“Decretos do Corpo Governante?”

“Ora, enquanto viajavam através das cidades, entregavam aos que estavam ali, para a sua observância, os decretos decididos pelos apóstolos e anciãos, que estavam em Jerusalém. Portanto, as congregações continuavam deveras a ser firmadas na fé e a aumentar em número, dia a dia. ” (Tradução do Novo Mundo, edição de 1986)

Um leitor Testemunha de Jeová nos encaminhou diversas questões. Segue-se um trecho da comunicação dele, tratando do assunto da autoridade religiosa:

… Outra dúvida que fiquei ao pesquisar o site foi sobre o corpo governante. Entendi que no primeiro século não havia tal corpo governante e os apóstolos e anciãos em Jerusalém foram corrigidos por Paulo e Barnabé, na ocasião de Atos capítulo 15. Mas o capítulo 16:4,5 diz que os decretos decididos pelos apóstolos e anciãos em Jerusalém estavam sendo entregues às congregações e que o progresso estava sendo obtido em razão disso.

Quando se usa a expressão “decretos decididos pelos apóstolos e anciãos em Jerusalém”, não se dá a ideia de que eles é quem deveriam realmente ter dado a palavra final, por assim dizer, mesmo que eles tenham de fato sido corrigidos por Paulo e Barnabé? Isso não daria margem para hoje em dia nós, por assim dizer, corrigirmos o atual Corpo Governante?

Outro detalhe que considero importante é o fato de que a decisão do assunto só foi respeitada e obedecida depois que os anciãos e apóstolos em Jerusalém deram o seu parecer a respeito. Eles eram os mais antigos e íntimos amigos de Jesus Cristo. Será que esse foi o único motivo para a decisão deles ser tão aguardada para ser obedecida, ou será que eles realmente tomavam decisões e enviavam esses decretos para as congregações em outras ocasiões e isso simplesmente não foi mais relatado na Bíblia por não ter mais porque se relatar, já que se deixou um exemplo relatado em Atos 15 e 16?”

RESPOSTA

Sua pergunta foi se, com base na situação ocorrida no primeiro século, nós também poderíamos ‘corrigir o Corpo Governante atual’. Se, conforme você mesmo já concluiu, não havia esse Corpo Governante no primeiro século, então o precedente para sua hipótese não existe. Que muitas instituições religiosas de hoje reconhecem uma autoridade central é fato. O que está errado é essas instituições usarem o relato de Atos 15 e 16 como precedente. A simples leitura completa deste relato desautoriza isso, já que nem os termos que as instituições usam (exemplos: “concílio”, “Corpo Governante”, etc.) aparecem no relato, nem a ideia duma liderança central e reuniões regulares desta encontra-se lá.

É preciso levar em conta também que não foi rigorosamente o caso de todos os apóstolos e anciãos de Jerusalém terem sido “corrigidos”. Pode até ser que alguns deles tenham sido temporariamente influenciados pela ideia de que a circuncisão e a observância de outros preceitos da Lei Mosaica deveriam ser obrigatórias para os cristãos gentios, mas isso não foi o caso de todos. Tiago, por exemplo, que estava em Jerusalém, não pensava assim (confira o relato.). Nem Paulo e Barnabé. Esta questão foi levantada por ‘certos homens que desceram da Judéia’ (o relato não identifica esses homens.) Como a questão surgiu na Judéia, com sua capital, Jerusalém, é natural que ela tivesse de ser decidida lá.

Outra coisa: O relato não diz que a decisão foi tomada unicamente com base nas ideias dos apóstolos e anciãos de Jerusalém. Em vários momentos podemos ver que muito mais gente participou da discussão e Paulo e Barnabé, por exemplo, eram da congregação de Antioquia, e o relato indica que eles também tiveram um papel ativo no consenso a que se chegou na reunião. Não foi o caso de os apóstolos e anciãos terem se reunido numa área reservada para tomar a decisão sozinhos. 1

É questionável também o uso dessa palavra “decreto”. A Tradução do Novo Mundo é das poucas versões que usam este termo. Uma consulta a outras versões (confira) mostra que a palavra mais usada é “decisão”, e mais ainda, uma decisão que foi “recomendada” (várias versões usam este termo), algo que ‘pareceu bem ao espírito santo e a nós mesmos (os que estavam reunidos)’, com o objetivo de não impor uma carga adicional aos cristãos e manter a paz na igreja, evitando atritos desnecessários entre os cristãos judeus e gentios. 2 Você há de convir que a expressão ‘decisão recomendada pelos apóstolos e anciãos de Jerusalém’ (que pode ser extraída da maioria das versões) é bem diferente da expressão ‘decreto do Corpo Governante’ – que é a preferida pela liderança das Testemunhas de Jeová e figura nas publicações deles (Veja, por exemplo, a revista A Sentinela de 15 de outubro de 1992, pág. 30, enciclopédia Estudo Perspicaz das Escrituras, Vol. 1, pág. 148; Vol. 2, pág. 369, livro Revelação – Seu Grandioso Clímax Está Próximo!, pág. 52, revista A Sentinela de 15 de setembro de 1983, pág. 30, entre outras publicações.)..

Ou seja, além de o termo “Corpo Governante” não aparecer em versão bíblica alguma e não haver evidência de que os cristãos do primeiro século encarassem os apóstolos e anciãos de Jerusalém desse modo, ou que essa decisão tenha sido tomada unicamente por eles, ou ainda que essas reuniões em Jerusalém tenham ocorrido em ocasiões posteriores, o relato também não transmite a ideia de que a decisão tomada tinha a força jurídica dum “decreto”, válido para qualquer situação e para todos os tempos e épocas da Igreja. 3

Quanto à sua última pergunta, sobre o motivo da pronta aceitação e obediência à decisão, há margem para um entendimento alternativo: a excelente qualidade da própria decisão. Se esta questão que surgiu em Jerusalém no primeiro século surgisse hoje e fosse de grande preocupação para os cristãos que vivem hoje (o que definitivamente não é o caso, convenhamos) e um grupo reunido de cristãos experientes tomasse aquela decisão que foi tomada em Jerusalém, não haveria como algum cristão de hoje deixar de reconhecer o valor prático dessa decisão, e o grande potencial dela em promover e manter a paz na igreja. Diante disso, a questão de quem tomou a decisão não seria a principal, percebe isso? Ainda que aquela decisão tivesse sido tomada só pelos apóstolos e anciãos da igreja de Jerusalém (o que, como já vimos, também não foi o caso), o aspecto importante ali foi a decisão, não quem a tomou. Terem os cristãos acatado de bom grado a recomendação (reconhecendo o apoio divino para ela) é que foi o fator que contribuiu para ‘as congregações serem firmadas na fé e aumentarem em número dia a dia’ e não o fato de esta decisão ter vindo duma “liderança central”, algo como um “Corpo Governante” que funcionava na “sede mundial” em Jerusalém e fazia regularmente “concílios” fechados, para emitir “decretos” de aceitação obrigatória para todos os cristãos espalhados pelo mundo.

NOTAS:

1 – É frequente as publicações da JW.org transmitirem esta ideia. Geralmente as representações artísticas dessa reunião mostram apenas um pequeno grupo de homens idosos reunidos num ambiente reservado, como exemplifica esta imagem (extraída da revista A Sentinela de 15 de junho de 2009, pág. 23):

Reunião Corpo Governante

Isto induz os leitores a pensarem que a reunião do primeiro século abre um precedente para as reuniões semanais que o Corpo Governante das Testemunhas de Jeová realiza na atualidade.  O livro ‘Dê Testemunho Cabal’ sobre o Reino de Deus (2009), inicia seu capítulo 14, intitulado (“Chegamos a um acordo unânime”, pág. 108), com as seguintes palavras:

O SUSPENSE paira no ar. Os apóstolos e os anciãos reunidos em uma sala em Jerusalém olham uns para os outros, sentindo que chegaram a um momento decisivo. A questão da circuncisão levantou perguntas importantes. Os cristãos estão sob a Lei mosaica? Deve haver alguma distinção entre cristãos judeus e gentios?” (o grifo é nosso).

Porém, o exame atento do relato de Atos 15 jamais dá base para esta dramatização do evento. Antes de se chegar à decisão, todos os grupos reunidos tiveram a liberdade de expressar sua opinião (veja o versículo 5). É verdade que o versículo 6 diz que “os apóstolos e os anciãos ajuntaram-se para considerar esta questão” mas não se diz que isso foi feito de maneira reservada. É mais óbvia a conclusão de que eles continuaram reunidos com os demais. Que havia ordem na reunião, ou seja, quando alguns falavam outros escutavam respeitosamente é fato, mesmo estando presente uma “multidão” (veja o versículo 12) de modo que não houve necessidade de alguns homens se separarem dela em algum momento para decidir as coisas e depois apresentar sua decisão para o resto da multidão. O versículo 22 diz:

“Então os apóstolos e os anciãos, junto com toda a congregação, decidiram enviar a Antioquia homens escolhidos dentre eles, junto com Paulo e Barnabé; enviaram Judas, que era chamado Barsabás, e Silas, homens que tomavam a liderança entre os irmãos.” (grifo acrescentado).

Em nenhum caso os demais da congregação foram excluídos do “acordo unânime” a que se chegou. A imagem na página 107 desta mesma publicação (apresentada abaixo) já mostra mais pessoas (além dos apóstolos e anciãos) presentes na reunião, mas a ideia que ainda se tenta promover é que tais pessoas foram apenas comunicadas da decisão dos homens mais idosos (que eles haviam supostamente tomado em secreto, antes disso):

Reunião anciãos apóstolos e congregação de Jerusalém

Embora esta imagem do livro ‘Dê Testemunho Cabal’ sobre o Reino de Deus esteja mas próxima da realidade, ela ainda não se ajusta à descrição que o relato bíblico dá. Além de nenhum versículo mencionar alguma sala reservada, a narrativa de Lucas deixa claro que a “multidão inteira” (Tradução do Novo Mundo) continuou presente depois que os apóstolos e anciãos tinham se ‘ajuntado’ para discutir o assunto.

2 – A Bíblia Mensagem de Deus, por exemplo, verte o trecho de Atos 16:4, 5 da seguinte maneira: “Em cada cidade por onde passavam, eles transmitiam as decisões que os apóstolos e presbíteros de Jerusalém tinham tomado e recomendavam sua observância. As Igrejas ficavam, assim, mais fortes na fé e o número de seus membros aumentava de dia para dia.” Outras versões transmitem a mesma ideia.

3 – Sobre isso diz o Comentário de Adam Clarke ao livro de Atos, capítulo 16: “Versículo 4: “Eles entregaram-lhes os decretos para observância” – ta dogmata, ta kekrimena upo twn apostolwn. O bispo Pearce argumenta que ta dogmata – os decretos – é uma interpretação que não  constava no texto original; e que ta kekrimena  – os juízos ou decisões – dos apóstolos era tudo o que estava escrito originalmente aqui. Ele apóia sua opinião fazendo uma referência à palavra krinw – decido – usada por Tiago em Atos 15:19 onde a decisão completa, que se referia 1) à inconveniência de se circuncidar os gentios e 2) à necessidade de se observar os quatro preceitos necessários, foi chamada de ta kekrimena, as coisas que foram julgadas ou decididas, as decisões do conselho apostólico. Em vez de gegrammena, a Versão Siríaca usa uma palavra que corresponde a gegrammena – os decretos que foram escritos. A palavra dogma (dokew) – determinação ou decreto – significa uma determinação legal ou decreto, própria e deliberadamente feito, em relação a qualquer ponto importante, e que, em referência àquele ponto, tem força de lei. Nossa palavra dogma, da qual abusamos muitas vezes, é a transliteração da palavra grega [dogmata].”

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