Transfusões de sangue e JW (o relato de uma médica)

“Cegados Pela Luz”

Quando uma Testemunha de Jeová proíbe uma transfusão de sangue, só posso ficar revoltada contra os mistérios da fé.

No Novo Testamento (Atos 15:28,29) há um trecho que diz: “Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós não impor a vocês nada além das seguintes exigências necessárias: Abster-se de comida sacrificada aos ídolos, do sangue, da carne de animais estrangulados e da imoralidade sexual. Vocês farão bem em evitar essas coisas.”

Com base neste texto, as Testemunhas de Jeová não aceitam transfusões de sangue. Devo admitir que esta proibição sempre me pareceu um tanto absurda. Em comparação com “não matarás” e “honrarás teu pai e tua mãe”, a ideia de que “não aceitarás transfusão de sangue e derivados sanguíneos” parece não ter base moral. Porém, até uma noite recente, eu nunca tinha precisado encarar frente a frente as crenças das Testemunhas de Jeová além de dizer “não, obrigada” a um pregador ocasional que se aproximasse de mim na rua.

Eu nunca tinha realmente falado com a Sra. Peyton. Na noite de nosso único encontro eu era a médica responsável pela triagem dos pacientes que estavam sendo transferidos para a unidade de terapia coronariana. Ela estava confusa e semi-inconsciente e seu coração estava morrendo, fibra por fibra, por falta de sangue. As chamadas que me pediram para avaliar a Sra. Peyton começavam todas com o mesmo pedido de desculpas: “Sinto muito por lhe passar esse problema, mas…” A história que se seguiu foi uma trágica incompatibilidade entre fé e doença.

A Sra. Peyton tinha apenas 42 anos quando veio ao seu médico, depois de perceber uma pequena quantidade de sangue em sua urina. Esta é uma queixa muito comum de mulheres que são propensas a infecções na bexiga, mas o sangramento da Sra. Peyton não melhorou com antibióticos – ele piorou. Ela foi encaminhada a um urologista para uma avaliação adicional. Uma sonda de fibra óptica introduzida pela uretra até a bexiga revelou que a Sra. Peyton tinha um tumor na bexiga.

Como é usual em casos assim, o tumor não tinha invadido a parede da bexiga, e os cirurgiões puderam removê-lo por meio da sonda. Porém, estes tumores tendem a reincidir, e disseram à Sra. Peyton que ela poderia esperar se submeter a procedimentos periódicos para removê-los, mas no padrão comum das coisas essa doença não deveria ser fatal. E assim, por vários anos ela teve episódios repetidos de sangue na urina, seguidos por procedimentos urológicos para eliminar a fonte do sangramento. Suponho que ela acabou aceitando uma urina tingida como modo de vida. Sua medula óssea, com um pouco de suplementação de ferro, podia repor as células que eram perdidas, uma por uma. Mas desta última vez ela tinha demorado muito para vir ao médico. Ela estava sangrando mais do que o habitual e estava severamente anêmica e, como resultado, constantemente fraca e cansada.

Na idade da Sra. Peyton, uma mulher normalmente tem um hematócrito – a taxa de células vermelhas do sangue – de aproximadamente 40, mas o dela estava em 17. O primeiro médico, que a havia recebido no hospital, disse a ela que seria preciso uma transfusão até que o sangramento pudesse ser interrompido. A Sra. Peyton, firme em sua fé, recusou-se. Ela queria todos os tratamentos médicos disponíveis – quimioterapia, cirurgia, reanimação cardiopulmonar – tudo, exceto transfusão.

Disseram-me que ela era uma mulher inteligente, que compreendeu totalmente as conseqüências de sua decisão. Mas seu julgamento, segundo me pareceu, baseou-se numa discriminação imposta pela sua fé.

Durante a semana seguinte as coisas foram de mal a pior. Nada que os urologistas tentaram conseguiu estancar seu sangramento, e sua contagem sanguínea caiu mais e mais, até que ela não era mais um candidato razoável à cirurgia. Era simplesmente muito arriscado levar uma pessoa com um hematócrito abaixo de 20 à sala de cirurgia. “Você provavelmente vai morrer sem a transfusão”, seus médicos lembravam a ela diariamente. Ela estava irredutível.

Gradualmente, conforme sua contagem sangüínea diminuiu ainda mais, a Sra. Peyton passou a ter falta de ar. Os órgãos do corpo precisam de certa quantidade de oxigênio para funcionar. Esse oxigênio é transportado dos pulmões para os órgãos periféricos pelas moléculas de hemoglobina nos glóbulos vermelhos. Quando respiramos o ar ambiente, as moléculas de hemoglobina não são 100 por cento saturadas com oxigênio. A absorção de oxigênio pode ser melhorada por meio da administração de um vapor enriquecido com oxigênio ao paciente. A equipe médica forneceu à Sra. Peyton oxigênio suplementar por meio de uma máscara, até que ela estava respirando praticamente oxigênio puro. As poucas células vermelhas que ela tinha estavam completamente carregadas – mas simplesmente não restavam veículos suficientes para transportar o combustível de que seu corpo precisava.

Sua ânsia por ar aumentou. Sua freqüência respiratória se elevou. Ela tornou-se mais e mais grogue, e por fim – inevitavelmente – as fibras musculares de seu coração manifestaram sua necessidade desesperada de oxigênio. Ela passou a sentir uma severa e esmagadora dor no peito.

Um ataque cardíaco: Seu coração perfeitamente saudável estava morrendo porque o sangue dela estava fraco demais para sustentá-lo. E assim, com as desculpas, fui chamada para administrar esta situação insustentável. Por lei ela teve de ser transferida para unidade de terapia coronariana, já que ela tinha expressado seu desejo de ser reanimada. E, também por lei, estávamos impedidos de realizar a única intervenção que iria salvá-la: uma transfusão.

Quando entrei na sala, carregando o meu monitor cardíaco portátil, fiquei amedrontada com a cena diante de mim. No centro das atenções de todos estava uma mulher grande, com uma máscara de oxigênio, arquejando por ar, respirando mais depressa do que parecia humanamente possível. À cabeceira da cama estavam três amigas, membros associados da igreja, conduzindo-a em seu momento de glória terrível. Ao lado dela estavam vários médicos – um monitorando sua pressão arterial declinante, outro coletando um pouco de sangue de uma artéria. O líquido que enchia lentamente a seringa tinha a consistência de ponche havaiano; testes posteriores na amostra revelaram uma contagem de glóbulos vermelhos de apenas 9. Pendurado na grade da cama estava um saco de urina vermelha da cor de cereja. A mulher estava morrendo. Os traçados de seu cardiograma mostravam os profundos sulcos que denunciavam um coração agonizante. Em questão de horas o dano que eles representavam se tornaria irreversível.

Trazer esta mulher até uma unidade de tratamento coronariano não fazia o menor sentido do ponto de vista médico; e deixar de fornecer o sangue ao seu coração agonizante parecia contrário ao meu juramento de Hipócrates. Incerta quanto ao que fazer, liguei para o administrador do hospital. Uma vez que a Sra. Peyton não tinha filhos menores que dependiam dela, disseram-me que ela tinha o direito legal de recusar transfusão. Voltei para o quarto dela para falar com os outros membros da igreja, para me certificar de que eles entendiam as conseqüências da decisão de sua amiga. Eu estava convencida de que não compreendiam, e fui interceptada à porta por uma mulher usando um vestido de seda. “Isso deve parecer loucura para vocês”, disse ela, e com razão.

“Sua amiga vai morrer”, eu disse a ela. Minhas palavras foram diretas. “Vou levá-la até a ala coronariana, porque sou obrigada por lei, mas não haverá nada efetivo que eu possa fazer. Vamos dar oxigênio a ela, mas o sangue dela já está carregando todo o oxigênio que ele pode carregar. Vamos dar a ela medicamentos para manter a pressão arterial estável. Quando eles não funcionarem mais, vamos pressionar o peito dela para forçar o sangue a sair do tórax para os membros. Vamos dar-lhe choques de corrente elétrica para estimular o seu sistema circulatório. Mas, sem glóbulos vermelhos para levar nutrientes ao coração dela, nada que possamos fazer irá salvá-la.”

Lembrei-me de uma velha expressão que aprendi na faculdade de medicina: Não se pode dar choques em carne de hambúrguer. “Vocês estão nos pedindo para reanimá-la com as mãos atadas nas costas”, eu continuei dizendo. “Pode demorar horas, mas sem uma transfusão ela vai morrer nesta noite”. Nesse momento, as outras duas amigas da Sra. Peyton estavam à porta, e escutaram pacientemente, estremecendo enquanto eu descrevia alguns dos aspectos mais macabros da noite que estava por vir.

Elas entenderam claramente o meu recado. Mas esta não era uma questão racional. “Sinto muito, isto vai trazer muitos problemas para você”, disse uma delas. “Pode não fazer qualquer sentido para você. Mas ela entende que pode morrer.”

Dois mundos colidiram. Enquanto eu encaixava o monitor cardíaco na Sra. Peyton, preparando-a para sua viagem à  unidade de terapia intensiva, um turbilhão de emoções me invadiram. Primeiro, a frustração por não ter conseguido falar com ela enquanto estava consciente. Segundo, a perplexidade, por estas mulheres obviamente inteligentes estarem aceitando desse jeito a morte desnecessária de uma amiga.

Conforme fomos rolando sua cama para o corredor, batendo em pias e paredes e ficando presos em portas estreitas, meu humor se transformou em raiva. Sem uma transfusão, a chance de sobrevivência da Sra. Peyton era inquestionavelmente zero. No entanto, lá estava eu, ​​com toda a seriedade levando-a para a ala coronariana. Finalmente, quando eu rolei o corpo da Sra. Peyton através da porta do elevador, juntou-se a mim outro companheiro gélido, que me acompanha em todos os transportes desse tipo: o medo – o medo de que a Sra. Peyton poderia entrar em parada cardíaca a qualquer momento, de que as portas iriam se fechar com ela ainda viva no quinto andar e abrir com ela morta um andar abaixo.

Uma vez na ala coronariana, a Sra. Peyton foi tratada com a mesma eficiência que as enfermeiras mostram para com todos os pacientes, vivos ou mortos. Ela foi transferida para um leito (e o processo foi penoso) e conectada a um monitor cardíaco. Um grande cateter conectado a um transdutor foi introduzido dentro da artéria em sua virilha, para servir como uma sonda constante de sua pressão arterial. Ela não emitiu um som; eu desisti de minha esperança de que ela iria acordar e mudar de ideia.

A charada continuou. Um eletrocardiograma total mostrou que seu músculo cardíaco estava morrendo ainda mais depressa agora. Nós introduzimos um tubo em sua garganta, dentro de seus pulmões, numa tentativa vã de melhorar a oferta de oxigênio. Mudamos para uma medicação mais forte para melhorar a pressão. Quinze minutos depois, seu coração estava tão fraco que já não conseguia bombear eficazmente, e a pressão arterial caiu nitidamente. Ela estava em parada cardíaca. Começamos a ressuscitação cardiopulmonar, empurrando ritmicamente fluidos através de suas veias, em vão.

O médico responsável vociferava ordens. Eu coloquei uma linha intravenosa grande em uma veia profunda na coxa da Sra. Peyton e então substituí a enfermeira que estivera fazendo compressão do tórax. Um mil, dois mil, três mil… minha mente contava hipnoticamente o intervalo, conforme eu pressionava ritmicamente o tórax da Sra. Peyton. Eu podia ouvir, ao fundo, os ruídos do esforço de reanimação. Uma variedade de estimulantes cardíacos foram introduzidos nas veias da Sra. Peyton e seu coração foi estimulado com choques.

Epinefrina, Atropina. Choque de 300 joules. Temos um ritmo. Mantenha as compressões. Ela tem pulso. Ela está diminuindo novamente. Reiniciar compressões. Epinefrina de novo. Atropina. Choque de 360. Continue as compressões… Fiquei espantada com a Sra. Peyton ainda jazer no centro dessa atividade desesperada.

Uma hora depois, o chão estava coberto de traçados de eletrocardiograma, a cama com pontas de seringa e sangue. Finalmente, o médico responsável decidiu já era o bastante. “Parem as compressões. Estamos dizendo. Obrigado a todos, por terem vindo.” É a maneira oficial de encerrar todas as reanimações fracassadas. Eu estava grata de que esta tinha terminado rapidamente. Quando saí da sala para encontrar as outras Testemunhas, algumas células sobreviventes no coração da Sra. Peyton enviavam seus últimos sinais elétricos ao monitor.

Eu sempre me sinto vazia quando notifico uma morte – mesmo uma que é inevitável. As amigas da Sra. Peyton foram gentis e facilitaram isso. A mulher de vestido de seda me agradeceu, repetindo outra vez, “Isso deve parecer loucura.” Virei-me para deixá-las, e então parei.

“Não, eu não acho que ela ter recusado sangue foi uma loucura total”, comecei respondendo. Durante aquela última hora eu havia pensado muito na questão. Os esforços de reanimação envolvem intermináveis, repetitivas, pequenas ações mecânicas – pressionando 72 vezes por minuto um peito, lançando uma rajada de ar nos pulmões a cada quatro segundos – e nas profundezas de uma longa ressuscitação existe muito tempo para a meditação. Eu posso entender perfeitamente que há coisas na vida pelas quais pode valer a pena morrer. Pessoas arriscaram suas vidas por sua religião, por sua família, pela emoção de ganhar um grande prêmio, pela honra de ser o primeiro a chegar ao Pólo Sul.

O meu problema, expliquei às amigas da Sra. Peyton, é que se você tiver chegado a aceitar a morte como conseqüência de sua crença, por que não deixar que ela ocorra naturalmente? Por que gastar os últimos momentos da vida com pessoas enfiando tubos pela sua garganta e batendo os punhos em suas costelas? Nós sabíamos que ela não poderia viver sem a transfusão, então por que travar esta luta macabra e sem sentido?

Continuei o meu discurso, acompanhado pelos bips de monitores e os sons dos ventiladores. Quando fiz uma pausa para tomar ar, notei a mesma expressão resignada nos rostos das mulheres. “Isso não faz sentido para você, eu sei”, repetiu a mulher de vestido de seda. “Sabe, nós acreditamos que…”, começou ela. Eu vi a Sentinela aparecendo na bolsa dela.

De repente, não pude mais esperar para sair; o abismo entre o mundo dela e o meu se escancarou. “Lamento, a Sra. Peyton morreu”, eu disse. “Eu gostaria que houvesse algo que pudéssemos ter feito.” E com isso eu me retirei para dentro da ala coronariana.

( Vital Signs – Discover Magazine, agosto de 1988)

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