Como Lidar Com a Desilusão Religiosa

Um leitor Testemunha de Jeová de longa data encaminhou uma mensagem expressando sua desilusão religiosa após tomar conhecimento dos sérios problemas nas doutrinas da organização. Espera-se que a resposta abaixo seja de alguma ajuda para outros que estejam nessa situação no momento.

Prezado leitor,

Agradecemos por seu relato e temos o prazer de responder seus questionamentos. Embora seja difícil comentar todos os pontos que você mencionou, fizemos um esforço de escrever algo sobre certos trechos de sua mensagem, pelo menos, conforme segue:

“É realmente muito chocante. Estou muito triste. Sinto como se eu tivesse participado de uma organização criminosa tipo máfia e contribuído para seduzir e desencaminhar as pessoas. Sinto-me muito mau ao perceber que perdi grande parte da minha vida em esforços para apoiar essa organização. Tudo poderia ter sido diferente. Estou muito indignado.”

Perguntamos: Eram esses seus sentimentos quando estava totalmente envolvido com a organização, e sem saber das coisas que sabe agora? Achava a organização “criminosa tipo máfia”, que você estava ‘seduzindo e enganando’ as pessoas e ‘perdendo tempo’ na sua vida? É óbvio que não! Aconselhamos a que você evite a todo custo nutrir esses sentimentos agora.

Concentre-se no lado positivo dessa história: Uma vez que você teve essa experiência, está numa posição única quanto ao potencial para ajudar de maneira compassiva outras pessoas que você conheça e que lhe sejam queridas. Isso porque você conhece exatamente o pensamento delas e quão sinceras elas são em seus esforços (assim como era obviamente o seu caso). Um artigo que trata deste problema dos sentimentos é o intitulado O Que Posso Fazer, Se Não Estou Numa Organização Religiosa? Uma série de ideias contidas nele poderão lhe ser úteis para granjear a tão necessária serenidade de espírito.

“… ainda não consegui entender porque o MB tem, como um dos seus principais objetivos, o de ajudar as TJs. Não me entendam mal, apenas estou tentando entender e de certa forma aplicando o princípio dos bereanos de procurar ser cuidadoso em ver se estas coisas são mesmo assim. Mas, pareceu-me um tanto intrigante o fato de que existam TJs apoiando o MB. Será que entendi mal? Por favor, me esclareçam isso. Se for o caso, por que alguém continuaria sendo cúmplice de uma organização se ele já entendeu claramente que essa organização é tão prejudicial?”

Lembre-se que uma pessoa só deixa de ser oficialmente Testemunha de Jeová a partir do momento em que ela foi desassociada ou se dissociou formalmente. Porém, o fato de alguém ainda ser oficialmente Testemunha de Jeová não significa que a pessoa está necessariamente apoiando ensinos e procedimentos errados ou, como você colocou, “sendo cúmplice de uma organização”. Pode haver motivos muito nobres para alguém preferir evitar a desassociação.

Raciocine: Se você confrontasse abertamente a organização com as informações que agora sabe, não resultaria isso em sua expulsão sumária e inapelável de lá? Ocorrendo isso, quantas pessoas que lhe conhecem você acha que se disporiam a lhe dar um minuto de atenção ou um cumprimento sequer na rua ou em outros lugares? Não é verdade que sua presença seria ignorada, como se você estivesse morto? Sendo posto nesse ostracismo, você acha que teria mais ou menos condições de ajudar outros a saber destas informações? A resposta é óbvia.

“E porque dar uma atenção especial em denunciar uma organização se existe muitas outras organizações tão denunciáveis como a Torre? A Torre mantém em suas garras uns oito milhões de pessoas. Mas, a Igreja Católica mantém desencaminhadas centenas de milhões de pessoas. E há várias outras igrejas que mantêm na escuridão muito mais gente do que a Torre. Sem contar as religiões orientais que nem sequer acreditam na Bíblia ou em Cristo. Porque não se concentrar também em ajudar as pessoas de todas essas religiões para que venham a conhecer a Cristo, depositar fé nele para poder ganhar a vida eterna? Porque não denunciá-las com a mesma força?… Será que consideram a liderança das Testemunhas de Jeová uma organização diferenciada que mereça mais atenção nas denúncias?”

O fato de sites como este tratarem de muitos problemas que existem nos domínios dessa religião não quer dizer que as outras estão isentas de erro e que os responsáveis pelo site estejam cegos para com os problemas que existem nessas outras religiões. Pelo contrário, a experiência que eles têm ou tiveram como Testemunhas já os habilitou a reconhecer que estes mesmos problemas são comuns a todas as religiões institucionalizadas. E este ponto é demonstrado em diversos artigos. Portanto, não se trata só de “denunciar” uma única organização religiosa e sim, com base na experiência que eles tiveram nesta organização, identificar e apontar alternativas para evitar os problemas que existem em qualquer instituição religiosa autoritária que exista no mundo.

O motivo de parecer que o site dá “atenção especial” a uma instituição religiosa é decorrente de seus colaboradores conhecerem bem a doutrina e os procedimentos desta organização específica. Nada mais do que isso. Este mesmo trabalho é feito também por dissidentes de outras religiões, em relação aos problemas que existem nas religiões que eles apoiavam antes. Se você empreendesse uma iniciativa assim, é bem provável que seu procedimento seria semelhante, já que grande parte de sua vida foi passada dentro desta organização, e não de outra.

A desilusão religiosa como um castelo de cartas ruindo.
Muitas Testemunhas de Jeová (JW) sentem muita revolta e mágoa ao descobrir os erros doutrinais da organização

“… é certo que uma grande mudança na minha vida está prestes a ocorrer.”

Um versículo bíblico muito pertinente é o de Provérbios 29:20:

“Você já observou um homem que fala de modo precipitado? Há mais esperança para um tolo do que para ele.” – Tradução do Novo Mundo

Se a calma e a ponderação nas palavras é fundamental para se levar uma vida tranquila, imagine você nas ações, especialmente naquelas que têm um grande impacto em nossa vida! Por isso, a recomendação é a mesma que damos a todos os leitores que nos fazem perguntas assim: Procure ter calma e reflita cuidadosamente antes de tomar decisões em sua vida. Por que se apressar? Lembre-se que o objetivo final do cristão é ter a aprovação do Deus da verdade e mostrar amor ao próximo. Se toda decisão que você tomar for feita com ponderação e tendo estes objetivos em mente, as consequências serão as melhores possíveis, e, o que é melhor: qualquer mudança advinda de suas decisões será bem menos traumática.

Adendo: Lidando com a desilusão religiosa de forma positiva

Certo dissidente das Testemunhas de Jeová (que passou vários anos no serviço na Sede Mundial delas nos Estados Unidos, inclusive) fez algumas observações (num fórum) sobre este mesmo problema que acomete muitas Testemunhas que deixam a organização. O que ele disse está de acordo com o que expressamos acima e ainda acrescenta alguns pontos dignos de consideração:

Para muitos líderes da Torre de Vigia, é muito mais importante que as fileiras das Testemunhas sejam “leais”, ou seja, sigam todas as instruções deles ao pé da letra, do que elas crescerem espiritualmente ou emocionalmente, aprenderem a tomar boas decisões com base em sua própria consciência esclarecida e bom senso, ou experimentarem a felicidade na vida. Eles se referem ao seu sistema de crenças como “a verdade”, mas a exposição da verdade claramente não é o objetivo primordial deles.[1]

Muitos dos que saem desse ambiente de controle sentem a necessidade de reagir contra a Torre de Vigia, de uma forma ou de outra. Muitos fazem isso zombando da organização. Outros ficam tão irados que a chicoteiam furiosamente. Alguns dirigem sua raiva da Torre de Vigia contra qualquer tipo de religião, embora o perfil das Testemunhas não seja nem um pouco típico da maioria das religiões cristãs, ou, na verdade, de qualquer religião que seja.

Uma palavra de cautela: é fácil deixar a organização das Testemunhas de Jeová controlar vocês de maneira negativa, tanto quanto fizeram de maneira positiva. Se alguém adota uma postura que diz: “O que quer que a Torre de Vigia ensine, o contrário deve ser verdade, e eu vou acreditar nisso”, essa pessoa ainda estará sob a influência deles. Pelo lado negativo, existe o risco de se tornar um verdadeiro cínico, não querendo confiar em ninguém (nem em si mesmo), principalmente em alguém que tenha um conceito religioso. Essa atitude pode realmente provocar turbulência nos relacionamentos com a família e os amigos, e vai diminuir significativamente suas opções quando se trata de fazer novos amigos interessantes.

Eu sugeriria a vocês que a abordagem correta quando se quer aprender alguma coisa, incluindo ensinos religiosos, não é a de refutar ou provar. Como Testemunhas de Jeová, ensinou-se a todos nós algumas coisas que são verdadeiras, algumas coisas que são falsas, e algumas que são parcialmente verdadeiras e parcialmente falsas. A Torre de Vigia ensina algumas coisas corretas, mas no geral eles têm não só um mau entendimento de quase todos os princípios do cristianismo, como também uma maneira errada de abordar. Charles Taze Russell e seus sucessores partiram de uma premissa errada, e agiram de acordo com uma perspectiva negativa. Eles se concentraram em identificar o que eles acreditavam estar errado com os outros cristãos, com base em sua própria interpretação das Escrituras, em vez de verificar sistematicamente o que é verdadeiro e edificar com base nisso.

Anos atrás, eu encontrei uma citação que causou uma profunda impressão em mim. Eu a imprimi e ela ficou pendurada na minha parede por vários anos. É de Solomon Ibn Gabirol, um rabino judaico muito sábio que viveu por volta de 1000 AD:

“Um tolo se alegra quando descobre um erro. Um homem sábio se alegra quando descobre a verdade.”

O rabino Solomon me ajudou a enxergar a falha básica no método que eu e tantas ex-Testemunhas de Jeová estavam usando para analisar as coisas. Elas gastam muito tempo tentando descobrir que coisas são falsas. Toda vez que encontram um “erro” (ou o que pensam ser um erro, com base em seu modelo falho da realidade), elas se parabenizam em detectar outra mentira. Há pouco a se ganhar em relação ao esforço despendido nesse tipo de empreendimento.

Se esse mesmo esforço for investido em tornar-se informado sobre as coisas que podem ser confirmadas em um grau razoável, então cada coisa que se aprende contribui para a construção de um modelo correto da realidade, que é o que é a verdade. Você ganha alguma coisa toda vez que faz isso. Decidi adotar a abordagem de Gabirol. O resultado me deixou muito mais feliz do que eu era quando estava procurando erros. Eu recomendo fortemente esta abordagem.

A vida é bela. As pessoas também, apesar de suas diferenças de perspectiva, incluindo aqueles de nós que são religiosos. Em qualquer campo de aprendizagem, incluindo crenças sobre Deus, Jesus, ou espiritualidade, aprende-se daqueles que abraçaram e que amam isso, e não de quem está com raiva e que odeia isso.

Faço estas observações, não com o objetivo de repreender ou iniciar debate ou conflito, mas simplesmente para incentivá-los a abrir os olhos e os corações para novas perspectivas, procurar o que é bom, apreciar a verdade, a beleza e a bondade. Elas podem ser encontradas, e vale a pena o esforço para encontrá-las. 

*******************

NOTA:

[1] Naturalmente, a liderança das Testemunhas de Jeová afirmará que todos os seus ensinos e procedimentos organizacionais são “baseados na Bíblia”, (sendo, portanto, a expressão da verdade) e refletem exatamente a situação da congregação cristã primitiva.  Porém, há diversos ensinos e métodos desta organização que, apesar de não terem a menor comprovação bíblica, nem terem semelhança alguma com a situação do primitivo cristianismo, são defendidos fervorosamente (Exemplos: Os ensinos referentes ao ano de 1914, a existência de um “Corpo Governante” e uma estrutura organizacional hierárquica, a pregação de porta em porta como obrigação, procedimentos de expulsão, o conceito de ‘revelação progressiva da verdade’, etc.). O que está por trás do esforço de defender estes ensinos e procedimentos não é a preocupação com a verdade bíblica, e sim interesses institucionais.

Imagem: O Grito – Edvard Munch (1893)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *