas também a sensação de falta de estabilidade e de direção. É fácil passar do extremo de crer que se tem “a Verdade” a respeito de tudo ao de achar que não se tem a verdade a respeito de nada, de aceitar quase automaticamente tudo que lhe ensinam a tornar-se crítico de tudo, duvidando de tudo em que se acreditava ― quase uma forma de paranóia intelectual.

Somos livres para ler o que quisermos. Mas se não aplicarmos nossa capacidade de julgamento crítico ao que agora lemos, podemos simplesmente nos tornar presas da mesma argumentação falha que nos levou ao erro no passado. As coisas defendidas talvez sejam muito diferentes, até opostas, mas se o argumento é distorcido com meras asserções e hipóteses não-comprovadas, com base no apelo exclusivo à plausibilidade, no uso tendencioso da evidência, na intimidação intelectual e na tirania da autoridade (inclusive a autoridade erudita e acadêmica), isso pode simplesmente nos conduzir de uma escravização mental à outra, de ser discípulos de um grupo de homens a ser discípulos de outro grupo de homens. Impressionei-me ao ver entre as ex-Testemunhas algumas pessoas claramente inteligentes que eram capazes de discernir o erro e as distorções nas publicações da Torre de Vigia, mas que pareciam não conseguir discernir essencialmente a mesma forma de erro e distorções na matéria que agora lêem. Em alguns casos, isto fez com que elas próprias criassem uma argumentação exatamente tão tendenciosa e distorcida como qualquer coisa publicada pela Torre de Vigia.

Similarmente, pode haver a tendência de ir a extremos no exercício da liberdade, por convertê-la em mera irresponsabilidade ou libertinagem. No primeiro século, Paulo labutou entre pessoas que muitas vezes caíam em dois campos extremos. Alguns defendiam o legalismo estrito e rígido, outros usavam a liberdade cristã como desculpa para viver sem lei, substituindo a rigidez do legalismo pela insipidez de uma perspectiva desregrada, em que vale tudo. Na época, foi preciso equilíbrio espiritual para evitar esses extremos e ainda é preciso agora.

Alguns que deixam uma religião autoritária ― e existem várias ― reagem como jovens que se livraram do controle dos pais e que prontamente passam a fazer todas as coisas que não podiam fazer enquanto eram dependentes. Pessoas que saem de tais sistemas religiosos daí por diante talvez alardeiem sua liberdade e independência por prontamente se empenharem em todas as condutas e práticas que a religião proibia, ainda que a prática em si, embora não condenada especificamente nas Escrituras, possa ter aspectos negativos. Não há mérito algum nesta atitude; ela denota infantilidade, a falha em perceber que a liberdade deve ser exercida de modo responsável ou levará apenas à nova escravização ou compulsão. 74

O desencanto com uma religião muito doutrinária pode criar a atitude de que a doutrina em si deve ser vista de modo negativo ou como de mínima importância, que o amor é a única coisa que conta. O conhecimento, a leitura e a meditação nas Escrituras são, pelo menos até certo ponto, depreciadas. Isto talvez seja porque “doutrina” transmite, na mente de muitos, a ideia de dogma oficial, talvez de natureza um tanto complexa ou interpretativa, embora o termo tenha em si mesmo o sentido básico de “ensino”. Nas Escrituras, ele envolve não só os ensinos relacionados a crenças ou conceitos, mas os ensinos sobre conduta, o modo de vida da pessoa.75 “Amar o teu próximo como a ti mesmo” é, em si, uma doutrina ou ensino do Filho de Deus.

Alguém pode também ir na direção oposta e enfatizar a doutrina, depreciando a importância do amor. Fazer isto é deixar de entender que a doutrina ou ensino é um meio que visa um fim, e não o próprio fim. A afirmação de Jesus de que o objetivo de todas as Escrituras Hebraicas era inculcar e promover o amor a Deus e ao próximo, parece justificar a crença de que este é também o propósito final com relação a toda doutrina ou ensino cristão.76 Os ensinos de Jesus sobre o modo de vida que devemos ter, nossa atitude e tratos para com o próximo, são todos “doutrina saudável”, embora não sejam aquilo em que muitos comumente pensam como “doutrina”.

O conhecimento pode ser, e deve ser, de grande valor. O ensino visa aumentar e expandir nosso conhecimento. Mas o conhecimento também não é um fim em si mesmo. A Escritura é descrita como “proveitosa para ensinar, para repreender, para endireitar as coisas, para disciplinar em justiça, a fim de que o homem de Deus seja plenamente competente, completamente equipado para toda boa obra.”77 O conhecimento pode aumentar enormemente nossa capacidade de beneficiar não só a nós mesmos, mas aos outros. E é o uso que se faz do conhecimento que determina o valor de possuí-lo. Como diz o apóstolo Paulo:

Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a  ciência, ainda que eu tenha tamanha fé ao ponto de transportar montes, se não tiver amor nada serei.78

Sobre alguns que fizeram mau uso do conhecimento, ele afirmou:

“Todos temos conhecimento”; sim, é verdade, mas o conhecimento traz a presunção ― é o amor que edifica. O homem pode imaginar que compreende alguma coisa, mas ainda não compreende nada como deveria. Mas o homem que ama a Deus é conhecido por ele.79

Ele advertiu que o mau uso do conhecimento pode até ter um efeito destrutivo sobre os que são fracos.80 No capítulo 14 de sua carta aos Romanos, o apóstolo considerou variações de crenças entre os cristãos ali, crenças divergentes sobre alimentos e dias sagrados, que levavam alguns a julgarem seus irmãos. Obviamente, em tais disputas, ou um dos lados estava certo e o outro errado ou ambos estavam errados. Todavia, Paulo mostrou que Deus tinha “acolhido” tanto os de um lado quanto os do outro, que cabia a Ele julgar seus servos, e que Ele podia manter uma relação favorável com eles, apesar de seus escrúpulos e opiniões variadas. O que cada um fazia, quanto a participar ou se abster, observar ou não observar, fazia-o para com Deus, e portanto, tais questões não davam base para uma atitude crítica, condenatória, por parte de qualquer dos lados.81  Outros textos indicam que um dos lados realmente estava certo em seu entendimento e o outro errado.82 A exortação do apóstolo, porém, era para que não ficassem debatendo o assunto até que o lado errado admitisse o erro. Em vez disso, aconselhou:

Não nos julguemos mais uns aos outros; pelo contrário, tomai o propósito de não pordes tropeço ou escândalo ao vosso irmão.

…Porque o reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, e paz, e alegria no Espírito Santo.83

Algumas questões são vitais por causa do efeito que têm. O mesmo apóstolo não combateu tenazmente os que ainda se sentiam motivados pela consciência a observar certos aspectos da Lei, mas os que tentavam impor a guarda da Lei como essencial para a salvação, sabendo quão destrutivo da liberdade cristã isto seria, como anularia basicamente o efeito do sacrifício de Cristo.84 Ele lutou não só contra o que estava errado, mas contra o que era prejudicial, danoso, escravizador. Para entender as Escrituras, a questão de estar certo ou errado é sempre importante, pois isso determina o grau de proveito que obtemos de nosso entendimento. Mas essa importância é sempre relativa, e em alguns casos simplesmente não vale a pena uma disputa e muito menos a divisão. O mero ato de provar com argumentos que algo está certo ou errado não cumpre em si a meta do cristianismo. Precisamos buscar, pois, não só o conhecimento, mas a sabedoria, a perspicácia e o discernimento são, e assim adquirir a capacidade de usar o conhecimento de modo eficaz e com bom propósito. Tiago pergunta: “Quem é sábio e tem entendimento entre vocês?” E diz que tal pessoa deve demonstrá-lo, não simplesmente por manifestar sua sabedoria de modo intelectual, mas por “seu bom procedimento, mediante obras praticadas com a humildade que provém da sabedoria.”85

Resista ao poder debilitante da amargura

Nossa liberdade jamais será completa se deixarmos que o ressentimento causado por nossas experiências passadas num sistema opressor se arraigue em nossos corações, criando um espírito de amargura que impregna o que pensamos, falamos e fazemos.

Por um lado, tais sentimentos são compreensíveis. Alguns dos afetados tinham pais que não eram Testemunhas e que possivelmente eram membros de outra religião. Devido à doutrinação da organização Torre de Vigia, durante anos tiveram relativamente pouca relação com esses pais, ficaram distantes deles, trataram-nos friamente por causa do desinteresse ou rejeição deles quanto à “Verdade”. O processo alienante muitas vezes vinha desde o início, quando lhes disseram que por se tornarem Testemunhas ‘o adversário de Deus se oporia a eles’ e os membros da família foram citados como possíveis instrumentos dessa oposição satânica, que fariam, no mínimo, esforços para desencorajar seu maior envolvimento.86 Vendo as coisas por este ângulo, não podiam deixar de ser influenciados em seus sentimentos pelos pais, que não os acompanharam em sua nova religião. Agora, vieram a entender que o conjunto de crenças que chamavam de “a Verdade” é um sistema que, junto com certa medida de verdade, também contém erros muito sérios e fundamentais, e mais ainda, que foram os ensinos edificados nesses erros que os fizeram expressar frieza para com outros, inclusive seus pais. Em alguns casos, eles puderam retomar as expressões naturais de afeto que deviam àqueles que eram a fonte de sua vida na terra, que os alimentaram, fizeram provisões para eles, cuidaram deles e os amaram com amor de pais. Em outros casos, isso não foi possível ― os pais já tinham morrido. Estão fora do alcance da reafirmação do amor dos filhos. A sensação de remorso causada por isto é difícil de avaliar.

Os que tinham cônjuges podem ter passado por experiências similares. Muitos tinham casamentos basicamente felizes, mas quando entraram para a organização Torre de Vigia e seus cônjuges não o fizeram, a tensão ― não a tensão originada do fato de passarem daí em diante a manifestar mais plenamente as qualidades exemplares do Filho de Deus, e sim do esforço deles de atender às pressões da organização e submeter-se plenamente às suas normas e diretrizes ― resultou às vezes no enfraquecimento ou na dissolução do matrimônio. No segundo caso, a dissolução da família pode também ter afetado os filhos de modo negativo. Descobrir que isso não precisava ter acontecido é difícil de suportar. O que se destrói nestes casos raramente pode ser reconstruído.

Penso numa senhora que, durante muitos anos de casada, embora sendo esposa leal ao seu marido não-Testemunha, zelosamente o considerava como “do mundo” e também evitava ter filhos com ele, já que “o fim” estava tão próximo. Não muito depois de concluir que as pretensões da organização quanto a falar em nome de Deus eram ilegítimas, e na época em que redescobriu e revalorizou seu apreço pelas boas qualidades do marido, este morreu subitamente num acidente automobilístico. Pensar no que poderia ter sido o casamento deles e no que poderia ter gerado se ela não se tivesse deixado guiar pelos conceitos errados aumentou sua dor além do normal, tornando-a esmagadoramente deprimente.87

Outros criaram os filhos dentro das normas da organização e inculcaram neles o conceito de que esta era o “canal” terrestre de Deus, o único a desfrutar de Sua direção e Seu favor. Quando, com o tempo, a integridade para com a verdade bíblica os fez tomar uma posição com base na consciência, viram-se separados de seus próprios filhos, sofrendo a experiência arrasadora de vê-los aceitar que a organização rotulasse os pais como “apóstatas”, pessoas a serem evitadas. Saber que um filho ou filha vai casar e ser excluído dos convidados à cerimônia, saber do nascimento de um neto e não ser convidado ou sequer autorizado a ver o bebê, pode causar grande sofrimento. Centenas e até milhares de pais e avós já passaram ou ainda estão passando por esta dor. Para outros, há a conscientização de que o tempo perdido jamais pode ser recuperado, anos de vida gastos em perseguir objetivos que, embora revestidos de termos tais como “alvos teocráticos” e “carreiras teocráticas” e descritos como “buscar primeiro os interesses do Reino” e “fazer uso sábio do tempo que ainda resta”, foram, afinal de contas, alvos sem real substância, real valor, real sentido. Pensavam, como eu, que estavam trabalhando para levar pessoas a Deus e a Cristo, e por isso ficaram felizes em dar tudo o que tinham. No final, descobriram que a própria organização se apossava das pessoas, subordinava-as a si mesma, considerava-as endividadas para com ela por tudo que tinham recebido. Isto deixou nos que tinham trabalhado zelosamente a sensação de que foram “usados”, induzidos a sacrificar seu tempo, energia, recursos e talentos no altar da organização, tudo para a promoção da mesma e de seus interesses. Disso pode resultar a sensação de sentir-se “enganado” lesado em bens irrecuperáveis, bens muito mais valiosos que dinheiro.

Felizmente, muitos, inclusive alguns dos que mais perderam, não deixaram que a amargura se alojasse em seus corações. Se amam a liberdade, não podem permitir-se isto. A amargura, o rancor e o espírito vingativo são emoções debilitantes, não emoções libertadoras. Estas, além de alimentarem constante interesse em retaliar, dão evidência de que a pessoa ainda está prisioneira e ainda acorrentada ao passado. Anos atrás, um amigo deu-me a cópia de uma matéria que apareceu na revista Time. Entre outras coisas, ela trazia estas idéias penetrantes e belamente expressas sobre o poder do perdão:

O conceito de perdão do Antigo Testamento estava contido num verbo que domina sua literatura penitencial, a palavra hebraica shuv, que significa voltar-se, retornar. A doutrina sugere que o homem tem o poder de retornar do mal para o bem, de mudar, e o próprio ato de retornar trará o perdão de Deus. Aqueles que não perdoam são aqueles que são menos capazes de mudar as circunstâncias de suas vidas….

O argumento psicológico do perdão é irresistivelmente convincente. Não perdoar é ficar prisioneiro do passado, das velhas mágoas que não permitem que a vida prossiga com novos empreendimentos. Não perdoar é ceder ao controle por parte de outra pessoa. Se a pessoa não perdoa, ela se deixa controlar pelas iniciativas da outra e cai prisioneira de uma seqüência de ações e reações, de afronta e vingança, olho por olho, em escala crescente. O presente é infindavelmente sufocado e devorado pelo passado. O perdão liberta o perdoador. Resgata o perdoador do pesadelo de outra pessoa. “A menos que haja o rompimento com o mal passado”, diz Donald Shriver, “tudo que conseguiremos é a gaguejante repetição do mal.”….

O perdão não é um impulso que pareça vantajoso. É, de muitas maneiras, uma idéia misteriosa e sublime… O perdão não parece muito um instrumento de sobrevivência num mundo mau. Mas é isso o que ele é.88

Em 1982, iniciei correspondência pessoal com Carl Olof Jonsson, da Suécia.89 Numa das primeiras cartas, após mencionar algumas ex-Testemunhas que pareciam “sentir-se obrigadas a assumir opinião oposta com respeito a tudo” aquilo que eles tinham antes defendido e aceito, ele acrescentou:

Eles realmente não saíram do movimento da Torre de Vigia. Estão ainda ligados a ela como sempre ― ligados a ela de modo inverso. Muitas vezes passam o resto de suas vidas atacando-a. Eu poderia entender se eles bondosamente tentassem ajudar as Testemunhas ― mas com muita frequência estão cheios de amargura.

Posso entender a indignação, muitas vezes motivada pela compaixão pelos outros, que muitos sentem em razão do sofrimento destrutivo que certas normas da organização criaram, e até que alguém tenha o desejo ardente de pôr fim a esse sofrimento. Creio, também, porém, que é um grave erro achar que o fim justifica os meios. Não há nada de desonroso ou desamoroso em refutar a falsidade. Não é evidência de animosidade contra alguém discordar dele ou mostrar-lhe as evidências de erro das crenças ou práticas que adota. Pode ser um ato de amor. Mas a maneira e o espírito com que se faz isso é o fator determinante. Não posso, pessoalmente, considerar que alguns métodos utilizados reflitam genuinamente a abordagem e o espírito do Filho de Deus e o teor de sua mensagem a seus discípulos.

Alguns que se desligaram da organização das Testemunhas participaram de piquetes em Salões do Reino ou assembleias das Testemunhas de Jeová, participaram de táticas incomuns evidentemente destinadas a atrair a atenção dos meios noticiosos. Isto não é novidade. Opositores da organização Torre de Vigia têm feito isto desde a época em que eu era criança, há mais de meio século. No caso de alguns envolvidos, sei que o único motivo é expor certas injustiças e distorções. Nada posso dizer quanto aos motivos de outros. Em ambos os casos, não pretendo julgá-los quando digo que pessoalmente considero que tais métodos são não só contraproducentes como também refletem mal àquele com quem nos comprometemos a servir, Cristo Jesus. Pode haver uma diferença entre publicar e publicidade. É sempre bom publicar a verdade. Mas buscar a publicidade pela publicidade pouco ou nada faz com respeito a publicar a verdade. Com frequência só se publicam as palhaçadas incomuns, os lemas mais exagerados e sensacionais usados. A dissidência existente, embora traga alguma mensagem válida, é geralmente mínima.

As entrevistas dadas à imprensa têm o potencial de realizar muito benefício em trazer fatos à atenção de grande número de pessoas. Já concordei, no passado, em dar entrevistas solicitadas pela imprensa. Ao mesmo tempo, jamais solicitei uma só entrevista e o número das que recusei foi bem maior que as poucas que concedi. Minha experiência pessoal diz que os resultados raramente são satisfatórios. Tudo o que muitas vezes buscam é algo de natureza sensacional, que pouco contribui para a promoção das boas novas. Numa entrevista de rádio que concedi (transmitida da Flórida), o entrevistador usava continuamente de sarcasmo e exageros ao se referir às Testemunhas de Jeová, suas crenças e sua conduta. Passei praticamente todo o programa defendendo-as, expressando minha convicção quanto à sinceridade e à decência delas de modo geral, e mostrando ao entrevistador como seus comentários distorciam as coisas e as colocavam injustamente numa perspectiva falsa. Fiquei feliz por ter me expressado assim e achei isso a única parte satisfatória da experiência.

Basicamente, pois, simpatizo com a preocupação e até com a indignação de muitos, e tenho a mesma preocupação. Mas não simpatizo necessariamente com os métodos que às vezes se usam para expressar esses sentimentos. Estou convencido de que é certo o conselho do apóstolo:

Todo homem tem de ser rápido no ouvir, vagaroso no falar, vagaroso no furor; pois o furor do homem não produz a justiça de Deus.90   

O caminho fácil muitas vezes não é o melhor. Nas relações humanas, quando se está indignado por perceber a injustiça, a coisa mais fácil do mundo é fustigar a fonte do sofrimento. Este é mais um sinal de fraqueza que de força. Exercer autocontrole, manter certa calma, tomar tempo e esforçar-se para buscar a verdadeira causa do problema e o meio mais eficaz de lidar com ele requer muito mais força e resolução que simplesmente ventilar os próprios sentimentos.

Grande quantidade de matéria tem sido publicada sobre a organização Torre de Vigia por ex-Testemunhas e outros. Não duvido que muitos dos envolvidos estejam sinceramente motivados, achando que não devem simplesmente ficar passivos, mas “fazer algo”. Mas creio honestamente que grande parte, talvez até a maior parte daquilo que se informa faz mais mal que bem. A liberdade cristã não significa autorização para dizer tudo o que queremos. Somos exortados a seguir de perto os passos de Cristo, e sobre ele lemos:

Quando injuriado, não revidava; ao sofrer, não ameaçava, antes, punha a sua causa nas mãos daquele que julga com justiça.91   

Falar de modo vingativo, ridicularizar, insultar, exagerar o tamanho de faltas menores, recusar às pessoas o benefício da dúvida e admitir a possibilidade de que tenham sido, mesmo equivocadamente, sinceramente motivadas, não dar margem a que as ações erradas sejam fruto de se terem tornado vítimas de conceitos errados ― nada disto ajuda a causa da verdade. Infelizmente, tais coisas são geralmente encontradas em grande parte da literatura “anti-Torre de Vigia” publicada. A literatura da Torre de Vigia também as utiliza quando fala nos que não concordam com todos os seus pronunciamentos, aqueles a quem ela rotula de “apóstatas”. Assim, tudo vira um círculo vicioso com a mesma triste repetição em que se combate o erro com o erro. Ao contrário disso, somos exortados:

Abençoai aos que vos perseguem, abençoai e não amaldiçoeis… Não torneis a ninguém mal por mal; esforçai-vos por fazer o bem perante todos os homens; se possível, quanto depender de vós, tende paz com todos os homens; não vos vingueis a vós mesmos amados, mas dai lugar a ira, porque está escrito: A mim me pertence a vingança; eu retribuirei, diz o Senhor. Pelo contrário, se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber; porque fazendo isto, amontoarás brasas vivas sobre a sua cabeça. Não te deixes vencer do mal, mas vence o mal com o bem.92   

Neste ponto, o apóstolo estava refletindo fielmente o ensino do Filho de Deus:

Vocês sabem o que foi dito: “Ame os seus amigos e odeie os seus inimigos.” Mas eu lhes digo: Amem os seus inimigos e orem pelos que perseguem vocês para que vocês se tornem filhos do Pai que está no céu. Porque ele faz o sol brilhar sobre os bons e os maus e dá a chuva tanto aos que fazem o bem como aos que fazem o mal. Se vocês amam somente aqueles que os amam, por que esperam alguma recompensa de Deus? Até os cobradores de impostos amam aqueles que os amam! Se vocês falam somente com os seus amigos, o que fazem de mais? Até os pagãos fazem isso! Portanto, sejam perfeitos em amor, assim como é perfeito o Pai de vocês, que está no céu.93  

A liderança das Testemunhas se esforça em fazer parecer que qualquer declaração pública que discorde dela, e qualquer evidência apresentada que refute seus ensinos e normas, é uma “perseguição”. Se fosse mesmo assim, não há dúvida de que sua própria atitude os colocaria entre os maiores perseguidores da atualidade, pois eles publicam regular e constantemente suas discordâncias de outras religiões e se empenham em provar que os ensinos delas são falsos. São rápidos em recolher notícias que expõem negativamente outras religiões e publicá-las. Devem esperar ser julgados com a mesma medida com que julgam outros.94 Mas é por meio desta falsa versão dos fatos que podem justificar o uso de expressões duras contra quem questiona suas afirmações e opiniões.

Minhas próprias experiências com os homens que dirigem a organização das Testemunhas foram, no final, desagradáveis. Eu não acreditava que fosse possível que os homens a quem eu conhecia e com quem trabalhava, diante de quem expressei minhas convicções e preocupações em centenas de discussões coletivas, pudessem tomar o tipo de medidas ou utilizar o tipo de métodos como fizeram. Todavia, posso dizer sinceramente que, nem agora nem no passado, alimentei algum sentimento de rancor. No início houve, é lógico, um choque, mas desde então não perdi tempo remoendo de modo melancólico aqueles acontecimentos, revirando o passado. A mudança abrupta resultante, as dificuldades de recomeçar a vida com quase 60 anos, não deixaram cicatrizes que eu sinta, nenhum motivo para sentir autopiedade. Sinto e creio que a experiência teve um efeito positivo sobre mim; assim espero sinceramente. Além do mais, posso dizer que não há entre esses homens nenhum com quem eu não desejaria falar, de modo calmo e desapaixonado, nenhum a quem eu não estivesse disposto a prover alimento, abrigo ou qualquer coisa que fosse necessária. Se existe inimizade, não é da minha parte. Posso até crer que pelo menos alguns dentre eles talvez expressem uma atitude similar para comigo ― embora se sentindo na obrigação de não fazê-lo por causa da organização a que pertencem.

Resumindo a ruptura libertadora trazida pelo cristianismo, certa fonte faz esta colocação eficaz:

…há uma nova liberdade para com Deus, que dissipa o temor e conduz à liberdade na sua presença de uma forma mais íntima (Rom. 8:15-18; Gál. 4:1-7)…. Isto resulta num serviço a Deus que é de caráter livre (Rom.1:9). Também conduz a uma nova liberdade para com os outros. Isto inclui estar livre do medo dos julgamentos dos outros bem como das próprias tentativas de manipulá-los. Também inclui a liberdade de comunicar as próprias idéias, expressar as próprias emoções, abrir as portas da própria vida e partilhar os próprios bens. Deveras, servir livremente a outros, dar-lhes seu próprio amor, está bem no âmago desta concepção de liberdade (1 Cor. 9:19; 1 Tes. 2:8)….

Portanto, esta liberdade concedida por Deus não apenas transfere homens e mulheres, de uma relação rompida com Deus e de uma solidariedade defeituosa com os homens, para uma nova comunidade com ambos, mas também os inclina a viver o tipo de vida que ampliará e aprofundará a própria nova comunidade.95

Os modos pelos quais estes benefícios da liberdade podem ser partilhados e usufruídos em comunhão com outros certamente merecem nossa séria reflexão e consideração.

Notas

  1. Romanos 8:21, ARA.
  2. João 3:19-21.
  3. Colossenses 3:14.
  4. A Sentinela de 1º de fevereiro de 1982, por exemplo, fala dos “grupos dissidentes” que deram origem aos valdenses, do seu destemor em falar abertamente contra os ensinos das várias igrejas e em sustentar que “a Bíblia é a única fonte de verdade religiosa”, crendo também ser “Jesus o único mediador entre Deus e o homem”.
  5. Mateus 23:29-35, BLH.
  6. Efésios 4:13, ARA.
  7. Efésios 4:14, 15, TEB.
  8. 1 Coríntios 13:11, ARA.
  9. Efésios 4:8, 11-16, TEB.
  10. 1 Coríntios 3:5-7, NVI.
  11. Confira Gálatas 2:6; 6:3.
  12. 1 Coríntios 4:7, 8, 10, BJ.
  13. 1 Coríntios 3:21-23, NVI.
  14. Mateus 18:1-7.
  15. 1 Coríntios 4:14; 2 Coríntios 6:13; Gálatas 4:19; 1 Tessalonicenses 2:7-11; 1 João 2:1.
  16. Mateus 23:9;
  17. 1 Timóteo 2:5, 6; João 14:6.
  18. A seção “Perguntas dos Leitores”, na Sentinela de 15 de outubro de 1985 (páginas 30, 31), diz que “Os do restante ungido na terra ainda não fazem literalmente parte da ‘Jerusalém de cima’. Mas, devido à sua posição singular como filhos espirituais com a perspectiva de vida celestial, e devido a representarem a ‘esposa’ celestial de Deus, às vezes Jeová os inclui de forma refletiva em diretrizes, profecias, promessas e palavras de consolo dirigidas à Sua organização-esposa no céu.”
  19. Hebreus 1:1, 2.
  20. O texto de Gálatas 4:21-31 é usado em apoio ao conceito da direção por parte de uma mãe celestial através de uma organização terrestre visível. O relato fala de duas mulheres, Sara e Agar, e as utiliza simbolicamente. Mas o escritor, Paulo, não diz que estas representam duas “organizações”, mas que tipificam “dois pactos”. A questão de que tratava era quanto a “não mais se estar debaixo da lei”. (Versículo 21) Ele considera a relação pactuada com Deus, primeiro a do antigo pacto, dado no Sinai, o qual ele representa por meio de Agar, uma escrava, e depois o novo pacto, procedente do céu, o qual representa por meio de Sara, a mulher livre. Ele descreve tanto os filhos de um pacto como os do outro, mostrando que através do novo pacto, e só através dele, as pessoas obtêm a reconciliação com Deus, e deste modo, a vida como filhos dele, “filhos da promessa” (versículo 28, TEB), não “filhos de uma organização”. Nada há neste relato sobre o conceito de “organização”. O assunto trata dos pactos. Por que, então, não colocamos a ênfase onde o apóstolo inspirado a colocou?
  21. Veja Ajuda ao Entendimento da Bíblia, páginas 1659, 1660, ou a matéria correspondente em Estudo Perspicaz das Escrituras, Vol. 3, página 749, ou outros dicionários bíblicos.
  22. Gálatas 3:23-26, NVI.
  23. Gálatas 4:1-5, ARA.
  24. 1 Coríntios 11:3.
  25. Confira Gálatas 1:6-8; 3:1-3; 5:7-9; 1 João 4:1
  26. 2 Coríntios 13:5; Efésios 4:14, 15; Gálatas 6:4, 5; 1 Tessalonicenses 5:21, 22.
  27. Escape from Freedom, Erich Fromm, Avon Books (edição de 1965), página 18.
  28. The Road Less Traveled, do médico psiquiatra M. Scott Peck, (Simon & Schuster, Nova York, 1978), página 42.
  29. Gálatas 4:21, TEB.
  30. Hebreus 5:12-14.
  31. The Road Less Traveled, página 17.
  32. 2 Coríntios 3:14-16.
  33. 2 Coríntios 3:17, 18, NVI.
  34. Salmo 90:9, 10, 12, ARA.
  35. 1 Coríntios 7:29-31; Gálatas 6:9, 10, Efésios 5:15-17.
  36. The Road Less Traveled, páginas 43, 44.
  37. Atos 20:29, 30.
  38. 3 João 9, 10.
  39. Mateus 13:25, 38, 39.
  40. Revelação 3:15, 16, BJ.
  41. João 14:23, BJ.
  42. Salmo 27:9, 10; veja também João 10:28, 29.
  43. 2 Coríntios 13:5, ARA.
  44. Mateus 10:37.
  45. Tradução da Almeida Revista e Atualizada.
  46. É interessante que encontramos números relacionados com a quantidade de cristãos em certas datas ou locais apenas no livro de Atos e estes nunca passam de estimativas. Confira Atos 1:15; 2:41; 4:4; 19:7.
  47. Gálatas 1:10, 15-20, BJ.
  48. Judas versículo 16, BJ.
  49. A Question of Conscience, páginas 23 e 24.
  50. 1 Coríntios 7:23.
  51. 1 Pedro 2:24, ARA.
  52. 1 Pedro 2:19, TEB.
  53. 1 Coríntios 1:12-15, BJ.
  54. Mateus 6:24.
  55. 1 Coríntios 4:3-5, BJ.
  56. Romanos 14:4, 10, 12, ARA.
  57. 1 Timóteo 2:5, 6; Hebreus 4:14-16; 7:25; 1 João 2:1, 2.
  58. Tiago 2:12, BJ.
  59. Tiago 2:8, traduções da NVI, BJ e NEB.
  60. Lucas 18:9-14.
  61. Mateus 5:20, ARA.
  62. Efésios 3:17-19, ARA.
  63. Eclesiastes 9:18.
  64. Lucas 13:20, 21.
  65. Mateus 5:14-16. O termo grego erga é traduzido por “obras” em algumas traduções, por “feitos” em outras, mas em nenhum dos casos transmite a idéia de participação em algum tipo de atividade “organizada”. Tanto o contexto antecedente como o seguinte mostram, em vez disso, que Jesus estava falando daquilo que os que o escutavam fariam na sua vida diária e em seus tratos cotidianos com outros.
  66. 1 João 3:18, BLH. Aqui, “ações” traduz a palavra grega ergon, singular de erga.
  67. Páginas 310 e 311 da edição em inglês.
  68. Romanos 4:16.
  69. Hebreus 11:9-11.
  70. Romanos 4:20, 21.
  71. 1 Coríntios 13:4.
  72. Gálatas 5:24, ARA; confira 2 Coríntios 1:23, 24.
  73. O termo grego (nepho) traduzido como “ajuizado” ou “moderado” em 2 Timóteo 4:5 relaciona-se  literalmente à sobriedade em lugar da embriaguez, mas traz figurativamente o sentido daquilo que é “o oposto de todo tipo de instabilidade. O julgamento sóbrio é altamente valorizado tanto na vida individual como na pública.” (Theological Dictionary of the New Testament, Edição Resumida, páginas 633, 634.)
  74. Confira 2 Pedro 2:17-20.
  75. Os termos “doutrina” e “ensino” tornam-se muitas vezes intercambiáveis de uma tradução para outra. Após descrever condutas erradas ― incluindo assassinato, mentira, perjúrio, imoralidade, sodomia ― o apóstolo fala sobre aquilo que “se opõe à sã doutrina [grego, didaskalía]” (ARA; NVI) ou, em outras traduções, como a conduta que “é contra o verdadeiro ensinamento” (BLH) das boas novas. (1 Timóteo 1:8-11; confira 1 Timóteo 4:1-6.)
  76. Mateus 22:35-40.
  77. 2 Timóteo 3:16, 17.
  78. 1 Coríntios 13:2, 3, ARA.
  79. 1 Coríntios 8:1-3, Jerusalem Bible.
  80. 1 Coríntios 8:10, 11.
  81. Romanos 14:1-12.
  82. Confira Marcos 7:19; Colossenses 2:16, 17.
  83. Romanos 14:13, 17, ARA.
  84. Gálatas 5:1-4.
  85. Tiago 3:13, NVI.
  86. Confira as declarações nos livros de estudo da Torre de Vigia, A Verdade Que Conduz à Vida Eterna, página 16; Poderá Viver Para Sempre no Paraíso na Terra, páginas 23, 24.
  87. Embora não estivesse mais se associando, ela assim mesmo providenciou um “funeral das Testemunhas”, que foi dirigido por um ancião local. Muitos dos amigos e sócios comerciais do marido dela, não-Testemunhas como ele, compareceram. O discurso fúnebre do ancião consistiu totalmente de argumentos em apoio aos ensinos da organização com respeito à morte. Sobre o marido dela, a pessoa que era, o que se podia ter aprendido de sua vida, as qualidades que demonstrava ― nada foi dito. Para ela isso foi a gota d’água, que tanto confirmou sua decisão de desligar-se como fez transbordar seu sentimento de remorso.
  88. O grifo é meu. Citado do número de 9 de janeiro de 1984 da revista Time, e reproduzido com sua permissão. Copyright 1984 Time Inc. Todos os direitos reservados.
  89. Ele é citado no livro Crise de Consciência por ter enviado ao Corpo Governante a matéria publicada em Os Tempos dos Gentios Reconsiderados. É também co-autor do livro O Sinal dos Últimos Dias ― Quando?
  90. Tiago 1:19, 20.
  91. 1 Pedro 2:23, BJ.
  92. Romanos 12:14, 17-21, ARA.
  93. Mateus 5:43-48, BLH.
  94. Mateus 7:1, 2.
  95. Paul’s Idea of Community, Robert Banks (Eerdmans-Anzea Publishers, reimpressão de 1988), página 27.

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