A Civilização Mais Antiga e a Bíblia

Segundo os primeiros capítulos da Bíblia, a primeira civilização humana sobre a terra surgiu na região da Mesopotâmia, no Oriente Próximo. Se isto for correto, esperaríamos encontrar nesta área os traços das primeiras aldeias e assentamentos humanos, os primeiros vestígios da pecuária e da agricultura, metalurgia e artesanato primitivos, as primeiras cidades, estados, comércio e escrita. Até que ponto isso coincide com as descobertas da arqueologia moderna?

A. O Jardim do Éden

Segundo a Bíblia, a mais antiga morada do primeiro casal humano foi um “jardim”, localizado numa área chamada “Éden”. Os eruditos geralmente rejeitam essa história como lenda ou mito. Entretanto, o Dr. E. A. Speiser, que antes de sua morte em 1965 era presidente do Departamento de Estudos Orientais da Universidade da Pensilvânia, em Filadélfia, ao fazer um exame cuidadoso da história, constatou que pelo menos o seu contexto físico é autêntico. Em um artigo publicado originalmente em 1959, ele declarou:

“Embora o Paraíso da Bíblia seja manifestamente um lugar misterioso, sua configuração física não pode ser descartada de qualquer maneira, como sendo pura imaginação. Em todo caso, para o escritor do relato de Gênesis 2:8 em diante, e tendo em vista sua melhor fonte ou fontes, o Jardim do Éden era, obviamente, uma realidade.” – E. A. Speiser, “Os Rios do Paraíso”, reimpresso em Eu Estudei Inscrições Anteriores ao Dilúvio, de R. S. Hess & D. T. Tsumura (editores, Winona Lake: Eisenbrauns, 1994), pág. 175 em inglês.

Os detalhes geográficos fornecidos pelo escritor bíblico ajudam pelo menos a identificar a localização aproximada do jardim:

E plantou o SENHOR Deus um jardim no Éden, na direção do Oriente, e pôs nele o homem que havia formado…  E saía um rio do Éden para regar o jardim e dali se dividia, repartindo-se em quatro braços. O primeiro chama-se Pisom; é o que rodeia a terra de Havilá, onde há ouro. O ouro dessa terra é bom; também se encontram lá o bdélio e a pedra de ônix. O segundo rio chama-se Giom; é o que circunda a terra de Cuxe. O nome do terceiro rio é Tigre; é o que corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates. – Gênesis 2:8, 10-14.

Os nomes dos dois últimos rios são facilmente reconhecíveis como os dois grandes rios que fluem pelo atual Iraque na direção sudeste vindos do leste da Turquia (ao norte). Aproximadamente 180 quilômetros ao norte do Golfo Pérsico, os dois rios se juntam em um único rio, o Xat-El-Árab, que desagua no Golfo Pérsico. E quanto aos outros dois rios, Pisom e Giom?

1. Gên. 2:10: As quatro “cabeceiras” ou “braços”

Antes de tentar identificar os rios Pisom e o Giom, deve-se determinar se o escritor quis dizer que os quatro “braços” começavam a partir de uma fonte comum, em algum lugar no leste da Turquia, ou se eles convergiam para um canal comum no sul.

Em seu curso desde a nascente, normalmente um rio não se divide em vários rios que chegam ao mar separadamente, embora essa divisão possa ocorrer em uma área de delta próxima ao mar, como é o caso do delta do Nilo, no Egito. Em vez disso, outros rios afluentes ou tributários se juntam a um rio ao longo de seu curso, formando um canal único que por fim desagua no mar. Este é claramente o caso dos rios Eufrates e Tigre hoje. Que o Éden, onde as quatro cabeceiras ou rios convergiam, localizava-se no sul tem também apoio linguístico, conforme o Dr. Speiser argumenta:

“Parece válido, então, que as “quatro cabeceiras” de que o texto fala (v. 10) eram vistas rio acima em vez de rio abaixo, algo que muito poucas autoridades parecem ter percebido. E tanto a língua acadiana como a hebraica apóiam este conceito. Assim, a expressão acadiana ina reš Uqnê traduz-se por ‘no alto Kerkha.’ E  A. Ehrlich salientou que o termo hebraico para o curso inferior de uma corrente de água é qatsê [‘embocadura’, ‘foz’] (cf. Josué 15:5, 18:19); ros, [“cabeceira”], portanto, deve referir-se à extremidade oposta, o alto curso ou nascente.” – Speiser (1994), págs. 178, 179 em inglês.

Assim, Speiser, na página 20 de seu comentário sobre Gênesis (The Anchor Bible: Doubleday, 1962), conclui que “o termo ‘cabeceiras’ pode não ter nada que ver com correntes nas quais o rio se dividia depois de deixar o Éden, e sim, em vez disso, designa quatro afluentes diferentes que se juntavam no Éden.”

É bem interessante que os antigos sumérios, que habitavam na Mesopotâmia meridional, também situavam o paraíso original, que eles chamaram de Dilmun, na foz de rios, em um território desconhecido ao leste das cidades sumérias. – Theresa Howard Carter, “Evidência Concreta da Existência da Antiga Dilmun”, Revista de Estudos Cuneiformes, Vol. 33 (1981), págs. 217-220 em inglês. Tudo isto significa que a área para onde convergiam os quatro rios deve ser procurada no sul. Já vimos que os rios Tigre e Eufrates se juntam em um rio, não muito longe do Golfo Pérsico. Se a região do Éden abrangia ou era adjacente a esta área, os outros dois rios, Giom e Pisom, também se fundiam com os outros dois em algum lugar na mesma região geral.

2. Giom, o rio de Cus

A expressão “terra de Cus”, através da qual se diz que corre o rio Giom, é usada com mais frequência na Bíblia em referência à região ao sul do Egito, ou seja, Núbia e Etiópia. Todavia, nos tempos antigos havia também outra “terra de Cus”, que ficava ao leste da Mesopotâmia, onde hoje é o oeste do Irã. Speiser explica:

“A origem da maior parte de nossos problemas geográficos com o Paraíso bíblico é a menção de uma terra chamada Cus em Gênesis 2:13. Normalmente, a Bíblia entende por esse termo a região do Alto Nilo, Kus/šu, Kas/ši em cuneiforme;  K’š em egípcio. Mas havia também outra Cus, e totalmente independente, sendo que o fragmento Nimrode (Gênesis 10:8-12) associa este homônimo inquestionavelmente com a Mesopotâmia, atribuindo-a ao pai do herói que se diz ter fundado uma série de capitais assírias e babilônicas. Esta Cus específica é, então, o epônimo dos cassitas, do acadiano Kaššû; sendo sua forma Nuzi Kuššu e seu derivado grego Kossaîoi, contendo na verdade a mesma vogal que o nome bíblico.” – Speiser (1994), págs. 176, 177 em inglês.

Bem mais tarde, estes cassitas conquistaram Babilônia e governaram sobre ela entre 1500-1150 AEC, aproximadamente.

Hoje, dois grandes rios fluem das montanhas do Irã, no leste até a parte sul da planície da Mesopotâmia, a saber, os rios Kerkha e Karun, este último desaguando no Xat-el-A’rab  a cerca de 50 quilômetros ao norte do Golfo Pérsico, enquanto o Kerkha, antigo Choaspes, flui a partir do local da antiga Susã até os pântanos ao norte do Xat-el-A’rab. De fato, a Versão Samaritana traduz “Giom”, o nome do rio de Cus, por “Asqop”, evidentemente Choaspes, o moderno Kerkha.” (Speiser, 1994, pág. 177 em inglês) Devido às variações do fluxo dos rios, alterações do nível do mar antes do terceiro milênio AEC, e na planície pantanosa ao sul do Iraque, o baixo curso desses rios mudou consideravelmente desde a antiguidade. É até possível que os dois rios adjacentes se juntassem num único rio antes de chegar à região do Golfo. Se um deles, ou talvez os dois em conjunto, é o rio Giom, como parece provável, onde fica o Pisom?

3. Pisom, o rio de Havilá

Segundo Gênesis 2:11, 12, Pisom “percorre toda a terra de Havilá, onde existe ouro. O ouro daquela terra é excelente; lá também existem o bdélio e a pedra de ônix.” Speiser primeiro considerou tanto o Kerkha como o Karun como possíveis candidatos. Porém, como a terra de Havilá é mais comumente relacionada com a Península Arábica (Gênesis 10:26-29; 25:18, 1 Cron. 1:20-23), ele também sugeriu que um dos uádis (leitos secos de rios) atualmente secos que descem procedentes do sul, pode ser identificado com o rio Pisom, acrescentando: “Resta demonstrar, porém, que algum dos uádis atuais estava suficientemente ativo durante o período em questão para constituir um rio perene e de tamanho considerável.” – Speiser (1994), pág. 182.

Na verdade, que um rio “perene e de tamanho considerável”, existiu certa vez nessa área, o qual em todos os aspectos corresponde à descrição do rio Pisom, foi demonstrado claramente nos últimos anos pela moderna pesquisa climatológica e estudos com satélites. James A. Sauer, ex-curador das coleções arqueológicas do Museu Semítico de Harvard e até sua morte no final da década de 1990 um proeminente escavador de diversos sítios na Península Arábica, resumiu estes achados em seu artigo, “O Rio Corre Seco. A História da Criação Preserva a Memória Histórica”, publicado na Biblical Archaeology Review, Vol. 22:4, julho / agosto de 1996, págs. 52-57, 64.

James Sauer começa dizendo que fala “como ex-cético”. Ele duvidou por muito tempo que a arqueologia pudesse revelar indícios das primitivas histórias bíblicas, tendo antes escrito numerosos artigos em que havia criticado o otimismo de W. F. Albright e muitos de seus alunos. “Estou agora me retratando”, diz ele. “Meu atual trabalho sobre as alterações climáticas levou-me a concluir que Albright e seus alunos estavam evidentemente certos em procurar conexões entre a evidência arqueológica e as tradições bíblicas.” (Sauer, pág. 52 em inglês).

Ao contrário da opinião que prevalecia antes, a pesquisa recente mostrou que ocorreram mudanças climáticas dramáticas dentro do período histórico no Oriente Próximo e em outros lugares. Segundo as datações de carbono 14 (que são muito grosseiras e incertas no início deste período), uma fase úmida global teve início por volta de 7500 A.E.C. e durou até por volta de 3500 A.E.C. O clima quente e úmido durante este período ocasionou o crescimento de vegetação subtropical nas áreas ao redor do Golfo Pérsico. Existiam antigos lagos ao sul da Arábia Saudita, onde hoje é o maior deserto de areia do mundo, e mais ao norte um rio originário nos Montes Hijaz, a oeste, corria na direção nordeste, ao longo de toda a península Arábica, para dentro da cabeceira do Golfo Pérsico.

Este grande rio, que em alguns locais tinha quase 5 km de largura, foi descoberto no início da década de 1990 pelo cientista Farouk El-Baz, da Universidade de Boston, enquanto estudava uma foto de satélite da Arábia Central. Grande parte do canal do rio é hoje ocultado por dunas de areia. Foi chamado de “Rio Kuwait”, uma vez que atingia o Golfo Pérsico, através do leito seco do que agora é chamado de Wadi Al-Batin que corre ao longo da fronteira setentrional do Kuwait. Por volta de 3500 A.E.C. o clima mudou subitamente, e seguiu-se um período de seca que atingiu o auge no período de 2350-2000 A.E.C., fazendo o “Rio Kuwait” secar. (Esta catástrofe climática também causou o fim do Império Acadiano. Veja a revista Science, Vol. 261, de 20 de agosto de 1993, pág. 985 em inglês: “Como o Império Acadiano foi Eliminado Pela Seca”, e ibid., páginas 995-1004: “Gênesis e o Colapso da Civilização do Norte da Mesopotâmia do Terceiro Milênio.”).

Sauer conclui que o “Rio Kuwait” muito provavelmente era o Rio Pisom. Citando Gênesis 2:11-12, ele faz os seguintes comentários interessantes:

“Embora o significado de alguns detalhes nesta passagem seja incerto, ela parece descrever um rio que flui para a cabeceira do Golfo Pérsico desde as montanhas baixas a oeste da Arábia, o caminho seguido pelo recentemente descoberto Rio Kuwait. Uma chave importante é a frase bíblica “o ouro dessa terra é bom.” Só um lugar na Arábia possui um depósito assim – o famoso local do Madh edh-Dhahab, o ‘Berço de Ouro’. Este antigo e moderno local de mineração de ouro está localizado a cerca de 200 quilômetros ao sul de Medina, perto da nascente do Rio Kuwait.”

O texto bíblico menciona também bdélio e ônix. As resinas aromáticas (bdélio) são conhecidas no Iêmen, a sudoeste, e, embora não se pense que elas tenham sido produzidas nos arredores de Medina, elas poderiam ter sido facilmente levadas para lá. As pedras semi-preciosas, como o alabastro, também são provenientes destas regiões, mas isto é incerto quanto a outras pedras preciosas, tais como o ônix.” (pág. 64 em inglês).

Sauer acrescenta:

“De qualquer forma, nenhum outro rio parece corresponder à descrição bíblica. Por isso, estou inclinado a pensar que o Rio Kuwait poderia ser o Pisom mencionado na Bíblia. Se for assim, isso indica uma memória extraordinária por parte dos escritores bíblicos, uma vez que o rio secou em algum momento entre 3500 e 2000 A.E.C.”

4. Sob o Golfo Pérsico

Muito provavelmente, a região do Éden incluía partes do que é agora o Golfo Pérsico. Que o Golfo Pérsico cobre agora regiões outrora habitadas já se sabe há muito tempo. Fazendo referência a um artigo publicado em 1957, Speiser diz:

“Significativamente, as fotografias aéreas ainda mostram vestígios de cultivo antigo em regiões que são atualmente cobertas pelo noroeste do Golfo Pérsico.” – Speiser (1994), pág. 180 em inglês e nota de rodapé 26 (“As Condições de Vida na Planície da Baixa Mesopotâmia da Antiguidade”, P. Buringh, Sumer 13, 1957, pág. 36 em inglês).

O Golfo Pérsico é raso, tendo só cerca de 25 metros de profundidade, em média, sendo o lugar mais profundo de 102 metros. No final da última Era Glacial, que agora normalmente se supõe ter ocorrido em algum momento entre 12000 e 9000 A.E.C., o nível do mar estava mais de 100 metros, talvez até 150 metros abaixo do nível atual, o que significa que o Golfo Pérsico deve ter sido uma bacia completamente seca. Isto foi confirmado pelas pesquisas feitas na área do Golfo na década de 1960, pelo navio de exploração alemão Meteoro. Descobriu-se que o Golfo era um vale de 800 km de comprimento, ao longo do qual o extenso rio Xat al-A’rab seguia seu curso por todo o caminho até o Estreito de Ormuz e desaguava diretamente no Golfo de Omã. – Theresa Howard Carter, “A Evidência Tangível Para a Antiga Dilmun”, Revista de Estudos Cuneiformes, Vol. 33 (1981), pág. 213 em inglês.

Em anos recentes, acumulou-se evidência provando que o fim da última era glacial foi um evento surpreendentemente repentino. O Professor Richard A. Muller e o Dr. J. Gordon MacDonald, dois renomados peritos em eras glaciais, explicam:

“A repentinidade do fim é surpreendente. A agricultura, e tudo o mais de nossa civilização, desenvolveu-se depois desta terminação. A enorme geleira, de vários quilômetros de espessura, cobrindo grande parte da América do Norte e da Eurásia, derreteu-se rapidamente. Só pequenas partes da geleira permaneceram na Groenlândia e na Antártica, onde existem até hoje. O derretimento provocou uma série de inundações em todo o mundo como nunca antes experimentadas pelo Homo sapiens… A inundação despejou água suficiente nos oceanos para fazer com que o nível médio do mar subisse 110 metros, o suficiente para cobrir as regiões costeiras,… a água do derretimento do gelo, provavelmente inundou a terra  em pulsos, conforme os lagos de gelo represado se formavam e daí liberavam catastroficamente suas águas. Estas inundações deixaram muitos registros, incluindo as poças remanescentes conhecidas agora como os Grandes Lagos e, possivelmente, deu origem a lendas que persistiram por muitos anos.” – Richard A. Muller & Gordon J. MacDonald, Eras Glaciais e Causas Astronômicas (Berlim-Heidelberg-Nova Iorque: Springer-Verlag, 2000), página 4.

Acredita-se que os primeiros habitantes da Mesopotâmia viviam originalmente neste vale que é agora o Golfo Pérsico. A análise das linhas costeiras inundadas e planaltos marítimos mostra que o golfo foi inundado pelo Oceano Índico, no sul, em estágios cuidadosamente gradativos, forçando os habitantes a se retirarem na direção norte para terrenos mais elevados. Por volta de 5500 AEC, a maior parte da bacia do Golfo estava evidentemente inundada, embora o nível do mar ainda fosse 17 metros mais baixo do que o de hoje. (W. Nuetzel, Sobre a Posição Geográfica das Ainda Inexploradas Culturas Primitivas da Mesopotâmia”, Revista da Sociedade Oriental Americana [Sigla em inglês: JAOS], Vol. 99, 1979, págs. 288-296, também Zarins J., “Os Primeiros Assentamentos da Mesopotâmia Meridional”, JAOS, Vol. 112:1, 1992, págs. 55-77). Esta foi a época da cultura Ubaid. Durante todo este período o clima era temperado e agradável. Daí, por volta de 3500 AEC, ocorreu na região uma enorme inundação catastrófica que trouxe o fim súbito à civilização Ubaid. Muito provavelmente, este evento é que se refletiu nas histórias mesopotâmica e bíblica do Dilúvio. – Howard-Carter, op. cit., págs. 214-216, 220-222.

Antes dessa catástrofe, porém, a civilização humana havia se espalhado por todo o Oriente Próximo, e também para outras partes do mundo. Os primeiros vestígios foram encontrados na Mesopotâmia, oeste do Irã, Ásia Menor, Síria e Palestina.

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