Cronologia Bíblica e Secular

Introdução

Quando defendem que a data 607 A.E.C. é o momento da desolação de Jerusalém e ponto de partida para calcular a duração dos tempos dos gentios, os representantes da Sociedade Torre de Vigia afirmam que estão confiando na Bíblia. Eles alegam que os que datam a desolação em 587 ou 586 A.E.C. estão confiando em fontes seculares em vez de na Bíblia. O autor anônimo do “Apêndice ao Capítulo 14” do livro “Venha o Teu Reino”, por exemplo, declara:

Estamos dispostos a ser guiados principalmente pela Palavra de Deus, em vez de por uma cronologia que se baseia primariamente em evidência secular ou que discorda das Escrituras. 

Obviamente, essas declarações tentam criar a impressão de que aqueles que rejeitam a data 607 A.E.C. para a desolação de Jerusalém não têm realmente fé na Bíblia. Mas será que essas declarações apresentam uma descrição justa do assunto? Ou são apenas acusações santimoniosas, destinadas a desacreditar a personalidade cristã daqueles que discordam, não das Escrituras, mas das datações da Sociedade Torre de Vigia? Ou será que é até o caso de os próprios defensores da cronologia da Sociedade não terem realmente compreendido a verdadeira natureza da cronologia bíblica? 

A natureza da cronologia bíblica

Hoje as pessoas lêem ou usam os termos A.C. e D.C. (que correspondem a A.E.C. e E.C.) e geralmente não se preocupam com a origem destas especificações. Na realidade, a “Era Cristã”, na qual se datam os acontecimentos em relação ao ano do nascimento de Cristo, é uma elaboração muito recente. Conforme está bem estabelecido, o sistema só foi introduzido no sexto século E.C. pelo monge e erudito romano Dionísio Exíguo. Todavia, outros 500 anos se passariam antes de esta nova era ser aceita no mundo católico em geral como um sistema de datação.

Como a Bíblia foi escrita muito antes da época de Dionísio Exíguo, é claro que ela não fornece qualquer data de acordo com nossa Era Cristã. Assim, embora a Sociedade Torre de Vigia date o batismo de Jesus em 29 E.C., o 20º ano de Artaxerxes I em 455 A.E.C., a queda de Babilônia em 539 A.E.C., e a desolação de Jerusalém em 607 A.E.C., nenhuma destas datas se encontra na Bíblia. A Bíblia só fornece datações relativas. O que isso quer dizer?

Considere este exemplo relevante: Em 2 Reis 25:2 a desolação de Jerusalém é datada no “décimo primeiro ano do Rei Zedequias”, o último rei de Judá. O versículo 8 diz-nos adicionalmente que isto ocorreu no “décimo nono ano do Rei Nabucodonosor, rei de Babilônia”.

Mas quando foi isso? Quão distante foi da nossa própria época? Quantos anos antes da Era Cristã isso ocorreu? O fato é que a Bíblia não dá qualquer informação que, por si mesma, ligue estas datas à nossa Era Cristã.

Similarmente, os livros dos Reis e das Crônicas falam sobre os reis que governaram em Israel e Judá, desde Saul, o primeiro rei, até Zedequias, o último. Diz-nos quem sucedeu quem, e durante quantos anos cada um deles governou. Somando os períodos de reinado desde Saul até Zedequias, podemos medir o período de tempo aproximado (existem muitos pontos incertos) entre estes dois reis. Desta maneira, descobrimos que o período das monarquias hebraicas abrangeu aproximadamente 500 anos. Mas ainda não encontramos resposta para a pergunta: Em que ponto da corrente do tempo este período começou e em que ponto terminou?

Se a Bíblia tivesse continuado a dar uma série contínua e ininterrupta de anos de reinado, desde Zedequias e chegando até o começo da Era Cristã, a pergunta seria respondida. Mas Zedequias foi o último da seqüência de reis judaicos e o reinado dele terminou séculos antes da vinda de Cristo. A Bíblia também não dá qualquer informação adicional que nos revele diretamente a duração do período desde o “décimo primeiro ano” de Zedequias (quando Jerusalém foi desolada) até o início da Era Cristã. Assim, temos um período de aproximadamente 500 anos, o período das monarquias hebraicas, mas não nos é dito quão distante da nossa época foi esse período, nem como pode ser fixado em relação à nossa Era Cristã.

Se a Bíblia tivesse preservado descrições datadas e detalhadas de eventos astronômicos, tais como eclipses solares e lunares, ou as posições dos planetas em relação a diversas estrelas e constelações, isto tornaria nosso problema mais fácil. Os astrônomos modernos, com seu conhecimento dos movimentos regulares da lua e dos planetas, são capazes de calcular as posições que estes corpos celestes tinham no céu estrelado há milhares de anos. Mas o fato é que a Bíblia não fornece informação deste tipo.

Portanto, a Bíblia por si só não mostra como suas datações cronológicas podem ser relacionadas com nossa própria era. Uma cronologia que está, neste sentido, “flutuando no ar” é simplesmente o tipo de cronologia chamada cronologia relativa. Só se a informação bíblica nos fornecesse o intervalo exato desde o tempo de Zedequias até a nossa própria era — ou através de uma lista de duração de reinados completa e coerente ou por meio de observações astronômicas detalhadas e datadas — é que teríamos uma cronologia absoluta, isto é, uma cronologia que nos dá o intervalo exato desde o último ano de Zedequias até a nossa própria época. Parece evidente que os próprios escritores da Bíblia não estavam preocupados em fornecer isto, estando simplesmente concentrados em outros assuntos. Então, a que fonte podemos recorrer para fazer a conexão com a contagem da nossa era?

Existe “cronologia bíblica” sem fontes seculares?

Apesar da natureza relativa das datas bíblicas, ainda assim não é impossível datar eventos mencionados na Bíblia. Se conseguirmos sincronizar a cronologia da Bíblia com a cronologia de outro país, cuja cronologia possa por sua vez ser fixada em relação à nossa Era Cristã, então é possível converter a cronologia relativa da Bíblia numa cronologia absoluta. Contudo, isto significa que temos de depender de fontes extrabíblicas, isto é, fontes históricas seculares, para datar eventos mencionados na Bíblia.

E não temos alternativa. Se quisermos saber quando ocorreu, em relação à nossa própria época, um evento mencionado na Bíblia — seja a data da queda de Babilônia, a data da desolação de Jerusalém por Nabucodonosor, a data da reconstrução do templo no reinado de Dario I, ou qualquer outra data que seja — então somos obrigados a recorrer às fontes históricas seculares. Este é o fato simples que toda pessoa que crê na Bíblia tem de aceitar, goste ou não. A verdade simples é que — no que se refere à ligação com a contagem da nossa Era Cristã — sem fontes seculares não existe cronologia bíblica, não há como fazer datações de acontecimentos bíblicos em termos de anos “A.E.C.” ou “E.C.”

Isto também significa, é claro, que falar em usar a “cronologia da Bíblia” como uma forma unilateral e independente de medir o tempo, através da qual a exatidão de alguma data possa ser estabelecida, é simplesmente fechar os olhos à realidade. Quando, por exemplo, algumas Testemunhas apontam o fato de os historiadores modernos datarem a queda de Babilônia em 539 A.E.C. e depois afirmam que “a cronologia da Bíblia está de acordo com esta data”, elas mostram que não entenderam realmente o que significa a natureza relativa da cronologia bíblica. Onde é que a Bíblia especifica uma data para a queda de Babilônia? Uma Testemunha pode fazer referência à profecia de Jeremias sobre os “setenta anos” que findaram com a queda de Babilônia. Mas em que data esses setenta anos começaram, de maneira que possamos contar para frente até seu término? Nenhuma é fornecida. Como a Bíblia não fornece qualquer data, nem sequer uma data relativa específica, para a queda de Babilônia, a afirmação de que a Bíblia “concorda” com a datação secular deste evento em 539 A.E.C., é completamente sem sentido. E é igualmente sem sentido e enganoso afirmar que a data secular da desolação de Jerusalém, 587 ou 586 A.E.C., discorda da cronologia da Bíblia, pois a data absoluta desse evento também não é fornecida na Bíblia.

E quanto aos 70 anos de Jeremias 25:11, 12 e 29:10, nos quais as Testemunhas baseiam tão fortemente sua cronologia? As Testemunhas, com muita naturalidade, apóiam a afirmação da Sociedade Torre de Vigia de que estes 70 anos se referem ao período da desolação de Jerusalém, contado desde o 18º ano de Nabucodonosor até o regresso dos exilados judaicos no 1º ano de Ciro (isto é, seu primeiro ano completo ou de reinado, após seu ano de ascensão, que começou em 539 A.E.C.). Em resultado deste ponto de vista, o intervalo de tempo entre as datas que os historiadores estabeleceram para estes dois eventos — 587/86 e 538/37 A.E.C. — parece ser muito curto, com uns 20 anos a menos. Por isso, a Sociedade Torre de Vigia opta por rejeitar uma das duas datas. Eles poderiam rejeitar a data do 18º ano de Nabucodonosor (587/86 A.E.C.) ou rejeitar a data do primeiro ano do reinado de Ciro (538/37 A.E.C.). Eles rejeitam a primeira data, 587/86 A.E.C. Com que base rejeitam essa data e não a outra?

Não há qualquer razão bíblica para esta escolha. Conforme já foi indicado, a própria Bíblia não concorda nem discorda de qualquer destas duas datas, que são expressas em termos da contagem do tempo da Era Cristã. Ademais, a Bíblia simplesmente não fornece meios para decidirmos qual das duas datas é a melhor, em termos de ser firmemente estabelecida. Em que base, então, deveria a escolha ser feita — supondo-se que a interpretação da Sociedade sobre os 70 anos esteja correta?

O método mais lógico, seguro e erudito seria aceitar a data que é mais claramente estabelecida pelas fontes históricas extrabíblicas. Pois estas fontes fornecem a informação necessária para fazer a conexão com a contagem do tempo da Era Cristã. E, como se demonstrará nos próximos dois capítulos, estas fontes mostram de forma muito definitiva que, das duas datas que estão sendo consideradas, a cronologia do reinado de Nabucodonosor é muito mais bem estabelecida por documentos astronômicos e outros do que a cronologia do reinado de Ciro. De modo que, se fosse realmente necessário fazer uma escolha, e um cristão que crê na Bíblia se visse diante destas alternativas, a escolha natural deveria ser manter a data 587/86 A.E.C. e rejeitar a data 538/37 A.E.C.

Entretanto a Sociedade Torre de Vigia prefere a escolha oposta. Se a razão para isto não se deve à própria Bíblia favorecer uma destas datas em lugar da outra, e certamente não é porque a evidência histórica o faça, qual é a verdadeira razão para a escolha deles?

Lealdade à Bíblia  ou a uma especulação profética?

Se, de acordo com o que eles afirmam, o período de 70 anos da profecia de Jeremias deve realmente ser contado desde o 18º ano de Nabucodonosor até o 1º ano de Ciro, a Sociedade Torre de Vigia deveria logicamente ter começado por 587/86 A.E.C. como sendo historicamente a mais confiável das duas datas. Contando para frente 70 anos a partir dessa data chega-se a 518/17 A.E.C. como sendo o primeiro ano de Ciro, em vez de 538/37. Isto seria tão bíblico e realmente mais sábio do que reter 538/37 A.E.C. e rejeitar 587/86 (data esta que tem o apoio documental e astronômico mais forte).

Por que, então, a Sociedade Torre de Vigia rejeita 587/86 A.E.C. em vez de rejeitar 538/37?

A resposta é óbvia. A data 587/86 A.E.C. está em conflito direto com a cronologia da Sociedade Torre de Vigia para os “tempos dos gentios”. Nessa cronologia, sua data 607 A.E.C. para a desolação de Jerusalém é o ponto inicial indispensável. Sem a data 607 A.E.C. a Sociedade não poderia chegar a 1914 E.C. como sendo o ponto terminal. E como esta data é a própria pedra fundamental das pretensões e mensagem profética da organização Torre de Vigia, não se permite que nada a contradiga, nem a Bíblia nem os fatos históricos. No fundo, portanto, não é questão de lealdade à Bíblia nem de lealdade a fatos históricos. A escolha da data tem outro motivo bem diferente: Lealdade a uma especulação cronológica que se tornou uma condição vital para as pretensões divinas da organização Torre de Vigia.

Nos próximos dois capítulos será demonstrado que toda a cronologia neobabilônica é firmemente estabelecida por pelo menos dezessete linhas de evidência diferentes. Assim, a data 587/86 para o 18º ano de Nabucodonosor (e para a desolação de Jerusalém) e a data 538/37 para o primeiro ano de Ciro, estão ambas corretas. Que nenhuma destas datas está em conflito com os 70 anos de Jeremias (Jeremias 25:11, 12 e 29:10) será demonstrado num capítulo posterior.

O colapso do ponto de partida original

Repetindo: Sem fontes seculares não existe cronologia absoluta para datar eventos nas Escrituras. A própria Sociedade Torre de Vigia teve de se conformar com este inevitável e embaraçoso fato. Assim, a primeiríssima coisa que a Sociedade se viu obrigada a fazer, para ter qualquer cronologia bíblica, foi voltar-se para as fontes seculares e selecionar uma data na qual sua cronologia pudesse se basear. A data que eles escolheram é a data que os historiadores estabeleceram para a queda de Babilônia, 539 A.E.C. Esta data secular é, portanto, a própria fundação do que a Sociedade apresenta como sua “cronologia bíblica”. Por que a Sociedade a escolheu como base para sua cronologia? E como foi que os historiadores chegaram a esta data?

Quando Charles Taze Russell inicialmente adotou a “cronologia bíblica” de Nelson H. Barbour, a base secular sobre a qual essa cronologia havia sido estabelecida era 536 A.E.C. — não 539 A.E.C. Acreditava-se que 536 A.E.C. era a data, não da queda de Babilônia, e sim do primeiro ano de Ciro. Somando os “setenta anos” a 536, eles obtiveram 606 A.E.C. como sendo a data para a desolação de Jerusalém, e subtraindo 606 de 2.520 (supostamente o número de anos dos tempos dos gentios), chegaram a 1914.

Originalmente Barbour afirmou que a data 536 A.E.C. era obtida da antiga lista de reis conhecida como “Cânon de Ptolomeu”. Com o tempo, porém, descobriu-se que não era este o caso. Esta lista de reis não só aponta para 538 A.E.C. como sendo o primeiro ano completo de Ciro, mas também para 587 A.E.C. como sendo a data para o 18.º ano de Nabucodonosor, o ano da desolação de Jerusalém. Quando estes fatos chegaram ao conhecimento de Russell, ele rejeitou a lista de reis e começou a atacar seu suposto originador, Cláudio Ptolomeu. Porém, ele ainda acreditava que 536 A.E.C. era uma data geralmente aceita para o primeiro ano de Ciro, declarando:

Pode-se dizer que todos os estudantes de cronologia concordam que o primeiro ano de Ciro foi o ano 536 antes do começo da nossa era Anno Domini.

Com o passar do tempo, alguns Estudantes da Bíblia descobriram que esta afirmação também não era verdadeira. Numa carta pessoal para Russell, datada de 7 de junho de 1914, um de seus associados mais íntimos, Paul S. L. Johnson, indicou-lhe que quase todos os historiadores defendiam 538 A.E.C. como sendo o primeiro ano de Ciro. “Consultei uma dúzia de enciclopédias”, escreveu ele, “e todas, exceto três, apresentam 538 A.C. como sendo a data.” Russell, porém, ignorou esta informação, e Joseph F. Rutherford, seu sucessor como presidente da Sociedade Torre de Vigia, fez o mesmo.

Foi só em 1944, no livro “Está Próximo o Reino”, que a Sociedade Torre de Vigia finalmente abandonou a data 536 A.E.C. Gradativamente, o primeiro ano de Ciro foi recuado, primeiro para 537 A.E.C. e depois, cinco anos mais tarde, para 538 A.E.C., a data indicada pelo “Cânon de Ptolomeu”.

Para manter 1914 como a data final dos tempos dos gentios, tiveram de ser feitos outros “ajustes”. Para começar, ainda que o primeiro ano de Ciro tenha começado em meados de 538 A.E.C., a Torre de Vigia argumentou que este decreto que permitiu aos judeus regressar do exílio (Esdras 1:1-4) foi emitido perto do fim do seu primeiro ano de reinado, isto é, no início de 537 A.E.C. Nesse caso, os judeus que partiram de Babilônia não poderiam ter chegado a Jerusalém antes do outono daquele ano. Somando 70 anos a 537, a desolação de Jerusalém foi então fixada em 607 A.E.C. em vez de 606. Em seguida, foi finalmente reconhecido o fato de que nenhum “ano zero” é incluído no início da nossa Era Cristã. Assim, do outono (hemisfério norte) de 607 A.E.C. até o início da nossa era, passaram-se apenas 606 anos e três meses; e se este período for subtraído dos 2.520 anos, ainda se chega a 1914 como sendo a data final. Assim, fizeram com que três “erros” diferentes se cancelassem entre si e o resultado foi o mesmo! Cada um dos ajustes foi feito com o objetivo de manter a data 1914.

Todavia, mover a base secular da “cronologia bíblica” da Sociedade Torre de Vigia para lá e para cá desta maneira arbitrária dificilmente inspirava confiança. Por isso, desde então, o primeiro ano de reinado de Ciro (538 A.E.C.) não foi mais enfatizado como o ponto inicial “firmemente estabelecido”. Em vez disso, a ênfase foi transferida para a data que os historiadores tinham estabelecido para a queda de Babilônia, 539 A.E.C. Esta data logo foi chamada de “data absoluta” nas publicações da Torre de Vigia. Mas por que razão esta data particular foi considerada como uma “data absoluta”?

539 A.E.C.  a “Data Absoluta para as Escrituras Hebraicas”?

A princípio, em 1952, a Sociedade Torre de Vigia explicou que a data 539 A.E.C. para a queda de Babilônia tinha sido “firmemente estabelecida” pela tabuinha cuneiforme conhecida como Crônica de Nabonido. Evidentemente por esta razão pensou-se que esta data poderia ser usada como a nova base para a cronologia A.E.C. da Sociedade. Por isso, nas duas décadas seguintes o ano 539 A.E.C. não só foi descrito como uma “data absoluta”, mas como “a data absoluta proeminente para o período A.C. das Escrituras Hebraicas”. Qual é a realidade sobre isso? Será que a evidência histórica justifica esta linguagem impressionante e o que revela isso quanto ao entendimento dos escritores da Torre de Vigia sobre cronologia secular?

A Crônica de Nabonido: Este documento cuneiforme data a queda de Babilônia no “dia 16” do “mês de tasritu”, evidentemente no 17º ano de Nabonido. Infelizmente, o texto está danificado, e as palavras para “17º ano” estão ilegíveis. Mas mesmo que estas palavras tivessem sido preservadas, a crônica não nos teria dito nada além do fato de que Babilônia foi capturada no dia 16 de tisri (correspondente ao tasritu babilônico) do 17º ano de Nabonido. Esta informação por si mesma não pode ser traduzida para 539 A.E.C. Há necessidade de evidência secular adicional para situar o 17º ano de Nabonido dentro da contagem do tempo da nossa era, permitindo-nos atribuir-lhe uma data expressa em termos dessa contagem.

Apesar disto, as publicações da Torre de Vigia continuaram a dar a impressão de que a Crônica de Nabonido por si mesma fixava a data absoluta para a queda de Babilônia. Foi só em 1971, num artigo intitulado “O testemunho da Crônica de Nabonido”, que se admitiu finalmente que esta tabuinha não estabelece o ano da queda de Babilônia. Citando a data fornecida na crônica (o dia 16 de tasritu), o escritor do artigo declara francamente: “Mas fornece a Crônica de Nabonido em si mesma uma base para se determinar o ano deste acontecimento? Não.”

Embora a principal testemunha em apoio da “data absoluta para as Escrituras Hebraicas” tivesse sido retirada desse modo, a Sociedade não estava disposta a fazer mais uma mudança na base secular da sua “cronologia bíblica”. Por isso, tinham de ser encontradas e convocadas outras testemunhas. No mesmo artigo da Sentinela citada acima, foi feita uma referência a duas novas fontes que viriam a “sustentar” a data absoluta 539 A.E.C.:

Também outras fontes, inclusive o cânon de Ptolomeu, indicam o ano 539 A. E. C. como a data da queda de Babilônia. Por exemplo, historiadores antigos tais como Diodoro, Africano e Eusébio, mostram que o primeiro ano de Ciro como rei da Pérsia corresponde à Olimpíada 55, ano 1 (560/59 A. E. C.), ao passo que o último ano de Ciro é situado na Olimpíada 62, ano 2 (531/30 A. E. C.)… Tabuinhas cuneiformes atribuem a Ciro uma regência de nove anos sobre Babilônia. Isto se harmoniza com a data aceita para o início de sua regência sobre Babilônia em 539 A. E. C.

Assim, as novas fontes de confirmação consistiam em (1) o Cânon de Ptolomeu e (2) datas da Era Olímpica grega citadas por antigos historiadores. Pode alguma destas fontes estabelecer 539 A.E.C. como uma “data absoluta” sobre a qual a cronologia bíblica pode ser firmemente estabelecida?

O Cânon de Ptolomeu: Conforme já foi mostrado, Russell inicialmente sustentou sua cronologia fazendo referência ao Cânon de Ptolomeu. Mas, quando ele descobriu que a data 536 A.E.C. para o primeiro ano de Ciro não era apoiada pelo Cânon, ele o rejeitou. E embora a Torre de Vigia finalmente tenha recuado o 1º ano de Ciro para 538 A.E.C., em harmonia com o Cânon de Ptolomeu, a cronologia da Sociedade ainda está em conflito com o Cânon em outros pontos.

A soma das durações que o Cânon dá para os reinados dos reis neobabilônicos anteriores a Ciro, por exemplo, aponta para 587 A.E.C., não para 607 A.E.C., como sendo a data da desolação de Jerusalém no 18º ano do reinado de Nabucodonosor. Ademais, a Sociedade Torre de Vigia rejeita também os números dados pelo Cânon de Ptolomeu para os reinados de Xerxes e Artaxerxes I. Usar o Cânon para apoiar 539 A.E.C. enquanto ao mesmo tempo se rejeita a sua cronologia para períodos anteriores e posteriores a esta data seria totalmente inconsistente.

Evidentemente percebendo isto, a Sociedade Torre de Vigia logo no ano seguinte rejeitou mais uma vez o Cânon de Ptolomeu, declarando que “a própria finalidade do Cânon torna impossível por meio dele o datar absoluto.” Se isto era verdade, então é claro que a Sociedade não podia usar o Cânon em apoio da data 539 A.E.C.

Com o Cânon de Ptolomeu assim removido, a base secular da “cronologia bíblica” da Sociedade agora dependia inteiramente da confiabilidade da segunda testemunha, a contagem das olimpíadas gregas. Que dizer da contagem desta era olímpica? De que maneira ela fixa a queda de Babilônia em 539 A.E.C. e até que ponto se pode confiar nas datas olímpicas citadas por antigos historiadores?

A Era Olímpica: O primeiro ano assinalado para esta era é 776 A.E.C. Por isso, este ano é designado como “Ol. I,1”, isto é, o primeiro ano da primeira Olimpíada. Mas isto não quer dizer que os primeiros Jogos Olímpicos ocorreram em 776 A.E.C. Fontes antigas indicam que estes jogos começaram a ser realizados muito antes. Nem significa que já em 776 A.E.C. os gregos haviam começado uma era baseada nos Jogos Olímpicos. Na verdade, não se pode encontrar qualquer referência à Era Olímpica em toda a literatura antiga até o terceiro século A.E.C.! Conforme indicado pelo professor Elias J. Bickerman, “a numeração das Olimpíadas foi introduzida por Timeus ou por Eratóstenes.” E o Dr. Alan E. Samuel especifica: “O sistema de contagem das Olimpíadas, originado por Filisto, foi posteriormente usado num contexto histórico por Timeus, e desde então encontramos cronologias históricas baseadas nas Olimpíadas.” Timeus Sicilo escreveu uma história da Sicília, sua terra natal, em 264 A.E.C., e Eratóstenes, um bibliotecário na famosa biblioteca de Alexandria, no Egito, publicou sua Cronografia algumas décadas depois.

Assim, o sistema de contagem das Olimpíadas, da mesma forma que a Era Cristã, foi introduzido mais de 500 anos depois do ano escolhido como ponto inicial dessa era! Como foi que os historiadores gregos conseguiram estabelecer a data da primeira Olimpíada bem como outras datas (por exemplo, o primeiro ano de Ciro) centenas de anos depois? Que tipo de fontes estavam à disposição deles?

Eles estudaram listas de vencedores dos jogos quadrienais, mantidas em Olímpia. Mas infelizmente essas listas não tinham sido mantidas continuamente desde o início. Como o Dr. Samuel indica, a primeira lista foi “redigida por Hípias no fim do quinto século A.C.”, isto é, por volta de 400 A.E.C. “No período helenístico, a lista de vencedores estava completa e razoavelmente consistente e o esquema da cronologia estava estabelecido e aceito.” Mas era a lista confiável? Samuel continua: “Saber se tudo isto estava certo, ou se os eventos tinham sido corretamente atribuídos aos anos, é outra história.” Indicando que “o perspicaz Plutarco [c. 46 — c.120 E.C.] tinha suas dúvidas”, ele prossegue alertando que “nós também deveríamos ter muitas dúvidas quanto à evidência cronográfica das Olimpíadas que seja muito anterior ao meio ou início do quinto século [isto é, antes de 450 ou 500 A.E.C.].”

Todavia, a confiança da Sociedade Torre de Vigia na contagem das Olimpíadas é ainda mais ilusória. Pois, ao passo que eles aceitam as datas olímpicas fornecidas por historiadores antigos para o reinado de Ciro, eles rejeitam as datas olímpicas fornecidas por estes historiadores para o reinado de Artaxerxes I, apesar do fato de o reinado deste estar bem mais próximo da nossa época. Assim, quando Júlio Africano, em sua Cronografia (publicada por volta de 221/22 E.C.), data o 20º ano de Artaxerxes no “4º ano da 83ª Olimpíada”, correspondendo a 445 A.E.C., esta data é rejeitada pela Sociedade Torre de Vigia em favor de 455 A.E.C., como foi mencionado anteriormente (nota de rodapé 14 deste capítulo). Assim, como no caso do Cânon de Ptolomeu, a Sociedade usa novamente uma testemunha que em outros momentos é completamente rejeitada, e isto pela única razão de que naquelas áreas a evidência é desfavorável aos seus ensinos.

Mesmo que a Sociedade Torre de Vigia fosse totalmente consistente no uso que faz da contagem das Olimpíadas, o problema é que essas datações olímpicas preservadas por Diodoro, Africano e Eusébio, as quais indicam 539 A.E.C. como a data da queda de Babilônia, não podem ser usadas isoladamente para estabelecer essa data como absoluta, sobre a qual possamos basear a cronologia das Escrituras Hebraicas. Isto se deve ao fato simples, já apresentado, de que o sistema de contagem das Olimpíadas só foi realmente instituído no terceiro século A.E.C. — ou três séculos depois da queda de Babilônia.

A astronomia e o ano 539 A.E.C.

A discussão precedente sobre as tentativas infrutíferas da Sociedade de estabelecer uma base secular para sua “cronologia bíblica” particular, resume o conteúdo de um folheto publicado em 1981, A Sociedade Torre de Vigia e a Cronologia Absoluta. Talvez tenha sido esta exposição que — direta ou indiretamente — motivou os escritores da Sociedade a fazer outra tentativa de estabelecer a data 539 A.E.C. De qualquer maneira, publicou-se uma nova discussão sobre a data em 1990, no dicionário bíblico revisado da Sociedade, Estudo Perspicaz das Escrituras, no qual os autores tentam agora fixar a data astronomicamente.

Conforme já foi explicado (na nota de rodapé 2 deste capítulo), uma cronologia absoluta é geralmente mais bem estabelecida com a ajuda de datas fixadas astronomicamente. Nas décadas de 1870 e 1880, escavações em Babilônia desenterraram um grande número de textos cuneiformes contendo descrições de eventos astronômicos datados das eras babilônica, persa e grega. Estes textos fornecem numerosas datas absolutas para estes períodos.

O texto astronômico mais importante da era neobabilônica é o chamado “diário”, um registro de cerca de trinta observações astronômicas datado do 37º ano de Nabucodonosor. Esta tabuinha, que é mantida no Museu de Berlim (onde é denominada VAT 4956), estabelece 568/67 A.E.C. como a data absoluta para o 37º ano de Nabucodonosor. Esta data obviamente indica que seu 18º ano, durante o qual ele desolou Jerusalém, corresponde a 587/86 A.E.C. Isso é 20 anos depois de 607 A.E.C., a data atribuída a esse evento pela Sociedade Torre de Vigia. Uma abordagem detalhada sobre este e outros textos astronômicos é apresentada no capítulo quatro deste livro.

Portanto, a preocupação da Sociedade Torre de Vigia é de algum modo evitar o uso desse texto antigo desfavorável e encontrar uma maneira de estabelecer a data 539 A.E.C. independentemente dele, evitando assim um conflito com a evidência acompanhante fornecida pelo texto, que anula 607 A.E.C. como a data para a queda de Jerusalém. A qual evidência astronômica eles recorrem?

Strm. Kambys. 400: O texto astronômico denominado Strm. Kambys. 400 é o texto usado agora pela Sociedade Torre de Vigia para estabelecer a data 539 A.E.C. É uma tabuinha datada do sétimo ano de Cambises, filho de Ciro. Fazendo referência a dois eclipses lunares mencionados no texto — eclipses que os peritos modernos “identifica[ram] com os eclipses lunares visíveis em Babilônia em 16 de julho de 523 AEC e em 10 de janeiro de 522 AEC.”, — a Sociedade conclui:

De modo que esta tabuinha especifica o sétimo ano de Cambises II como tendo início na primavera setentrional de 523 AEC. Esta data é confirmada pela astronomia.

A que nos leva isto? Se 523/22 A.E.C. foi o sétimo ano de Cambises, então seu primeiro ano foi com certeza 529/28 A.E.C. e o ano anterior, 530/29 A.E.C., foi com certeza o último ano de seu predecessor, Ciro. Todavia, para chegar à data da queda de Babilônia precisamos também saber a duração do reinado de Ciro. Para isto, a Sociedade é obrigada a aceitar a informação encontrada em outro tipo de textos cuneiformes, as tabuinhas comerciais, isto é, documentos datados de transações comerciais e administrativos. Sobre estes, eles declaram:

A mais recente tabuinha datada no reinado de Ciro II é do 5.° mês, do 23.° dia do seu 9.° ano… Visto que o nono ano de Ciro II como rei de Babilônia foi 530 AEC, seu primeiro ano, segundo este cálculo, foi 538 AEC, e seu ano de ascensão foi 539 AEC.

Assim, para estabelecer a data 539 A.E.C., a Sociedade aceita sem questionar várias fontes seculares antigas: (1) uma tabuinha astronômica babilônica e (2) tabuinhas comerciais babilônicas datadas do reinado de Ciro. No entanto, nas páginas seguintes do mesmo artigo (páginas 608-610) outros documentos exatamente do mesmo tipo — textos astronômicos e tabuinhas comerciais — são rejeitados porque apóiam a data 587 A.E.C. para a destruição de Jerusalém!

Se as críticas da Sociedade a estes diários astronômicos (principalmente ao fato de eles serem cópias posteriores de um original) fossem válidas, essas críticas se aplicariam com igual força ao Strm. Kambys. 400, que é favorecido por eles. Assim como o VAT 4956, o Strm. Kambys. 400 é uma cópia de um original mais antigo. Na verdade, dificilmente poderíamos chamá-lo de cópia. O eminente perito em textos astronômicos, F. X. Kugler, indicou já em 1903 que esta tabuinha é apenas parcialmente uma cópia. O copista estava evidentemente trabalhando a partir de um texto muito deficiente, e por isso tentou preencher as lacunae ou falhas no texto com seus próprios cálculos. Assim, na melhor das hipóteses, somente uma parte do Strm. Kambys. 400 contém observações. O restante são acréscimos feitos por um copista bem inexperiente, de um período muito posterior. Kugler comentou que “nenhum dos textos astronômicos que conheço apresenta tantas contradições e enigmas não solucionados como o Strm. Kambys. 400. ”

Em contraste, o VAT 4956 é um dos diários mais bem preservados. Embora ele também seja uma cópia posterior, os peritos concordam que é uma reprodução fiel do original.

Há alguma evidência de que os eclipses lunares mostrados em Strm. Kambys. 400, mencionados no livro Estudo Perspicaz das Escrituras foram calculados em vez de terem sido observados. O ponto que queremos frisar aqui não é a validade ou falta de validade dessas observações particulares mas sim que, enquanto aplica certo critério como base para rejeitar a evidência do VAT 4956, a Sociedade Torre de Vigia não permite que o mesmo critério afete a sua aceitação do Strm. Kambys. 400 porque vê este documento como dando aparente apoio a suas afirmações. Esta repetida inconsistência é resultante da mesma “agenda secreta” de tentar proteger uma data sem apoio histórico.

Na realidade, para fixar a data da queda de Babilônia, é muito mais seguro começar pelo reinado de Nabucodonosor e contar para frente, em vez de começar pelo reinado de Cambises e contar para trás. A data 539 A.E.C. para a queda de Babilônia foi, de fato, originalmente determinada deste modo, conforme é indicado pelo Dr. R. Campbell Thompson em História Antiga – Universidade de Cambridge (em inglês):

A data 539 para a queda de Babilônia foi calculada a partir das últimas datas dos contratos de cada rei deste período, contando-se desde o fim do reinado de Nabopolassar em 605 A.C., ou seja, Nabucodonosor, 43: Evil Merodaque, 2: Neriglissar, 4: Labashi-Marduque (somente a ascensão): Nabonido, 17 = 66.

Entretanto, a Sociedade Torre de Vigia aceita apenas o produto deste cálculo (539 A.E.C.), mas rejeita o próprio cálculo e seu ponto inicial, porque estes contradizem a data 607 A.E.C. A Sociedade rejeita os textos astronômicos em geral e o VAT 4956 em particular; por outro lado, é obrigada a aceitar o mais problemático — o Strm. Kambys. 400. Certamente seria difícil encontrar um exemplo mais notável de erudição inconsistente e enganosa.

Conforme se demonstrou acima, 539 A.E.C. não é um ponto de partida lógico para estabelecer a data da desolação de Jerusalém. As datas mais confiáveis neste período (no 6.º século A.E.C.) que podem ser estabelecidas como absolutas, situam-se muito antes, dentro do reinado de Nabucodonosor, um reinado que é ligado diretamente à nossa era pelo VAT 4956 e por outros textos astronômicos.

Ademais, a Bíblia fornece um sincronismo direto entre o reinado de Nabucodonosor e a desolação de Jerusalém. Conforme já foi indicado, 2 Reis 25: 8 declara explicitamente que esta desolação ocorreu no “décimo nono ano do Rei Nabucodonosor.” Em contraste, a Bíblia não fornece nenhum sincronismo direto deste tipo para a queda de Babilônia.

Mas isto não é tudo. Os períodos de reinado dos reis neobabilônicos (conforme citados acima pelo Dr. R. Thompson com base nas tabuinhas comerciais) desde o primeiro rei, Nabopolassar, até o último, Nabonido, podem ser firmemente estabelecidas de várias maneiras diferentes. Na verdade, a cronologia deste período pode ser estabelecida através de pelo menos dezessete linhas de evidência diferentes! Esta evidência será apresentada nos próximos dois capítulos.

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