A Ressurreição dos Mortos e a Esperança em Paulo

“Combati o bom combate, acabei a carreira, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está guardada, a qual o Senhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também a todos os que amarem a sua vinda.” – 2 Timóteo 4:7,8

I. A esperança como elemento constitutivo da teologia de Paulo

A fé cristã que não seja essencialmente esperança, é para Paulo inconcebível. O Deus, no qual ele confia, é o Deus que ressuscita os mortos (2 Cor. 1:9). Se os tessalonicenses são exortados no sentido de não se entristecerem “como os demais que não têm esperança”, então é óbvio que a esperança representa algo distintivo dos cristãos. Ela pertence, juntamente com a fé e o amor, à armadura espiritual que protege os crentes contra os ataques do maligno (1 Tes. 4:13; 5:8). Ao deparar em Corinto com uma corrente cristã que refutava a ressurreição dos mortos, Paulo reage fortemente, pois vê na divisa dos negadores da ressurreição a aniquilação total da fé. “Porque, se os mortos não ressuscitam, também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé, e ainda permaneceis nos vossos pecados” (1 Cor. 15:16, 17). Em todas as epístolas de Paulo é extremamente grande o número de passagens alusivas à esperança pela perfeição escatológica, de modo que a dimensão do futuro, aberta pela fé cristã, não pode ser eliminada da teologia paulina sem deturpação e sem mutilação do evangelho, pregado por esse apóstolo.

A forma e o conteúdo da esperança de Paulo permanecem, de uma maneira geral, dentro dos moldes da escatologia tradicional do cristianismo primitivo, influenciado fortemente pela tradição apocalíptica do judaísmo. O apóstolo espera juntamente com o grupo predominante dos seus irmãos de fé que o Cristo terrestre voltará glorioso nas nuvens do céu, pondo termo a este mundo, vencendo os poderes malignos, incluindo a morte, e promovendo tanto o juízo final como também a ressurreição dos mortos. Paulo deseja que as suas comunidades, nesse dia, sejam encontradas sem mácula, redimidas e santificadas por Jesus Cristo, que salva da ira vindoura. O dia do Senhor rompe em catástrofe cósmica, eliminando o que obstaculiza a vitória de Deus, para que, finalmente, Deus seja tudo em todos (conf. 1 Cor. 15:24-28).

Essa esperança, aliás, é atual para Paulo como esperança imediata. Os séculos já estão em fases de consumação. “Eis que vos digo um mistério: Nem todos dormiremos, mas transformados seremos todos”, assim lemos em 1 Cor. 15:51. E em Rom. 13:11 o apóstolo diz “… porque a nossa salvação está agora mais perto do que quando no princípio cremos.” O dia do Senhor não é dia de um futuro distante, mas irá raiar em breve, em tempos da vida do apóstolo, e trará salvação e libertação aos que ora sofrem e gemem sob a vaidade do mundo e o cativeiro da corrupção (conf. Rom. 8:20 em diante). Paulo confessa: “Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não são para comparar com a glória por vir a ser revelada em nós” (Rom. 8:18). E: ‘”Perto está o Senhor” (Fil. 4:4).

A esperança de Paulo poderá ser também a nossa? Essa pergunta nos constrange. No que se refere à data da vinda de Cristo, Paulo evidentemente se enganou. E podemos realmente acompanhar uma tal concepção maciça da “parusia” de Cristo, como Paulo a expõe em 1 Tes. 4:13 em diante? Cristo voltará nas nuvens do céu, e enquanto isso os cristãos serão arrebatados aos ares, ao encontro do seu Senhor. Esses conceitos representam para o homem da época atual um mundo estranho. Portanto, qual é a atualidade daquela passagem do Credo Apostólico que reza: “… de onde virá para julgar os vivos e os mortos”? A superpopulação do mundo, o incremento do desnível entre as nações ricas e pobres do nosso globo, a poluição da atmosfera e coisas semelhantes representam perspectivas do futuro da humanidade que preocupam o homem moderno de maneira muito mais elementar e imediata do que o segundo advento de Cristo.

Somos defrontados aqui com uma peculiaridade de toda tradição: Sentenças e formulações dogmáticas podem ser transmitidas de geração a geração, mas o conteúdo, relativo a essas sentenças, opõe-se às leis da tradição e jamais passa automaticamente de pai para filho. Fórmulas dogmáticas, por mais que a cristandade nelas insista, tornam-se vazias, se não forem enchidas com novo conteúdo. Em face do indiferentismo religioso e da perda de verdadeira esperança, tão difundidos em nosso meio, o nosso programa não poderá consistir numa reativação artificial da esperança do cristianismo primitivo. Tal empreendimento teria algo forçado e anacrônico e seria condenado ao fracasso. Uma obediência formal à Bíblia e aos dogmas tradicionais não estará em condição de transformar e de renovar a vida humana. Pelo contrário, ela promove uma esquizofrenia que não mais consegue integrar a vida religiosa e a vida profana, vivendo o homem, dessa forma, em duas esferas distintas sem inter-relação alguma. Creio que devemos admitir, sem ilusões, que a esperança bíblica deixou de ser realidade determinante até mesmo para a grande maioria dos cristãos e que ela foi substituída por outras esperanças que frequentemente se revestem de formas ideológicas ou de formas sectárias e sincretistas.

A relativação da esperança genuinamente bíblica pode ser observada também no que concerne à fé na ressurreição dos mortos. Uma atitude semelhante à de Paulo, dizendo: “tenho o desejo de partir e estar com Cristo…” (Fil. 1:23), é rara hoje em dia, pois que sabemos efetivamente da ressurreição dos mortos? Ela não será apenas uma ideia, criada no beco sem saída da nossa dolorosa limitação pela morte? São frequentes as vozes hoje que assim argumentam: A ideia da ressurreição dos mortos é um produto da frustração, é a projeção dos desejos humanos para um além utópico. E a cristandade se encontra muitas vezes indefesa contra tais críticas do ceticismo, porque ela deixou de raciocinar no porquê da sua fé. Com efeito, demonstrações empíricas para uma vida transcendente, repleta de beatitude indizível, não existem, a não ser que se queira recorrer às experiências suspeitosas dos espíritas. Por que cremos então na ressurreição dos mortos? Como reação a um suposto utopismo cristão não faltam os que intencionariam realizar o reino de Deus na imanência. Pode-se falar até de uma escatologia secular, cujas pretensões vão no sentido de cumprir as esperanças, outrora dirigidas a Deus, no âmbito do nosso mundo e na história, na qual vivemos.

Somos, porventura, obrigados a falar numa bancarrota da esperança cristã? O Novo Testamento, e em especial Paulo, tem ainda algo substancial a nos dizer? Eu afirmei ser difícil para nós acompanhar Paulo em todos os seus dizeres, e essa afirmação não posso revogar. Todavia, se o Novo Testamento provocar em muitos dos nossos contemporâneos a impressão de ser um livro antiquado, a culpa, não raro, é nossa. Frente a uma crítica, sedenta por respostas válidas, é impossível apegar-se à simples letra da Sagrada Escritura e limitar-se a recapitular verbalmente o texto bíblico, na ânsia e na preocupação de salvaguardar a qualidade divina e infalível desse livro. Não basta que se dê ênfase ao puro fato que Paulo acreditava na ressurreição dos mortos, se isso acontecer em detrimento da pergunta, por que para Paulo a ressurreição perfaz elemento constitutivo do credo cristão. À pergunta pela motivação da esperança, na Igreja, muitas vezes não foi dada a devida atenção, ela foi relegada a segundo plano e foi esquecido que não é na simples ideia da ressurreição ou de uma vida pós-mortal que reside o específico da fé cristã. Grupos do judaísmo antigo igualmente esperavam pela ressurreição, círculos do mundo grego defendiam a tese da imortalidade da alma, e a mitologia dos povos primitivos nos mostra que a crença numa continuação da vida terrestre num outro mundo, seja qual for a sua natureza, não constitui singularidade cristã. Consequentemente, não podemos consentir que os conceitos escatológicos de Paulo sejam aquilo em que a essência da fé cristã se expresse. Se em alguma parte, então é na fundamentação da esperança que devemos procurar o específico e a verdadeira contribuição cristã. O resto talvez seja periférico.

Indagamos, portanto, por que a esperança ocupa um papel deveras central na teologia de Paulo? Como ele justifica esperança cristã e em que ela consiste?

II. A motivação da esperança em Paulo

O 15.° capítulo da primeira carta aos Coríntios é um dos trechos chaves no que diz respeito às questões que foram levantadas. Antecipando o resultado, constato: A esperança cristã é para Paulo consequência direta do evento de Cristo, isto é, de cruz e ressurreição em sua unidade inseparável. Aliás, já a essa altura se faz necessário precaver-se contra um equívoco. Não! É ilícito declarar a ressurreição de Cristo como demonstração para a possibilidade geral de uma ressurreição dos mortos, pois isso significaria querer demonstrar uma incógnita através de outra. Também a ressurreição de Cristo não pode ser demonstrada cientificamente, ela foge a uma análise objetiva, e ela é, conforme o credo da cristandade, objeto de fé e não da ciência. Se tomássemos a ressurreição de Cristo como comprovante da possibilidade e da existência de ressurreição, iríamos degradar o evento pascal a uma simples sensação científica e a uma curiosidade espetacular, incorrendo no perigo de destituí-lo do seu caráter salvífico que ele, segundo o Novo Testamento, possui. Conforme Paulo, a esperança cristã é consequência do evento salvífico de Cristo em sua totalidade, portanto também da sua morte na cruz. Pretendo explicar isso mais detalhadamente.

Em Corinto alguns cristãos tiveram a ousadia de afirmar: Não há ressurreição dos mortos. Frente a essa heresia Paulo insiste no evangelho, como ele o transmitiu à comunidade; “Antes de tudo vos entreguei o que também recebi; que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado, e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. E apareceu a Cefas, e, depois, aos doze” (1 Cor. 15:3-5). Segue a enumeração de mais outras testemunhas, entre as quais, finalmente, tem lugar o próprio apóstolo Paulo. Depreendemos daí que as aparições do crucificado geraram nas primeiras testemunhas a fé em Jesus Cristo. Contudo, essas aparições a um número reduzido de pessoas não podem ser consideradas como sendo demonstrações objetivas da ressurreição de Cristo. Certamente elas são de importância decisiva para a origem da Igreja e, não obstante, a Igreja não vive exclusivamente daquilo que outros disseram e afirmaram. A Igreja primitiva e toda a Igreja cristã, em todos os tempos, viveu da presença do Cristo ressurreto. A ressurreição de Cristo não pode ser demonstrada, mas ela se evidencia, ela pode ser experimentada. Também Paulo assim entendeu, e por isso dificilmente devemos ver nesses versículos de 1 Cor. 15 a tentativa de demonstrar a ressurreição de Cristo.

Os verdadeiros objetivos das explanações de Paulo descubro nos versículos 8-10: “… afinal, depois de todos, foi visto também por mim, como por um nascido fora de tempo” (isto é: como aborto). “Porque eu sou o menor dos apóstolos, que mesmo não sou digno de ser chamado apóstolo, pois persegui a igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o que sou; e a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã, antes trabalhei muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus comigo”. Paulo introduz essa espécie de confissão com o propósito de expor o significado do evento de Cristo para ele. O apóstolo é comparável a um aborto (trata-se nesse termo provavelmente de uma injúria por parte de adversários), porque ele perseguira a comunidade de Deus, de modo que o título “apóstolo”, a rigor, não lhe convém. Paulo consente que a sua pessoa seja condenada, pois, à maneira de um feto nascido prematuramente, ele não dispõe de condições para viver como cristão e apóstolo, e isso por causa do seu passado. Mas a graça de Deus deu ao aborto vida, de formas que lhe foi possível efetuar a sua grandiosa obra missionária — manifestação impressionante da realidade da graça que age através de alguém que por si não possui nem dignidade nem capacidade para tal.

Quer dizer, Paulo interpretou a aparição do Jesus crucificado perante ele mesmo como oferta da graça que transforma aquele que é morto pelos seus pecados, em pessoa vivendo para Deus e por Deus. Em outros termos, isso significa que Paulo interpretou a sua conversão como uma espécie de ressurreição dos mortos, que tem o seu fundamento e a sua razão, a sua causa eficiente e a sua motivação unicamente na graça imerecida, concedida milagrosamente por Deus. Cruz e ressurreição de Cristo são o acontecimento, no qual e mediante o qual a graça de Deus se manifesta. Essa graça — ou, em vez de graça poderíamos dizer também amor de Deus — justifica e possibilita a esperança cristã, pois o amor de Deus tem por objetivo e alvo a vida do homem pecador. Por isso aos cristãos é dado o futuro, e a fé recorre também diante da morte à graça criadora de Deus, não podendo jamais admitir que a morte seja mais poderosa do que o amor de Deus, revelado em Cristo. Onde na graça se crê, ali não pode existir a não ser esperança de vida eterna.

Essa motivação da esperança cristã encontramos em todas as cartas de Paulo. Conhecidas são as suas palavras do capítulo 8 da carta aos romanos que vem confirmar o que foi dito: “Porque eu estou bem certo de que nem morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem cousas do presente, nem do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor” (Rom. 8:38, 39). Não existem garantias para a ressurreição dos mortos, exceto o amor de Deus que não permite que os que lhe pertencem, permaneçam na morte.

Aliás, diga-se de passagem que Paulo não conhece algo semelhante à ideia da imortalidade da alma, apesar de que o pensamento era comum no mundo grego, no qual Paulo fundou as suas comunidades. Esse pensamento encontrou ingresso no cristianismo somente numa época posterior. Para Paulo, no entanto, a ideia de uma parte imortal no homem é até contrária à sua teologia, pois assim como não existe predisposição intra-humana para a justificação, assim também não existe para a imortalidade. Também a imortalidade é algo que Deus deve conceder por sua graça (conf. 1 Cor. 15:53 em diante), o homem não a possui por natureza. Isso faz com que a morte seja entendida por Paulo como morte total, não parcial, e, se há esperança, então unicamente é porque o Deus Criador entra novamente em ação. Ressurreição é nova criação, é recriação. O amor do Deus Criador vence a morte, e a graça de Deus é a nossa única esperança.

Que a minha interpretação é correta, creio poder evidenciar também a partir de uma outra observação. Eu tinha dito que a forma e o conteúdo da esperança de Paulo trazem forte cunho da tradição apocalíptica. No entanto, é extremamente difícil sintetizar os conceitos escatológicos do apóstolo e localizá-los dentro de um esquema ou sistema lógico e coerente. Existem irregularidades, tensões e contradições no que se refere ao material, com a ajuda do qual Paulo descreve a esperança. Um drama escatológico não é construído, e a curiosidade que se interessa por detalhes dos acontecimentos vindouros, não recebe respostas satisfatórias. Paulo, por exemplo, não refletiu no problema, se o juízo final terá lugar antes ou depois da ressurreição, para ele o estado intermediário do homem entre a sua morte individual e a ressurreição coletiva no fim dos tempos não constitui tema de reflexão, ele guarda silêncio sobre o problema, como deve ser imaginada a continuidade entre o velho homem antes da ressurreição e o novo homem após a ressurreição, etc. Faltam por completo especulações a respeito do estado futuro dos ressuscitados, e também a natureza do corpo espiritual que é postulado por ele, não está sendo explicada.

Uma outra constatação vem ao encontro dessas observações. Pertence aos fenômenos mais notáveis da esperança individual de Paulo que a não-realização da vinda de Cristo não conduziu a um abalo de sua fé. Imbuído de esperança ardente pela volta de Cristo, Paulo não desespera frente à possibilidade de morrer antes da “parusia”. A demora da vinda de Cristo praticamente não deixou vestígios nas suas cartas posteriores. Sabemos que houve círculos cristãos, para os quais o não-cumprimento da promessa da “parusia” constituiu grave problema (conf. 2 Pedro 3:4). Contudo, algo semelhante não pode ser registrado em Paulo. Isso certamente devemos ao fato de que Paulo não dogmatiza determinados conceitos escatológicos. Já na primeira epístola aos Tessalonicenses ele considera a pergunta pela data da vinda de Cristo uma questão de segunda ordem. Basta saber que Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante Jesus Cristo, de modo que não importa, se no momento da “parusia” já pertencemos aos mortos ou se ainda vivemos (conf. 1 Tess. 5:9, 10). A motivação da esperança cristã nessa passagem não diverge daquela que encontramos em 1 Cor. e Rom. Convictos e cientes do amor de Deus os cristãos podem ficar despreocupados no que diz respeito ao modo do cumprimento de sua esperança. Isso me parece indicar que, segundo Paulo, os conceitos escatológicos não podem reivindicar importância decisiva. Eles perdem a relevância, desde que se aceite a graça, oferecida por Deus em Cristo.

Paulo pode valer-se de uma larga escala de conceitos e de ideias ao descrever a esperança cristã, e esses conceitos são por vezes incompatíveis ou, no mínimo, incongruentes. Essa afirmação poderia ser facilmente demonstrada através de uma comparação de 1 Cor. 15 com 2 Cor. 5:1-10. Também isso nos mostra que as modalidades da vida futura são, para Paulo, secundárias. O que acontecerá conosco após a morte, deixamos ao cuidado e à providência de Deus. Importante é apenas que através de Jesus Cristo recebemos o penhor da graça divina, abrindo para nós novos horizontes que nem a morte é capaz de limitar. Sobre a vida futura Paulo não soube mais do que nós hoje sabemos, mas ele soube da realidade do amor divino, e foi ela que o fez esperar, crer e confiar. Quer me parecer que devemos mostrar menos intransigência no que se refere à compreensão das passagens bíblicas, alusivas às coisas que hão de vir. Nós criamos barreiras intelectuais demais através de uma soma de “credenda” que impedem ao homem crítico o acesso ao evangelho. Também os cristãos não estão em posse de informações autênticas sobre o além. Se eles possuem algo que os distingue dos demais, então poderá ser apenas isso: a fé no poder de Deus que destrói a onipotência da morte.

A esperança de Paulo está depositada radicalmente no Deus Criador que em Cristo revelou ser o proporcionador da nossa vida. Salvação significa que o homem pecador é transformado novamente em criatura e filho de Deus. Salvação significa restauração da soberania de Deus Pai e Criador. E a criatura não pode tomar a sua vida sempre de novo das mãos do seu Senhor, também na agonia, também na hora da morte. Por isso a esperança é a atitude condizente ao fato de sermos criaturas. Quem deriva a sua existência de Deus, esse não pode admitir que o seu Criador o entregue à morte. O Deus Criador e o Deus Redentor são o mesmo.

Antes de ventilarmos mais uma vez a pergunta pela relevância atual dessa esperança, será necessário frisar ainda um aspecto, sem o qual uma apresentação do fenômeno esperança em Paulo permaneceria incompleta.

III. A relação dialética entre presença e futuridade da salvação segundo Paulo

O amor do Deus Criador, revelado em Jesus Cristo, não permite a resignação nem mesmo diante da morte. Essa foi a tese defendida anteriormente. Entretanto, é mister chamar a atenção ao fato de que esse amor divino não vence somente a morte, ele vence também o pecado e toda sorte de injustiça e debilidade do mundo. O poder de Deus não é somente a nossa esperança, mas é da mesma forma a realidade que transforma já no presente momento a nossa vida. Nessa convicção, Paulo e todos os autores do Novo Testamento se distinguem das correntes apocalípticas do seu tempo. Deus através de Jesus Cristo age poderosamente neste mundo, curando-o, renovando-o, dando-lhe novidade de vida. Isso significa que Deus não entrará em ação apenas na hora da nossa morte, mas a qualquer momento. A vida eterna tem o seu início no presente ou talvez nunca. Por isso é ilícito degradar o apóstolo Paulo a um simples profeta de coisas futuras. A sua esperança é tão forte, porque ele sabe da efetividade do amor de Deus nos altos e baixos e na profanidade da sua vida diária. “Se alguém está em Cristo, é nova criatura: as cousas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (II Cor. 5, 17). A salvação futura existe, porque existe salvação presente.

Consequentemente os cristãos são chamados a viverem em novidade de vida. Eles são justificados e deverão viver por isso a vida de novas criaturas numa nova conduta que se manifesta no andar na luz e no amor. Em Cristo o reino de Deus vem à terra, em Cristo as diferenças das classes sociais, os antagonismos entre as raças, as nações e os sexos são nivelados, em Cristo a liberdade está ao alcance de todos. Sob este prisma a esperança na ressurreição dos mortos não significa consolo barato, não pode ser um entorpecente que faz com que os homens esqueçam a sua miséria atual. É uma esperança que está em pleno processo de cumprimento. Onde existem cristãos verdadeiros, ali o reino de Deus não se realizará em futuro longínquo, ali ele está se realizando.

É sumamente importante observar essa dialética entre presença e futuridade da salvação conforme Paulo. A perfeição ainda está por vir. Todavia, em cada ato de autêntico amor, na liberdade que se desfaz dos grilhões das múltiplas formas de escravidão, vislumbra-se uma parte do mundo novo de Deus. Redimidos já agora e ainda aguardando a perfeição, vivendo em novidade de vida e, não obstante, sendo ameaçados pela pecaminosidade, cedendo espaço ao reino de Deus em nosso meio e pedindo ao mesmo tempo “venha o teu reino” — essa é a atitude do cristão no mundo. Dessa forma a vitória sobre a morte poderá ser apenas o ponto culminante de uma vitória total de Deus sobre todos os poderes maléficos.

Se os cristãos ignorassem a dimensão da presença da salvação, eles reverteriam num grupo esotérico de apocalípticos, incapazes de qualquer engajamento neste mundo. Eles iriam ludibriar os homens através da visão de um futuro paraíso, sancionando indiretamente as precariedades do mundo atual. Deus seria exilado para a transcendência, sem que ele tivesse a possibilidade de interferir nos negócios mundanos. Por outro lado, se os cristãos eliminassem a dimensão da esperança peculiar à fé cristã, eles limitariam a ação de Deus indevidamente ao mundo perceptível e visível. O resultado seria um cristianismo que entende a sua mensagem como receita para uma potenciação e intensificação da vida humana, permitindo, no entanto, que essa vida continue sendo limitada pela morte e pela crua realidade de um mundo perverso. Um cristianismo assim, em última análise, não pode impedir o desespero, a frustração e antes fomentará o egoísmo que destrói o amor. O exemplo clássico de uma comunidade que elimina a esperança temos na comunidade de Corinto, contra a qual Paulo toma posição na sua primeira carta, dirigida a esses cristãos.

Mas também um terceiro caminho não é visível. Refiro-me à substituição da esperança escatológica por uma esperança puramente terrena. O tempo não permite que eu entre em pormenores desse assunto. Mas quer me parecer que todos os programas ideológicos permanecem utópicos e irreais, enquanto Deus não transformar os corações dos homens. Isso não significa que o cristão seria impedido de colaborar no saneamento do nosso mundo, ou que lhe seria proibido participar ativamente na realização de programas progressistas. Pelo contrário, o amor o obriga a isso. Mas o cristão sabe que o reino de Deus não virá sem a renovação do homem, sem aquela recriação por parte de Deus e sem aquela esperança radical que não se contenta com metas parciais, mas que anseia por um novo mundo. Todas as outras alternativas não produzem senão novas formas de repressão e opressão.

Volto a perguntar: A esperança cristã, à maneira da de Paulo, será possível nos nossos dias, nos quais a existência de Deus também é ardentemente questionada? Segundo Paulo a graça de Deus e o amor divino nos concedem futuro. Podemos acompanhar essa fé, se até a realidade de Deus se tornou problemática? Mais do que nunca devemos justificar o que entendemos sob o vocábulo “Deus”. Creio, porém, que nessa pergunta somos confrontados com a questão fundamental da nossa existência humana e ninguém consegue esquivar-se de solucioná-la de maneira individual e particular. Qual é a última realidade? A morte, a imperfeição deste mundo, o absurdo? E quem é o homem? O produto de um acaso, nada mais do que uma composição de matéria que funciona à base de leis físicas e químicas? Ou será Deus a última realidade? Deus é amor. Deus é luz — assim lemos na primeira epístola de João. Logicamente o reino de Deus é o reino do amor, da luz, do sentido, da vida, da graça. Para Paulo essa é a realidade última. Da mesma forma o homem é criatura, não um conglomerado de átomos. Por isso o seu destino é a vida, não a morte. A fé cristã é a confiança no poder do amor e da graça, é a convicção de que o destino do nosso mundo é outro diferente de sua destruição e que existe sentido, onde o descrente talvez perceba apenas absurdez. Se formos honestos devemos confessar que é difícil crer na graça tendo em vista um mundo em que nada se perdoa. É difícil crer na vida diante da podridão dos cadáveres, é difícil crer no amor, onde o ódio é o normal, e as múltiplas formas de dependência, de domínio e de escravização dos homens desacreditam e ameaçam impossibilitar a fé na liberdade. Contudo, a esperança cristã é um protesto violento contra um mundo pecaminoso e corrupto, é o protesto contra a nossa própria perversidade, é um protesto ativo que recebe as suas energias daquele homem, Jesus Cristo. Ele nos chama para a fé numa realidade que ultrapassa a realidade miserável que vemos dia a dia, e ele nos ensina a ver aquela realidade que neste mundo talvez esteja presente apenas em pequenas parcelas, mas que não está totalmente ausente, qual seja, a realidade de Deus. Por isso cremos na ressurreição dos mortos, porque sabemos dessa outra realidade. Em Jesus Cristo temos recebido a promessa da vitória do amor e da graça. Por isso não podemos entregar o mundo e nós mesmos ao poder aniquilador da morte.

Uma esperança assim é empreendimento dificílimo, desde que não se fuja da realidade brutal e desde que se tenha a coragem de não desviar os olhos das crueldades. Mas, é justamente essa esperança que tem a promessa da vida eterna.

______________________

A grafia deste artigo (publicado originalmente em 1971) foi atualizada e a imagem foi acrescentada.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *