As Interpretações Sobre Romanos 13 – Fatos e Consequências

No ano de 1981, a liderança da Torre de Vigia sentiu a necessidade de apresentar uma explicação pública para algumas de suas flagrantes mudanças na doutrina. Na edição de 1º de dezembro de 1981 da revista A Sentinela, (em português: 1º de agosto de 1982) apresentou-se o conceito de que certos erros que a organização tinha cometido no passado não eram realmente erros afinal de contas, mas deveriam ser considerados “passos” em direção a um entendimento apropriado. Por colocar os conceitos errôneos no passado, a Torre de Vigia estava “navegando” em direção à verdade.

Um dos exemplos mencionados expressamente na revista A Sentinela foi as modificações no entendimento de Romanos 13:1-7. A revista afirmou que “os primitivos Estudantes da Bíblia entendiam corretamente que as “potestades superiores” ou “autoridades superiores” eram os governantes deste mundo.” [1] Mas o conceito deles tinha um ponto fraco, a Torre de Vigia sustentava agora. “À base desse entendimento, chegaram à conclusão de que, se o cristão fosse convocado em tempo de guerra, ele teria de servir no exército, usar uniforme e ir à batalha.” [2] Retificando este óbvio equívoco, o artigo de A Sentinela disse: “Por algum tempo, os do povo de Deus adotaram tal conceito” de que Romanos 13 se refere a Jeová Deus e Jesus Cristo. [3] Esta mudança veio em 1929 [4] e foi, segundo a organização, benéfica para as Testemunhas “durante os anos dificultosos da Segunda Guerra Mundial.” [5] No entanto, em 1962, houve uma mudança no conceito, de volta para o entendimento que se mantinha antes de 1929. Mais uma vez as “autoridades superiores” foram identificadas como os “governantes seculares” deste mundo. Porém, a organização Torre de Vigia salienta enfaticamente que um novo elemento foi acrescentado ao entendimento original, e este novo elemento faz com que o posição errada mantida entre 1929 e 1962 seja apenas uma parte do “esclarecimento progressivo”.

A doutrina atual da Torre de Vigia ensina que, ao contrário dos Estudantes da Bíblia originais, as Testemunhas de Jeová entendem que a sujeição aos governantes do mundo tem um limite:

Felizmente, no ano de 1962, Jeová levou os do seu povo ao entendimento do princípio da sujeição relativa. Viu-se que os cristãos dedicados precisam obedecer aos governantes seculares como “autoridades superiores”, reconhecendo-os de bom grado como “ministro de Deus”, ou servo de Deus, para o próprio bem deles. (Romanos 13:4) Contudo, se essas “autoridades” lhes pedissem que violassem as leis de Deus, o que fariam nesse caso os cristãos? Até este ponto, os cristãos têm obedecido à ordem em Romanos 13:1: “Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores.” Mas, a dita sujeição é limitada pelas palavras de Jesus, registradas em Mateus 22:21: “Portanto, pagai de volta a César as coisas de César, mas a Deus as coisas de Deus.” Portanto, sempre que “César” quer que os cristãos façam algo contrário à vontade de Deus, eles têm de colocar a lei de Jeová à frente da de “César”. [6]

A alegação do esclarecimento gradual sobre Romanos 13 foi apresentada de maneira ainda mais enfática em 1972:

Também, visto que Romanos 13:1 tinha sido interpretado como significando que os governos do mundo devem receber obediência incondicional, as Testemunhas interpretavam as ‘potestades superiores’ ou as “autoridades superiores”, mencionadas ali, como referindo-se a Jeová Deus e Jesus Cristo. Entretanto, um exame mais detido do texto circundante revela que Romanos 13:1 refere-se mesmo aos governos políticos deste mundo. Mas, ao se comparar este texto com outros, tais como Atos 5:29, que diz: “Temos de obedecer a Deus como governante antes que aos homens”, viu-se que a “sujeição” mencionada em Romanos 13:1 deve ser uma sujeição relativa, não incondicional. Quer dizer, os cristãos devem estar sujeitos aos governos deste mundo, enquanto estes não exijam dos cristãos violar as leis de Deus. [7]

Tudo isso parece bastante razoável até que os fatos sejam considerados. Infelizmente, a apresentação que a revista A Sentinela faz da questão não é historicamente precisa. Embora seja verdade que “os primitivos Estudantes da Bíblia entendiam corretamente que as ‘potestades superiores’ ou ‘autoridades superiores’ eram os governantes deste mundo”, não é verdade que eles achavam “que os governos do mundo devem receber obediência incondicional” e que o conceito deles, portanto, precisava de correção. Não é verdade que as Testemunhas modernas chegaram a um entendimento sobre “as autoridades superiores” que os primitivos Estudantes da Bíblia não tinham. Na verdade, a “sujeição relativa” aos governantes do mundo não é um novo ensinamento dentro da comunidade das Testemunhas como a Torre de Vigia deseja nos fazer crer. Todavia, as consequências do fato de que não havia justificativa para a mudança na doutrina que a organização fez em 1929 são tão grandes que torna-se fácil ver por que os líderes da Torre de Vigia suprimem a verdade hoje.

Examinemos os fatos. Charles Taze Russell, o eminente fundador e primeiro presidente da Sociedade Torre de Vigia, ensinou de maneira clara e consistente que a sujeição às “potestades superiores” deve ser relativa. No Volume I de Estudos das Escrituras (1886), Russell explicou como Jesus e os apóstolos se posicionavam sobre o assunto, provendo, assim, a posição cristã. Ele afirmou:

Sabendo ser este o propósito de Deus, nem Jesus nem os apóstolos interferiram de algum modo nos assuntos dos governos terrestres. Pelo contrário, eles ensinavam à igreja a submeter-se a estes poderes, muito embora amiúde sofressem debaixo do abuso deles. Ensinavam à Igreja a obedecer as leis e a respeitar os em autoridade por causa do seu cargo, mesmo que não fossem pessoalmente dignos de estima; a pagar os impostos estipulados, e, exceto onde entrassem em conflito com as leis de Deus (Atos 4:19; 5:29), a não oferecer resistência a quaisquer leis estabelecidas. (Rom. 13:1-7; Mat. 22:21) O Senhor Jesus e os apóstolos, bem como a primitiva igreja, todos acatavam as leis, embora se mantivessem separados e não participassem nos governos deste mundo. [8]

Uma vez que os Estudos das Escrituras eram normativos dentro da comunidade dos Estudantes da Bíblia, o conceito apresentado pode ser tomado como representantivo da opinião de todo o movimento. Que eles entendiam o caráter relativo da sujeição às “autoridades superiores” torna-se ainda mais claro no artigo “Obedecer a Deus Antes Que aos Homens”, publicado em A Torre de Vigia de 15 de Janeiro de 1916. Russell, o editor de A Torre de Vigia, e autor do artigo em questão, afirmou:

A Bíblia orienta os seguidores de Jesus a estarem sujeitos aos poderes constituídos. (Romanos 13:1-7, 1 Pedro 2:13-17) Mas enquanto procuram ser cumpridores da lei, portanto, em todos os aspectos, os cristãos devem reconhecer que ainda há uma lei maior e um governante ainda maior, e devem ser sujeitos aos poderes mundanos só na ausência de uma disposição em contrário da Autoridade Superior – de Deus. [9]

Assim, os primitivos Estudantes da Bíblia entendiam o “princípio da sujeição relativa”, tanto quanto as Testemunhas de Jeová desde 1962. Quando a liderança da organização reverteu à posição original mantida antes de 1929, isso certamente não constituiu “‘navegar’ em direção ao conceito correto”, como eles afirmavam agora oficialmente. O fato simples é que em 1929 seus líderes rejeitaram o entendimento correto de Romanos 13 em favor de um conceito totalmente falso e desnecessário.

Em 1962 eles voltaram ao entendimento original, completamente correto da questão. Mas, para não perturbar os membros inteligentes da organização, a Torre de Vigia inventou habilmente a ideia de que tinham chegado a um entendimento muito mais completo do que os Estudantes da Bíblia tinham chegado no começo. Dessa forma, o conceito equivocado, publicado em 1929, poderia ser justificado como um “passo” na direção certa. Como vimos, porém, esta explicação simplesmente não é verdade!

Mas, não é verdade que os Estudantes da Bíblia primitivos, quando convocados em tempo de guerra, realmente usaram Romanos 13 como desculpa para servirem o exército? Ainda que fosse este o caso, isso não seria desculpa para rejeitar o entendimento correto de Romanos 13, que era oficialmente mantido pela comunidade dos Estudantes da Bíblia. Se alguns foram à guerra, não podiam responsabilizar a interpretação oficial da Torre de Vigia de Romanos 13, que afirmava claramente que a lei de Deus era superior à humana e que, portanto, a sujeição aos governantes terrenos tinha limites. O conceito que os primitivos Estudantes da Bíblia tinham de Romanos 13 não era mais responsável pelo fato de alguns Estudantes da Bíblia terem participado na guerra do que o conceito pós-1962 das Testemunhas de Jeová é para o fato de alguma Testemunha de Jeová ocasionalmente juntar-se ao exército.

Em 1904, Charles T. Russell tinha aconselhado os cristãos de que se eles fossem obrigados a “servir nas fileiras” e dispararem suas armas, eles “não precisam se sentir obrigados a disparar contra uma concriatura”. [10] No entanto, depois ele adotou uma posição firme contra o serviço militar. Em A Torre de Vigia de 1º de setembro de 1915, ele publicou um artigo de duas páginas intitulado “O Dever Cristão e a Guerra”, que contém o seguinte trecho:

Em ESTUDOS DAS ESCRITURAS, Vol. VI, fizemos a sugestão de que os seguidores de Cristo busquem por todos os meios adequados evitar a participação na guerra. Ali sugerimos a possibilidade de que, no caso de serem convocados, os seguidores do Senhor usem de toda a influência para obter posições no Corpo Hospitalar ou no Departamento de Provisões do exército, em vez de na prática efetiva de guerra. Sugerimos ainda que se fosse impossível evitar ir para as trincheiras, não seria necessário violar o requisito divino: “Não deves assassinar”.

Desde então temos nos perguntado se o procedimento que sugerimos é o melhor. Perguntamo-nos se tal procedimento não significaria transigir. Refletimos que tornar-se membro do exército e vestir um uniforme militar implica em reconhecer e aceitar os deveres e obrigações de um soldado. Um protesto feito a um oficial seria insignificante – o público em geral não teria conhecimento dele. Não estariam os cristãos em lugar indevido sob tais condições?

“Mas”, responde alguém, “se a pessoa recusar o uniforme e o serviço militar, será fuzilada.” Replicamos que se a explicação for dada de modo adequado, pode haver alguma espécie de dispensa; mas, se não, seria de algum modo pior ser fuzilado por lealdade ao Príncipe da Paz e por se recusar desobedecer a sua ordem do que ser baleado enquanto sob a bandeira destes reis terrenos e aparentemente dando-lhes apoio, e, pelo menos na aparência, transigindo quanto aos ensinos de nosso Rei celestial? Das duas mortes, preferiríamos a primeira – preferimos morrer por causa da fidelidade ao nosso Rei celestial. [11]

Fazendo referência à posição equilibrada que agora recomendava, Russell disse o seguinte em conclusão:

Não exortamos a este procedimento. Meramente o sugerimos. A responsabilidade pertence totalmente ao indivíduo. Não estamos nos exonerando da responsabilidade para com os muitos Estudantes da Bíblia que nos indagam sobre a opinião do Senhor sobre isso. Transmitimos a eles nossas mais sérias reflexões antes, mas receamos agora ter sido muito conservadores. [12]

Este era o conceito maduro de Russell, o qual ele nunca abandonou. Ele veio claramente a perceber que a participação na guerra era incompatível com o Cristianismo. Reconhecendo que a sujeição aos “poderes constituídos” era relativa, ele não viu qualquer problema nos textos bíblicos que falam de obediência a governantes terrenos. Sua última exposição sobre o assunto demonstra bem isso. Em A Torre de Vigia de 15 de julho de 1916, ele escreveu o seguinte no artigo, “Militarismo e Consciência”:

Ao passo que os cristãos são exortados a estarem sujeitos aos “poderes constituídos” – os reis, governadores, magistrados, etc. – isto não deve, porém, ser entendido como renúncia à nossa fidelidade ao Rei dos reis e Senhor dos senhores. Ele é o nosso Senhor supremo. Nossa fidelidade aos senhores e poderes terrestres e às ordens deles é apenas na medida em que elas não entrem em conflito com as ordens de nosso Senhor supremo. Ao rejeitar Jesus, os judeus clamaram: “Não temos rei, senão César!” A posição do cristão é: “Dai a César o que é de César, mas a Deus as coisas que são de Deus.” Em qualquer momento em que César e suas leis entrem em conflito com os requisitos divinos, todos os verdadeiros soldados da cruz não têm escolha. [13]

Assim, não há qualquer maneira de usar a atitude dos Estudantes da Bíblia primitivos como uma desculpa para os conceitos errôneos dos líderes posteriores da Torre de Vigia acerca de Romanos 13. O entendimento desses Estudantes da Bíblia era bem adequado e não havia qualquer necessidade de mudança. As verdadeiras razões para a mudança de 1929 nunca foram explicadas pela Torre de Vigia. Basta dizer aqui que em 1929 a liderança da organização “navegou” para mais longe da verdade, não em direção a ela. A desorientação que essa mudança trouxe não passou em silêncio, mas foi acompanhada pela pesada condenação de todos os que se confessam cristãos e que se recusaram a ser enganados sobre o assunto. Tudo isto não pode deixar de ter consequências graves para a organização Torre de Vigia.

NOTAS

[1] A Sentinela de 1º de agosto de 1982, pág. 29.

[2] Ibid.

[3] Ibid.

[4] “As Potestades Superiores”, A Torre de Vigia (em inglês),de 1º de junho de 1929, págs. 163-169 e “As Potestades Superiores (Parte 2)”, A Torre de Vigia (em inglês),de 15 de junho de 1929, págs. 179-185.

[5] A Sentinela de 1º de agosto de 1982, pág. 29.

[6] A Sentinela de 1º de agosto de 1982, pág. 30.

[7] A Sentinela de 1º de junho de 1973, pág. 324.

[8] Estudos das Escrituras, Vol. l, Edição de 1914, pág. 266 (em inglês).

[9] A Torre de Vigia de 1916, Pág. 5840 das Reimpressões.

[10] Estudos das Escrituras, Vol. Vl, Edição 1919, pág. 595 (em inglês).

[11] A Torre de Vigia de 1915, pág. 5755 das Reimpressões.

[12] Ibid.

[13] A Torre de Vigia de 1916, pág. 5929 das Reimpressões.

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