O Conceito do Novo Testamento Sobre a Natureza Humana
A literatura judaica produzida durante
o período inter-testamentário é geralmente
conhecida como apócrifa ou pseudoepigráfica.
[1]
A maior parte dos cristãos não considera
estes livros não canônicos como divinamente inspirados e autoritativos
como os livros da Bíblia. Isso não diminui seu valor histórico,
uma vez que eles são uma importante fonte de informação sobre
os desenvolvimentos históricos e ideológicos da época.
No que se refere à natureza e ao
destino humanos, desenvolveram-se
duas escolas principais do pensamento judaico durante o período
intertestamentário. A primeira, o Judaísmo Palestino, manteve-se
fiel ao conceito holístico da natureza humana do Antigo Testamento
e fornece um destacado pano de fundo para a compreensão do Novo
Testamento. O Judaísmo Palestino encarava a morte como um sono
inconsciente da pessoa inteira e enfatizava a necessidade da
ressurreição final do corpo. A importância desse conceito para
o estudo do Novo Testamento pode ser ilustrada pelo livro apócrifo
do Apocalipse de Baruque (conhecido como 2
Baruque), que foi escrito por um judeu palestino na última metade
do primeiro século da era cristã. O autor ensina que os mortos
“dormem na terra” e quando o Messias retornar “todos os que
adormeceram na esperança dele se levantarão novamente”.
[2]
Todos os justos serão reunidos num momento
e os ímpios prantearão, pois o tempo de seu tormento chegou.
[3]
Esse conceito é notavelmente semelhante ao
ensino neotestamentário da ressurreição do corpo que é parte
do conjunto de idéias que pareciam “tolice” para os gregos (1
Cor. 1:23).
A segunda escola de pensamento é
o Judaísmo Helenístico, que era amplamente influenciada pelo
dualismo grego. O Judaísmo Helenístico floresceu principalmente
em Alexandria, a terra natal de Filo, o famoso filósofo judeu
que tentou fazer uma síntese das idéias hebraicas e gregas.
Nos escritos dos judeus helenistas encontramos referências claras
à sobrevivência e imortalidade da alma. A existência à parte
do corpo parece ser o destino eterno dos salvos. Por exemplo,
o Livro dos Jubileus, apócrifo (por volta de 135
A.C.) ensina que “os ossos” jazem na sepultura enquanto
os “espíritos” vivem independentemente: “E seus ossos descansarão
na terra, e seus espíritos terão muito gozo, e eles saberão
que é o Senhor quem executa julgamento, e mostra misericórdia
a... todos os que o amam” (23:31).
[4]
Numa linha similar de raciocínio, A Sabedoria
de Salomão, escrito por um judeu helenista entre 50 e 30 A.C.,
diz que “as almas dos justos estão nas mãos de Deus, e nenhum
tormento jamais as tocará... elas estão em paz... sua esperança
é a plena imortalidade” (3:1, 3, 4).
[5]
O mesmo conceito é encontrado em 4 Macabeus,
um tratado filosófico escrito por um judeu helenista pouco antes
da era cristã. Os justos que morreram ascendem imediatamente
para a ventura eterna
[6]
, enquanto que os iníquos descem ao tormento
eterno, que varia em intensidade.
[7]
Ao abordarmos o estudo do conceito
neotestamentário da natureza humana, não podemos ignorar a possível
influência do judaísmo helenista sobre os escritores dos livros
do Novo Testamento. Afinal, com a possível exceção de Mateus,
todos os livros do Novo Testamento foram escritos em grego e
usam as quatro grandes palavras antropológicas gregas: psychê-alma,
pneuma-espírito, soma-corpo, e sarx-carne. Estas palavras eram
comumente usadas na época do Novo Testamento com um significado
dualístico grego. A alma e o espírito denotavam a parte imaterial
e imortal da natureza humana, enquanto o corpo e a carne descreviam
a parte material e mortal.
De modo que a questão é: Até que
ponto o sentido dualístico dessas importantes palavras gregas
se refletiu nos escritos do Novo Testamento? Surpreendentemente,
conforme veremos neste capítulo, o sentido e o uso dualístico
desses termos estão ausentes no Novo Testamento. Mesmo aquelas
passagens que parecem ser dualísticas ao contrastarem a carne
e o espírito, num exame mais atento revelam um entendimento
holístico da natureza humana. A carne e o espírito não são colocados
como duas partes distintas e opostas da natureza humana, e sim
como dois diferentes tipos de estilo de vida: o centralizado
no homem versus o centralizado em Deus.
A razão da ausência de influência
dualística no Novo Testamento é que seus escritores utilizaram
as importantes palavras gregas referentes à natureza humana
em harmonia com seus equivalentes originais no Antigo Testamento,
onde as idéias se originaram, e não de acordo com os significados
prevalecentes na sociedade helenista.
Devemos ter sempre em mente que “o
elo entre o hebraico do Antigo Testamento e o grego do Novo
Testamento é a grande versão Septuaginta (grega) do Antigo Testamento feita em Alexandria no terceiro século
A.C. A tradução foi feita por judeus, que obviamente entendiam
o significado das palavras hebraicas e pretendiam fazer com
que os termos gregos que utilizavam correspondessem a isso.
Assim, a Septuaginta segue o hebraico, e o Novo Testamento segue
a Septuaginta. A versão Septuaginta não foi inspirada, mas por
providência divina ela forneceu este valioso elo linguístico
entre o Velho e o Novo Testamentos.”
[9]
Nosso estudo demonstra que existe
uma continuidade definida entre o Velho e Novo Testamentos no entendimento holístico da natureza
humana. A noção da imortalidade da alma, embora popularmente
mantida por outros na época em que o Novo Testamento foi escrito,
está ausente dos escritos do Novo Testamento porque seus autores
foram fiéis aos ensinos do Antigo Testamento.
O Novo Testamento revela não só continuidade
com o Antigo Testamento no entendimento da natureza e destino
humanos, como também uma compreensão ampliada à luz da encarnação
e dos ensinos de Cristo. Afinal, Cristo é o verdadeiro cabeça da raça humana, já que Adão “era um tipo
daquele que havia de vir” (Rom. 5:14). Enquanto no Antigo Testamento
a natureza humana se relaciona primariamente com Adão em virtude
da criação e da Queda, no Novo Testamento a natureza humana
se relaciona com Cristo em virtude de Sua encarnação e Redenção.
Cristo é a plenitude da revelação sobre a natureza, significado
e destino humanos. Cristo fornece
um significado mais profundo da alma, corpo e espírito humanos,
porque o efeito imediato de Sua redenção foi a
dádiva de Seu Espírito que “habita convosco e está em vós” (João
14:17).
PARTE I: A NATUREZA HUMANA COMO
ALMA
A palavra grega psychê-alma
é usada no Novo Testamento em harmonia com os significados básicos
da palavra hebraica nephesh-alma, que encontramos no
Antigo Testamento. Examinaremos brevemente o significado básico
de psychê-alma, dando especial atenção ao significado
ampliado da palavra à luz dos ensinos e do ministério redentor
de Cristo.
A Alma Como Pessoa. A alma-psychê no Novo Testamento
denota a pessoa integral, no mesmo sentido de nephesh
no Antigo Testamento. Por exemplo, em sua defesa perante o Sinédrio,
Estêvão menciona que “setenta e cinco almas-[psychê]”
da família de Jacó desceram ao Egito, um numeral e uso encontrado
no Antigo Testamento (Gên. 46:26,
27; Êxo. 1:5; Deut. 10:22). No dia do Pentecostes, “três mil
almas-[psychê]” (Atos 2:41)
foram batizadas e “em cada alma-[psychê] havia temor”
(Atos 2:43). Falando sobre a família de Noé, Pedro diz que “oito
almas-[psychê] foram salvas pela água” (1
Ped. 3:20). É evidente que em textos como esses a “alma-psychê”
é usada como um sinônimo de pessoa.
Dentro deste contexto, mencionamos
a famosa promessa de Cristo de descanso para as “almas-[psychê]”
daqueles que aceitam o Seu jugo (Mat. 11:28). A expressão “descanso para as vossas almas-[psychê]”
procede de Jeremias 6:16, onde o
descanso para a alma é prometido àquele que anda de acordo com
os mandamentos de Deus. O descanso que Cristo concede à alma,
conforme assinala Edward Schweizer, “difere completamente do
que encontramos no mundo grego, onde a alma encontra descanso
quando é libertada do corpo, pois aqui a unidade e totalidade
do homem é mantida. É em seus atos físicos de obediência que o homem
encontra o descanso de Deus”.
[11]
Cristo dá o descanso (paz e harmonia interiores)
às almas daqueles que aceitam Sua graciosa provisão de salvação
(“vinde a Mim”) e vivem em harmonia com os princípios de vida
que Ele ensinou e exemplificou (“aprendei de Mim”).
A Alma Como Vida. O significado
mais frequente da palavra alma-psychê no Novo Testamento
é o de “vida”. Segundo uma contagem, psychê é traduzida
como “vida” 46 vezes.
[12]
Nestes casos, “vida” propicia uma tradução
adequada do grego psychê porque é usada com referência
à vida física. Para facilitar a identificação da palavra alma-psychê
encontrada no texto grego, psychê será traduzida literalmente
como “alma” em lugares onde a RSV [Versão Padrão Revisada,
em inglês] traduz como “vida”.
No auge da tempestade, Paulo assegurou
aos tripulantes do navio que “nenhuma das almas [psychê]
entre vós se perderá, mas apenas o navio” (Atos 27:22; 27:10). Neste contexto, o termo grego psychê
é traduzido corretamente como “vida”, porque Paulo está falando
sobre perda de vidas. Um anjo disse a José: “Dispõe-te, toma
o menino e sua mãe, e vai para a terra de Israel; porque já
morreram os que atentavam contra a alma [psychê] do menino”
(Mat. 2:20). Esta é uma das muitas
referências a procurar, matar e salvar a alma-psychê, todas
as quais sugerem que a alma não é uma parte imortal dos humanos,
e sim a própria vida física que pode estar em perigo. Segundo
o Antigo Testamento, a alma-psychê é levada à morte quando
o corpo morre.
Salvar a Alma Por Perdê-la.
No Antigo Testamento, descobrimos que a alma-nephesh
é usada frequentemente para denotar a incerteza da vida, constantemente
encarando a possibilidade de ferimento ou mesmo de destruição.
Por conseguinte, os antigos israelitas preocupavam-se com a
salvação de suas almas, livrar suas almas, restaurar suas almas
à segurança, e sustentar a alma por meio de provisões, especialmente
o alimento. Neste contexto, os judeus devem ter ficado perplexos
ao ouvirem Cristo dizer: “Quem quiser, pois, salvar a sua vida
[psychê], perdê-la-á; e quem perder a sua vida [psychê]
por causa de mim e do evangelho, salvá-la-á” (Marcos 8:35;
compare com Mateus 16:25; 10:39; Lucas 9:24; 17:33; João 12:25).
O impacto da declaração de Cristo
sobre os judeus deve ter sido dramático, porque ele teve a audácia
de proclamar que as almas deles só poderiam ser salvas se eles
a perdessem por causa dele. A ideia de salvar almas por perdê-las
era desconhecida para os judeus porque não se encontra no Antigo
Testamento. Cristo demonstrou seu ensino agindo num modo que
culminou em sua própria crucificação. Ele veio “dar a sua alma
[psychê] em resgate por muitos” (Mateus 20:28).
Como o Bom Pastor, ele “dá a alma [psychê] pelas ovelhas”
(João 10:11). Por ensinar que para
salvar a alma é necessário que a pessoa a perca, e por perder
a dele próprio, Cristo ampliou o sentido de nephesh-alma
do Antigo Testamento como vida física tornando-a parte da vida
eterna ganha pelos dispostos a sacrificar a vida (alma) atual
por causa dele.
A promessa de que a alma-vida será
salva quando é sacrificada por Cristo demonstra que o que Cristo
tinha em vista é a vida verdadeira e plena que Ele oferece aos
que o aceitam como seu Salvador. A vida em Cristo não difere
da vida natural porque é a vida experimentada por aqueles que
estão livres de tentar preservá-la. É uma vida liberada e aberta,
que oferece um senso de realização à vida natural. Este é o
significado ampliado que Cristo atribui à alma; um sentido que
nega a ideia da alma como uma entidade imaterial, imortal que
coexiste com o corpo.
A Igreja Apostólica assimilou este
significado ampliado da alma como denotando uma vida de total
comprometimento com o Salvador. Judas e Silas tornaram-se homens
que “arriscaram a alma [psychê] pelo nome de nosso Senhor
Jesus Cristo” (Atos 15:26). Epafrodito
arriscou “sua alma [psychê]” pela obra de Cristo (Fil.
2:30). O próprio apóstolo Paulo testificou:
“Em nada considero minha alma [psychê] preciosa para
mim mesmo, contanto que complete a minha carreira e o ministério
que recebi do Senhor Jesus para testemunhar o evangelho da graça
de Deus” (Atos 20:24). Se Paulo acreditasse que a alma é imortal, é improvável
que ele a teria visto como sem valor e digna de ser perdida
pela causa do evangelho. Estes textos mostram que a Igreja Apostólica
vivia segundo o novo sentido ampliado da alma por viver uma
vida de total comprometimento sacrificial para com Cristo. Os
crentes entendiam que sua alma como vida física podia ser salva
só por consagrá-la ao serviço de Cristo.
Em bem poucos casos é a alma-nephesh
que é usada no Antigo Testamento para denotar a vida que transcende
a morte. Um exemplo disso é o Salmo 49:15: “Deus remirá a minha alma do poder da morte, pois
Ele me tomará a si”. É esse sentido de alma como vida além da
morte que chega a ser ampliado no ensino de Jesus sobre perder
e achar a alma. A continuidade entre a vida atual e futura é
garantida, não pela residência de uma alma imortal no homem,
mas pela fidelidade de Deus que dará vida eterna aos crentes.
A vida física e a vida eterna não
são duas realidades diferentes, porque ambas são concedidas
por Deus. A alma abrange ambas porque
a vida eterna é a vida física vivida para Deus. Afinal, a vida
física é a única forma de existência que conhecemos. Mas o significado
ambivalente de alma serve para nos lembrar de que a vida humana
não é apenas saúde e riqueza; é uma vida vivida em relacionamento
com Deus.
O sentido bíblico duplo de alma como
vida física e eterna nega a distinção helenística entre corpo
e alma, entre a vida do corpo na terra e a vida da alma no céu.
Do ponto de vista bíblico, a vida do corpo é a vida da alma,
porque a maneira como uma pessoa vive esta vida atual determina
o destino da alma como sendo a vida eterna ou a destruição eterna.
A alma, pois, não é uma substância que sobrevive ao corpo por
ocasião da morte; é a vida que vivemos pela graça de Deus e
que será revelada e consumada por Deus no Juízo Final.
A Alma e a Carne. Um importante
texto no Novo Testamento coloca a alma-psychê em clara
oposição à carne-sarx. Encontra-se em 1
Pedro 2:11, onde o apóstolo declara: “Amados, exorto-vos, como
peregrinos e forasteiros que sois, a vos absterdes das paixões
carnais [sarx] que fazem guerra contra a alma [psychê]”.
Edward Schweizer diz que este é o uso mais helenístico de alma
no Novo Testamento, já que a antítese clara entre alma-psychê
e carne-sarx pode sugerir uma composição dualística da
natureza humana.
Um exame mais atento do texto, porém,
mostra que Pedro foi influenciado, não pelo dualismo grego,
mas pelo entendimento do Novo Testamento sobre a alma-nephesh.
No Antigo Testamento, descobrimos que a alma-nephesh
estava constantemente em perigo e precisava ser protegida. O
mesmo é verdade no caso da admoestação de Pedro. A diferença
é que Pedro está fazendo referência a um inimigo “interno” que
ataca a alma de dentro. O inimigo são as paixões carnais que
travam guerra contra a alma, fazendo uma pessoa viver só para
satisfazer os apetites físicos.
Pedro encara a alma, não como uma
entidade imaterial que sobrevive ao corpo por ocasião da morte,
e sim como a vida de fé santificada pela obediência à verdade
revelada de Deus. Ele expressa este conceito na mesma carta
ao dizer: “obtendo o fim da vossa fé, a salvação das vossas
almas [psychê]” (1 Ped. 1:9), “tendo purificado as vossas almas [psychê],
pela vossa obediência à verdade” (1 Ped. 1:22). Uma vez que
a salvação da alma (a vida eterna) é o resultado de uma vida
de fiel obediência à verdade, as paixões carnais ameaçam a alma
(a vida eterna) porque elas levam uma pessoa a viver de modo
infiel e em desobediência à verdade. Assim, a oposição entre
carne e alma neste trecho bíblico é ética e não ontológica,
ou seja, é entre uma vida de desobediência (carne) e uma de
obediência (alma). Veremos adiante que Paulo expressa a mesma
oposição ao contrastar a carne com o espírito.
Deus Tem o Poder de Destruir a
Alma. Esse significado ampliado do termo alma-psychê
nos ajuda a compreender uma bem-conhecida, porém muito mal-entendida
declaração de Cristo: “Não temais os que matam o corpo e não
podem matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer
no inferno tanto a alma como o corpo” (Mat. 10:28;
compare com Lucas 12:4). Os dualistas encontram apoio neste
texto para o conceito de que a alma é uma substância imaterial
que é mantida em segurança e sobrevive à morte do corpo. Robert
Morey, por exemplo, insiste que “aqui [Mat. 10:28]
Cristo diz claramente que embora possamos matar ou eliminar
a vida física de um corpo, não podemos matar ou ferir a alma,
ou seja, o eu transcendente imaterial, a mente ou o ego. Ele
usa a dicotomia corpo/alma que se encontra através da Bíblia.”
[14]
Essa interpretação reflete o entendimento
dualístico grego da natureza humana e não o conceito holístico
bíblico. A referência ao poder de Deus de destruir a alma [psychê]
e o corpo no inferno refuta a noção de uma alma imortal, imaterial.
Como pode a alma ser imortal se Deus a destrói com o corpo no
caso dos pecadores impenitentes? Oscar Cullmann observa apropriadamente
que “ouvimos na declaração de Jesus em Mateus 10:28
que a alma pode ser morta. A alma não é imortal”.
[15]
Na discussão precedente vimos que
Cristo ampliou o sentido da alma-psychê para denotar
não somente a vida física, mas também a vida eterna ganha por
aqueles que estão dispostos a assumir um compromisso sacrificial
com ele. Se este texto for lido à luz do sentido ampliado dado
por Cristo à alma, o significado da declaração será: “Não temais
aqueles que podem trazer vossa existência terrena (corpo-soma)
ao fim, mas não podem eliminar vossa vida eterna em Deus; e
sim temais o Deus que é capaz de destruir vosso ser integral
eternamente”.
A Morte da Alma É Morte Eterna.
A advertência de Cristo dificilmente ensina a imortalidade da
alma. Antes, ensina que Deus pode destruir a alma, bem como
o corpo. Edward Fudge ressalta corretamente que “a menos que
Jesus esteja fazendo ameaças vãs, a própria advertência significa
que Deus executará essa sentença nos que persistentemente se
rebelam contra Sua autoridade e resistem a toda manifestação
de misericórdia”.
[16]
Fudge prossegue dizendo: “A advertência de
nosso Senhor é clara. O poder do homem para matar restringe-se
ao corpo e ao contexto da Era Atual. A morte que o homem inflige
não é final, pois Deus chamará os mortos da terra e concederá
a imortalidade aos justos. A habilidade de Deus em matar e destruir
é ilimitada. Afeta mais profundamente do que o físico e vai
além do momento presente. Deus pode matar o corpo e a alma,
tanto agora quanto no além”.
[17]
Encontramos confirmação para esta
interpretação em Lucas 9:25, onde
ele novamente omite o termo psychê-alma; “Que aproveita
ao homem ganhar o mundo inteiro, se vier a perder-se ou a causar
dano a si mesmo [eauton]?”. Presume-se que Lucas usou
aqui o pronome “ele” em vez de alma-psychê, conforme
usado em Marcos 8:36, porque o último,
conforme Edward Schweizer sugere, “poderia ser mal interpretado
[pelos leitores gentios] como punição da alma após a morte”.
[18]
Por usar, em vez disso, o pronome “ele”,
Lucas indica que Jesus quis dizer a perda da pessoa inteira.
Se tivermos em mente o significado
ampliado do termo “alma”, expresso por Cristo,
então o sentido da declaração dele se torna claro. Matar o corpo
significa tirar a vida atual na terra. Mas isso não elimina
a alma, ou seja, a vida eterna recebida por aqueles que aceitaram
a provisão da salvação de Cristo. Tirar a vida presente significa
pôr uma pessoa para dormir, mas a pessoa só é finalmente destruída
na segunda morte, a qual, conforme veremos, é igualada na Bíblia
com o inferno.
O significado da declaração de Cristo
em Mateus 10:28 é ilustrado pelas
palavras dele sobre a filha de Jairo, de que ela não estava
morta, e sim dormindo (Mat. 9:24). Ela estava realmente morta
(“matar o corpo”), mas, já que iria despertar na ressurreição,
poderia ser dito corretamente que ela só estava adormecida.
O destino
final dela ainda não havia sido decidido. Do mesmo modo, uma
vez que todos os mortos serão ressuscitados no último dia, enquanto
jazem em suas sepulturas, suas almas, ou seja, as vidas que
levaram a favor ou contra Jesus Cristo, ainda estão aguardando
seu destino final: salvação eterna para os crentes e destruição
eterna para
os que não creram. Esta última refere-se à destruição do corpo
e da alma no inferno, conforme o aviso de Jesus.
A preservação da alma no ensino de
Cristo não é um processo automático, estando no poder da própria
alma, e sim um presente de Deus, recebido por aqueles que estão
dispostos a sacrificarem sua alma (a vida atual) por Ele. Esse
sentido ampliado de alma relaciona-se intimamente com o caráter
ou a personalidade de um crente. Pessoas ou forças malignas
podem matar o corpo, a vida física, mas não podem destruir a
alma, o caráter ou a personalidade de um crente. Deus comprometeu-se
a preservar a individualidade, personalidade e caráter de cada
crente. Em sua vinda, Cristo ressuscitará aqueles que morreram
nele, restaurando-lhes a alma, isto é, seu caráter e personalidade
distintos.
A Alma de Um Corpo Morto.
À luz da consideração anterior, verificaremos agora outra declaração
frequentemente mal interpretada feita por Paulo quando da ressurreição
de Êutico. Durante uma reunião de despedida em Troas, onde Paulo
falou durante bastante tempo, um jovem chamado Êutico caiu em
sono profundo, despencou da janela do terceiro andar, e morreu.
Em Atos 20:10 lemos que “Descendo, porém, Paulo inclinou-se sobre
ele e, abraçando-o, disse: Não vos perturbeis, que a vida está
nele”.
Este evento tem paralelo com a ocasião
em que Elias (1 Reis 17:17) e mais
tarde Eliseu (2 Reis 4:32-36) deitaram-se sobre uma criança
cuja alma [nephesh] retornou a ela. Os dualistas interpretam
esses episódios como indicativos de que a alma é uma entidade
independente que pode retornar após deixar o corpo. Essa interpretação
é refutada por duas considerações importantes. Primeiro, no
caso de Êutico, Paulo disse, “sua alma [psychê] está
nele”, embora seu corpo estivesse morto. Isso significa que
Paulo não acreditava que a alma é uma entidade imaterial que
deixa o corpo por ocasião da morte. A alma ainda estava em Êutico,
não porque ainda não tivesse partido, e sim porque, ao abraçar-se
com o jovem, Paulo sentiu que a respiração dele estava retornando
e assim ele estava voltando à vida. Ele ainda era uma alma vivente.
Em segundo lugar, para entender o
que aconteceu no caso de Êutico e no dos meninos ressuscitados
por Elias e Eliseu, precisamos nos lembrar de que a Bíblia encara
a morte como uma criação ao reverso. Por ocasião da criação,
o homem se torna uma alma vivente quando o corpo, feito do pó
da terra, começa a respirar em resultado do sopro divino do
fôlego de vida. Por ocasião da morte, uma pessoa deixa de ser
uma alma vivente quando o corpo dá o último suspiro e retorna
ao pó. No caso de Êutico e das crianças, a respiração deles
retornou milagrosamente e assim tornaram-se outra vez almas
viventes.
Paulo e a Alma. Em comparação
com o Antigo Testamento, ou mesmo os Evangelhos, o uso do termo
alma-psychê nos escritos de Paulo é raro. Ele usa o termo
apenas 13 vezes
[19]
(incluindo as citações do Antigo Testamento)
para referir-se ao corpo físico (Rom. 11;3;
Fil. 2:30; 1 Tess. 2:8), uma pessoa (Rom. 2;9; 13:1), e a sede
da vida emocional (Fil. 1:27; Col. 3:23; Efé. 6:6). Vale notar
que Paulo nunca usa psychê-alma para denotar a vida que
sobrevive à morte. A razão poderia ser o receio de Paulo de
o termo psychê-alma ser entendido erroneamente por seus
convertidos gentios, de acordo com o conceito grego da imortalidade
inata.
Para assegurar que a nova vida em
Cristo seria vista inteiramente como uma dádiva divina, e não
como uma posse inata, Paulo usa o termo pneuma-espírito,
em lugar de psychê-alma. Depois, neste capítulo, examinaremos
o uso que Paulo faz do termo “espírito”. O apóstolo certamente
reconhece uma continuidade entre a vida atual e a vida pós-ressurreição,
mas uma vez que ele a vê como uma dádiva de Deus e não como
algo encontrado na natureza humana, ele usa, em vez disso, pneuma-espírito.
[20]
No seu famoso pronunciamento sobre
a ressurreição em 1 Coríntios 15,
Paulo demonstra que usa alma-psychê de acordo com o sentido
de vida física, apresentado no Antigo Testamento. Ele explica
que o primeiro Adão tornou-se “alma vivente” e o último Adão
(Cristo) “espírito [pneuma] vivificante”. Ele aplica
a mesma distinção à diferença entre o corpo presente e o corpo
da ressurreição. Ele escreve: “Semeia-se corpo natural [psychikon]
é ressuscitado corpo espiritual [pneumatikon]”. O corpo
atual é psychikon, literalmente “almado” de psychê-alma,
denotando um organismo físico sujeito à lei do pecado e da morte.
O futuro corpo ressuscitado é pneumatikon, literalmente
“espiritual” de pneuma-espírito, significando um organismo
controlado pelo Espírito de Deus.
O corpo ressurreto é chamado “espiritual”,
não pelo fato de não ser físico, e sim por ser governado pelo
Espírito Santo, em vez de por impulsos carnais. Isso se torna
evidente quando observamos que Paulo aplica a mesma distinção
entre o natural-psychikos e o espiritual-pneumatikos
no caso da vida atual em 1 Coríntios
2:14, 15. Aqui Paulo distingue entre o homem-psychikos
natural, que não é guiado pelo Espírito de Deus, e o homem espiritual
[pneumatikos], que é guiado pelo Espírito de Deus.
Nenhuma Imortalidade Natural. É evidente que para Paulo
a continuidade entre o corpo atual e o futuro deve ser encontrada,
não no sentido ampliado de alma que encontramos nos Evangelhos,
e sim no papel do Espírito de Deus que nos conduz a uma vida
nova, tanto agora como por ocasião da ressurreição. Ao dar enfoque
ao papel do Espírito, Paulo nega a imortalidade da alma. Para
ele é muito importante esclarecer que a nova vida do crente,
tanto no presente quanto no futuro, é inteiramente uma dádiva
do Espírito de Deus. Nada há inerentemente imortal na natureza
humana.
A expressão “imortalidade da alma”
não ocorre nas Escrituras. A palavra grega comumente traduzida
como “imortalidade” em nossas versões modernas da Bíblia é athanasia.
Este termo só ocorre duas vezes no Novo Testamento, a primeira
vez em conexão com Deus, “o único que possui a imortalidade
[athanasia] e habita em luz imarcescível, a quem nenhum
homem viu nem pode ver.” (1 Tim.
6:16). É óbvio que imortalidade aqui significa mais do que existência
infindável. Significa que Deus é a fonte de vida (João 5:26)
e todos os outros seres recebem vida eterna dele.
Na segunda vez, a palavra “imortalidade-athanasia”
ocorre em 1 Coríntios 15:53, 54 em
relação com a natureza mortal, que se reveste de imortalidade
por ocasião da ressurreição: “Porque é necessário que este corpo
corruptível se revista da incorruptibilidade, e que este corpo
mortal se revista da imortalidade [athanasia]. E quando
o corruptível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal
se revestir de imortalidade [athanasia], então se cumprirá
a palavra que está escrita: Tragada foi a morte pela vitória”.
Paulo não está falando da imortalidade natural da alma, e sim
da transformação da mortalidade para a imortalidade que os crentes
experimentarão quando Cristo retornar. As implicações deste
trecho são claras: a natureza humana não é dotada com qualquer
forma de imortalidade natural, porque é perecível e mortal.
A imortalidade não é uma possessão atual; é uma dádiva a ser
concedida aos crentes por ocasião da vinda de Cristo.
Na filosofia de Platão, a alma é
considerada indestrutível, porque partilha de uma substância incriada e eterna que o corpo
não possui. É lamentável que este dualismo platônico tenha cegado
a mente até mesmo de grandes reformadores tais como Calvino,
que chegou ao extremo de dizer que “dificilmente alguém, exceto
Platão, afirmou corretamente a substância imortal [da alma]”.
[21]
Ele prossegue: “De fato,
já ensinamos à base das Escrituras que a alma
é uma substância incorpórea; agora devemos acrescentar que,
embora ela não seja propriamente limitada no espaço, embora
estabelecida no corpo, ela reside lá como numa casa; não só
pode animar todas as partes e tornar seus órgãos adequados e
úteis para suas ações, mas pode também ocupar o primeiro lugar
em dirigir a vida do homem, não só em relação aos deveres de
sua vida terrena, como ao mesmo tempo despertá-lo a honrar a
Deus”.
[22]
É difícil crer que um estudante tão
diligente da Bíblia como Calvino poderia interpretar tão mal
os ensinos bíblicos referentes à natureza humana. Isso serve
para nos lembrar de quão facilmente a mente humana pode tornar-se
tão condicionada pelo erro que deixa de discernir a verdade
bíblica. Na Bíblia, a alma não é uma “substância incorpórea
e imortal”, e sim a vida física e regenerada, criada e sustentada
por Deus e dependente dele para sua existência.
Não há qualidade inerente na natureza
humana que possa tornar uma pessoa indestrutível. A esperança
cristã não se baseia na imortalidade da alma, e sim na ressurreição
do corpo. Se desejarmos usar a palavra “imortalidade” com referência
à natureza humana, devemos falar não da imortalidade da alma,
e sim da imortalidade do corpo (a pessoa inteira) por meio da
ressurreição. É a ressurreição que concede a dádiva da imortalidade
ao corpo, ou seja, sobre a pessoa inteira do crente.
A Alma Como o Aspecto Mortal da
Natureza Humana. A definição paulina do corpo atual como
psychikon-físico (literalmente “almado”), ou seja, corruptível
e mortal, mostra claramente que ele identifica a alma com o
aspecto físico e mortal de nossa existência humana. Isto está
em harmonia com o conceito do Antigo Testamento da alma-nephesh
como o aspecto físico e mortal da vida. É evidente que a noção
de imortalidade da alma está totalmente ausente dos ensinos
de Paulo e da Bíblia como um todo. Mas essa definição de alma
apresenta um problema. Como se pode conciliar a noção de que
os humanos são mortais por natureza com a declaração de Paulo
em Romanos 5:12 de que a morte entrou
neste mundo “por meio do pecado”, e não por causa da natureza
física mortal dos humanos?
A solução dessa aparente contradição
deve ser encontrada no reconhecimento de que, conforme dito
por Wheeler Robinson, “Paulo concebia o homem como sendo mortal
por sua natureza original, mas com a perspectiva da imortalidade;
isto, porém, ele perdeu quando foi expulso do Éden, e, portanto,
afastado da árvore da vida, que teria nutrido a imortalidade
nele; assim a morte veio por meio do pecado”.
[23]
Paulo não explica como o homem, por
conta da desobediência, perdeu a possibilidade de tornar-se
imortal. A preocupação dele é mostrar como Cristo nos redimiu
da trágica consequência do pecado, a morte. Os ensinos de Paulo,
porém, apóiam o que ele pode ter visto como duas verdades complementares:
a mortalidade real da natureza humana, por um lado, e a justiça
dessa mortalidade como uma penalidade pela desobediência humana.
Alma e Espírito. A distinção
entre alma e espírito aparece em dois outros importantes trechos
do Novo Testamento que precisamos considerar brevemente. O primeiro
é 1 Tessalonicenses 5:23, e o segundo
é Hebreus 4:12. Escrevendo aos tessalonicenses
Paulo diz: “O mesmo Deus de paz vos santifique em tudo;
e o vosso espírito, alma e corpo, sejam conservados íntegros
e irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1
Tess. 5:23).
Alguns apelam para este texto para
defender o conceito de que o homem foi criado como um ser tripartite,
consistindo de um corpo, uma alma e um espírito, cada um sendo
uma entidade separada. Os católicos reduzem os três a dois,
fundindo o espírito com a alma. O novo Catecismo da Igreja Católica
faz referência a este texto para explicar que “‘espírito’ significa
que desde a criação o homem é destinado a um fim sobrenatural
e que a alma dele pode ser soerguida graciosamente acima de
tudo o que ela merece para comunhão com Deus”.
[24]
Para os católicos, o espírito e a alma são
essencialmente um, porque é o espírito que cria cada alma como
uma entidade espiritual, imortal. Conforme o Catecismo coloca:
“A Igreja ensina que toda alma espiritual é criada imediatamente
por Deus – ela não é ‘produzida’ pelos pais – e ela é também
imortal: não perece quando se separa do corpo por ocasião da
morte”.
[25]
Este ensino católico tradicional
ignora o conceito holístico fundamental da natureza humana.
Segundo a Bíblia, a alma não é uma substância imortal que se
separa do corpo por ocasião da morte, e sim a vida física e
mortal que pode tornar-se imortal para aqueles que aceitam a
dádiva de Deus da vida eterna. Tornar o Espírito subserviente
à alegada natureza “espiritual” e imortal da alma significa
ignorar que uma função vital do Espírito de Deus é dar vida
a nossos corpos mortais: “Se habita em vós o Espírito daquele
que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou
a Cristo Jesus dentre os mortos, vivificará também os vossos
corpos mortais, por meio do seu Espírito que em vós habita”
(Rom. 8:11).
Devemos observar, primeiramente,
que 1 Tessalonicenses 5:23 não é
uma declaração doutrinária, e sim uma oração. Paulo ora para
que os tessalonicenses possam ser totalmente santificados e
preservados irrepreensíveis até a vinda de Cristo. É evidente
que quando o apóstolo ora para que o espírito, alma, e corpo
dos tessalonicenses sejam preservados irrepreensíveis, ele não
está tentando dividir a natureza humana em três partes, mais
do que Jesus teve a intenção de dividir a natureza humana em
quatro partes quando disse: “Amarás, pois, o Senhor teu Deus
de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento
e de toda a tua força” (Marcos 12:30).
“Espírito, Alma e Corpo”.
A chave para se entender a referência de Paulo ao “espírito,
alma e corpo” em 1 Tessalonicenses
5:23 é o fato de que o apóstolo está se dirigindo a crentes
cristãos que, enquanto ainda estão na carne (corpo), possuem
duas naturezas: a natureza adâmica original recebida no nascimento
(a alma) e a nova natureza espiritual criada dentro deles pelo
poder capacitador do Espírito. A natureza adâmica, como já vimos,
é chamada de “alma-psychê” e denota os vários aspectos da vida
física associados com a alma na Bíblia. A natureza espiritual
é chamada de “espírito” porque é o Espírito de Deus que renova
e transforma a natureza humana. O corpo é, naturalmente, a parte
exterior, visível da pessoa.
A oração de Paulo pelos tessalonicenses
para manterem sua “alma-psychê” sã e íntegra para a vinda de
Cristo significa que eles não deveriam viver só para a vida
física (Mat. 6:25; Atos 20:24), que
é ameaçada pela morte, mas também pela vida eterna superior,
que transcende a morte. Similarmente, a oração de Paulo para
que os tessalonicenses mantivessem seus corpos saudáveis e irrepreensíveis
significa que não deveriam dar asas “aos desejos da carne” (Gál.
5:16) ou produzir “as obras da carne”
tais como fornicação, impureza e lascívia (Gál. 5:19).
Por fim, a oração de Paulo para que
eles mantivessem seu espírito são e irrepreensível significa
que ele seriam conduzidos pelo Espírito
(Gál. 5:18) e produziriam “o fruto do Espírito” como amor, alegria,
paz, longanimidade, benignidade, fidelidade (Gál. 5:22). Assim,
a oração de Paulo para que os tessalonicenses conservassem o
corpo, a alma e o espírito saudáveis e irrepreensíveis não teve
a intenção de alistar os componentes estruturais da natureza
humana, e sim enfatizar o estilo completo de vida
dos que aguardam a vinda de Cristo. A distinção
entre os três é ética, não ontológica.
O segundo texto no qual o mesmo contraste
entre alma e espírito aparece encontra-se em Hebreus 4:12:
“Porque a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais cortante do
que qualquer espada de dois gumes, e penetra até a divisão da
alma [psychê] e espírito [pneuma], juntas e medulas,
e é capaz de discernir os pensamentos e propósitos do coração”.
A questão aqui é se a Palavra de Deus separa a alma e espírito
ou se ela penetra ambos. Edward Schweizer observa aptamente
que “uma vez que é difícil imaginar a divisão de juntas e medula,
o texto provavelmente está dizendo que a Palavra penetrou o
pneuma [espírito] e a psychê [alma] como fez no
caso das juntas e medula.”
[26]
Tendo em mente que a alma e o espírito
denotam, respectivamente, os aspectos físico e espiritual da
vida humana, o texto diz que a Palavra de Deus penetra e examina
toda a existência humana, mesmo o mais íntimo recesso de nosso
ser. O estudo das Escrituras nos revela se nossos desejos, aspirações,
emoções e pensamentos são inspirados pelo Espírito de Deus ou
por considerações carnais egoístas. O texto diz simplesmente
que a Palavra de Deus penetra em nosso recesso mais interior,
tornando manifestos os motivos secretos de nossas ações.
De certa maneira, este trecho tem
paralelo com o que Paulo disse em 1 Coríntios 4:5: “O Senhor trará à luz as coisas agora ocultas
nas trevas e manifestará os propósitos dos corações”. Desta
forma, ninguém tem qualquer razão para interpretar Hebreus 4:12
como ensinando uma distinção estrutural na natureza humana entre
a alma e o espírito.
Os trechos acima que fazem distinção
entre alma e espírito nada têm a dizer sobre a imortalidade
da alma. Eles não sugerem que um membro dessa dupla poderia
sobreviver separado do outro por ocasião da morte, ou que eles
se referem a substâncias diferentes. Pelo contrário, o papel
do Espírito de Deus como o agente do soerguimento moral nesta
vida atual e da ressurreição para a vida eterna no fim nega
a noção de imortalidade da alma, porque a única imortalidade
é a concedida pelo Espírito de Deus no fim.
Um uso semelhante do termo se encontra
em João 10:24 onde os judeus perguntam
a Jesus: “Até quando nos deixarás nossas almas [psychê] em suspenso?
Se tu és o Cristo, dize-nos francamente”. Aqui a “alma-psychê”
é a mente com a qual as decisões são feitas a favor ou contra
Cristo. A alma, como mente, pode ser influenciada tanto para
o bem como para o mal. Assim, lemos que Paulo e Barnabé estavam
em Antioquia “fortalecendo as almas-psychê dos discípulos,
incentivando-os a permanecerem firmes na fé” (Atos 14:22). Neste caso, as almas são as pessoas que eram influenciadas
e motivadas em pensamento e sentimento.
Em Lucas 12:19
encontramos um exemplo interessante em que “alma” refere-se
tanto a atividades físicas como psíquicas. O homem rico cuja
terra havia produzido em abundância disse: “Então direi à minha
alma”-psychê: “Tens em depósito muitos bens para muitos anos:
descansa, come e bebe, e regala-te.” Embora aqui a ênfase seja
no aspecto físico da vida, por exemplo comer, beber e alegrar-se, o fato de a alma expressar
auto-satisfação sugere uma função psíquica. No versículo seguinte,
Deus pronuncia o seu julgamento sobre essa alma auto-gratificada:
“Mas Deus lhe disse: Louco, esta noite te pedirão a tua alma”
(Lucas 12:20). O texto sugere que
a vida ou morte da alma será, em última análise, a dádiva ou
a punição da parte de Deus.
Todos os evangelhos sinópticos relatam
a famosa declaração de Cristo onde a alma é usada como um paralelo
perfeito do coração: “Amarás, pois, o Senhor teu Deus de todo
o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento
e de toda a tua força” (Marcos 12:30;
compare com Mateus 22:37; Lucas 10:37). Nessa declaração, citada
de Deuteronômio 6:5, o coração, a alma, a mente e a força são
todos usados para expressar o terno comprometimento emocional
e racional para com Deus.
Conclusão. Nossa pesquisa
do uso que o Novo Testamento faz do termo “alma-psychê” indica
que não há qualquer apoio para a noção da alma como uma entidade
imaterial e imortal que sobrevive à morte do corpo. Nada há
na palavra psychê-alma que até mesmo remotamente deixe
implícita uma entidade consciente capaz de sobreviver à morte.
O Novo Testamento não apenas desautoriza a noção de imortalidade
da alma, como também mostra claramente que a alma-psychê
significa a vida física, emocional e espiritual. A alma é a
pessoa como um ser vivo, com sua personalidade, apetites, emoções e habilidades
mentais. A alma descreve a pessoa integral viva e, assim, inseparável
do corpo.
Descobrimos que embora Cristo tenha
expandido o significado de alma-psychê para incluir o
dom da vida eterna recebida por aqueles que estão dispostos
a sacrificar por ele sua vida terrena, ele nunca sugeriu que
a alma é uma entidade imaterial, imortal. Pelo contrário, Jesus
ensinou que Deus pode destruir a alma, bem como o corpo (Mat.
10:28) dos pecadores impenitentes.
Paulo jamais usa o termo “alma-psychê”
para denotar a vida que sobrevive à morte. Em vez disso, ele
identifica a alma com nosso organismo físico (psychikon)
que está sujeito à lei do pecado e da morte (1
Cor. 15:44). Para assegurar que seus conversos gentios entenderiam
que nada é inerentemente imortal na natureza humana, Paulo usou
o termo “espírito-pneuma” para descrever a nova vida em Cristo
que o crente recebe inteiramente como um dom do Espírito de
Deus tanto agora como por ocasião da ressurreição.
O estudo anterior do conceito do
Novo Testamento sobre a alma-psychê humana revelou como
Cristo ampliou o significado de nephesh como vida física
no Antigo Testamento para incluir também o dom da vida eterna.
O que é verdadeiro no caso da alma humana é também verdadeiro
de muitas maneiras no caso do espírito humano. A vinda de Cristo
contribuiu para revelar o sentido e função mais amplos do espírito-ruach
na redenção do homem. O significado de espírito-pneuma
como o princípio de vida é ampliado para incluir o princípio
da nova vida de regeneração moral, tornada possível por meio
da redenção de Cristo.
O espírito-pneuma é amplamente
sinônimo de psychê, sendo que ambas as palavras são com
frequência usadas intercambiavelmente
no Novo e Velho Testamentos. Entretanto, parece haver uma diferença
entre ambas. A palavra “Espírito” é usada com frequência em
relação a Deus enquanto a palavra “alma” nunca é usada desse
modo. A utilização geral das duas palavras sugere que o “espírito”
representa principalmente a orientação de uma pessoa no que
se refere a Deus, enquanto a “alma” constitui a orientação de
uma pessoa em relação aos seus semelhantes. Colocando isso de
outra maneira, a alma descreve geralmente o aspecto físico da
existência humana, enquanto o espírito significa o aspecto espiritual
da existência humana (o eu interior) que conecta uma pessoa
com o mundo eterno. Para apreciar o sentido e a função do espírito-pneuma
na natureza humana, conforme expressos no Novo Testamento, é
importante primeiro entender o papel do Espírito na vida e no
ministério de Cristo.
Cristo, o Homem do Espírito.
Em certo sentido real, o Novo Testamento identifica Cristo com
o Espírito na obra da salvação. Como o segundo Adão, Cristo
tornou-se “um espírito vivificante” (1
Cor. 14:45). O Espírito de Deus torna-se o Espírito de Cristo:
“Deus enviou aos nossos corações o Espírito de seu Filho, que
clama: Aba, Pai” (Gál. 4:6). O “Espírito de Deus” habitando
nos crentes é visto como intercambiável com o “Espírito de Cristo”
em Romanos 8: 9, 10. O Espírito é
tão identificado com a vida e o ministério de Cristo que Paulo
pode dizer: “O Senhor é o Espírito” (2
Cor. 3:17).
O Espírito que habita em Cristo habita
também na pessoa que está “em Cristo” (Rom. 8:2). “O próprio
Espírito dá testemunho com o nosso espírito de que somos filhos
de Deus” (Rom. 8:16). O efeito imediato
da redenção é a concessão do Espírito “...que
habita em vós e estará convosco” (João 14:17). O Espírito que
habita num crente não é uma alma imortal separável, e sim um
poder divino que regenera a vida atual, tornando a pessoa uma
nova criatura (Rom. 7:6; Gál. 6:8).
Cristo é o Homem do Espírito por
excelência. Ele foi concebido pelo Espírito Santo (Mat. 1: 18,
20; Luc. 1:35). Por ocasião do batismo o Espírito Santo
desceu sobre ele em forma de uma pomba (Mar. 1:10; Atos 10:38). Após o batismo, Cristo “foi guiado pelo
Espírito por quarenta dias no deserto” (Luc. 4:1, 2).
No Espírito, Ele confrontou o Diabo no deserto (Mat. 4:1). Mais
tarde “Jesus, no poder do Espírito, retornou para a Galiléia”
(Luc. 4:14). Em seu discurso inaugural,
proferido na sinagoga de Nazaré, Cristo aplicou a si mesmo a
predição feita por Isaías da unção do Messias pelo Espírito
Santo: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu
para evangelizar aos pobres... Hoje se cumpriu a Escritura que
acabais de ouvir” (Luc. 4: 18, 21). Dotado de poder pelo Espírito Santo, Cristo “andou
por toda parte, fazendo o bem e curando a todos os oprimidos
do diabo” (Atos 10:38).
O Espírito de Deus e o Espírito
Humano. Como o Espírito de Deus, mediado por Cristo, se
relaciona com o espírito humano? Qual é a relação entre o espírito
como princípio animador de vida, presente em toda pessoa vivente,
e o Espírito como princípio regenerador moral da vida ativo
na vida dos crentes? A resposta a estas questões reside no reconhecimento
de que tanto o aspecto físico como o aspecto moral-espiritual
da vida necessitam do Espírito para
sua existência. Como o homem é um ser vivente animado pelo sopro
do Espírito de Deus, é por isso que ele é capaz de receber o
Espírito Santo.
No Antigo Testamento encontramos
numerosos textos segundo os quais o espírito-ruach é
o sopro de Deus que concede e sustém a vida humana. A mesma
função do espírito-pneuma é expressa no Novo Testamento.
Por exemplo, Tiago diz: “Porque assim como o corpo sem espírito
está morto, assim também a fé sem obras está morta” (Tiago 2:26). Similarmente, Apocalipse 11:11
fala do espírito-pneuma de vida que entrou nos corpos
mortos e eles reviveram e se ergueram. Assim, todo ser humano
tem o espírito de vida da parte de Deus dentro em si. Quando
Jesus ressuscitou a filha de Jairo, “voltou-lhe o espírito e
ela se levantou imediatamente.” (Luc. 8:55).
Já observamos que o espírito que retornou era o fôlego de vida
de Deus que tornou a moça uma pessoa vivente outra vez.
O espírito como princípio da vida
física eventualmente veio a significar a fonte da vida psíquica,
racional. Assim, o espírito é usado para representar a sede
do pensamento, sentimento e raciocínio, a disposição interior
ou caráter do crente. Isso explica muitos usos do termo “espírito”
tanto no Velho como no Novo Testamento. “O espírito do homem
é agitado (Eze. 2:2), ou perturbado (Gên. 41:8); regozija-se
(Luc. 1:47), ou é quebrantado (Êxo.
6:9); está ansioso (Mat. 26:41), ou é endurecido (Deut. 2:30).
Um homem pode ser paciente de espírito (Ecl. 7:8), orgulhoso
de espírito ou pobre de espírito (Mat. 5:3). A necessidade de
dominar o espírito é declarada (Pro. 25:28). É o espírito do
homem que busca a Deus (Isa. 26:9), e é ao espírito do homem
que o Espírito de Deus, habitando no íntimo, dá testemunho (Rom.
8:16)”.
[27]
A
Atividade do Espírito na Humanidade. Já que o espírito-pneuma é o verdadeiro eu interior de uma pessoa, é
com o espírito que um crente serve a Deus (Rom. 1:9). Uma pessoa
como espírito é capaz de desfrutar da comunhão com Deus (1
Cor. 6:17). O louvor e a profecia são exercícios do espírito
humano (1 Cor. 14:32). A graça de Deus é concedida ao crente no âmbito
do espírito (Gál. 6:18). A renovação
é sentida no espírito (Efé. 4:23).
Mediante o Espírito, Deus dá testemunho ao espírito dos crentes
de que eles são filhos de Deus (Rom. 8:16).
Tanto o aspecto
físico como o psíquico da vida necessitam do espírito
para sua existência, e assim o termo pode razoavelmente ser
aplicado tanto ao princípio geral da vida física como ao princípio
regenerador da vida moral. A nova natureza é certamente o princípio
de uma nova vida, mas é essencialmente um princípio da vida
moral que se manifesta numa disposição santa de caráter. É difícil
estabelecer o exato relacionamento entre o espírito como princípio
de vida e o espírito como princípio regenerador da vida moral.
Por exemplo, alguns trechos de Romanos
capítulo 8 tornam difícil decidir se o termo “Espírito”
deve ser escrito com “E” maiúsculo para designar o Espírito
Santo, ou com um “e” minúsculo, referindo-se ao espírito humano
redimido e renovado. Talvez Paulo intencionasse permitir-nos
ler as palavras dele de qualquer desses modos. Os versículos
5 a 9 não perdem nada de seu significado profundo se esse intercâmbio
for permitido. “Os que se inclinam para a carne cogitam das
cousas da carne; mas os que se inclinam
para o Espírito, das cousas do Espírito” (Rom. 8:5.). “Vós,
porém, não estais na carne, mas no Espírito, se de fato o Espírito
de Deus habita em vós” (Rom. 8:9).
A ligação entre os dois parece ser
encontrada no fato de que o espírito que toda pessoa possui
como um princípio animador de vida capacita os crentes a serem
receptivos e sensíveis à operação do Espírito Santo em sua vida.
Em outras palavras, é o espírito como sede da vida psíquica
e racional (o eu interior), com o qual Deus dotou cada pessoa,
que torna possível ao Espírito de Deus habitar nos seres humanos.
W. D. Stacey destaca este ponto ao dizer: “Todos os homens têm
pneuma [o espírito] desde o nascimento, mas o pneuma [espírito]
cristão, em associação com o Espírito de Deus, adquire um novo
caráter e uma nova dignidade (Rom. 8:10)”.
[28]
O Espírito Humano é Capaz de Receber
o Espírito de Deus. O espírito humano não tem poder algum
para regenerar-se. Não é uma faísca divina que pode ser avivada
numa chama de fogo. Antes, é uma capacidade que Deus concedeu
a toda pessoa de experimentar o poder regenerador de Seu Espírito.
Quando uma pessoa nasceu de novo pelo Espírito de Deus, sua
natureza “natural” (psychikos) torna-se “espiritual”
(pneumatikos) (1 Cor. 2:14, 15).
O espírito humano que é obediente
a Deus experimenta o poder orientador e transformador do Espírito
de Deus. A comunhão com Deus é conseguida pelo espírito humano
por meio do Espírito de Deus. Claude Tresmontant descreve essa
função do espírito-pneuma: “O espírito do homem, seu
pneuma, é aquilo que dentro dele permite um encontro com o Pneuma
[Espírito] de Deus. É a parte de um homem que pode entrar em
diálogo com o Espírito de Deus, não como um estranho, mas como
um filho: ‘O próprio Espírito testifica com o nosso espírito
de que somos filhos de Deus’ (Rom. 8:16)”.
[29]
O
espírito humano habilita uma pessoa a servir a Deus: “Porque
Deus é minha testemunha, a quem sirvo em meu espírito-pneuma,
no evangelho de seu Filho...”. (Rom. 1:9). A sentença “sirvo
em meu espírito” sugere que o espírito é uma capacidade mental
e volitiva que habilita uma pessoa a servir a Deus. Poderíamos
dizer que a intenção de Deus era unir o espírito humano com
o Espírito Santo. Em razão de o homem ser espírito-pneuma, ou
seja, um ser vivo animado pelo sopro do Espírito de Deus (ruach-pneuma),
ele é capaz de receber o Espírito Santo e assim chegar a um
relacionamento íntimo e vivo com Deus.
Henry Barclay Swete explica a orientação
humana para com o Espírito Santo: “O Espírito Santo não cria
o ‘espírito’ no homem; ele está potencialmente presente em todo
homem, ainda que de maneira rudimentar e não desenvolvida. Todo
ser humano tem afinidades com o espiritual e eterno. Em cada
indivíduo da raça o espírito do homem que está nele (1
Cor. 2:11) responde ao Espírito de Deus, na medida em que o
finito pode corresponder-se com o infinito;... Mas, embora o
Espírito de Deus encontre no homem uma natureza espiritual na
qual pode operar, o espírito humano se acha numa condição tão
imperfeita e depravada que uma completa renovação, até mesmo
recriação, se faz necessária (2 Cor. 5:17)”.
[30]
Permitir que o Espírito de Deus renove
e transforme nossa vida não é renunciar à nossa própria personalidade,
e sim fazê-la submissa. Em harmonia com o Antigo Testamento,
o Novo Testamento encara a natureza humana holisticamente, onde
o corpo, alma, e espírito são partes integrais do mesmo ser.
O espírito é uma força, inseparável do fôlego e da vida (Lucas
8:55; 23:46) que renova a mente (Efé.
4:23) e habilita uma pessoa a tornar-se uma nova criatura, “criada
segundo a semelhança de Deus, em verdadeira justiça e santidade.”
(Efé. 4:24).
O Espírito Como o Renascimento
Espiritual. O Espírito de Deus é o agente ativo da criação
e da recriação. Vimos que no Antigo Testamento a criação do
homem é atribuída ao Espírito de Deus. O homem existe como alma
vivente por causa do sopro de Deus (Gên. 2:7). A recriação de
ordem moral é também a obra do Espírito. Somos lembrados com
base na visão de Ezequiel que os ossos secos voltaram à vida
por meio do Espírito de Deus. Os ossos secos, que representam
“a inteira casa de Israel” (Eze. 37:14)
em sua condição apóstata foi trazida de volta à vida, ou seja,
ao renascimento espiritual pelo Espírito de Deus: “Porei em
vós o meu Espírito, e vivereis.” (Eze. 37:14).
No Novo Testamento, a transformação
moral realizada pelo Espírito Santo é descrita de maneira mais
completa do que no Antigo Testamento, principalmente nos escritos
de João e Paulo. Os dois apóstolos descrevem este processo de
maneiras diferentes, porém complementares. João concebe a transformação
moral interior como renascimento e Paulo como nova criação.
As duas metáforas, conforme veremos, são complementares, cada
uma destinada a ajudar-nos a compreender a nova vida
possibilitada pelo Espírito Santo.
No Evangelho de João, Jesus compara
a transformação moral efetuada pelo Espírito Santo com um renascimento.
Falando a Nicodemos, Jesus diz: “Em verdade, em verdade te digo:
Quem não nascer da água e do Espírito, não pode entrar no reino
de Deus” (João 3:5). Ser nascido do Espírito é contrastado com
ser nascido da carne: “O que é nascido da carne, é carne; e
o que é nascido do Espírito, é espírito” (João 3:6). O nascimento
físico é de acordo com a carne (kata sarka), colocando
uma pessoa num nível horizontal de existência natural. O nascimento
espiritual é “de cima” (João 3:3) pelo Espírito, colocando uma
pessoa num nível vertical de existência pelo poder capacitador
do Espírito.
Na noite de sua ressurreição Jesus
“soprou sobre eles [os discípulos], e disse: Recebei o Espírito
Santo” (João 20:22). Esta ação, que
assinalou a recriação dos discípulos, tem paralelo com a primeira
criação do homem, quando Deus soprou-lhe o fôlego de vida. A
criação e a recriação, o nascimento e o renascimento, são atos
do Espírito, porque, conforme Jesus explicou, “é o espírito
que vivifica” (João 6:63). Isto é
verdade tanto no caso da vida física como no caso da espiritual.
O Espírito é a fonte imediata de
vida que é mediada por Cristo. “Se alguém tem sede, venha a
mim e beba. Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior
fluirão rios de água viva.” Isto
ele disse a respeito do Espírito que as pessoas que nele cressem
haveriam de receber; pois o Espírito até aquele momento não
tinha sido dado, já que Jesus ainda não havia sido glorificado”
(João 7:37-39). Cristo é a fonte meritória do Espírito, porque
mediante seu sacrifício expiatório ele pode conceder seu Espírito
vivificador ao crente. É por isso que Paulo fala que o “Espírito
da vida em Cristo Jesus te livrou da lei do pecado e da morte.”
(Rom. 8:2).
Resumindo, podemos dizer que embora
João não mencione o espírito do homem como tal, ele o visualiza
como cumprido e realizado pelo Espírito por meio do qual Cristo
concede ao crente uma nova vida, um renascimento espiritual.
Em certo sentido, o significado definitivo do sopro de Deus
como fonte da vida física é revelado e cumprido na nova vida
possibilitada pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rom.
8:2). Em parte alguma João identifica
o Espírito vivificador com uma alma imaterial, imortal, capaz
de separar-se do corpo. A função do espírito é simplesmente
operar um renascimento espiritual, isto é, uma transformação
moral na pessoa inteira do crente. Nos escritos de João não
há qualquer dualismo entre um corpo material, mortal, e uma
alma espiritual, imortal, porque o Espírito traz nova vida à
pessoa inteira.
O Espírito Como Nova Criação.
Paulo descreve a transformação moral efetuada pelo Espírito,
não como um renascimento, e sim como uma “nova criação” (2
Cor. 5:17; compare com 1 Cor. 6:11; Gál. 3:27; 6:15; Efé. 4:24).
As duas metáforas transmitem essencialmente a mesma ideia. Paulo
atribui importância vital ao papel do Espírito na nova vida
do crente. Isto é indicado pelo fato de que em suas cartas ele
faz referência ao espírito 146 vezes, em comparação com apenas
13 referências à alma. Wheeler Robinson afirma corretamente
que pneuma-espírito é “a palavra mais importante no vocabulário
psicológico de Paulo, talvez em seu vocabulário como um todo”.
[31]
A razão é que Paulo está preocupado em mostrar
que salvação é exclusivamente uma dádiva divina de graça mediada
pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rom. 8:2), e não uma
propriedade natural de uma alma imortal.
A salvação não é a remoção do espírito
ou da alma do corpo ou do mundo em que o corpo vive, e sim uma
renovação do corpo mediante o poder capacitador do Espírito.
Desse modo, a descrição que Paulo faz da vida cristã é em grande
medida feita em termos do poder do Espírito, que habilita o
crente a viver segundo a vontade revelada de Deus. O apóstolo
explica que Cristo veio “a fim de que o preceito da lei se cumprisse
em nós que não andamos segundo a carne, mas segundo o Espírito”
(Rom. 8:4).
Andar segundo o Espírito significa
colocar a mente “nas coisas do Espírito” (Rom. 8:5), ou seja,
viver em conformidade com os princípios de vida que Deus revelou,
em vez de andar de acordo com os desejos da carne. “Mas eu digo,
andai no Espírito, e jamais satisfareis os desejos da carne”
(Gál. 5:16). Andar segundo a carne
(kata sarka) significa fazer “as obras da carne” tais
como “fornicação, impureza, lascívia, idolatria, feitiçarias,
inimizades, porfias, ciúmes, iras, discórdias, dissensões, facções,
invejas, bebedices, glutonarias, e coisas semelhantes a estas,
a respeito das quais eu vos declaro, como já outrora vos preveni, que não herdarão o
reino de Deus os que tais coisas praticam” (Gál. 5: 19, 20).
Em contraste, andar segundo o espírito (kata pneuma)
significa produzir “o fruto do Espírito”, como “amor, alegria,
paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão,
domínio próprio” (Gál. 5:22, 23).
Os efeitos da nova criação que ocorrem
na vida do crente por meio do Espírito Santo são manifestos
especialmente num relacionamento de filiação; numa fé e esperança
inabaláveis; num ardente amor pelos irmãos; e num sólido testemunho
por Cristo. Mediante o Espírito, tornamo-nos membros da família
de Deus. “E porque vós sois filhos, enviou Deus aos nossos corações
o Espírito de seu Filho, que clama: Aba, Pai!.
Assim, por meio de Cristo não sois mais escravos e sim filhos
e portanto herdeiros.” (Gál. 4:6).
Por fim, o Espírito é a miraculosa
força dadora de vida da terceira pessoa da Divindade* que efetuará a ressurreição do corpo.
“Se habita em vós o espírito daquele que ressuscitou a Jesus
dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus
dentre os mortos, vivificará também os vossos corpos mortais,
por meio do seu Espírito que em vós habita” (Rom. 8:11;
compare com 1 Cor. 6:14; 2 Cor. 3:6; Gál. 6:8). Assim como o
Espírito esteve em operação na primeira criação (Gên. 2:7),
assim estará na ressurreição final. No capítulo 4 deste livro
vemos que a Bíblia em parte alguma sugere que o corpo ressuscitado
será religado a uma alma desincorporada. Em vez disso, a Bíblia
ensina que este corpo terreno será ressuscitado num “corpo espiritual-pneumatikos”
(1 Cor. 15:44), ou seja, uma pessoa
inteiramente dominada pela força vital do espírito divino.
A Carne e o Espírito. O contraste
que Paulo faz entre a carne e o Espírito tem levado muitos a
crer que o apóstolo distingue entre o corpo mortal, material,
e a alma imortal, espiritual.
[32]
Esta interpretação ignora o fato de que a
antítese que Paulo faz entre a carne e o espírito não é uma
dualidade de substâncias metafísicas, e sim um contraste de
orientação ético-religiosa.
O contraste mais claro entre carne
e espírito encontra-se na primeira parte de Romanos 8.
Aqui Paulo contrasta fortemente os que vivem “segundo a carne”
dos que vivem “segundo o Espírito”. “Porque os que se inclinam
para a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se inclinam
para o Espírito, das coisas do Espírito. Porque o pendor da
carne dá para a morte, mas o do Espírito, para a vida e paz”
(Rom. 8:5, 6).
A primeira coisa a destacar neste
e em trechos semelhantes (Gál. 5:16-26) é que Paulo nunca usa as palavras gregas para “corpo”
e “alma” (soma e psychê). Em vez disso, ele sempre
usa um conjunto diferente de termos, a saber, sarx e
pneuma que são traduzidos como “carne” e “espírito”.
Se Paulo tivesse em mente enfatizar a distinção entre o corpo
mortal e a alma imortal, ele teria usado as palavras gregas
soma (corpo) e psychê (alma) que eram padrão na
doutrina dualística grega. Mas o que Paulo tinha em mente era
algo inteiramente diferente, de modo que ele usa um conjunto
diferente de palavras para expressar isso.
Não pode haver qualquer dúvida de
que para Paulo “a carne” e “o Espírito” representam, não duas partes separadas e opostas da natureza
humana, e sim duas diferentes orientações éticas. Isso se faz
claro quando se compara sua lista das “obras da carne” (Gál.
5:19, 20) com o “fruto do Espírito”
(Gál. 5:22, 23). Aqui novamente as duas listas mostram que “carne”
e “Espírito” representam, não duas
partes separadas e opostas da natureza humana, mas dois tipos
diferentes de estilo de vida. Os pecados atribuídos à carne,
tais como “idolatria, feitiçarias, inimizades, porfias, ciúmes,
iras, discórdias, dissensões, facções, invejas” nada têm que
ver com impulsos físicos. “Poderiam muito bem ser praticados
por um espírito desincorporado”.
[33]
Charles Davis expõe claramente o
significado bíblico de carne e espírito, dizendo: “Ele [Paulo]
é plenamente hebreu em sua visão de mundo; ele via o homem simplesmente
como uma unidade. Consequentemente, sua antítese de carne (sarx)
e espírito (pneuma) não constitui uma oposição entre
matéria e espírito, entre corpo e alma. A ‘carne’ não é uma
parte do homem; e sim o homem inteiro, em sua fraqueza e mortalidade,
em seu distanciamento de Deus, em sua solidariedade com a criação
corrupta e pecaminosa. O ‘espírito’ é o homem aberto à vida
divina e pertencente à esfera do divino, o homem sob a influência
e atividade do Espírito. A carne e o espírito são dois princípios
ativos que afetam o homem e estão em conflito dentro dele”.
[34]
Numa linha de raciocínio similar,
George Eldon Ladd escreve que a “carne” refere-se ao homem “como
um todo, visto em sua condição falha, em oposição a Deus. Esse
uso é um desenvolvimento natural do uso que o Antigo Testamento
faz da palavra basar [carne], que é o homem visto em
sua fragilidade e debilidade perante Deus. Quando isto é aplicado
ao campo ético, torna-se o homem em sua fraqueza ética, isto
é, como pecaminoso perante Deus. Sarx [carne] representa,
não uma parte do homem, mas o homem como um todo – um homem
não regenerado, caído, pecaminoso”.
[35]
A carne e o Espírito representam
respectivamente o poder da morte e o poder da vida que podem
operar dentro de uma pessoa. Oscar Cullmann oferece esta esclarecedora
comparação entre ambas: “A ‘carne’ é o poder do pecado ou o
poder da morte. Abrange o homem exterior e interior conjuntamente.
O Espírito (pneuma) é o seu grande antagonista: o poder
da criação. Ele também abrange o homem exterior e interior em
conjunto. A carne e o espírito são poderes ativos, e como tais
eles operam dentro de nós. A carne, o poder da morte, entrou
no homem com o pecado de Adão. Ela entrou no homem completo,
interior e exterior, de maneira tal que está bem intimamente
ligado com o corpo. O homem interior encontra-se menos ligado
à carne; embora devido à culpa este poder da morte tenha se
apossado cada vez mais do homem interior. O espírito, por outro
lado, é o grande poder de vida, o elemento da ressurreição;
o poder criativo de Deus é dado a nós por meio do Espírito Santo”.
[36]
O poder animador do Espírito Santo é manifestado
nesta vida presente em nosso “homem interior [que] se renova
de dia em dia” (2 Cor. 4:16) pelo
poder transformador do Espírito (Efé. 4:23, 24).
A Carne Como a Natureza Humana
Pecaminosa. A carne-sarx representa a natureza humana não
regenerada, pecaminosa, mas não porque o pecado resida na natureza
física do corpo, em vez de residir na natureza “espiritual”
da alma. Afinal, o corpo de carne é o templo do Espírito (1
Cor. 6:19), um membro de Cristo (1 Cor. 6:15), e um meio de
glorificar a Deus (1 Cor. 6:20). A razão de a carne-sarx representar
a natureza humana decaída e pecaminosa é que ela representa
a fragilidade humana que pode tornar-se um instrumento do pecado.
O significado de “carne”, assim como
o significado de “mundo”, é ambivalente nos escritos do apóstolo
Paulo, assim como na Bíblia em geral. A carne e o mundo, enquanto
criados por Deus para o apropriado desfrute da humanidade, são
bons (Gên. 1:18, 21, 25, 31). Todavia,
quando a carne e o mundo negam sua condição de serem coisas
criadas e se rebelam contra Deus, reivindicando independência
e auto-suficiência, então se tornam
maus. É nesse sentido que carne (natureza carnal) e o mundanismo
são sinônimos de pecaminosidade. Poderíamos dizer que “a
carne-sarx” é neutra quando se refere à vida de uma pessoa no
mundo, mas é pecaminosa quando caracteriza uma pessoa que vive
para o mundo e permite que o mundo governe toda a sua vida e
conduta.
É evidente, então, que a antítese
entre “a carne” e “o Espírito” nada tem que ver com o dualismo
corpo-alma. A carne, em si mesma, não representa a parte da
natureza humana (o corpo) que é supostamente má, e o espírito
não representa a parte da natureza humana que é supostamente
boa (a alma). Quando usadas de modo negativo, “a carne” significa
o tipo de pessoa em quem a vida inteira, tanto física quanto
psíquica, está mal-direcionada, centrada no eu, em vez de em
Deus. Similarmente, “o espírito” não representa simplesmente
a parte espiritual da natureza humana, e sim o tipo de pessoa
em quem a vida total, tanto física quanto psíquica, é direcionada
a Deus em vez de a si mesma. O contraste entre “carne” e “espírito”
é ético, não ontológico.
É lamentável que muitos tenham interpretado
mal o que Paulo disse sobre isso.
A razão para isto é a falha em entender que para Paulo, e para
a Bíblia como um todo, o que corrompe uma pessoa não é o corpo
ou a carne, e sim o pecado. A carne pode tornar-se um instrumento
do pecado, e como tal afeta o corpo e a alma, assim como sua
contrapartida, o Espírito, transforma o corpo e a alma.
[37]
“O inimigo final do Espírito de Deus não
é a carne, e sim o pecado, do qual a carne se tornou o instrumento
fraco e corrupto”.
[38]
Conclusão. Nosso estudo do
uso do termo “espírito-pneuma” no Novo Testamento revelou que
o espírito, assim como a alma, não é um componente espiritual
independente da natureza humana que opera à parte do corpo.
Pelo contrário, o espírito é o princípio de vida que anima o
corpo físico e regenera a pessoa inteira.
Descobrimos que o significado e a
função do Espírito foram ampliados com a vinda de Cristo,
o qual foi identificado com o Espírito na obra
de salvação. O significado do espírito-pneuma como princípio
de vida é ampliado para incluir o novo princípio vital de regeneração
moral, possibilitado pela redenção de Cristo. O Espírito sustém
tanto o aspecto da vida física como o da moral-espiritual.
A transformação moral efetuada pelo
Espírito Santo é descrita de modo mais pleno no Novo Testamento
do que no Antigo Testamento. João e Paulo descrevem este processo
com duas metáforas diferentes, mas complementares. João concebe
a transformação moral interior como renascimento; Paulo, como
nova criação.
O “Espírito-pneuma” é a palavra mais
importante do vocabulário de Paulo pois ela serve para mostrar que a salvação é exclusivamente
uma dádiva divina de graça mediada pelo “Espírito de vida em
Cristo Jesus” (Rom. 8:2), e não a posse natural duma alma imortal.
Em parte alguma o Novo Testamento identifica o Espírito dador
de vida com uma alma imaterial, imortal, capaz de separar-se
do corpo.
A função do Espírito não é sustentar
uma alma imortal, espiritual, e sim suster tanto a vida física
como a espiritual. Tanto a criação como a recriação, nascimento
e renascimento, são ações do Espírito, pois, conforme Jesus
explicou, “é o Espírito que dá vida” (João 6:63).
A antítese de Paulo entre “a carne”
e “o Espírito” nada tem quer ver com o dualismo corpo-alma.
Os dois representam, não partes separadas
e opostas da natureza humana, e sim duas orientações éticas
diferentes de uma pessoa: viver uma vida centralizada no eu
versus viver uma vida centralizada em Deus. Em suma, podemos
dizer que o espírito, assim como a alma, descreve,
não uma entidade separada da natureza humana, e sim um aspecto
da totalidade da natureza humana.
O sentido de corpo-soma ou de carne-sarx no Novo
Testamento é semelhante às palavras correspondentes do Antigo
Testamento (corpo-geviyyah e carne-bashar), examinadas
no capítulo anterior. Em seu uso literal, o termo “corpo” descreve
a realidade concreta da vida humana que consiste de carne e
sangue. No Novo Testamento, porém, “corpo-soma” é usado na maior
parte das vezes em sentido figurado para denotar a pessoa como
um todo (Rom. 6:12; Heb. 10:5), a
natureza humana corrupta (Rom. 6:12; 8:11; 2 Cor. 4:11), a Igreja
como corpo de Cristo (Efé. 1:23; Col. 1:24), o corpo ressuscitado
dos remidos (1 Cor. 15:44), e a presença espiritual de Cristo
simbolizada pelo pão e vinho (1 Cor. 11:27). Para o propósito
de nossa investigação, focalizamos primariamente o conceito
do Novo Testamento do corpo humano em relação à pessoa total.
Cristo e o Corpo Humano. Para apreciar a avaliação positiva
do corpo humano no Novo Testamento, precisamos refletir sobre
sua doutrina central da encarnação. Por exemplo, o evangelho
de João anuncia no início que o Filho eterno de Deus “se fez
carne e habitou entre nós” (João 1:14).
A própria ideia de que o Filho eterno de Deus entrou no tempo
e no espaço humanos e assumiu uma natureza humana plena, incluindo
um corpo, era incompreensível para o pensamento grego. De fato,
o Gnosticismo, um influente movimento sectário cristão, influenciado
pelo dualismo grego, rejeitava abertamente a encarnação de Cristo.
Isso ilustra vigorosamente a diferença entre o conceito holístico
bíblico da natureza humana, que atribui valor ao corpo, e o
conceito dualístico grego, que considera o corpo como a prisão
da alma, a ser descartado com a morte.
Qualquer pessoa que aceite totalmente a doutrina neotestamentária
da encarnação nunca poderia acusar os escritores do Novo Testamento
de denegrir o corpo humano ou a ordem física. O fato de que
o Filho divino de Deus assumiu um corpo humano para viver nesta
Terra dá dignidade e importância ao corpo e a todo o domínio
físico.
É também significativo observar que o mesmo Verbo eterno por
meio do qual “todas as coisas foram feitas” (João 1:3) na criação
veio a este mundo para redimir e restaurar não só a “alma”,
e sim o homem integral e o mundo inteiro. “Este é o significado
da estranha doutrina da ressurreição do corpo, que, mais do
que qualquer outra coisa, horrorizava e causava rejeição no
mundo grego. Esta doutrina servia para realçar, na forma mais
vigorosa possível, o conceito do Novo Testamento de que não
é alguma parte do homem (sua ‘alma’ racional) que está destinada
à eternidade; é a pessoa inteira que tem
o seu lugar no propósito de Deus”.
[39]
A ressurreição do corpo é necessária para a vida no mundo futuro
porque o Novo Testamento nunca aceitou a crença na imortalidade
da alma. A vida sem o corpo é inconcebível. Uma vez que o corpo
é nossa existência humana concreta, a ressurreição dele é indispensável
para assegurar uma personalidade e vida plenas na nova terra.
A Fé Cristã é “Materialística”. Neste ponto vale a pena lembrar que a esperança do Antigo Testamento para o mundo por vir é extremamente “materialística”. Enquanto os gregos tinham a expectativa de um escape final da alma desta terra para uma região etérea, os crentes do Antigo Testamento aguardavam o estabelecimento do reino de Deus sobre esta terra (Dan. 2:44; 7:27). O reino messiânico trará a consumação da história humana sobre a Terra de acordo com o propósito criativo de Deus.
A mesma crença é proeminente no Novo Testamento. Cristo veio a este mundo para redimir tanto o homem quanto a criação sub-humana (Rom. 8:22, 23) e ele retornará a esta Terra para estabelecer uma nova ordem física. “Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe” (Rev. 21:1). A terra inteira, incluindo o corpo humano, não é aniquilada, e sim aperfeiçoada. “E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras cousas passaram” (Rev. 21:4). “Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo” (Rev. 21:2).
A renovação final desta Terra é a contrapartida cosmológica da doutrina da ressurreição do corpo. Assim como o crente individual não escapará do corpo no fim, mas receberá um corpo imperecível (1 Cor. 15:53), os remidos também não serão arrebatados para sempre deste planeta para o céu, mas serão estabelecidos nesta Terra, restaurada à sua perfeição original como o lugar do reino glorioso e eterno de Deus.
“Não há qualquer sugestão aqui”, escreve D. R. G. Owen, “de ‘almas’ desincorporadas buscando penosamente o seu caminho para o céu, para ali permanecerem por toda a eternidade como ‘espíritos’ puros. É exatamente o contrário: Deus desce até o homem; o Verbo tornou-se carne; o céu desce à Terra; a cidade santa desce da parte de Deus no céu... Assim, ao final da Bíblia, em sua doutrina das últimas coisas, da mesma forma que no princípio, em sua doutrina das primeiras coisas, a significância eterna de todo o reino físico é inequivocamente declarada.” [41]
Owen
conclui observando que “as implicações deste materialismo bíblico
para a antropologia bíblica – implicações que são delineadas
pela doutrina da ressurreição do corpo em oposição à doutrina
da imortalidade da alma separada – são as seguintes: primeiro,
o ‘corpo’ é um aspecto essencial da personalidade humana e não
uma parte descartável que finalmente será posta de lado; e,
em segundo lugar, a pessoa inteira, e não uma ‘alma’ desincorporada,
é que se destina à vida eterna”.
[42]
O corpo-soma pode significar a pessoa completa. Por exemplo,
quando Paulo diz: “ainda que eu entregue o meu próprio corpo
para ser queimado” (1 Cor. 13:3), ele está se referindo obviamente à sua pessoa
integral. Similarmente, quando ele diz, “esmurro o meu corpo,
e o escravizo, para que, tendo pregado a outros, não venha eu
mesmo a ser desqualificado” (1 Cor. 9:27) ele quer dizer que está colocando a si mesmo
sob controle. O oferecimento do corpo como um sacrifício vivo
(Rom. 12:1) significa a submissão do próprio eu a Deus. O desejo
de Paulo de que “em nada serei envergonhado; antes, com toda
a ousadia, como sempre, também agora, será Cristo engrandecido
no meu corpo, quer pela vida, quer pela morte” (Fil. 1:20) significa honrar a Cristo como pessoa completa. Em
referências como essas, o corpo representa a pessoa inteira,
como responsável por certas ações.
Como o corpo se torna um instrumento de pecado, o alvo da vida
cristã é exercer autodomínio sobre ele para impedi-lo de dominar
a vida espiritual de alguém. Paulo estabelece esta verdade claramente
em 1 Coríntios 9 onde ele se compara
com um atleta em treinamento que exerce rigoroso autocontrole
para impedir que seu corpo prevaleça sobre sua vida espiritual.
“Mas esmurro o meu corpo, e o reduzo à escravidão, para que,
tendo pregado a outros, não venha eu mesmo a ser desqualificado”
(1 Cor. 9:27).
O autodomínio sobre o corpo é conseguido principalmente por
consagrá-lo a Deus como um sacrifício vivo (Rom. 12:1). Isto
é obtido, não por meio de práticas ascéticas e mortificação
do próprio corpo, e sim por fazê-lo sensível aos ditames da
Palavra de Deus. O cristão reconhece que o seu corpo é a morada
do Espírito Santo (1 Cor. 6:19).
Cultivar a presença do Espírito Santo no corpo de alguém significa
fazer todos os nossos prazeres e atividades físicas subservientes
a objetivos espirituais.
Conclusão. O corpo no Novo Testamento denota a pessoa
inteira, tanto literalmente, como na realidade concreta da existência
humana, e figurativamente, na submissão da pessoa à influência
do pecado ou ao poder do Espírito Santo. O Novo Testamento vê
o corpo como um aspecto essencial da pessoa inteira que não
pode ser separado da alma, nem descartado.
O significado do corpo no Novo Testamento é reforçado pela encarnação
de Cristo que tomou um corpo humano para cumprir Sua missão
redentora na Terra. A encarnação de Cristo num corpo humano
e Sua ressurreição num corpo glorificado (João 20:27)
nos dizem que o corpo tem significação eterna no propósito criativo
e redentor de Deus. Isso é confirmado pela ressurreição do corpo,
o que demonstra que até mesmo na nova terra, o corpo será uma
parte essencial da existência humana.
O termo coração-kardia no Novo Testamento é usado com a mesma
ampla gama de sentidos que encontramos no Antigo Testamento
(leb e lebab). Não precisamos deter-nos no estudo
do significado e usos do termo coração no Novo Testamento.
Essencialmente, o coração-kardia representa a vida interior
completa de uma pessoa em seus vários aspectos. Ela significa,
assim como o espírito, o centro emocional, intelectual e espiritual
de uma pessoa. O fato de que “coração” e “espírito” são usados
de maneira similar demonstra novamente o conceito holístico
bíblico da natureza humana, onde uma parte da natureza humana
pode ser usada com referência à pessoa inteira.
O Coração Como Sede da Experiência Religiosa. Deus se
comunica com uma pessoa no coração. Ele pesquisa o coração humano
e o põe à prova (Luc. 16:15; Rom. 8:27; 1 Tes. 2:4). Deus escreve sua lei no coração
humano (Rom. 2:15; 2 Cor. 3:2; Heb.
8:10). Ele abre o coração humano (Luc. 24:45;
Atos 16:14). Ele brilha em nossos corações para nos dar luz
do conhecimento de Jesus Cristo (2 Cor. 4:6). A paz de Deus guarda nossos corações e mentes
em Cristo (Fil. 4:7). O Espírito de Deus é derramado em nossos
corações. (Rom. 5:5; 2 Cor. 1:22;
Gál. 4:6).
Cristo habita o nosso coração e atua nele por meio da fé (Efé.
4: 17, 18). O coração cristão é purificado e santificado por
meio da fé e do batismo (Atos 15:9; Heb. 10:22).
O coração é purificado (Mat. 5:8) e fortalecido por Deus (1
Tes. 3:13). A paz de Cristo pode reinar no coração (Col. 3:15).
O coração recebe as primícias do Espírito (2
Cor. 1:22).
As virtudes cristãs são atribuídas ao coração. O amor é associado
com o coração (2 Tes. 3:5; 1 Ped.
1:22). A obediência está ligada ao coração. (Rom. 6:17;
Col. 3:22). O perdão deriva do coração. (Mat. 18:35).
A gratidão reside no coração. (Col. 3:16).
A paz de Deus habita no coração. (Fil. 4:7). Acima de tudo,
o amor a Deus e ao próximo procede do coração (Mar. 12:30, 31; Luc. 10:27; Mat. 22:37-39).
Os exemplos de textos citados acima indicam claramente que a
palavra “coração” é usada para descrever a vida interior da
pessoa completa. Isso levou Karl Barth a concluir que “o coração
não é simplesmente uma parte e sim a realidade do homem, tanto
na inteireza da alma, como na inteireza do corpo”.
[44]
O fato de o coração representar a vida interior
completa de uma pessoa, assim como se dá exatamente no caso
do espírito, revela novamente a perspectiva holística bíblica
da natureza humana.
Na “Conferência Ingersoll Sobre a Imortalidade do Homem”, realizada
na Capela Andover da Universidade de Harvard em 1955, o teólogo
suíço Oscar Cullmann acentuou a diferença fundamental entre
a doutrina cristã da ressurreição e o conceito grego da imortalidade
da alma. Disse ele: “A alma não é imortal. Deve haver uma ressurreição
para ambos [corpo e alma]; pois desde a Queda o homem inteiro
é ‘semeado corruptível’”.
[48]
Esta famosa conferência, que depois foi publicada
em forma de livro, sob o título Imortalidade da Alma ou Ressurreição
dos Mortos? provocou violenta hostilidade por parte de alguns que acusaram
Cullmann de ser um “monstro que se deleita em causar angústia
espiritual”.
[49]
Um autor declarou: “Ao povo francês, morrendo
por falta do Pão da Vida, foi em vez disso oferecido pedras,
se não serpentes”.
[50]
Essas reações violentas exemplificam quão
difícil é para as pessoas reexaminarem crenças que acalentam
há muito tempo.
Em seu livro Ensinos Cristãos Básicos, o teólogo luterano
Martin Heinechen rejeita como “falso dualismo” a noção de que
por ocasião da criação “Deus fez uma alma, que é a pessoa verdadeira,
e que daí Ele deu a essa alma uma lar temporário num corpo,
feito do pó da terra... O homem deve ser considerado como uma
unidade... O dualismo cristão não é o da alma e corpo, mente
eterna e coisas transitórias, e sim o dualismo do Criador e
criatura. O homem é uma pessoa, um ser unificado, um centro
de responsabilidade, apresentando-se perante seu Criador e Juiz.
Ele não tem qualquer vida ou imortalidade dentro de si mesmo”.
[51]
No Comentário Bíblico de Bolso, Basil F. C. Atkinson,
bibliotecário da Universidade de Cambridge, escreve, com referência
a Gênesis 2:7: “Às vezes se pensou que a concessão do princípio
de vida, conforme nos é apresentado neste versículo,
implica em imortalidade do espírito ou da alma. Têm-se dito
que ser feito à imagem de Deus envolve a imortalidade. A Bíblia
nunca diz isso. Se envolve imortalidade, por que não envolve
também onisciência ou onipotência, ou qualquer outra qualidade
ou atributo do Infinito?... Ao longo da Bíblia o homem, à parte
de Cristo, é concebido como feito de pó e cinzas, uma criatura
física, a quem o princípio de vida é emprestado por Deus. Os
pensadores gregos tendiam a pensar no homem como sendo uma alma
imortal aprisionada num corpo. A ênfase é oposta à da Bíblia,
mas encontrou amplo espaço no pensamento cristão”.
[52]
Em O Significado Bíblico do Homem, Dom Wulstan Mork, que é também um erudito católico dominicano, desafia o conceito dualístico tradicional da natureza humana e encoraja o leitor a recuperar a perspectiva holística bíblica. Escreve ele: “O homem bíblico, ou seja, o homem conforme revelado na Bíblia, é uma unidade de carne, alma, e espírito, não uma tricotomia, nem uma dicotomia de corpo e alma”. Ele prossegue observando que a Bíblia vê o “homem como um todo, um conceito salutar para uma vida integral e equilibrado, e fortemente relacionada com Deus, a humanidade e toda a criação. Precisamos desse conceito hoje, para contrapor a uma atitude platônica ainda à espreita, e corrigir uma aceitação por demais natural e secularizada da situação humana”. [54] Mork acredita que uma recuperação da perspectiva holística bíblica da natureza humana contribuirá para “uma atitude mais salutar para com a pessoa humana, e, de fato, para com a questão em geral”. [55]
Reinhold Niebuhr, renomado teólogo americano e durante muito tempo professor no Seminário Teológico Union, contrasta o conceito holístico bíblico da natureza humana com o conceito dualístico clássico. Ele conclui: “Todas as provas plausíveis e não plausíveis para a imortalidade da alma são esforços por parte da mente humana de compreender e controlar a consumação da vida. Todos estes esforços tentam provar de um modo ou de outro que um elemento eterno na natureza do homem é digno e capaz de sobreviver além da morte. Mas toda técnica mística ou racional que procura criar o elemento eterno tende a negar o significado da unidade histórica de corpo e alma; e com isso o sentido de todo o processo histórico com suas infinitas elaborações dessa unidade’”. [56]
Em seu livro A Esperança Cristã, o teólogo luterano T. A. Kantonen observa que “tem sido característica do pensamento ocidental, desde Platão, fazer uma distinção radical entre a alma e o corpo. O corpo é supostamente composto de matéria, e a alma de espírito. O corpo é uma prisão da qual a alma se liberta por ocasião da morte para levar adiante sua existência própria não física. Assim, o tema da vida após a morte tem sido uma questão de demonstrar a imortalidade, a capacidade da alma de desafiar a morte. O corpo é de pouca consequência. Este modo de pensar é inteiramente alheio à Bíblia. Em perfeita harmonia com as Escrituras e rejeitando decididamente a visão grega, o Credo Apostólico não diz, ‘Creio na imortalidade da alma’, e sim ‘Creio na ressurreição do corpo’”. [57]
Em seu notável estudo sobre o conceito bíblico da natureza humana, intitulado Corpo e Alma, R. G. Owen, ex-reitor do Trinity College, da Universidade de Toronto, oferece uma perspicaz análise do contraste entre o conceito dualístico grego e o conceito holístico bíblico da natureza humana. Owens constata que o homem na Bíblia é um “todo psicossomático unificado” e que “não pode haver parte separável do homem que sobreviva à morte física”. [58] “A Bíblia”, escreve ele, “presume que a natureza humana é uma unidade; no Novo Testamento ela ensina que o destino final do homem envolve a ‘ressurreição do corpo’”. [59] Owens propõe que “a velha doutrina da imortalidade da alma separada deve ser tranquilamente posta agora mesmo no lugar dos espíritos dos mortos.” [60]
Emil Brunner, um bem conhecido teólogo suíço, acha o conceito dualístico da natureza humana irreconciliável com a perspectiva holística bíblica. Ele escreve: “Em alguma parte da fé cristã deve ter havido alguma abertura pela qual essa doutrina estranha pôde penetrar. Seguramente, do ponto de vista bíblico, só Deus é quem possui imortalidade. A opinião de que nós homens somos imortais em razão de nossa alma ser de uma essência indestrutível, por ser divina, é, de uma vez por todas, irreconciliável com o conceito bíblico sobre Deus e o homem”. [61]
Brunner considera várias implicações negativas da concepção dualística da natureza humana. Primeiramente, ele assinala que o efeito do dualismo “não é simplesmente tornar a morte inócua, mas também roubar do mal o seu aguilhão. Assim como a morte afeta só a parte inferior do homem, isso se dá igualmente no caso do mal. Essa parte inferior consiste apenas no sensual e impulsivo. Eu mesmo não sou verdadeiramente responsável pelo mal, só minha parte inferior, que está como que ligada ao meu melhor, mais elevado e verdadeiro ser. Desse modo, o mal não é ação do espírito, nem rebeldia do eu contra o Criador, mas simplesmente uma natureza sensual ou impulsiva que não foi domada pela mente. Em suma, o mal é a ausência da mente, não pecado”. [62]
Uma segunda implicação é que “o homem em seu ser espiritual e mais elevado é divino, não tem caráter de criatura. Deus não é seu criador, Deus é o todo do qual o espírito humano constitui só uma parte. O homem é um participante do divino no sentido mais direto e literal. Daí, uma vez que essa maneira de retirar do mal o seu aguilhão é necessariamente paralelo com tornar a morte inócua por meio do ensino da imortalidade, esta solução do problema da morte revela-se em irreconciliável oposição ao pensamento cristão”. [63]
Em seu livro Creio no Segundo Advento, Stephen H. Travis, um respeitado teólogo britânico, diz que se ele fosse pressionado a escolher entre “punição eterna” e “imortalidade condicional”, ele optaria pela última. A primeira razão que ele dá é que a “imortalidade da alma é uma doutrina não bíblica derivada da filosofia grega. No ensino bíblico o homem é ‘condicionalmente imortal’ - isto é, ele tem a possibilidade de tornar-se imortal se receber a ressurreição ou imortalidade como uma dádiva de Deus. Isso deixaria implícito que Deus concede a ressurreição àqueles que o amam, mas os que a Ele resistem são eliminados da existência”. [64]
Travis observa que “o velho conceito da alma, que costumava ser a salvaguarda da continuidade da pessoa desta vida para a próxima, foi amplamente abandonado no pensamento moderno. A natureza do homem é concebida como uma unidade; ele não consiste em duas partes, um corpo físico que morre e uma alma que continua vivendo para sempre. Sua ‘alma’ ou ‘eu’ ou ‘personalidade’ é simplesmente uma função cerebral. Assim, quando o cérebro morre, a pessoa morre, e não fica nada para adentrar noutra vida”. [65]
Bruce Reichenbach, um filósofo americano, examina a natureza humana em seu livro É o Homem a Fênix?. Ele conclui que “a doutrina de que o homem como pessoa [alma] não morre apresenta dificuldades particulares para o cristão dualista. Por um lado, isso é evidentemente contrário aos ensinos das Escrituras... [Ele cita vários textos]. Cada um destes e numerosos outras trechos indicam que cada um de nós, como pessoa, deve morrer. Não há qualquer indício de que a única coisa sobre a qual se fala é a destruição do organismo físico, e que a pessoa verdadeira, a alma, não morre, mas prossegue vivendo”. [66]
Donald
Bloesch, proeminente erudito evangélico, dá apoio à mesma conclusão,
dizendo: “Não existe imortalidade inerente da alma. A pessoa
que morre, até mesmo aquela que morre em Cristo, confronta-se
com a morte tanto do corpo quanto da alma”.
[67]
Anthony Hoekema, teólogo calvinista,
concorda: “Não podemos apontar qualquer qualidade inerente no
homem ou qualquer aspecto do homem que o torne indestrutível”.
[68]
F. F. Bruce, respeitado erudito
britânico em Novo Testamento, adverte que “nosso pensamento
tradicional sobre uma ‘alma que nunca morre’, que deve tanto
à nossa herança greco-romana, torna difícil que apreciemos o
conceito [holístico] de Paulo”.
[69]
Murray Harris, erudito bíblico
americano, conclui seu artigo sobre “Ressurreição e Imortalidade”
dizendo: “O homem não é imortal porque possui ou é uma alma.
Ele se torna imortal porque Deus o transforma por levantá-lo
dentre os mortos”.
[70]
Ele explica que enquanto o pensamento
platônico tornou a imortalidade “um atributo inalienável da
alma,... a Bíblia não contém qualquer definição da constituição
da alma que implique sua destrutibilidade”.
[71]
Em sua dissertação de doutorado “O Sheol no Antigo Testamento”, Ralph Walter Doermann conclui sua análise do conceito do Antigo Testamento sobre a natureza humana dizendo: “É evidente com base na perspectiva hebraica da unidade psicossomática do homem que havia pouco espaço para a crença na ‘imortalidade da alma’. Ou a pessoa completa vivia ou a pessoa inteira sucumbia à morte. Não havia existência independente para o ruach [espírito] ou para a nephesh [alma] à parte do corpo. Com a morte do corpo o ruach [espírito] impessoal ‘retornou para Deus que o deu’ (Ecl. 12:7) e a nephesh [alma] foi destruída, embora ela esteja ainda presente, num sentido muito débil, nos ossos e no sangue”. [72]
H. Dooyeweerd, filósofo holandês calvinista, critica fortemente o conceito dualístico da natureza humana. Ele rejeita essa perspectiva não só porque “a ideia de uma substância centralizada na razão humana (ou seja, a alma) está em conflito com a confissão da corrupção radical da natureza humana, como também porque a separabilidade da alma do corpo suscita vários problemas”. Um dos problemas que ele menciona é a impossibilidade de a “alma” executar atividades estando separada do corpo, porque as funções psíquicas estão indissoluvelmente ligadas ao relacionamento temporal total e às funções do corpo.
No Novo Testamento, a “alma-psychê”
não é uma entidade imaterial e imortal que sobrevive à morte
do corpo, mas a pessoa inteira como um corpo vivo, com sua personalidade,
apetites, emoções e habilidades de raciocínio. A alma-psychê
denota a vida física, emocional e espiritual.
Paulo nunca usa o termo “alma-psychê” para denotar a vida que
sobrevive à morte. Em vez disso, ele identifica a alma com nossa
natureza física (psychikon), que está sujeita à lei do pecado
e da morte (1 Cor. 15:44). Para assegurar
que seus conversos gentios entendiam que nada há de imortal
na natureza humana em si mesma, Paulo usou o termo “espírito-pneuma”
para descrever a nova vida em Cristo, a qual o crente recebe
integralmente como um dom do Espírito de Deus tanto agora quanto
na ressurreição.
O “espírito-pneuma”, assim como a alma, não é um componente
espiritual independente da natureza humana que trabalha à parte
do corpo, e sim o princípio de vida que anima o corpo físico
e regenera a pessoa inteira. Descobrimos que o significado e
a função do Espírito são ampliados com a vinda de Cristo, que
é identificado com o Espírito na obra da salvação. O significado
do espírito-pneuma como princípio de vida é ampliado para incluir
o princípio da nova vida de regeneração moral possibilitada
por meio da redenção de Cristo.
O Espírito sustenta tanto o aspecto físico quanto o moral da
vida. A transformação moral realizada pelo Espírito Santo é
descrita mais plenamente no Novo Testamento do que no Antigo
Testamento. João e Paulo descrevem este processo com duas metáforas
diferentes, contudo complementares: renascimento e nova criação.
O Espírito-pneuma é a palavra mais importante do vocabulário
de Paulo sobre este tópico porque ela serve para demonstrar
que a salvação é exclusivamente uma dádiva divina de graça mediada
pelo “Espírito de vida em Cristo Jesus” (Rom. 8:2) e não a posse
natural duma alma imortal. Em parte alguma o Novo Testamento
identifica o Espírito dador de vida com uma alma imaterial,
imortal capaz de se separar do corpo.
A função do Espírito não é suster uma alma espiritual, imortal,
e sim dar sustentação tanto à nossa vida física quanto espiritual.
Tanto a criação quanto a recriação, o nascimento e o renascimento,
são atos do Espírito porque Jesus explicou: “é o Espírito que
vivifica” (João 6:63). O espírito,
da mesma forma que a alma, descreve,
não uma entidade separada da natureza humana, mas a pessoa inteira,
enquanto sustentada e transformada pelo Espírito de Deus.
O coração no Novo Testamento representa a vida interior completa
de uma pessoa. Significa, assim como o Espírito, as funções
emocionais, intelectuais e espirituais de alguém. O fato de
que tais funções são igualmente atribuídas ao coração e ao espírito
demonstra que o Novo Testamento, assim como o Antigo Testamento,
vê a natureza humana como uma unidade indissolúvel, não como
uma composição de diferentes “peças”.
Resumindo nossa pesquisa do conceito da natureza humana tanto
no Antigo como no Novo Testamento, podemos dizer que a Bíblia
é coerente ao ensinar que a natureza humana é uma unidade indissolúvel,
na qual o corpo, a alma e o espírito representam diferentes
aspectos da mesma pessoa, e não diferentes substâncias ou entidades
que funcionam de maneira independente. Esta perspectiva holística
da natureza humana remove a base para a crença na sobrevivência
da alma por ocasião da morte do corpo.
Notas:
[1]
Uma pesquisa bem abrangente da literatura
intertestamentária que aborda a natureza e o destino humanos
encontra-se em H. C. C. Cavalin, Vida Após a Morte: O Argumento
de Paulo em Favor da Ressurreição dos Mortos em I Coríntios;
Parte 1: Uma Investigação Dentro do Contexto Judaico. (Lund:
Holanda 1974). Outro estudo erudito é o de George Nickelsburg
Jr. em Ressurreição, Imortalidade e Vida Eterna no Judaísmo
Intertestamentário. (Cambridge, 1972).
[2]
2 Baruque 30, citado de R. H. Charles, Os Apócrifos e Pseudoepígrafos
do Velho Testamento em Inglês Com Notas Introdutórias e Explanações
Críticas para Vários Livros (Oxford, 1913), pág. 498.
[3]
Comentando
sobre este texto, R. H. Charles escreveu: “Esta imortalidade
condicional do homem aparece também em 1
Enoque 69:l 1; Sabedoria 1:13, 14; 2 Enoque 30:16, 17; 4 Esdras
3:7” (Ibid., pág. 477).
[4]
Ibid., pág. 49. Segundo R. H. Charles,
“Este é o exemplo atestado mais antigo desta expectativa nos
dois últimos séculos A.C.”. (Ibid., pág. 10).
[5]
Ibid., pág. 538.
[6]
Veja 4 Macabeus
10:15; 13:17; 18:18; 18:23.
[7]
Veja 4 Macabeus
9:8,32; 10:11,15; 12:19; 13:15.
[8]
H. Wheeler Robinson, A Doutrina Cristã
do Homem (Edimburgo, 1952), pág. 74.
[9]
Basil
F. C. Atkinson, Vida e Imortalidade (Taunton, Inglaterra,
S. D.), pág. 12.
[10]
John A. T. Robinson, O Corpo: Um Estudo
da Teologia Paulina (Londres, 1966), pág. 23.
[11]
Edward Schweizer, “Psyche”, Dicionário
Teológico do Novo Testamento, ed., Gerhard Friedrich,
(Grand Rapids, 1974), Vol. 9, pág. 640.
[12]
O dado numérico é fornecido por Basil F.
C. Atkinson (nota 9), pág. 14.
[13]
Edward Schweizer (nota 11), pág. 644. (Veja
também a pág. 653).
[14]
Robert A. Morey, A Morte e a Vida Após
a Morte (Mineápolis, 1984), pág. 152.
[15]
Oscar
Cullmann, “Imortalidade da Alma ou Ressurreição dos Mortos?”
em Imortalidade e Ressurreição. A Morte no Mundo Ocidental:
Duas Correntes de Pensamento Conflitantes, ed. Krister
Stendahl (Nova Iorque, 1968), págs. 36, 37.
[16]
Edward William Fudge, O Fogo Que Consome
(Houston, l989), pág. 173.
[17]
Ibid., pág. 177.
[18]
Edward Schweizer (nota 11), pág. 646.
[19]
O
dado numérico é fornecido por Edward Sehweizer (nota 11),
pág. 648, n. 188.
[20]
Este conceito é
expresso por Edward Schweizer (nota 11), pág. 650. Similarmente,
Tony Hoff observa que “Paulo nunca usa psychê para
a vida que sobrevive à morte [porque] ele estava ciente da
possibilidade dessa exata distorção durante esse tempo. Ele
sabia que a presença de uma tradição platônica iria confundir
particularmente os conversos gentílicos” (“Nephesh e o Cumprimento
Que Ela Recebe Como Psyche” em Para um Conceito Bíblico
do Homem: Algumas Leituras, ed. Arnold H. De Graff e James
H. Olthuis [Toronto, 1978], pág. 114).
[21]
João
Calvino, Institutos da Religião Cristã, tradução de
F. L. Battles (Filadélfia, 1960), Vol. 1, pág. 192.
[22]
Ibid.
[23]
H.
Wheeler Robinson (nota 8), pág.
122.
[24]
Catecismo da Igreja Católica (Roma, 1994), págs.
93-94.
[25]
Ibid., pág. 93.
[26]
Edward
Schweizer (nota 11), pág. 651.
[27]
W.
White, “Espírito”, Enciclopédia Pictórica da Bíblia Zondervan,
ed. Merrill C. Tenney (Grand Rapids, 1978), Vol. 5, pág. 505.
[28]
David
W. Stacey, O Conceito Paulino do Homem (Londres, 1956),
pág. 135.
[29]
Claude Tresmontant, Um Estudo do Pensamento
Hebraico (Nova Iorque, 1960), pág. 107.
[30]
Henry
Barclay Swete, O Espírito Santo no Novo Testamento
(Londres, 1910), pág. 342.
[31]
Wheeler Robinson (nota 8),
pág. 109.
* Nota do revisor: O autor deste livro
evidentemente aceitava o ensino da Trindade. Não compartilhamos
este conceito. Para mais informações sobre nossa posição nesta
questão, veja o folheto “O Único Deus Verdadeiro” – Um
Estudo Bíblico Sobre a Trindade, disponível no Mentes
Bereanas.
[32]
Veja
por exemplo, Robert A. Morey (nota 14), pág. 62; W. Morgan,
A Religião e a Teologia de Paulo (Nova Iorque, 1917),
pág. 17 e seguintes. Uma apresentação clássica da interpretação
dualística de carne e Espírito se encontra em O. Pfleiderer,
Cristianismo Primitivo (Nova Iorque, 1906), Vol. 1,
pág. 280 em diante. Veja também a dissertação de Mary E. White,
“A Contribuição Grega e Romana”, em A Herança da Cultura
Ocidental, ed. R. C. Chalmers (Toronto, 1952), págs. 19-21.
Ela argumenta que o contraste entre carne e espírito deriva
do dualismo grego e “tem resultado em muitos séculos de mortificação
da carne antes que o equilíbrio seja restaurado” (pág. 21).
[33]
D. E. H. Whiteley, A Teologia de S. Paulo
(Grand Rapids, 1964), pág. 39.
[34]
Charles Davis, “A Ressurreição do Corpo”,
Theology Digest (1960), pág. 100.
[35]
George Eldon Ladd, Uma Teologia do Novo Testamento
(Grand Rapids, 1974), pág. 472.
[36]
Oscar
Cullmann (veja a nota 15), págs. 25, 26.
[37]
Para
uma iluminadora discussão sobre o entendimento do dualismo
de Paulo, ver Ronald L. Hall, “Dualismo e Cristianismo. Uma
Reconsideração”, Center Journal (outubro de 1982),
págs. 43-55.
[38]
H.
Wheeler Robinson (nota 8), pág.
117.
[39]
D.
R. G. Owen, Corpo e Alma (Filadélfia, 1956), pág. 171.
[40]
Ronald Hall (nota 37), pág. 50.
[41]
D.
R. G. Owen (nota 39), pág. 174.
[42]
Ibid., págs. 174-175.
[43]
Rudolf
Bultmann, Teologia do Novo Testamento (Nova Iorque,
1951), pág. 194.
[44]
Karl Barth, Church Dogmatics (Edimburgo,
1960), Vol. 3, parte 2, pág. 436.
[45]
Para uma pesquisa abrangente de líderes eclesiásticos
e eruditos que ao longo da história cristã mantiveram a visão
holística da natureza humana e assim a imortalidade condicional,
veja os monumentais dois volumes de LeRoy
Edwin Froom, A Fé Condicionalista de Nossos Pais: O Conflito
das Eras Sobre a Natureza e o Destino do Homem (Washington,
D. C., 1965).
[46]
William
Temple, Fé e Vida Cristã (Londres, 1954), pág. 81.
[47]
William
Temple, Homem, Natureza e Deus (Londres, 1953), pág.
472.
[48]
Oscar
Cullmann (veja a nota 36), pág. 28.
[49]
Ibid., pág. 47.
[50]
Ibid.
[51]
Martin
J. Heinecken, Ensinos Cristãos Básicos (Filadélfia,1949),
págs. 37, 133.
[52]
Basil
F. C. Atkinson, Comentário Bíblico de Bolso (Londres,
1954), Parte 1, pág. 32.
[53]
Claude
Tremontant, S. Paulo e o Mistério de Cristo (Nova Iorque,
1957), págs. 132-133. Os itálicos foram acrescentados. Numa
linha de pensamento semelhante, Y. B. Tremel, erudito dominicano
francês, fez uma notável admissão: “O Novo Testamento obviamente
não concebe a vida humana após a morte filosoficamente ou
em termos da imortalidade natural da alma. Os autores sagrados
não pensam na vida por vir como o termo de um processo natural.
Pelo contrário, para eles é sempre o resultado de salvação
e redenção; depende da vontade de Deus e da vitória em Cristo”
(“O Homem Entre a Morte e a Ressurreição”, Theology Digest
[outono de 1957], pág. 151).
[54]
Dom
Wulstan Mork, O Significado Bíblico do Homem (Milwaukee,
WI, 1967), pág. x.
[55]
Ibid., pág. 49.
[56]
Reinhold
Niebuhr, A Natureza e o Destino do Homem (Nova Iorque,
1964), pág. 295. Itálicos acrescentados.
[57]
T.
A. Kantonen, A Esperança Cristã (Filadélfia, 1954),
pág. 28.
[58]
Derwyn
R. G. Owen, Corpo e Alma: Um Estudo do Conceito Cristão
do Homem (Filadélfia, 1956), pág. 27.
[59]
Ibid., pág. 29.
[60]
Ibid., pág. 98.
[61]
Emil
Brunner, Esperança Eterna (Filadélfia, 1954), pág.
106. Itálicos adicionados.
[62]
Ibid., pág. 101.
[63]
Ibid.
[64]
Stephen
H. Travis, Eu Creio na Segunda Vinda de Jesus (Grand
Rapids, 1982), pág. 198.
[65]
Ibid., pág. 163.
[66]
Bruce
R. Reichenbach, É o Homem
a Fênix? Um Estudo Sobre a Imortalidade (Grand
Rapids, 1978), pág. 54.
[67]
Donald
G. Bloesch, Essenciais da Teologia Evangélica (São
Francisco, 1979), Vol. 2, pág. 188.
[68]
Anthony
Hoekema, A Bíblia e o Futuro (Grand Rapids, 1979),
pág. 90.
[69]
F.
F. Bruce, “Paulo Sobre a Imortalidade”, Scottish Journal
of Theology 24, 4 (novembro de 1971), pág. 469.
[70]
Murray Harris, “Ressurreição e Imortalidade:
Oito Teses”, Themelios 1,
no. 2 (primavera de 1976), pág. 53.
[71]
Ibid.
[72]
Ralph
Walter Doermann, “Sheol no Antigo Testamento”, (Dissertação
de doutorado, Duke University, 1961), pág. 205.
[73]
H.
Dooyeweerd, “Kuypers Wetenschapsleer,” Philosophia Reformata,
IV, págs. 199-201, conforme citado por G. C.
Berkouwer, Homem: A Imagem de Deus (Grand Rapids, 1972),
págs. 255, 256.
[74]
Anthony A. Hoekema, A Bíblia e o Futuro
(Grand Rapids, 1979), pág. 91.