Voltaria Jesus a celebrar a Páscoa no Reino de Deus?

[Este comentário surgiu a partir de uma troca de mensagens entre dois colaboradores do site.]

Lucas 22:15-18:

E disse-lhes: Desejei muito comer convosco esta páscoa, antes que padeça; Porque vos digo que não a comerei mais até que ela se cumpra no reino de Deus. E, tomando o cálice, e havendo dado graças, disse: Tomai-o, e reparti-o entre vós; Porque vos digo que já não beberei do fruto da vide, até que venha o reino de Deus

Estava Jesus dizendo que voltaria a comer a Páscoa?

O seguinte foi o que disse Adam Clarke, em seu comentário sobre este trecho:

Versículo 15. Com desejo desejei. Um hebraísmo que significa ‘desejei muito’. O significado das palavras de Nosso Senhor parece ser, que, tendo se proposto a redimir um mundo perdido por meio de seu sangue, ele ansiava ardentemente pelo tempo em que iria se oferecer. Esse amor fez o santo Jesus suportar a raça humana. Esta páscoa eucarística foi celebrada uma vez, a título de antecipação, antes do sacrifício do sangue salvífico da vítima, e antes da libertação que ela foi destinado a comemorar; assim como a páscoa figurativa tinha sido da mesma forma, celebrada certa vez antes da saída do Egito, e a libertação do povo escolhido de Deus.

Versículo 16. Até que ela se cumpra no reino de Deus. Isto é, até que aquele do qual a páscoa é um tipo se cumpra em minha morte, através da qual o reino de Deus, ou do céu (Veja Mateus iii. 2), seja estabelecido entre os homens.

Versículo 17. E tomando o cálice. Este não era o cálice sacramental, pois esse era tomado depois da ceia, ver. 20, mas era o cálice que normalmente se tomava antes da ceia. Reparti-o entre vós. Passem o cálice de um para o outro; assim, o cálice que Cristo deu à primeira pessoa em sua mão direita continuou a ser entregue de um para o outro, até chegar à última pessoa à sua esquerda.

Versículo 18. Não beberei do fruto da videira. Ou seja, antes que chegue a época de outra Páscoa, o Espírito Santo desça, o Evangelho do Reino seja estabelecido, e a ceia sacramental do cordeiro ocorra; pois em poucas horas a crucificação dele ocorreria. Veja Mat. xxvi. 29.

Entendendo as palavras de Clarke

Qual era o objetivo básico da Páscoa que os judeus celebravam? Comemorar a libertação duma escravidão. Mas o detalhe é que, como Clarke lembra acima (o primeiro trecho grifado, no versículo 15), uma, e apenas uma das Páscoas foi realizada antes dessa libertação ter ocorrido. Foi aquela que os judeus fizeram na última noite deles no Egito. Todas as demais, foram celebradas quando a libertação já era uma realidade.

Esta libertação veio já no dia seguinte à celebração da primeira páscoa no Egito, na qual o cordeiro pascoal foi abatido. Em outras palavras, a páscoa original se cumpriu dentro de um período de tempo muito curto após a primeira celebração. Todas as demais foram apenas para comemorar este evento e os judeus a comiam já na condição de libertos do cativeiro, apenas com o objetivo de relembrar isso.

A primeira Páscoa, ainda no Egito.
A primeira Páscoa, ainda no Egito

No caso da nossa celebração cristã, este aspecto é idêntico. Uma, e apenas uma delas foi feita antes da libertação do pecado e da morte, aquela em que eles participaram na última noite de Cristo como homem na Terra. O Cordeiro, foi sacrificado no mesmo dia e a libertação da escravidão ao pecado e à morte, a transferência para o reino, etc, veio em decorrência disso.

Em outras palavras, a Ceia original também se cumpriu num curto período de tempo depois de ocorrer. É isso que o trecho grifado do versículo 16 quer dizer. Hoje nós participamos para comemorar algo que já é uma realidade; as melhores notícias são que nós já fomos libertos do pecado e da morte e fomos transferidos para o Reino de Cristo desde o primeiro século e esta é a realidade de todos os que aceitam Cristo desde então. Nossa celebração hoje é basicamente para relembrar Cristo, uma “proclamação” da morte dele (como diz 1 Coríntios 11:26), que possibilitou todas essas coisas.

Com essa ideia do momento do “cumprimento”, fica mais fácil entender que Jesus não estava dizendo que voltaria a comer da Páscoa e beber do vinho relacionado com aquela celebração. O que ele quis dizer simplesmente é que não mais comeria literalmente uma Páscoa nem beberia literalmente do produto da videira dessa Páscoa até o momento em que o objetivo dela se cumprisse. Os judeus haviam se libertado do cativeiro, mas a verdadeira libertação seria a que ele mesmo proveria como Cordeiro sacrificial. Mas Jesus não disse que comeria e beberia depois desse cumprimento.

Foi outra maneira de dizer que, em se tratando da Páscoa ele não faria isso nunca mais. Pois ele sabia que todas estas coisas (o fim da comemoração da antiga Páscoa e sua substituição pela nova celebração, a morte sacrificial dele, o derramamento do espírito santo no Pentecostes, a libertação do pecado, o estabelecimento do Reino dele, etc.) sim, tudo isso ocorreria antes da chegada de uma nova Páscoa judaica um ano depois (trecho grifado no comentário ao versículo 18).

De fato, ele nem estaria mais na terra para comer literalmente desses alimentos pascoais quando outra Páscoa chegasse. Como sabemos, a ascensão dele ocorreu uns 40 dias depois da morte e o Pentecostes uns 50 dias depois, tudo dentro daquele mesmo ano terrestre. Qualquer referência que se faz a ‘comer e beber’ depois disso já é em sentido simbólico, sem qualquer relação com a Páscoa judaica (como por exemplo em Lucas 22:29,30, texto em que ele diz que tem uma “mesa” no céu onde seus apóstolos ‘comeriam e beberiam’ no Reino dele).

Em Mateus 26:29, a Tradução do Novo Mundo diz: “Eu lhes digo, porém: Eu de modo algum beberei novamente deste produto da videira até aquele dia em que beberei vinho novo com vocês, no Reino do meu Pai.” Note-se que aí ele diz que vai beber (detalhe: beber “vinho novo”, não beber vinho de novo”), mas isso já não é mais em conexão com a Páscoa judaica. Ele está falando de um “vinho novo”, não tendo isso nada que ver com o vinho da antiga Páscoa.

Imagem: A Última Ceia – Fritz von Uhde (1886)

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