Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?
Prefácio do Autor
Este trabalho é a tradução de um estudo já publicado na Suíça, do qual um resumo apareceu em vários jornais franceses.
Nenhuma outra publicação minha provocou tanto entusiasmo ou uma hostilidade tão violenta. Os editores dos periódicos em questão foram bondosos o bastante em me enviarem algumas das cartas de protesto que receberam de seus leitores. Numa das cartas, o escritor foi induzido pelo meu artigo a expressar a amarga reflexão de que “ao povo francês, já morrendo por falta do Pão da Vida, foi oferecido em vez de pão, pedras, senão serpentes”. Outro escritor colocou-me como uma espécie de monstro que se deleita em causar aflição espiritual. “Será que o Sr. Cullmann tem uma pedra, em vez de um coração?”, escreveu ele. Para um terceiro, meu estudo foi “motivo de espanto, tristeza e profunda aflição”. Amigos que acompanharam meus trabalhos anteriores com interesse e aprovação deram-me indícios da dor que este estudo lhes causou. Em outros, percebi um mal-estar que eles tentaram esconder mantendo um silêncio eloquente.
Meus críticos pertencem aos mais variados campos. O contraste, que devido ao interesse pela verdade, eu achei necessário estabelecer entre a destemida e alegre esperança cristã primitiva da ressurreição dos mortos e a serena expectativa filosófica da sobrevivência da alma imortal, desagradou não só muitos cristãos sinceros em todas as comunhões e de todas as perspectivas teológicas, como também aqueles cujas convicções, ainda que não exteriormente alienadas do cristianismo, são mais fortemente moldadas por considerações filosóficas. Até agora, nenhum crítico de qualquer tipo tentou refutar-me pela exegese, que é a base de nosso estudo.
A notável concordância nessa oposição parece mostrar-me quão generalizado é o erro de atribuir ao cristianismo primitivo a crença grega na imortalidade da alma. Além disso, pessoas com tão diferentes posturas, como essas que mencionei, estão também unidas numa incapacidade comum de ouvir com completa objetividade o que os textos nos ensinam sobre a fé e a esperança do cristianismo primitivo, sem misturar suas próprias opiniões e os conceitos que lhes são tão prezados com sua interpretação dos textos. Surpreendentemente, esta incapacidade de ouvir caracteriza também pessoas inteligentes, que são comprometidas com os sólidos princípios da exegese científica e também crentes que professam confiar na revelação das Escrituras Sagradas.
Os ataques provocados pelo meu trabalho me impressionariam mais se fossem baseados em argumentos exegéticos. Em vez disso, sou atacado com considerações muito gerais de natureza filosófica, psicológica e, principalmente, sentimental. Tem sido dito contra mim que, ‘eu posso aceitar a imortalidade da alma, mas não a ressurreição do corpo’, ou ‘eu não posso crer que nossos entes queridos simplesmente dormem por um período indeterminado, e que quando eu morrer, simplesmente vou dormir enquanto espero a ressurreição’.
Será que é realmente necessário relembrar hoje a pessoas inteligentes, sejam elas cristãs ou não, que há uma diferença entre reconhecer que tal conceito foi defendido por Sócrates e aceitá-lo, ou entre reconhecer uma esperança como sendo dos primitivos cristãos e compartilhá-la?
Primeiro devemos ouvir o que Platão e Paulo disseram. Podemos ir além. Podemos respeitar e até admirar ambos os conceitos. Como poderíamos deixar de fazê-lo se sabemos que seus autores viveram e morreram por estes conceitos? Mas isso não é motivo para negar que há uma diferença radical entre a expectativa cristã da ressurreição dos mortos e a crença grega na imortalidade da alma. Por mais sincera que seja nossa admiração para com ambos os conceitos, não podemos nos permitir fingir que eles são compatíveis, indo contra a nossa profunda convicção e contra a evidência exegética. Que é possível descobrir certos pontos de contato, eu mostrarei neste estudo, mas isso não anula o fato de que sua inspiração fundamental é totalmente diferente.
O fato de que mais tarde o cristianismo fez uma conexão entre as duas crenças e que hoje o cristão comum simplesmente as confunde, não me convenceu a ficar em silêncio sobre o que eu, assim como muitos exegetas, consideramos como verdadeiro; assim como tudo o mais, já que a ligação estabelecida entre a expectativa da “ressurreição dos mortos” e a crença na “imortalidade da alma” não é realmente uma conexão pura e simples, e sim a renúncia a uma das crenças em favor da outra. O conteúdo de 1 Coríntios 15 foi sacrificado em favor do Fédon. Não serve a qualquer bom propósito esconder esse fato, como muitas vezes se faz hoje, quando coisas que são realmente incompatíveis são combinadas em nome do seguinte tipo de raciocínio extremamente simplista: que qualquer coisa no ensino cristão primitivo que nos pareça incompatível com a imortalidade da alma, ou seja, a ressurreição do corpo, não é uma afirmação essencial para os primitivos cristãos, e sim apenas uma acomodação às expressões mitológicas do pensamento da época deles, e que o centro da questão é a imortalidade da alma. Pelo contrário, devemos reconhecer lealmente que essas coisas, que são as que precisamente distinguem o ensino cristão da crença grega estão no âmago do cristianismo primitivo. Ainda que o intérprete não possa aceitá-las como fundamentais, ele não tem qualquer direito de concluir que elas não eram fundamentais para os autores que ele estuda.
Tendo em vista as reações negativas e a “aflição” provocada pela publicação de minha tese em vários periódicos, será que eu deveria então ter cessado o debate em prol do amor cristão, em vez de publicar este folheto? Minha decisão foi determinada pela convicção de que “pedras de tropeço” são às vezes salutares, tanto do ponto de vista erudito como do ponto de vista cristão. Peço apenas aos meus leitores que tenham a bondade de se dar ao trabalho de lê-lo até o fim.
A questão é levantada aqui em seu aspecto exegético, e nos voltamos para o aspecto cristão. Aventuro-me a lembrar meus críticos que quando eles a colocam na linha da frente, fazendo isso duma maneira que evidencia que eles desejam a sobrevivência para si mesmos e para seus entes queridos, involuntariamente estão dando razão aos opositores do cristianismo, os quais repetem constantemente que a fé dos cristãos nada mais é que a projeção de seus desejos.
Na realidade, será que não enaltece nossa fé cristã, assim como fiz o meu melhor para expô-la, que evitemos partir de nossos desejos pessoais, e sim coloquemos nossa ressurreição no âmbito de uma redenção cósmica e de uma nova criação do universo? Não subestimo de modo algum a dificuldade que existe em compartilhar esta fé, e admito francamente a dificuldade de falar sobre este assunto de forma desapaixonada. Um túmulo aberto lembra-nos imediatamente que não estamos preocupados apenas com uma questão de cunho acadêmico. Não haverá, então, todas as razões adicionais para buscarmos a verdade e a clareza neste ponto? A melhor maneira de fazer isso não é começando com o que é ambíguo, e sim explicando de maneira simples e tão fielmente quanto possível, com todos os meios à nossa disposição, a esperança dos autores do Novo Testamento, mostrando assim a verdadeira essência desta esperança e – por mais difícil que possa parecer para nós – apresentando o que é que a distingue de outras crenças que nos são tão preciosas. Se, em primeiro lugar, examinarmos objetivamente a esperança dos primitivos cristãos naqueles aspectos que parecem chocantes para nossos conceitos comumente aceitos, não teremos senão uma oportunidade de, não só entender melhor essa expectativa, como também verificar que não é tão impossível assim aceitá-la como imaginamos.
Tenho impressão de que alguns dos meus leitores não se preocuparam em ler minha exposição na íntegra. A comparação da morte de Sócrates com a de Jesus parece tê-los escandalizado e irritado tanto, que eles não prosseguiram na leitura e não viram o que eu disse sobre a fé do Novo Testamento na vitória de Cristo sobre a morte.
Para muitos dos que me atacaram, a causa da ‘tristeza e aflição’ não foi só a distinção que estabelecemos entre a ressurreição dos mortos e a imortalidade da alma, mas acima de tudo o lugar que eu, assim como todos no cristianismo primitivo, creio que deveria ser dado ao estado intermediário daqueles que estão mortos e morrem em Cristo antes do último dia, o estado que os escritores do primeiro século descreveram com a palavra ‘sono’. A ideia de um estado temporário de espera é, de todas, a mais repulsiva para os que gostariam de informações mais completas sobre esse “sono” dos mortos, os quais, apesar de despojados de seus corpos carnais, são ainda privados de seus corpos ressurretos embora na posse do Espírito Santo. Essas pessoas são incapazes de observar a discrição dos autores do Novo Testamento neste assunto, incluindo Paulo, ou de ficarem satisfeitas com a alegre garantia do apóstolo, quando ele diz que doravante a morte não pode mais separar de Cristo aquele que tem o Espírito Santo. ‘Quer vivamos, quer morramos, pertencemos a Cristo.’
Há alguns que acham esta ideia de ‘dormir’ totalmente inaceitável. Sou tentado a deixar de lado por um momento os métodos exegéticos deste estudo e perguntar a tais se eles nunca tiveram um sonho que os deixou mais felizes do que qualquer outra experiência, muito embora eles estivessem só dormindo. Não poderia ser esta uma ilustração, ainda que imperfeita, do estado de antecipação no qual, segundo Paulo, os mortos em Cristo se encontram durante seu ‘sono’ à espera da ressurreição do corpo?
De qualquer modo, não pretendo evitar a “pedra de tropeço” por minimizar o que eu disse sobre o caráter provisório e ainda imperfeito desta condição. O fato é que, de acordo com os primitivos cristãos, a vida plena e genuína da ressurreição é inconcebível à parte do novo corpo, o “corpo espiritual”, com o qual os mortos serão dotados quando o céu e a terra forem recriados.
Neste estudo eu farei referência mais de uma vez à obra de Grünewald, pintor alemão renascentista, no altar do Convento de Isenheim. Foi a ressurreição do corpo que ele retratou, não a alma imortal. Da mesma forma, outro artista, Johann Sebastian Bach, possibilitou que ouçamos, no Credo da Missa em B Menor, a interpretação musical das palavras deste antigo credo, que reproduz fielmente a fé do Novo Testamento na ressurreição de Cristo e na nossa própria. A alegre canção deste grande compositor destina-se a expressar, não a imortalidade da alma, e sim o evento da ressurreição do corpo: Et resurrexit tertia die… Expecto resurrectionem mortuorum et vitam venturi saeculi. 1“Ao terceiro dia, ele ressuscitou… Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir.” E Handel, na última parte do Messias, dá-nos alguma indicação do que Paulo entendia pelo sono daqueles que descansam em Cristo, e também, no cântico de vitória, da esperança que Paulo tinha na ressurreição final, quando ‘a última trombeta soará e nós seremos transformados’.
Quer compartilhemos dessa esperança, quer não, pelo menos temos de admitir que neste caso os artistas têm mostrado ser os melhores expositores da Bíblia.
Chamonix, 15 de setembro de 1956
Introdução
Se perguntássemos hoje a um cristão comum (quer um bem versado protestante ou católico, quer não) sobre o que ele pensa ser o ensino do Novo Testamento a respeito do destino do homem após a morte, com poucas exceções receberíamos a resposta: ‘A imortalidade da alma.’ 2Nota do Editor: Isto era assim na época em que Cullmann escreveu o livro. Contudo, nas últimas décadas, esta ideia vem sendo atacada por um crescente número de eruditos bíblicos. Embora ainda seja verdade que o número de seguidores de religiões organizadas que crêem na imortalidade da alma é esmagadoramente maior do que os que não crêem nisso, essa disparidade numérica em meio à comunidade erudita, ou entre os que realmente estudaram o que a Bíblia diz sobre esta questão já não é tão grande e tende a decrescer. No entanto, essa ideia amplamente aceita é um dos maiores equívocos do cristianismo. Não há qualquer razão para tentar esconder esse fato, ou camuflá-lo, reinterpretando a fé cristã. Isso é algo que deve ser discutido com toda a franqueza.
Mas, será mesmo verdade que a fé dos primitivos cristãos na ressurreição é incompatível com o conceito grego da imortalidade da alma? Não ensina o Novo Testamento, sobretudo o Evangelho de João, que nós já temos a vida eterna? Será que a morte no Novo Testamento é sempre concebida como “o último inimigo” duma maneira diametralmente oposta à do pensamento grego, que vê na morte um amigo? Não escreve Paulo: “Ó morte, onde está o teu aguilhão?” Veremos no final que existe pelo menos uma analogia, mas primeiro devemos salientar as diferenças fundamentais entre os dois conceitos.
O mal-entendido generalizado de que o Novo Testamento ensina a imortalidade da alma foi realmente encorajado pela forte convicção dos primeiros discípulos no período posterior à Páscoa de que a ressurreição corporal de Cristo tinha despojado a morte de todo o seu horror e que da Páscoa em diante, o Espírito Santo havia despertado as almas dos fiéis para a ressurreição de vida.
O próprio fato de precisarmos grifar a expressão ‘posterior à Páscoa’ ilustra o enorme abismo que separa o conceito cristão do conceito grego. Todo o pensamento cristão primitivo é baseado na História da Salvação 3“História da Salvação” (alemão: Heilsgeschichte): Escola teológica originada por pensadores alemães do século 19 e que foi popularizado por Cullmann no século 20. O conceito central nessa linha de pensamento é a primeira vinda de Jesus Cristo como Salvador. Toda a história e todo o tempo, segundo Cullmann, são um drama universal e Jesus é a figura central neste drama. Os judeus no tempo do Novo Testamento aguardavam a vinda do Messias Salvador como o anúncio iminente do fim do mundo, o centro da história, depois do qual viriam as glórias da era vindoura. A Bíblia dá testemunho de que Jesus é o Messias e que ele deu início a essa nova era. , e tudo o que se diz sobre a morte e sobre a vida eterna baseia-se ou cai dentro da crença numa ocorrência real, em eventos verdadeiros que ocorreram no tempo. É nisso que está a distinção radical do pensamento grego.
Se reconhecermos que a morte e a vida eterna no Novo Testamento estão sempre ligadas ao evento de Cristo, torna-se evidente que para os primitivos cristãos a alma não é inerentemente imortal, mas só se tornou imortal por meio da ressurreição de Jesus Cristo, e através da fé nele. Fica claro também que a morte não é intrinsecamente uma amiga, e sim que seu “aguilhão”, seu poder, é tirado por meio da vitória de Jesus sobre ela com sua morte. E, finalmente, torna-se claro que a ressurreição já realizada não é o estado de cumprimento, pois este é futuro, momento em que o corpo é também ressuscitado, o que só ocorrerá no “último dia”.
É um erro ler no evangelho de Lucas uma tendência primitiva ao ensino grego da imortalidade, porque lá também a vida eterna está associada ao evento de Cristo. Obviamente, deve-se levar em consideração a influência grega sobre a origem do cristianismo logo desde o início, mas ao passo que as idéias gregas estão subordinadas ao conceito total da História da Salvação, não se pode falar de “helenização”, propriamente. A verdadeira helenização ocorre pela primeira vez em uma data posterior.
O último inimigo
Sócrates e Jesus
Nada mostra mais claramente do que o contraste entre a morte de Sócrates e a de Jesus (um contraste que foi citado muitas vezes pelos opositores do cristianismo, embora com outros objetivos), que a visão bíblica da morte é focada desde o princípio na História da Salvação e assim se afasta completamente da concepção grega.
Na descrição impressionante que Platão faz da morte de Sócrates, no Fédon, surge talvez a doutrina mais elevada e mais sublime que já se apresentou sobre a imortalidade da alma. O que dá ao argumento dele o seu valor insuperável é sua cautela científica, seu despojamento de qualquer prova que tenha validade matemática. Conhecemos os argumentos que ele apresenta para a imortalidade da alma. Nosso corpo é só uma peça de vestuário exterior que, enquanto estamos vivos, impede nossa alma de se mover livremente e de viver de acordo com sua própria essência eterna. O corpo impõe à alma uma lei que não lhe é adequada. A alma, confinada dentro do corpo, pertence ao mundo eterno. Enquanto vivemos, nossa alma se encontra numa prisão, ou seja, num corpo essencialmente alheio a ela. A morte é, na verdade, a grande libertadora. Ela libera as cadeias, uma vez que conduz a alma que está presa no corpo de volta ao seu lar eterno. Uma vez que o corpo e a alma são radicalmente diferentes um do outro e pertencem a mundos diferentes, a destruição do corpo não pode significar a destruição da alma, assim como uma composição musical não pode ser destruída quando o instrumento musical é destruído. Embora as provas da imortalidade da alma não tenham para o próprio Sócrates o mesmo valor das provas de um teorema matemático, elas não deixam de atingir, dentro do seu campo, o mais alto grau possível de validade, e fazem a imortalidade tão provável que ela chega a ser a uma ‘chance’ para o homem. E quando o grande Sócrates esboçou os argumentos para a imortalidade, em seu discurso aos discípulos no dia de sua morte, ele não se limitou a ensinar esta doutrina: naquele momento ele vivia sua doutrina. Ele mostrou como podemos servir à liberdade da alma, mesmo na vida atual, quando nos ocupamos com as verdades eternas da filosofia. Pois, através da filosofia penetramos naquele mundo eterno das idéias, ao qual a alma pertence, e libertamos a alma da prisão do corpo. A morte não faz mais do que completar esta libertação. Platão nos mostra como Sócrates vai para a morte em completa paz e serenidade. A morte de Sócrates é uma bela morte. Nada se vê aqui do terror da morte. Sócrates não pode ter medo da morte, uma vez que na verdade ela nos liberta do corpo. Qualquer pessoa que tenha medo da morte prova que ama o mundo do corpo, que está completamente enredado no mundo dos sentidos. A morte é a grande amiga da alma. Assim ele ensina, e daí, em maravilhosa harmonia com seu ensinamento, ele morre – este homem que representa o mundo grego em sua forma mais nobre.
E agora vejamos como Jesus morre. No Getsêmani, ele sabe que a morte está diante dele, tal como Sócrates esperou a morte em seu último dia. Os evangelistas sinóticos nos fornecem, em geral, um relatório unânime. Jesus “começou a ter pavor e a angustiar-se”, escreve Marcos (14:33). “A minha alma está profundamente triste, numa tristeza mortal.”, diz ele aos seus discípulos. Jesus é tão profundamente humano que compartilha o medo natural da morte. Jesus está com medo, embora não como um covarde teria dos homens que vão matá-lo, e muito menos da dor e do sofrimento que antecedem a morte. Ele está com medo diante da morte em si. A morte para ele não é algo divino: é algo terrível. Jesus não quer ficar sozinho neste momento. Ele sabe, é claro, que o Pai está perto para ajudá-lo. Jesus olha para Ele neste momento decisivo, como fez durante toda a sua vida. Ele se volta para o Pai com todo o seu temor humano desta grande inimiga, a morte. É inútil tentar explicar de maneira diferente o medo de Jesus, conforme relatado pelos evangelistas. Os adversários do cristianismo, que já nos primeiros séculos fizeram o contraste entre a morte de Sócrates e a morte de Jesus, enxergaram com mais clareza aqui do que os expoentes do cristianismo. Ele estava realmente com medo da morte. Não há nada aqui da compostura de Sócrates, que encontrou a morte pacificamente, como uma amiga. Com certeza, Jesus já sabe a tarefa que lhe foi dada: sofrer a morte, e ele já havia falado as seguintes palavras: “Mas tenho que passar por um batismo, e como estou angustiado até que ele se realize!” (Lucas 12:50). Agora, quando o inimigo de Deus está diante dele, ele clama a Deus, cuja onipotência ele conhece: “Aba, Pai, tudo te é possível. Afasta de mim este cálice.” (Mar. 14:36). E quando ele conclui: “contudo, não seja o que eu quero, mas sim o que tu queres”, isso não significa que no final ele considera, como Sócrates, a morte como a amiga, a libertadora. Não, o que ele quer dizer é apenas isto: ‘Se este maior de todos os terrores, a morte, deve cair sobre mim, segundo a Tua vontade, então, submeto-me a este horror.’ Jesus sabe disso com certeza, porque a morte é o inimigo de Deus; morrer significa ser totalmente abandonado. Por isso, ele clama a Deus; diante desse inimigo de Deus, ele não quer ficar sozinho. Jesus quer permanecer estreitamente ligado a Deus como esteve ligado a Ele durante toda a sua vida terrestre. Pois qualquer um que esteja nas mãos da morte não está mais nas mãos de Deus, e sim nas mãos do inimigo de Deus. Neste momento, Jesus busca a assistência, não apenas de Deus, mas até mesmo de seus discípulos. Vez após vez ele interrompe sua oração e vai aos seus discípulos mais íntimos, que estão tentando lutar contra o sono, para estarem acordados quando os homens vierem para prender seu Mestre. Eles tentam, mas não conseguem, e Jesus tem de acordá-los vez após vez. Por que Jesus deseja que eles se mantenham acordados? Porque ele não quer ficar sozinho. Quando o terrível inimigo, a morte, se aproxima, ele não quer ser abandonado nem mesmo por seus discípulos, cuja fraqueza humana ele conhece. “‘Simão’, disse ele a Pedro, ‘você está dormindo? Não pôde vigiar nem por uma hora?’” (Marcos 14:37).
Poderia haver um contraste maior do que entre Sócrates e Jesus? Assim como Jesus, Sócrates tem seus discípulos próximos a ele no dia de sua morte, mas ele palestra serenamente com eles sobre a imortalidade. Poucas horas antes de sua morte, Jesus treme e pede aos discípulos que não o deixem sozinho. O autor da Carta aos Hebreus, o qual, mais do que qualquer outro autor do Novo Testamento, enfatiza a divindade (1:10) e também a natureza humana de Jesus, vai ainda mais longe do que os relatos dos evangelistas sinóticos, em sua descrição do medo que Jesus tem da morte. Em Hebreus 5:7 ele diz que “Jesus ofereceu orações e súplicas, em alta voz e com lágrimas, àquele que o podia salvar da morte.” Assim, de acordo com a Carta aos Hebreus, Jesus chorou e clamou fortemente diante da morte. Enquanto Sócrates fala da imortalidade da alma com calma e tranqüilidade, vemos aqui Jesus, chorando e clamando.
Daí vem a cena da morte em si. Com sublime calma Sócrates bebe a cicuta, mas Jesus (assim diz o evangelista em Marcos 15:34 – não ousamos omitir a frase) brada em voz alta: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” E com outro alto brado ele morre (Marcos 15:37). Esta não é ‘a morte como uma amiga’. Trata-se da morte em todo o seu horror atemorizante. Este é realmente “o último inimigo” de Deus, o nome que Paulo dá a ela em 1 Coríntios 15:26, onde o total contraste entre o pensamento grego e o cristianismo é descortinado. Usando palavras diferentes, o autor do Apocalipse de João também considera a morte como o último inimigo, quando ele descreve como a morte será finalmente lançada no “lago de fogo” (20:14). Pois ela é inimiga de Deus, é a que nos separa de Deus, que é a Vida e o Criador de toda a vida. É precisamente por esta razão que Jesus, que está tão intimamente ligado a Deus como nenhum outro homem jamais esteve, deve ter experimentado a morte mais terrivelmente do que qualquer outro homem. Estar nas mãos do grande inimigo de Deus significa ser abandonado por Deus. De uma forma bem diferente dos outros, Jesus sofreu esse abandono, essa separação de Deus, a única condição realmente a ser temida. Foi por isso que ele clamou a Deus: “Por que me abandonaste?” Ele estaria realmente nas mãos do grande inimigo de Deus.
Devemos ser gratos aos evangelistas por não terem omitido nada sobre aquele momento. Mais tarde (logo no início do segundo século, e provavelmente até um pouco antes) algumas pessoas – de ascendência grega – ficaram ofendidas com isso. Na história dos primitivos cristãos, eles são conhecidos como “gnósticos”.
Eu coloquei a morte de Sócrates e a morte de Jesus lado a lado. Pois nada mostra de uma maneira melhor a diferença radical entre a doutrina grega da imortalidade da alma e a doutrina cristã da ressurreição. Visto que Jesus sofreu a morte em todo o seu horror, não só em seu corpo, como também em sua alma (“Meu Deus! Por que me abandonaste?”), e como ele é considerado pelos primeiros cristãos como o mediador da salvação, ele deve ser realmente o único que vence a morte por meio de sua própria morte. Ele não pode obter esta vitória por simplesmente continuar vivendo como alma imortal, ou seja, sem expirar totalmente. Ele só pode vencer a morte por realmente morrer, por ser levado para a esfera da morte, o destruidor da vida; para o domínio do ‘nada’, do abandono por Deus. Quando se deseja vencer alguém, deve-se entrar em seu território. Qualquer um que queira vencer a morte deve morrer, essa pessoa deve realmente deixar de viver – não simplesmente continuar vivendo como alma imortal, e sim morrer de corpo e alma, perder a própria vida, o bem mais precioso que Deus nos deu. Eis a razão por que os evangelistas que, mais do que ninguém, apresentaram Jesus como o Filho de Deus, não tentaram amenizar o aspecto terrível de sua morte completamente humana.
Ademais, se a vida é eliminada por meio duma morte tão genuína como esta, é necessário um novo ato criativo divino. E este ato criativo chama de volta à vida não apenas uma parte do homem, mas o homem inteiro – tudo o que Deus criara e a morte havia aniquilado. Para Sócrates e Platão não há necessidade de qualquer novo ato criativo. Pois o corpo é realmente mau e não deve continuar vivendo. E essa parte que deve continuar vivendo, a alma, não morre realmente.
Se quisermos compreender a fé cristã na ressurreição, devemos rejeitar totalmente o pensamento grego de que o material, o corporal, o corpo é mau e deve ser destruído, com base na ideia de que a morte do corpo não seria em sentido algum uma destruição da verdadeira vida. Para o pensamento cristão (e judaico) a morte do corpo é também a destruição da vida criada por Deus. Não se faz qualquer distinção: até a vida do nosso corpo é verdadeira vida, a morte é a destruição de toda a vida criada por Deus. Por isso é a morte, não o corpo, que deve ser conquistada pela Ressurreição.
Somente aquele que discerne com os primitivos cristãos o horror da morte, que leva a morte a sério como ela é, pode compreender a exultação da celebração na comunidade cristã primitiva e entender que o pensamento de todo o Novo Testamento é governado pela crença na ressurreição. A crença na imortalidade da alma não é a crença num evento revolucionário. Imortalidade é, na verdade, só uma afirmação negativa: a alma não morre, mas simplesmente continua viva. Ressurreição é uma afirmação positiva: todo homem, que morreu de fato, é chamado de volta à vida por um novo ato criativo de Deus. Algo aconteceu – um milagre de criação! Pois algo também tinha ocorrido anteriormente, algo temível: a vida criada por Deus havia sido destruída.
A morte em si não é bela, nem mesmo a morte de Jesus. A morte antes da Páscoa é realmente a cabeça da Morte, rodeada pelo odor da decomposição. E a morte de Jesus é tão repulsiva como foi descrita pelo grande pintor Grünewald na Renascença. Mas, precisamente por este motivo, o mesmo pintor deliberou pintar, junto com ela, de uma maneira incomparável, a grande vitória, a Ressurreição de Cristo: Cristo no novo corpo, o corpo da ressurreição. Quem quer que pinte uma bela morte não pode pintar alguma ressurreição. Quem não entendeu o horror da morte não pode juntar-se a Paulo no hino da vitória: “A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1 Coríntios 15:54).
O salário do pecado: A morte
O Corpo e a Alma – A Carne e o Espírito
Todavia, o contraste entre a ideia grega da imortalidade da alma e a crença cristã da ressurreição é ainda mais profundo. A crença na ressurreição pressupõe a conexão judaica entre a morte e o pecado. A morte não é algo natural e desejado por Deus, como entendem os filósofos gregos, e sim algo desnatural, anormal, contrário ao propósito de Deus. A narrativa do Gênesis nos ensina que ela entrou no mundo apenas como decorrência do pecado do homem. A morte é uma maldição, e toda a criação foi envolvida nessa maldição. O pecado do homem ocasionou toda a série de eventos que a Bíblia registra, aos quais chamamos de história da redenção. A morte só pode ser conquistada na medida em que o pecado seja removido. Pois ‘o salário do pecado é a morte’. Não é apenas a narrativa de Gênesis que diz isso. Paulo diz a mesma coisa (Romanos 6:23), e este é o conceito de morte mantido por todos no primitivo cristianismo. Assim como o pecado é algo oposto a Deus, assim é sua conseqüência, a morte. Na verdade, Deus pode fazer uso da morte (1 Coríntios 15:35 em diante; João 12:24), como Ele pode fazer uso de Satanás em favor do homem.
Porém, a morte como tal é o inimigo de Deus. Pois Deus é Vida e o Criador da vida. Não é pela vontade de Deus que existe a degradação e a decadência, a mortalidade e a doença, os subprodutos da morte agindo em nossa vida. Todas estas coisas, segundo o entendimento cristão e judaico – decorrem do pecado humano. Portanto, toda a cura que Jesus realiza não envolve apenas trazer de volta da morte, mas também a invasão do domínio do pecado, e foi por isso que, em todas as ocasiões, Jesus disse: ‘Seus pecados estão perdoados.’ Não é que exista um pecado correspondente para cada doença específica, mas, em vez disso, assim como a presença da morte, o fato de a doença acometer a todos é uma conseqüência da condição pecaminosa de toda a humanidade. Toda cura é uma ressurreição parcial, uma vitória parcial da vida sobre a morte. Este é o ponto de vista cristão. Segundo a interpretação grega, ao contrário, a doença física é um corolário do fato de que o corpo é mau em si mesmo e destina-se à destruição. Para o cristão uma antecipação da ressurreição já pode tornar-se visível, mesmo no corpo terreno.
Isso nos lembra que o corpo não é inerentemente mau em sentido algum, mas é, assim como a alma, uma dádiva de nosso Criador. Portanto, de acordo com Paulo, temos deveres com relação ao nosso corpo. Deus é o Criador de todas as coisas. A doutrina grega da imortalidade e a esperança cristã da ressurreição diferem tão radicalmente porque o pensamento grego tem uma interpretação completamente diferente da criação. A interpretação judaico-cristã da criação invalida todo o dualismo grego do corpo e da alma. Pois na verdade o visível, o corpóreo, é tão verdadeiramente uma criação de Deus como o invisível. Deus é o Criador do corpo. O corpo não é a prisão da alma, e sim um templo, conforme diz Paulo (1 Coríntios 6:19) : o santuário do Espírito Santo! Eis aqui a distinção básica. O corpo e a alma não são opostos. Deus considerou o corpóreo “bom” depois de tê-lo criado. A história registrada em Gênesis torna essa ênfase explícita. Ao mesmo tempo, o pecado abrange também o homem inteiro, não só o corpo, mas também a alma; e sua conseqüência, a morte, estende-se sobre todo o resto da criação. A morte é, portanto, algo terrível, porque toda a criação visível, incluindo o nosso corpo, é algo maravilhoso, ainda que seja corrompida pelo pecado e pela morte. Por trás da interpretação pessimista da morte está a visão otimista da criação. Onde quer que a morte seja vista como uma libertação (como no Platonismo), o mundo visível não é reconhecido diretamente como uma criação de Deus.
Devemos reconhecer que no pensamento grego há também uma apreciação muito positiva do corpo. Mas em Platão, o que é bom e belo no corpóreo não é bom e belo, em virtude da corporalidade, mas, por assim dizer, apesar da corporalidade: a alma, única realidade eterna e substancial do ser, brilha fracamente por meio do material. O corpóreo não é o real, o eterno, o divino. É só o meio através do qual o real se manifesta – e assim mesmo de maneira anuviada. O corpóreo destina-se a levar-nos a contemplar o arquétipo puro, livre de toda a corporeidade, o ideal invisível.
Na verdade, os conceitos judaico e cristão também contemplam algo mais, além da corporalidade. Pois toda a criação está corrompida pelo pecado e pela morte. A criação que vemos não é como Deus desejou e criou, nem o corpo que temos é como Ele fez. A morte domina sobre todos, e não é necessário que a aniquilação efetue seu trabalho de destruição antes de este fato tornar-se visível – ela já é evidente no exterior de todas as coisas. Tudo, mesmo aquilo que é mais bonito, é marcado pela morte. Assim, poderia parecer que a distinção entre a interpretação grega e cristã não é tão grande assim, afinal de contas. Mas essa diferença permanece radical. Por trás da aparência corporal Platão vê o incorpóreo, o transcendente, a pureza ideal. Por trás da criação corrompida, sentenciada à morte, o cristão vê a futura criação trazida de volta pela ressurreição, exatamente como Deus quis. O contraste, para o cristão, não é entre o corpo e a alma, nem entre a forma exterior e o ideal invisível, e sim entre a criação entregue à morte pelo pecado e a nova criação, entre o corpo carnal corruptível e o corpo incorruptível ressuscitado.
Isso nos conduz a outro ponto: a interpretação cristã do que é o homem. A antropologia do Novo Testamento não é grega, mas está ligada às concepções judaicas. Para os conceitos de corpo, alma, carne e espírito (para citar apenas estes), o Novo Testamento utiliza de fato as mesmas palavras usadas pelos filósofos gregos. Mas elas significam algo bem diferente, e entenderemos todo o Novo Testamento errado se concebermos estes conceitos do ponto de vista do pensamento grego. Muitos equívocos surgem desta maneira. Eu não posso apresentar aqui uma antropologia bíblica detalhada. Existem boas monografias e artigos sobre o assunto. Um estudo completo teria de tratar separadamente das antropologias dos vários escritores do Novo Testamento, uma vez que neste ponto existem diferenças que não são de forma alguma insignificantes. Só posso tratar aqui, necessariamente, de alguns pontos cardeais que se referem à nossa questão, e mesmo isso deve ser feito um tanto esquematicamente, sem levar em conta as nuanças que teriam de ser discutidas numa antropologia adequada. Naturalmente, ao fazê-lo, temos de confiar principalmente no apóstolo Paulo, uma vez que é só nos escritos dele que encontramos uma antropologia que é definível em pormenores, embora mesmo ele deixe de apresentar as diferentes idéias com total consistência.
O Novo Testamento certamente estabelece a diferença entre corpo e alma, ou mais precisamente, entre o homem interior e o homem exterior. Esta distinção não significa, porém, oposição, como se um fosse, por natureza, bom, e o outro, por natureza, mau. (As palavras de Jesus em Marcos 8:36, Mateus 6:25 e Mateus 10:28 [vida] não falam de um “valor infinito da alma imortal” e não pressupõem alguma supervalorização do homem interior.) Ambos pertencem à criação, ambos são criados por Deus. O homem interior sem o exterior não tem existência própria, plena. Ele requer um corpo. Ele pode, certamente, ter uma existência tênue sem o corpo, assim como os mortos no Sheol segundo o Antigo Testamento, mas isso não é uma vida genuína. O contraste com o conceito grego de alma é gritante: é precisamente separada do corpo que a alma alcança a plena condição de sua vida, para os gregos. Segundo a concepção cristã, no entanto, é a própria natureza do homem interior que requer o corpo.
E qual é o papel desempenhado pela carne e pelo espírito? É especialmente importante não ser induzido aqui ao erro pelo uso secular das palavras gregas, embora sejam encontrados casos em vários lugares no Novo Testamento e mesmo dentro dos escritos de um único autor, de uma utilização da terminologia que nunca é totalmente uniforme. Tendo em mente estas cautelas, pode-se dizer que, segundo o uso característico, digamos, para a teologia paulina, a carne e o espírito no Novo Testamento são dois poderes transcendentes que podem entrar no homem vindos do exterior, mas nenhum dos dois é associado com a existência humana como tal. Em geral é verdade que a antropologia paulina, ao contrário da grega, está fundamentada na História da Salvação. A “carne” é o poder do pecado ou o poder da morte. Ela abrange o homem exterior e o interior juntos. O “espírito” é o seu grande rival: o poder da criação. Ele também abrange o homem exterior e o interior juntos. A carne e o espírito são poderes ativos e, como tais, eles trabalham dentro de nós. A carne, o poder da morte, que entrou no homem com o pecado de Adão, na verdade entrou no homem inteiro, no exterior e no interior, ainda que duma maneira mais intimamente ligada com o corpo. O homem interior encontra-se menos estreitamente relacionado com a carne; (o corpo é, por assim dizer, o seu locus, o ponto a partir do qual ela afeta o homem inteiro. Isso explica por que Paulo pode falar de “corpo” em vez de “carne” ou, inversamente, de “carne” em vez de “corpo”, contrariando sua própria concepção básica, embora isso só ocorra em poucos trechos. Estas exceções terminológicas não alteram o ponto de vista geral dele, que é caracterizado por uma nítida distinção entre o corpo e a carne) embora através da culpa este poder da morte tenha tomado cada vez mais posse até mesmo do homem interior. O espírito, por outro lado, é o grande poder da vida, o elemento da ressurreição; o poder criativo de Deus é dado a nós por meio do Espírito Santo. No Antigo Testamento o Espírito só atuava de vez em quando nos profetas. No tempo do fim em que vivemos [Atos 2:17: “nos últimos dias”] – ou seja, desde que Cristo pôs fim ao poder da morte por meio de sua própria morte e ressurreição – este poder da vida atua em todos os membros da comunidade. Assim como a carne, ele também já toma posse do homem como um todo, o interior e o exterior. Mas ao passo que nesta era a carne se estabeleceu em grau considerável no corpo, embora não domine o homem interior da mesma forma inevitável, o poder vivificador do Espírito Santo já está tomando posse do homem interior de modo tão decisivo que o homem interior “se renova de dia em dia”, conforme diz Paulo (2 Coríntios 4:16). Todo o Evangelho de João enfatiza este ponto. Nós já estamos na condição da ressurreição, o da vida eterna – não imortalidade da alma: a nova era já foi inaugurada. O corpo também já está sob o poder do Espírito Santo.
Onde quer que o Espírito Santo esteja em ação, temos o equivalente a um recuo momentâneo do poder da morte, um vislumbre do Fim. Isto é verdade mesmo no que se refere ao corpo, daí as curas dos doentes. Mas aqui é só uma questão dum recuo, não da transformação definitiva do corpo sujeito à morte para um corpo ressuscitado. Mesmo aqueles que Jesus ressuscitou em sua vida terrestre morreram novamente, pois eles não receberam um corpo ressurreto, a transformação do corpo carnal num corpo espiritual só ocorre no Fim. Só então o poder de ressurreição do Espírito Santo tomará essa posse completa do corpo, transformando-o, da mesma maneira como já está transformando o homem interior. É importante ver o quanto a antropologia do Novo Testamento difere da grega. O corpo e a alma são ambos originalmente bons, na medida em que foram criados por Deus; eles são também ambos maus na medida em que o poder mortal da carne os domina. Ambos podem e devem ser libertados pelo poder vivificador do Espírito Santo.
Aqui, portanto, a libertação não consiste numa libertação da alma do corpo, e sim numa libertação de ambos da carne. Nós não somos libertados do corpo; em vez disso é o próprio corpo que é posto em liberdade. As epístolas de Paulo, principalmente, tornam isso claro, mas esta é a interpretação de todo o Novo Testamento. Quanto a isso não se encontram as diferenças que estão presentes entre os vários livros, sobre outros pontos. Mesmo a tão citada declaração de Jesus em Mateus 10:28, de modo algum pressupõe a concepção grega. “Não temais aos que matam o corpo, mas não podem matar a alma.” Pode parecer que isso pressupõe o conceito de que a alma não tem necessidade do corpo, mas o contexto da passagem mostra que este não é o caso. Jesus não prossegue dizendo: “Temei aquele que mata a alma” e sim: “Temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena tanto a alma como o corpo.” Ou seja, temei a Deus, que é capaz de entregar completamente à morte, a saber, quando Ele não traz uma pessoa de volta à vida. Veremos, é verdade, que a alma é o ponto de partida para a ressurreição, uma vez que, como já dissemos, ela já pode estar sob o controle do Espírito Santo de uma maneira bem diferente do corpo. O Espírito Santo já vive em nosso homem interior. “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos”, diz Paulo em Romanos 8:11, “esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos vivificará também o vosso corpo mortal, por meio do seu Espírito, que em vós habita.” Portanto, aqueles que matam somente o corpo não devem ser temidos. O corpo pode ser ressuscitado dentre os mortos. Mais ainda, ele deve ser levantado. A alma não pode permanecer para sempre sem um corpo. E, por outro lado, ouvimos Jesus dizendo em Mateus 10:28 que a alma pode ser morta. A alma não é imortal. Tem de haver uma ressurreição para ambos, pois desde a Queda no pecado o homem inteiro “é semeado em corrupção”. Para o homem interior, graças à transformação pelo poder vivificador do Espírito Santo, a ressurreição pode ocorrer já na vida atual: por meio da renovação “de dia em dia”. A carne pecaminosa, porém, ainda se mantém presente em nosso corpo. A transformação do corpo só ocorre no Fim, quando toda a criação será renovada pelo Espírito Santo, momento em que não haverá mais nenhuma morte e corrupção.
A ressurreição do corpo, cuja substância (eu uso esse termo bastante infeliz por falta dum termo melhor. O que quero dizer com isso ficará claro tendo em vista a discussão precedente) não será mais a da carne, e sim a do Espírito Santo, é só uma parte de toda a nova criação. “Esperamos novos céus e uma nova terra”, diz 2 Pedro 3:13. A esperança cristã não se refere apenas ao meu destino individual, mas ao destino de toda a criação. Por meio do pecado, toda a criação tornou-se envolvida na morte. Ouvimos isso não só em Gênesis, mas também em Romanos 8:19 em diante, onde Paulo escreve que toda a criação a partir de agora, aguarda ansiosamente a libertação. Esta libertação virá quando o poder do Espírito Santo transformar toda a matéria, quando Deus irá, num novo ato criativo, não destruir a matéria, e sim libertá-la da carne, da corrupção. Não ideais abstratos eternos, e sim objetos concretos serão então feitos novos, na nova e incorruptível substância vital do Espírito Santo, e entre estes objetos está também o nosso corpo.
Uma vez que a ressurreição do corpo é um novo ato criativo, que abrange tudo, ela não é um evento que começa com a morte de cada indivíduo, mas apenas no Fim. Ela não é uma transição deste mundo para outro mundo, como é o caso duma alma imortal, liberta do corpo, e sim a transição da era atual para o futuro. Ela está ligada a todo o processo da redenção.
Como existe o pecado, deve haver um processo de resgate ordenado no tempo. Se o pecado é considerado como a fonte do poder da morte sobre a criação de Deus, esse pecado e essa morte devem ser derrotados juntos, e o Espírito Santo, o único poder capaz de vencer a morte, deve ganhar todas as criaturas de volta para a vida num processo contínuo.
Dessa forma, a crença cristã na ressurreição, distinta da crença grega na imortalidade da alma, está ligada a um processo divino que significa libertação total. O pecado e a morte devem ser subjugados. Nós não podemos fazer isso. Outro fez isso por nós, e só ele foi capaz de fazê-lo porque se dirigiu aos próprios domínios da morte – ou seja, ele próprio morreu e expiou o pecado, para que a morte, como salário do pecado fosse vencida. A fé cristã proclama que Jesus realizou isso e que ele ressuscitou de corpo e alma depois de estar real e completamente morto. Aqui Deus consumou o milagre da nova criação, esperado no Fim. Mais uma vez Ele criou vida, como no princípio. Neste aspecto, em Cristo Jesus isto já ocorreu! A ressurreição, não só no sentido de o Espírito Santo tomar posse do homem interior, mas também a ressurreição do corpo. Esta é uma nova criação de matéria, uma matéria incorruptível. Em nenhum outro lugar existe esta matéria espiritual. Em nenhum outro lugar existe um corpo espiritual – apenas em Cristo.
O primogênito dos mortos
Entre a Ressurreição de Cristo e a Destruição da Morte
Devemos levar em conta o que significou para os cristãos quando eles proclamaram: Cristo levantou dos mortos! Acima de tudo precisamos ter em mente o que a morte significava para eles. Somos tentados a associar estas declarações bíblicas poderosas com o pensamento grego da imortalidade da alma, e desta forma roubar-lhes seu conteúdo. Cristo foi levantado: isso quer dizer que estamos na nova era em que a morte foi vencida, na qual a corruptibilidade não existe mais. Pois, se há realmente um corpo espiritual (não uma alma imortal, e sim um corpo espiritual) que emergiu dum corpo carnal, então de fato o poder da morte foi quebrado. Os crentes, de acordo com a convicção dos primitivos cristãos, não deverão mais morrer: esta era certamente a expectativa deles nos dias primitivos. Deve ter sido um problema quando eles constataram que os cristãos continuavam a morrer. Mas, mesmo o fato de os homens continuarem a morrer não tem mais a mesma significância depois da ressurreição de Cristo. O fato da morte foi despojado de sua importância anterior. Morrer não é mais uma expressão do domínio absoluto da morte, mas apenas uma das pretensões anteriores da morte ao domínio. A morte não pode anular a grande verdade de que existe um Corpo ressuscitado.
Devemos tentar simplesmente entender o que os primitivos cristãos queriam dizer quando falavam de Cristo como sendo o “primogênito dentre os mortos”. No entanto, por mais difícil que seja fazer isso, devemos excluir a questão de saber se podemos ou não aceitar essa crença. Logo de início, temos também de deixar de lado a questão de saber se Sócrates está certo ou se é o Novo Testamento que está. Caso contrário, vamos nos pegar fazendo continuamente a mistura de processos de pensamento alheios com os do Novo Testamento. Devemos simplesmente ouvir o que o Novo Testamento diz. Cristo é o primogênito dentre os mortos! Seu corpo é o primeiro corpo da ressurreição, o primeiro corpo espiritual. Onde esta convicção está presente, toda vida e todo pensamento deve ser influenciado por ele. Todo o pensamento do Novo Testamento permanecerá para nós um livro selado com sete selos, se não lermos por trás de cada frase escrita nele esta outra sentença: A morte já foi conquistada (note-se, a morte, não o corpo), já há uma nova criação (note-se, uma nova criação, não uma imortalidade que a alma sempre possuiu) a era da ressurreição já está inaugurada.
Admita-se que ela foi apenas inaugurada, mas ainda assim decisivamente inaugurada. Só inaugurada: pois a morte age, e os cristãos ainda morrem. Os discípulos experimentaram isso, já que os primitivos membros da comunidade cristã morreram. Isto, necessariamente, apresentou-se como um problema difícil. Em 1 Coríntios 11:30, Paulo escreve basicamente que a morte e a doença não deverão mais ocorrer. Nós continuamos a morrer, e a doença e o pecado ainda existem. Mas o Espírito Santo já atua efetivamente em nosso mundo como o poder da nova criação; ele já atuou visivelmente na comunidade primitiva, em diversas manifestações do espírito. Em meu livro Cristo e o Tempo falei de uma tensão entre o presente e o futuro, a tensão entre o “já cumprido” e o “ainda não consumado”. Esta tensão pertence essencialmente ao Novo Testamento e não é apresentada como uma solução secundária originada pelo embaraço. Esta tensão está presente em Jesus e com ele. Ele proclama o Reino de Deus para o futuro, mas, por outro lado ele proclama que o Reino de Deus já nasceu, uma vez que ele próprio, juntamente com o Espírito Santo já está realmente repelindo a morte, por curar os doentes e ressuscitar os mortos (Mateus 12:28, 11:3 em diante, Lucas 10:18), antecipando a vitória sobre a morte que ele obtém com sua própria morte. A esperança cristã pertence à própria essência do Novo Testamento, que pensa em categorias temporais, e esta é a razão de a crença na ressurreição conseguida por meio de Cristo ser o ponto de partida de toda a vida e de todo o pensamento cristão. Quando se parte deste princípio, então a tensão cronológica entre o “já cumprido” e o “ainda não consumado” constitui a essência da fé cristã. De modo que a metáfora que uso no livro Cristo e o Tempo caracteriza a situação de todo o Novo Testamento: a batalha decisiva foi travada com a morte e a ressurreição de Cristo, só o Dia da Vitória ainda está por vir.
Basicamente, toda a discussão teológica contemporânea gira em torno desta questão: É a Páscoa o ponto de partida da Igreja de Cristo, de sua existência, vida e pensamento? Se assim for, estamos vivendo num período de tempo intermediário.
Neste caso, a fé na ressurreição apresentada no Novo Testamento torna-se o ponto cardeal de toda a crença cristã. Assim, a novidade de que há um corpo da ressurreição – o corpo de Cristo – define toda a interpretação dos primitivos cristãos sobre o tempo. Se Cristo é o “primogênito dentre os mortos”, então isso significa que o tempo do Fim já está presente. Mas isso também significa que um intervalo de tempo separa o Primogênito de todos os outros homens que ainda não ‘nasceram dentre os mortos’. Isto significa então que vivemos numa época intercalar, entre a ressurreição de Jesus, que já aconteceu, e a nossa, que só ocorrerá no Fim. Significa também que o poder energizante, o Espírito Santo, já está em operação entre nós. Dessa forma, Paulo designa o Espírito Santo, pelo mesmo termo – primícias (Romanos 8:23) que ele usa em relação ao próprio Jesus (1 Coríntios 15:23). Já há, então, um prenúncio da ressurreição. E realmente de uma maneira dupla: o nosso homem interior já está sendo renovado a cada dia pelo Espírito Santo (2 Coríntios 4:16, Efésios 3:16), o corpo também já está sendo soerguido pelo Espírito, embora a carne ainda tenha a sua cidadela dentro dele. Sempre que o Espírito Santo entra em cena, o poder da morte é rechaçado, mesmo no corpo. Assim, os milagres de cura ocorreram exatamente em nosso corpo ainda mortal. Ante o clamor desesperado em Romanos 7:24, “Quem me livrará do corpo desta morte?” todo o Novo Testamento responde: O Espírito Santo!
O prenúncio do fim, visualizado por meio do Espírito Santo, torna-se mais claramente visível na celebração cristã de partir o pão. Milagres visíveis do Espírito ocorrem nesse momento. Ali o Espírito procura ultrapassar os limites da linguagem humana imperfeita no falar em línguas. E ali a comunidade é colocada em conexão direta com o Ressuscitado, não só com sua alma, mas também com seu Corpo Ressuscitado. É por isso que lemos em 1 Coríntios 10:18: “O pão que partimos não é uma comunhão com o corpo de Cristo?” Aqui em comunhão com os irmãos, chegamos mais perto do Corpo da ressurreição de Cristo, e por isso Paulo escreve no capítulo seguinte, o capítulo 11 (uma passagem que tem recebido muito pouca atenção) que se esta Ceia do Senhor era comida por todos os membros da comunidade de uma forma completamente digna, então a união com o corpo da ressurreição de Jesus seria tão eficaz em nossos próprios corpos que, mesmo agora não haveria mais doença ou morte (1 Coríntios 11:28-30) uma afirmação singularmente forte. Portanto, a comunidade é descrita como sendo o corpo de Cristo, porque aqui o corpo espiritual de Cristo está presente, porque aqui chegamos mais próximo a ele; aqui na refeição comum os primeiros discípulos na Páscoa viram o corpo da ressurreição de Jesus, seu corpo espiritual.
No entanto, apesar do fato de o Espírito Santo já estar agindo tão poderosamente, os homens continuam a morrer; mesmo após a Páscoa e o Pentecostes os homens continuam morrendo como antes. Nosso corpo continua mortal e sujeito à doença. Sua transformação no corpo espiritual só ocorrerá quando a criação inteira for feita nova por Deus, só então, pela primeira vez, não haverá nada além do Espírito, nada além do poder da vida, pois daí a morte será destruída por completo. Haverá então uma nova substância para todas as coisas visíveis. Em lugar da matéria carnal, aparecerá a espiritual. Ou seja, em vez de matéria corruptível aparecerá o incorruptível. O visível e o invisível serão espírito. Mas não nos enganemos: este não é certamente o sentido grego do Ideal imaterial! Um novo céu e uma nova terra. Essa é a esperança cristã. E, então, nossos corpos também ressuscitarão dentre os mortos. Mas não como corpos carnais, e sim como corpos espirituais.
Alguns procuram explicar a expressão “ressurreição da carne”, tanto do ponto de vista da teologia bíblica como da história do dogma. Paulo não poderia ter dito isso. Carne e sangue não podem herdar o Reino. Paulo acredita na ressurreição do corpo, não da carne. A carne é o poder da morte, que deve ser destruído. Este erro no credo grego se introduziu num momento em que a terminologia bíblica tinha sido mal-interpretada no sentido da antropologia grega. Ademais, nosso corpo (e não apenas a nossa alma), será levantado no Fim, quando o poder vivificante do Espírito faz novas todas as coisas, sem exceção.
Um corpo incorrutível! Como iremos conceber isto? Ou melhor, que conceito os primitivos cristãos tinham disso? Paulo diz em Filipenses 3:21 que no Fim, Cristo vai transformar nosso corpo rebaixado para ser conforme o corpo glorioso dele, exatamente como se diz em 2 Coríntios 3:18: “Todos nós… somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor.” Esta glória foi concebida pelos primitivos cristãos como uma espécie de substância luminosa, mas esta é apenas uma comparação imperfeita. A nossa linguagem não tem palavras para caracterizar isso. Mais uma vez, faço referência ao quadro da Ressurreição, de Grünewald. Ele pode estar bem próximo daquilo que Paulo entendia como o corpo espiritual.
Mathias Grünewald – A Ressurreição de Cristo
Os que estão dormindo
O Espírito Santo e a Condição Intermediária dos Mortos
E agora chegamos à última questão. Quando é que ocorre esta transformação do corpo? Não pode restar dúvida sobre este ponto. O inteiro Novo Testamento responde que é no Fim, e isso deve ser entendido literalmente, ou seja, no sentido temporal. Isso levanta a questão da condição dos mortos ‘no ínterim’. A morte já foi realmente conquistada de acordo com 2 Timóteo 1:10: “Cristo venceu a morte e já trouxe a vida e a incorruptibilidade à luz.” A tensão cronológica que eu constantemente enfatizo, refere-se precisamente a este ponto central de que a morte foi conquistada, mas só será abolida no Fim. 1 Coríntios 15:26 diz que a morte será conquistada como o último inimigo. É significativo que em grego usa-se o mesmo verbo para descrever a vitória decisiva já conseguida e a ainda não consumada vitória no fim. Apocalipse 20:14 descreve a vitória no fim, a aniquilação da morte: ‘A morte será lançada no lago de fogo’, e alguns versículos depois é dito que a morte ‘não mais existirá’.
No entanto, isso significa que a transformação do corpo não ocorre imediatamente após cada morte individual. Aqui também, temos de guardar-nos mais uma vez contra qualquer tipo de acomodação à filosofia grega, se quisermos compreender a doutrina do Novo Testamento. Há quem considere ser a interpretação do Novo Testamento que a transformação do corpo ocorre para todos, imediatamente após a morte individual – como se os mortos não estivessem mais no tempo. Todavia, segundo o Novo Testamento, eles ainda estão no tempo. Caso contrário, o problema registrado em 1 Tessalonicenses 4:13 em diante não teria sentido. Aqui, Paulo está na verdade preocupado em mostrar que no momento do retorno de Cristo ‘aqueles que estiverem então vivos não levarão vantagem’ sobre os que morreram em Cristo. Desse modo, os mortos em Cristo ainda estão no tempo, eles também estão esperando. “Até quando, ó Senhor?”, clamam os mártires que estão dormindo debaixo do altar mencionado no Apocalipse de João (capítulo 6, versículo 11). Nem as palavras ditas na cruz, “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lucas 23:43), nem a parábola do homem rico, onde Lázaro é levado diretamente para o seio de Abraão (Lucas 16:22), nem as palavras de Paulo, “Eu desejo morrer e estar com Cristo” (Filipenses 1:23), provam, como muitas vezes se afirmou, que a ressurreição do corpo ocorre imediatamente após a morte individual. (As palavras muito discutidas de Lucas 23:43, “hoje estarás comigo no Paraíso”, são pertinentes aqui. Na verdade não é impossível compreendê-las, ainda que artificialmente. A declaração deve ser entendida à luz de Lucas 16:23 e da concepção judaica primitiva de “Paraíso”, como sendo o lugar dos abençoados. É certo que Lucas 16:23 não se refere à ressurreição do corpo, e a expectativa da Parusia não é de modo algum suplantada. Existe certa disparidade aqui quanto à teologia de Paulo, na medida em que no dia referido como “hoje” o próprio Cristo ainda não tinha sido levantado e, portanto, a base da condição de os mortos estarem unidos a Cristo ainda não tinha sido estabelecida. Mas, em última análise, a ênfase aqui está no fato de que o ladrão estará com Cristo. A resposta de Jesus deve ser entendida em relação à súplica do ladrão. O ladrão pede que Jesus se lembre dele quando “entrar em seu reino”, o qual, segundo a visão judaica do Messias, só pode se referir ao momento em que o Messias vem e estabelece seu reino. Jesus não só concede o pedido, como dá ao ladrão mais do que ele pediu: ele estará unido com Jesus, mesmo antes da vinda do reino. Entendidas desse modo, de acordo com sua intenção, estas palavras não constituem uma dificuldade para a posição defendida acima). Em nenhum desses textos há qualquer palavra sobre a ressurreição do corpo. Em vez disso, essas diferentes imagens retratam a condição daqueles que morrem em Cristo antes do Fim – o estado intermediário em que eles, bem como os vivos, se encontram. Todas essas imagens expressam simplesmente uma proximidade especial com Cristo, na qual se encontram aqueles que morrem em Cristo antes do Fim. Eles estão ‘com Cristo ou no paraíso’ ou “no seio de Abraão”, ou, segundo o Apocalipse 6:9, “debaixo do altar”. Todas estas são simplesmente várias imagens da proximidade especial com Deus. Mas a imagem mais comum para Paulo é: “Eles estão dormindo.” Seria difícil contestar que o Novo Testamento reconhece esse período intermediário para os mortos, bem como para os vivos, apesar de faltar aqui qualquer tipo de especulação sobre a condição dos mortos neste período intermediário.
Os mortos em Cristo compartilham da tensão do período intermediário. (A falta de especulação sobre isso no Novo Testamento não nos dá o direito de simplesmente suprimir o “estado intermediário” como tal. Eu não entendo por que os teólogos protestantes têm tanto medo da posição do Novo Testamento, quando o Novo Testamento ensina apenas, sendo muito disto sobre o “estado intermediário”: (1) que ele existe, (2) que já significa a união com Cristo [isso por causa do Espírito Santo]). Mas isso não significa apenas que eles estão esperando. Significa que, para eles também, algo decisivo aconteceu com a morte e ressurreição de Jesus. Para eles também, a Páscoa é o grande momento decisivo (Mateus 27:52). Esta nova situação criada pela Páscoa nos leva a ver pelo menos a possibilidade de um elo comum com Sócrates, não com o seu ensinamento, mas com seu próprio comportamento em face da morte. A morte perdeu o seu horror, seu “aguilhão”. Embora se mantenha como o último inimigo, a morte já não tem qualquer significado final. Se a ressurreição de Cristo tivesse sido para marcar o grande momento decisivo das eras só para os vivos e não para os mortos também, então os vivos certamente teriam uma imensa vantagem sobre os mortos. Pois, como membros da comunidade de Cristo, os vivos realmente estão agora mesmo de posse do poder da ressurreição, o Espírito Santo. É inconcebível que, segundo o ponto de vista dos primitivos cristãos, nada tivesse se alterado para os mortos no período antes do Fim. São precisamente essas imagens usadas no Novo Testamento para descrever a condição dos mortos em Cristo, que provam que, mesmo agora, nesta condição intermediária dos mortos, a ressurreição de Cristo – a antecipação do Fim – já é efetiva. Eles estão “com Cristo”.
Particularmente em 2 Coríntios 5:1-10 ouvimos porque é que os mortos, embora ainda não tenham um corpo e estejam só “dormindo”, estão, contudo, numa proximidade especial com Cristo. Paulo fala aqui da ansiedade natural que até ele sente antes da morte, a qual ainda mantém sua efetividade. Ele teme a condição de “nudez”, como ele a chama, isto é, a condição do homem interior que não tem corpo. Este medo natural da morte, portanto, não desapareceu. Paulo gostaria, como ele diz, de receber um corpo espiritual adicional, enquanto ainda vivo, sem sofrer a morte. Ou seja, ele gostaria de estar vivo no momento do retorno de Cristo. Encontramos aqui, mais uma vez, a confirmação do que dissemos sobre o medo da morte por parte de Jesus. Mas agora vemos também algo novo: neste mesmo texto, ao lado dessa ansiedade natural por causa da nudez da alma está a grande confiança na proximidade de Cristo, mesmo nesse estado intermediário. O que há para se temer no fato de que essa condição intermediária ainda existe? A confiança na proximidade de Cristo é baseada na convicção de que o nosso homem interior já está sob o controle do Espírito Santo. Desde a época de Cristo, nós, os vivos, temos de fato o Espírito Santo. Se ele está realmente dentro de nós, já transformou o nosso homem interior. Mas, como ouvimos, o Espírito Santo é o poder da vida. A morte não pode lhe fazer nenhum mal. Por isso, algo realmente mudou para os mortos, para aqueles que realmente morrem em Cristo, ou seja, na posse do Espírito Santo. O horrível abandono na morte, a separação de Deus, da qual temos falado, não existe mais, justamente por causa da realidade do Espírito Santo. Desse modo, o Novo Testamento enfatiza que os mortos estão realmente com Cristo, e por isso não estão abandonados. Podemos compreender, então, por que justamente em 2 Coríntios 5:1 em diante, onde ele menciona o medo da desencarnação no período intermediário, Paulo descreve o Espírito Santo como “penhor” (ou “garantia”).
À base do versículo 8 do mesmo capítulo, fica evidente que os mortos estão mais próximos de Cristo. O ‘sono’ parece levá-los ainda mais próximo: “Mas temos confiança e desejamos antes deixar este corpo, para habitar com o Senhor.” Por esta razão, o apóstolo pôde escrever em Filipenses 1:23 que ele deseja morrer e estar com Cristo. Então, um homem que não tem o corpo carnal está ainda mais próximo de Cristo do que antes, se ele tem o Espírito Santo. É a carne, ligada ao nosso corpo terreno, que ao longo da nossa vida dificulta o pleno desenvolvimento do Espírito Santo. A morte nos liberta deste obstáculo, embora seja um estado imperfeito na medida em que fica faltando o corpo da ressurreição. Nem neste trecho, nem em parte alguma se encontra qualquer informação mais detalhada sobre este estado intermediário no qual o homem interior, despojado realmente de seu corpo carnal, mas ainda privado do corpo espiritual, existe com o Espírito Santo. O apóstolo se limita a garantir-nos que esta condição, a qual antecipa o destino que é nosso já que recebemos o Espírito Santo, aproxima-nos da ressurreição final.
Encontramos aqui o medo de uma condição imaterial associado com a firme confiança de que, mesmo nessa condição intermediária e transitória não ocorre qualquer separação de Cristo (entre os poderes que não podem nos separar do amor de Deus em Cristo está a morte – Romanos 8:38). Este medo e esta confiança estão lado a lado em 2 Coríntios 5, e isso confirma o fato de que até mesmo os mortos compartilham da tensão do momento presente. Porém, a confiança predomina, pois a ação foi realmente tomada. A morte está subjugada. O homem interior, despojado do corpo, não está mais sozinho, ele não leva a existência sombria que os judeus esperavam e que não pode ser descrita como vida. O homem interior, despojado do corpo, já foi transformado pelo Espírito Santo em seu período de vida, já está soerguido pela ressurreição (Romanos 6:3 em diante; João 3:3 em diante), se como pessoa viva, ele já tinha sido renovado pelo Espírito Santo. Embora ele ainda ‘durma’ e ainda aguarde a ressurreição do corpo, a qual, por si só, dará a ele a vida plena, o cristão falecido tem o Espírito Santo. Assim, mesmo nesta condição, a morte perdeu o seu horror, embora ela ainda exista. E é dessa maneira que os que morrem no Senhor podem realmente ser abençoados “desde agora”, conforme diz o autor do Apocalipse (Apocalipse 14:13). O que se diz em 1 Coríntios 15:54, 55 aplica-se também aos mortos: “A morte foi destruída pela vitória”. Onde está, ó morte, a sua vitória? Onde está, ó morte, o seu aguilhão?”Assim, o apóstolo escreve em Romanos 14: “Assim, quer vivamos, quer morramos, pertencemos ao Senhor.” (versículo 8) “Por esta razão Cristo morreu e voltou a viver, para ser Senhor de vivos e de mortos.” (versículo 9).
Alguém poderia perguntar: Não fomos, desta maneira, levados de volta, em última análise, à doutrina grega da imortalidade, se o Novo Testamento presume, para o período pós-Páscoa, uma continuidade do “homem interior” das pessoas convertidas antes e depois da morte, de maneira que aqui também a morte é apresentada para todos os efeitos práticos apenas como um ‘transição’ natural? Há um sentido no qual uma espécie de aproximação com o ensino grego realmente ocorre, na medida em que o homem interior, que já foi transformado pelo Espírito (Romanos 6:3 em diante), e foi, conseqüentemente renovado, continua a viver com Cristo neste estado transformado, na condição do sono. Esta continuidade é fortemente enfatizada, principalmente no Evangelho de João (3:36, 4:14, 6:54 e com freqüência). Observamos aqui pelo menos alguma analogia com a “imortalidade da alma”, todavia a distinção permanece radical. Além disso, a condição dos mortos em Cristo é ainda imperfeita, um estado de “nudez”, conforme diz Paulo, de “sono”, de espera pela ressurreição do corpo por parte de toda a criação. Por outro lado, a morte no Novo Testamento continua a ser o inimigo, se bem que um inimigo derrotado, que ainda deve ser destruído. O fato de que mesmo nesta condição os mortos já estão vivendo com Cristo não corresponde à essência natural da alma. Em vez disso, é o resultado de uma intervenção divina a partir do exterior, por meio do Espírito Santo, que já teria despertado o homem interior na vida terrena por seu poder milagroso.
Assim, continua sendo verdade que a ressurreição do corpo é esperada, mesmo no Evangelho de João – naturalmente já com a certeza da vitória, porque o Espírito Santo já habita no homem interior. Conseqüentemente, não há qualquer dúvida: uma vez que o Espírito já habita no homem interior, ele certamente transformará o corpo. Pois o Espírito Santo, esse poder vivificante, penetra em tudo e não conhece barreira. Se ele está realmente dentro de um homem, então ele despertará o homem inteiro. Por isso Paulo escreve em Romanos 8:11: “E se o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos habita em vocês, aquele que ressuscitou a Cristo dentre os mortos também dará vida a seus corpos mortais, por meio do seu Espírito, que habita em vocês.” Em Filipenses 3:21: “Pelo poder que o capacita a colocar todas as coisas debaixo do seu domínio, ele transformará os nossos corpos humilhados, para serem semelhantes ao seu corpo glorioso.” Nada se diz no Novo Testamento sobre os detalhes da condição intermediária. Ouvimos apenas isto: estamos mais perto de Deus.
Nós aguardamos e os mortos aguardam. Naturalmente o ritmo do tempo para eles pode ser diferente do que é para os vivos, e desta forma o período intermediário pode ser encurtado para eles. Realmente isto não significa ir além dos textos do Novo Testamento e sua exegese, porque esta expressão “dormir”, que é a designação comum no Novo Testamento para o “estado intermediário”, leva-nos ao conceito de que para os mortos existe outro tipo de consciência do tempo, a dos “que estão dormindo”. Mas isso não quer dizer que os mortos não estão parados no tempo. Vemos mais uma vez, portanto, que a esperança da ressurreição do Novo Testamento é diferente da crença grega na imortalidade.
Conclusão
Em suas viagens missionárias, Paulo certamente encontrou pessoas que eram incapazes de crer em sua pregação da ressurreição exatamente em razão de acreditarem na imortalidade da alma. Assim, em Atenas só houve zombaria no momento em que Paulo falou da ressurreição (Atos 17:32). Tanto as pessoas de quem Paulo fala (em 1 Tessalonicenses 4:13) que “não têm esperança” como aquelas sobre as quais ele escreve (em 1 Coríntios 15:12) que não crêem que haja uma ressurreição dos mortos, provavelmente não são os epicuristas, como estamos inclinados a acreditar. Pois os que crêem na imortalidade da alma não têm a esperança de que Paulo fala, a esperança que expressa a crença no milagre divino da nova criação que irá abranger tudo, cada parte do mundo criado por Deus. Com efeito, para os gregos, que acreditavam na imortalidade da alma, pode ter sido mais difícil aceitar a pregação cristã da ressurreição do que foi para os outros. Por volta do ano 150, Justino (em seu Diálogo, 80) escreve sobre as pessoas, “que dizem que não há ressurreição dos mortos, e sim que imediatamente após a morte a alma deles ascende ao céu.” Aqui se percebe claramente o contraste.
O imperador Marco Aurélio, um filósofo que, assim como Sócrates, está entre as mais nobres figuras da Antiguidade, também percebeu o contraste. Como se sabe, ele abrigava o mais profundo desprezo pelo Cristianismo.
Poderíamos imaginar que a morte dos mártires cristãos inspiraria respeito neste grande estóico que considerava a morte com equanimidade. Todavia, foi exatamente para com a morte dos mártires que ele demonstrou menos simpatia. O fervor com que os cristãos encaravam a morte o desagradava. (Marco Aurélio, Med. XI, 3. Na verdade, com o passar do tempo ele foi desistindo da crença na imortalidade da alma). Os estóicos partiam desta vida sem paixão, os mártires cristãos, por outro lado, morriam fervorosamente pela causa de Cristo, pois sabiam que ao fazê-lo permaneciam dentro de um poderoso processo de redenção. O primeiro mártir cristão, Estêvão, mostra-nos (em Atos 7:55) quão diferente é a vitória sobre a morte daquele que morre em Cristo, em comparação com o filósofo da antiguidade: Estevão diz que viu ‘os céus abertos e Cristo em pé à direita de Deus’! Ele vê Cristo, o Conquistador da Morte. Tendo esta fé de que a morte, à qual ele deveria se submeter, já estava conquistada por aquele mesmo Jesus que a tinha suportado, Estevão se deixou apedrejar.
A resposta à questão “imortalidade da alma ou ressurreição dos mortos” no Novo Testamento é inequívoca. Não há maneira de harmonizar o ensino dos grandes filósofos Sócrates e Platão com o ensino do Novo Testamento. Que as pessoas envolvidas, as vidas delas, e a atitude delas por ocasião da morte podem até ser respeitadas pelos cristãos, os apologistas do segundo século mostraram. Acredito que isto pode ser também demonstrado com base no Novo Testamento. Mas esta é uma questão com a qual não precisamos lidar aqui.