ArtigosEnsinos e História das Testemunhas de Jeová

A Doutrinação e a Subordinação das Testemunhas de Jeová

Introdução

A sabedoria, porém, lá do alto, é primeiramente pura; depois pacífica, indulgente, tratável, plena de misericórdia e de bons frutos, imparcial, sem fingimento. ― Tiago 3:17, Almeida Revista e Atualizada.

Uma característica comum dos movimentos de massa, em geral, é que mostram viva preocupação com o indivíduo e com os interesses do indivíduo. Produzem, porém, paradoxalmente, a subordinação do indivíduo e o desestímulo ao pensamento individual. A conformidade e a uniformidade são enfatizadas como coisas vitais ao êxito do movimento, seu progresso e crescimento. O indivíduo só é importante quando contribui para o êxito do movimento. Todos os interesses e todo o pensamento devem se subordinar a este alvo.

A liderança das Testemunhas de Jeová tem feito declarações fortes sobre a subordinação e a doutrinação ― de dois modos diferentes. Um é com respeito à informação vinda de fontes externas da organização. O outro é com respeito à aceitação da informação que ela mesma provê. Este padrão desigual conduz a um paradoxo como o descrito acima.

A força para resistir à doutrinação

As Testemunhas de Jeová estabeleceram um notável histórico de resistência às técnicas de “lavagem cerebral”, especialmente por parte de sistemas totalitários, tal como o nazismo, que tentaram doutriná-las com suas ideologias. O número de 15 de maio de 1959 de A Sentinela apresentou esta citação a respeito do histórico delas (página 302):

Um livro publicado em inglês nas Ilhas Britânicas, em 1957, intitulado A Batalha da Mente, Uma Psicologia de Conversão e de Lavagem Cerebral, disse: “Aquêles de quem se relata que puderam melhor preservar suas normas e crenças nos campos de concentração alemães durante a segunda Guerra Mundial eram os membros da seita das testemunhas de Jeová. Êste grupo religioso pacifista tem muitas crenças estranhas, mas elas foram implantadas com tal força e certeza pelos seus líderes religiosos, que permanecem em operação quando a contínua debilitação e degradação psicológica reduziu a maioria dos outros de elevados ideais, mas nenhuma lealdade específica, a aceitar o conceito mais baixo de moralidade individual e em grupo. O que resguarda contra a conversão é realmente uma crença ardente e obsessiva em algum outro credo ou modo de vida. A história mostra que soldados bem doutrinados e treinados podem ser tão valentes e obstinados como as testemunhas de Jeová.” (Grifo acrescentado)

Nos infames campos de concentração, assim como nos campos de trabalho e prisões e em face de outras formas de perseguição, as Testemunhas de Jeová mostraram forte resistência à doutrinação política. Não há base para duvidar da intensidade da devoção das Testemunhas de Jeová em geral ao enfrentarem estas experiências aflitivas.

Note, porém, que o trecho citado pela Sentinela acima traz o ponto válido de que outros, além das Testemunhas de Jeová, podem mostrar e têm mostrado resistência à lavagem cerebral com êxito comparável, incluindo “soldados bem doutrinados e treinados”. Portanto, trata-se muitas vezes do caso de uma doutrinação contra a outra. Às vezes, podem ser ambas de origem política ou nacionalista, ou podem ser ambas de natureza religiosa, ou talvez ideias provindas de uma destas fontes sejam lançadas contra ideias originadas de uma das outras.

A simples capacidade de resistir, pois, não garante que a força da resistência venha necessariamente de convicções bíblicas quanto a certas ações serem corretas ou erradas. Pessoas tanto no passado como no presente dispuseram-se a sofrer severas provações enquanto se apegavam a crenças bem diferentes e às vezes opostas às das Testemunhas de Jeová. A história mostra momentos em que pessoas estiveram dispostas a sacrificar suas vidas para serem obedientes a certa liderança, mesmo que a reflexão sóbria mostrasse que essa liderança estava bem distante do exemplo de Jesus Cristo. A base para as crenças da pessoa, o meio pelo qual veio a ser governada por essas crenças, devem ser o fator determinante quanto a se a resistência é realmente fruto do genuíno cristianismo ou não.

Consideremos brevemente o que disseram as revistas A Sentinela e Despertai! sobre doutrinação, persuasão de massas e lavagem cerebral, e sobre os meios de se contrapor a estas. O número de 15 de junho de 1961 de A Sentinela destacava estes pontos interessantes e válidos (página 359):

Observe a admoestação: ‘Prove a si mesmo: Se puder provar a si mesmo, com a Bíblia, os pensamentos de Deus que adotou, então nenhuma lavagem cerebral poderá tirá-los da mente. Não basta saber o que crê; precisa saber por que o crê

Um artigo publicado no número de 9 de maio de 1954 do Times Magazine de Nova Iorque, falou sobre as técnicas comunistas de lavagem cerebral, e concluiu: “Há apenas uma forma de imunização contra o ataque totalitário feito contra as convicções humanas.” Esta é ter convicções mais profundas e entendimento mais cabal da sua crença. Senão, disse o artigo, “tornar-se-á vítima fácil e voluntária, uivando com os lobos no mato”.

Exorta-se o verdadeiro cristão a ter profunda convicção. Esse tipo de convicção não é algo que se consegue com base num grupo, ela deve ser obtida pelo indivíduo através de reflexão, estudo e conclusões pessoais. A exortação inspirada de “prove a si mesmo” a vontade de Deus requer claramente esse tipo de reflexão pessoal.

Mais adiante, este mesmo artigo diz:

Cremos usualmente aquilo que queremos crer, e uma coisa que gostaríamos de crer é que pensamos por nós mesmos. Por isso não é muito difícil para propagandistas espertos fazer-nos crer que os pensamentos deles são os nossos. Implantam a ideia e a fomentam, mas fazem-no de modo tão sutil, que pensamos que é a nossa. — 2 Cor. 4:4, NM.

“Que Satanás não alcance vantagem sobre nós pois não lhe ignoramos os desígnios.” Devemos conhecer , as artimanhas espertas dos seus propagandistas. Há muitas delas, porém, para mencionarmos apenas uma: os apelidos desabonadores aplicados a tudo o que é contrário... Mas, deixar-se levar por tais pressões sociais, ser empurrado e manobrado por temer tais apelidos, é mostrar uma lamentável falta de madureza, incapacidade de pensar por si próprio, falta de convicções inteligentes.

Deixar de pensar por si próprio, ser influenciado por pressões e apelidos desagradáveis é “lamentável falta de madureza”, diz a matéria. Pode parecer incrível que os editores desta informação sejam os mesmos que fizeram a expressão “pensamento independente” tornar-se um “apelido desabonador” entre seus próprios seguidores, mas foi isso o que aconteceu. A Despertai! de 22 de fevereiro de 1979 trazia um artigo intitulado “Pensam os outros por você?” e expunha os seguintes métodos dos propagandistas (páginas 3 e 4):

Aconselha-se o leitor deste artigo de Despertai! a não ser seduzido ainda que a informação pareça ser ‘sábia, correta e de boa moral’, ainda que “lhe dê um senso de importância e de pertencer a um grupo, caso a siga”. A matéria fala enfaticamente em favor do debate aberto, não deixar a “tirania da autoridade” impedi-lo de pôr à prova a veracidade de tudo. Este, diz o artigo, é o proceder sábio.

Tempos depois, um artigo perguntando “Sente-se atingido pela persuasão em massa?”, sugeria estes pontos para a pessoa proteger-se contra ser arrebanhada pelo pensamento em massa:

Faz-se a lavagem cerebral com mais facilidade no indivíduo “normal”, mediano. Tal pessoa já está condicionada a aceitar as opiniões dos outros, ao invés de formular firmes convicções próprias. Por outro lado, é mais difícil fazer a lavagem cerebral nos que têm idéias não convencionais e firmes convicções, e que não temem o que os outros pensam.

O artigo continua, alistando cinco modos de resistir à lavagem cerebral:

1. Tenha firmes convicções: Conforme já mencionamos antes, é mais fácil fazer a lavagem cerebral na pessoa facilmente influenciada pelos outros. Não abrace uma idéia só porque seus companheiros a aceitam. Certifique-se de que os pontos de vista que adota sejam verdadeiros. O melhor modo de fazer isto é por compará-los com a Palavra inspirada de Deus que, em última análise, é a “verdade”. ― João 17:17; 2 Tim. 3:16.

2. Descubra a razão: Inadvertidamente, muitas vezes aceitamos certas atitudes sem saber o que há por trás delas. Por exemplo: as pessoas em sua comunidade talvez tenham um conceito negativo sobre certas raças ou grupos étnicos. Mas por quê? Se achar que a razão não é convincente, por que adotar tal ponto de vista?

3. Resista a pensamentos impróprios: ….é difícil evitar ver, escutar ou senão ter pensamentos impróprios. Temos nós, porém, de saturar deles a nossa mente? Fazer isto afetará adversamente nossos juízos e nossas ações. Quão melhor é resistir aos pensamentos impróprios e dar atenção às coisas que edificam! ― Efé. 5:3-5.

4. Fale a favor do que sabe ser correto: Isto lhe dará oportunidade de testar o que crê e de entrincheirar de modo mais firme em sua vida a verdade. Se estiver convencido da verdade de um assunto, após uma pesquisa cabal, não fique desconcertado pela zombaria dos outros.

5. Viva a verdade: Não procure desculpas para transigir no que sabe ser correto. Lembre-se: se algo for correto e direito, resultará no seu bem. Não se engane por pensar que esteja perdendo algo ou que seja muito restringido por se harmonizar com o que é certo.

Despertai! de 8 de junho de 1980, páginas 3, 4.

Todos estes artigos publicados pela organização das Testemunhas de Jeová encorajam, com apoio da Bíblia, a determinação pessoal quanto à veracidade e o caráter bíblico das coisas ensinadas, do que a pessoa crê. Não defendem a atitude de “abraçar uma ideia” só para concordar com a maioria ou com os conceitos de determinado grupo. Encorajam a que, de modo pessoal, testemos, pesemos, aceitemos ou rejeitemos. Exortam o leitor a estar disposto a lutar pelo que crê com a confiança de que apegar-se à verdade, sem transigir, resultará sempre no melhor.

Não há dúvida de que a maioria das Testemunhas de Jeová esteja disposta a suportar o dissabor da desaprovação ou desdém por parte das pessoas de fora por se apegarem a crenças impopulares. Em geral, elas são sinceras neste papel inconformista para com os de fora, e têm confiança de que, embora impopulares, esta é a coisa certa a fazer, o proceder que agrada a Deus.

Resta, porém, uma pergunta: Podem as pessoas ser consistentes quando sustentam os bons e sólidos princípios expostos nestes artigos ao lidar com fontes de informação de fora de sua comunidade religiosa específica, enquanto desprezam estes mesmos princípios dentro de seus domínios? Que dizer, também, de uma organização que exorta os membros a aplicar diligentemente tais princípios às fontes externas de informação, mas desencoraja, menospreza, e chega mesmo a denunciar aqueles que os aplicam às informações que ela própria fornece?

Quando isto ocorre, que motivo há para crer que a resistência à doutrinação externa e à “persuasão em massa” é necessária e genuinamente fruto de profundas convicções que resultam do próprio pensamento da pessoa? Que garantia há de que isto não ocorre no caso de uma doutrinação contra outra doutrinação, e que a recusa da pessoa a se curvar aos “apelidos desabonadores” e à desaprovação e as pressões por parte dos de fora não é até certo ponto fruto da ansiedade de evitar “apelidos desabonadores”, desaprovação e pressões dos de dentro da sua própria comunidade religiosa? Mais importante ainda, o que pensar de uma organização religiosa que exorta as pessoas a rejeitar o engano sutil, a manipulação de fatos e meias-verdades provenientes de outras pessoas se, ao mesmo tempo, desautoriza esta prática quanto aos próprios ensinos? Além disso, que honestidade e coerência há quando se tenta também impor a lei do silêncio aos que usam suas faculdades mentais dadas por Deus para discernir esses erros, ao ponto de rotular qualquer debate desse tipo como “conversa rebelde”? Quão consistente é elogiar o pensamento independente com relação à informação externa, mas condená-lo como sinal de falta de modéstia e humildade quando se trata da informação provida dentro da organização?

Parece que as palavras de Jesus sobre ‘limpar por dentro o copo para que por fora também se torne limpo’, bem como sua advertência contra assemelhar-se a ‘sepulcros caiados’ que externamente mostram uma aparência, tendo outra por dentro, dão séria razão para preocupações neste respeito. (Mateus 23:25-28)

Uma ex-Testemunha de Jeová do Brasil, que tinha trabalhado como “pioneiro especial” [evangelista por tempo integral] e que depois de muitos anos começou a fazer perguntas sobre certos ensinos da organização, expressou deste modo sua experiência:

Não posso negar que fui e ainda sou influenciado pelos nobres princípios aplicados aos de fora, defendidos na literatura [da organização]. Confiei de todo o coração nesses princípios e acreditei que qualquer assunto seria corretamente considerado pela organização. É doloroso constatar, no fim, que os princípios são apenas parte de um monólogo, como outros tipos de propaganda, que não procuram resposta alguma senão seu próprio eco.

Aplicação das coisas ditas

Pois por suas palavras vocês serão absolvidos, e por suas palavras serão condenados. ― Mateus 12:37, Nova Versão Internacional.

A coerência certamente exige que todas as Testemunhas de Jeová apliquem dentro da organização os incentivos publicados já citadas:

· Pense por si mesmo; não deixe que outros pensem por você.

· Se você crê em algo, assegure-se de saber por que, e “se achar que a razão não é convincente, por que adotar tal ponto de vista?”

· “Não abrace uma ideia só porque seus companheiros a aceitam. Certifique-se de que os pontos de vista que adota sejam verdadeiros”, solidamente baseados e apoiados nas Escrituras.

· Não seja “empurrado” a aceitar pela pressão de outros, por medo do que possam pensar e por medo de ser rotulado de modo adverso, assim demonstrando “lamentável falta de madureza”.

· Não deixe que a “tirania da autoridade” “faça calar as objeções” ou o intimidem de testar as declarações feitas por esta “autoridade”.

· Não deixe de falar em favor da verdade, nem procure “desculpas para transigir”.

É razoável que esta exortação publicada seja posta em prática de modo respeitoso, responsável e cristão. O que aconteceria se uma Testemunha de Jeová expressasse a intenção de fazer exatamente o que se declarou acima ― dentro da organização — fazendo isto exatamente deste modo respeitoso, responsável e cristão?

Cada homem do Corpo Governante das Testemunhas de Jeová, e praticamente cada ancião nas dezenas de milhares de congregações em toda a terra, sabe que isto quase certamente levaria essa pessoa a ser vista como perigosa, passível de ser removida da congregação. Como está amplamente documentado, foi exatamente isso o que aconteceu a pessoas que levaram a sério esses princípios.

Comparemos estas exortações publicadas sobre o modo de ter convicção genuína com a realidade que existe entre as Testemunhas de Jeová. É razoável que, quanto mais séria a questão e mais sérias as possíveis consequências, mais importante é aplicar este conselho. Como exemplo, a questão do “serviço alternativo” teve consequências no passado que significaram prisão por um ano ou até mais, ser separado dos pais e da família, talvez do cônjuge, perda da liberdade para obter os meios de vida que a pessoa tinha, ou de participar em qualquer outra atividade que a liberdade normalmente permite. Considere, então, o que os membros das comissões de filial de muitos países disseram sobre a questão dos rapazes Testemunhas que se arriscaram a ser presos por rejeitar as provisões governamentais de “serviço alternativo” em lugar do serviço militar. Recordemos só algumas declarações:

Bélgica: “Poucos irmãos estão, de fato, em posição de explicar com a Bíblia por que se recusam… basicamente, eles sabem que é errado e que a Sociedade o considera como tal.”

Dinamarca: “Embora muitos irmãos jovens pareçam capazes de entender os argumentos, refletir neles e explicá-los até certo ponto, nota-se que a maioria dos irmãos jovens, atualmente, segue o exemplo de outros e toma a posição que a comunidade dos irmãos espera deles sem realmente compreender os princípios básicos e argumentos envolvidos, e sem ser capazes de explicar claramente sua posição.”

Espanha: “Quando um ancião discute a questão do serviço substituto com alguém, essa pessoa geralmente aceita [a posição] de que substituição corresponde a equivalência. Mas esta ideia não é costumeiramente compreendida realmente. Em vez disso, é considerada como sendo a opinião da organização, os anciãos a apresentam o melhor que podem e os irmãos lealmente a cumprem sabendo que é isso o que se espera dele. Mas nos parece que muitos irmãos acham nosso raciocínio um tanto artificial.”

Havaí: “Falando de modo geral, os irmãos aqui acham difícil entender os princípios bíblicos que determinam guardar estrita neutralidade. Uma vez que conhecem a posição da Sociedade em tais questões, eles cooperam plenamente, mas não veem com muita clareza os princípios em que se apoia a nossa posição.”

Noruega: “Os irmãos na Noruega não aceitam trabalho civil sem uma sentença do tribunal, principalmente porque sabem que esta é a norma da Sociedade e eles são leais à Sociedade. Para eles é difícil entender por que é errado aceitar o trabalho civil quando o próprio trabalho não é errado e condenado pela Bíblia. Eles não conseguem fundamentar a posição deles com as Escrituras de modo adequado.”

Tailândia: “Muitos recusaram o trabalho por uma espécie de lealdade ao grupo. Eles não sabiam por que razão ou princípio, mas ouviram dizer que certa coisa era errada, e então a recusaram.”

Se as declarações publicadas nas revistas A Sentinela e Despertai! têm algum valor quando comparadas com as declarações destes membros das comissões de filial, elas claramente indicam que estes rapazes Testemunhas ou são muito vulneráveis à lavagem cerebral ou  são vítimas da doutrinação e da persuasão em massa. Muitas centenas e até milhares destes rapazes estiveram na prisão, como milhares antes deles, mas de fato não sabiam por que tiveram de tomar a posição que tomaram e que os levou a ser presos. Aceitaram uma norma sem ver base sólida para esta, deixaram que suas decisões fossem governadas, não pela sólida evidência da Palavra de Deus, mas pela “lealdade ao grupo” e “à organização”. Estas forças são as mesmas que dão tanto poder à doutrinação praticada por aquelas que as Testemunhas chamam de organizações “mundanas.” Trata-se de fazer o que os companheiros fazem e a autoridade (a organização) diz, mesmo que achem as razões insuficientes e até artificiais. O conceito sobre o “serviço alternativo” que estas pessoas aceitaram não era delas próprias, mas claramente “emprestado”. A preocupação com o que os outros da sua comunidade religiosa iam pensar, a preocupação com represálias da organização, na forma de excomunhão, certamente devem ter pesado muito na decisão deles, fazendo-os eliminar da mente quaisquer dúvidas e simplesmente se submeter. Estes rapazes Testemunhas compareceram aos tribunais governamentais e declararam-se comprometidos com a posição intransigente de rejeitar o serviço alternativo a menos que fossem antes presos e sentenciados a cumpri-lo por um juiz, achando talvez que isso era fruto da própria convicção. Mas sua incapacidade de explicar a razão da própria posição mostra que outros estavam pensando por eles. Recordemos as declarações já citadas de A Sentinela de 15 de junho de 1961:

Cremos usualmente aquilo que queremos crer, e uma coisa que gostaríamos de crer é que pensamos por nós mesmos. Por isso não é muito difícil para propagandistas espertos fazer-nos crer que os pensamentos deles são os nossos. Implantam a idéia e a fomentam, mas fazem-no de modo tão sutil, que pensamos que é a nossa.

Se, como os artigos publicados pela organização das Testemunhas de Jeová professam defender, estes rapazes tivessem pensado por conta própria, tivessem tomado posição genuinamente apoiados na consciência pessoal, a evidência provida pelos membros das comissões de filial é de que muitos, talvez a maioria, teriam agido de modo diferente da norma estabelecida pela organização. Debaixo desse arranjo, isto teria tido uma só consequência: serem declarados “removidos” da congregação. Portanto, a organização aparentemente acha que estes homens não têm idade suficiente ou não são bastante maduros para tomar suas próprias decisões, para refletir sobre suas atitudes e agir segundo sua consciência individual diante de Deus como cristãos responsáveis, mas considera que têm idade suficiente para passar parte de suas vidas na prisão sem saber por quê.

O problema, porém, não está na juventude deles. O que ocorre com estes jovens Testemunhas estende-se à maioria das Testemunhas adultas com relação a diversos outros assuntos ― emprego, vários aspectos relacionados ao sangue, amizades, educação superior e coisas similares. Deve-se recordar que os homens das comissões de filial da organização que escreveram as cartas revelando os fatos já descritos eram eles próprios adultos, e não jovens. Mesmo assim, eles próprios estavam comprometidos a seguir as diretrizes da organização. Estavam dispostos a aplicar em seus países a sanção prescrita de excomunhão aos rapazes que não acatassem a norma decretada.

Como ilustração adicional, consideremos este assunto que foi enviado da Alemanha ao Corpo Governante das Testemunhas de Jeová. Típico de muitos destes casos, trata primariamente de uma Testemunha cujo marido não-Testemunha estava comissionado com as Forças de Ocupação na Alemanha. A carta que segue conta os detalhes:

Tradução

Prezados irmãos:

Em anexo acha-se uma carta que vocês enviaram à irmã XXXXXXXX. Os irmãos também anexaram uma cópia do “Serviço do Reino” de setembro de 1976 [em português, novembro] para dar-lhe alguma informação sobre o assunto em questão.

No mesmo “Serviço do Reino” menciona-se um professor que pode lecionar matemática numa escola pertencente a uma organização religiosa. Parece que isto ainda é visto como uma questão dentro da área indefinida. Depois que isto foi considerado, naquela época, durante nossa reunião de serviço, algumas de nossas irmãs americanas na Alemanha, cujos maridos estão no exército, vieram nos perguntar se elas também poderiam trabalhar sob certas circunstâncias como professoras nas escolas do exército ou nas lojas PX [lojas que atendem famílias de militares] americanas.

Queríamos ter certeza e escrevemos uma carta à filial alemã perguntando a este respeito. Os irmãos da filial alemã nos responderam em 26 de outubro de 1976 dizendo que transmitiriam esta pergunta a Brooklyn. Aguardamos a resposta até 22 de março de 1977. Os irmãos nos escreveram que o Corpo Governante em Brooklyn chegou à conclusão de que trabalhar para os “Sistemas de Intercâmbio Europeus” (EES) ou os “Intercâmbios de Correio” (PX) não está mais na área indefinida porque a pessoa estaria também sendo culpada de apoiar práticas erradas. Mesmo vender alimentos ou roupas nestas lojas que atendem a necessidades pessoais estaria em relação direta com o exército, sendo, portanto, errado para o cristão, principalmente porque estas lojas estão sob supervisão de um general. Assim, nenhuma destas atividades está mais na zona indefinida.

Considerei isto agora com a irmã XXXXXXX, que queria ter certeza deste assunto e escreveu aos irmãos, com meu conhecimento, que aquilo que os irmãos em Brooklyn decidissem ela queria fazer. Depois que li a resposta para ela, considerei a carta de vocês com os outros anciãos e o nosso superintendente de circuito. Todos nós chegamos à conclusão de que ela parece contradizer a carta que recebemos do corpo governante. Embora em sua carta vocês mencionem que ela trabalha para o Departamento da Defesa, escrevem no parágrafo seguinte que não sabem em que tipo de trabalho ela está envolvida. Perguntamos agora se isso tem alguma importância, visto que o salário dela é pago pelo exército, como todos os que trabalham nas lojas PX vendendo alimentos ou roupas. Se este último trabalho está na área proibida, o mesmo se dá em trabalhar como professor.

Estes tipos de situações foram muito bem tratados pelos anciãos aqui na Alemanha, até que veio o artigo no “Serviço do Reino” sobre o irmão que trabalha numa escola pertencente a uma organização religiosa. Conforme entendemos, esta é uma questão de consciência que ainda está dentro da área indefinida. Daquela data em diante, tivemos de responder a perguntas como: se um irmão pode trabalhar numa escola pertencente a uma organização religiosa, por que não podemos trabalhar numa escola supervisionada pelo exército? Só estamos ensinando matemática, inglês, etc. e não violamos nossa neutralidade. Se o primeiro caso está na área indefinida, por que não o segundo?

Numa assembleia de circuito, um ancião suscitou a pergunta: “Se uma irmã não deixar seu emprego de professora numa escola supervisionada pelo Departamento da Defesa, tem de ser desassociada?” A resposta clara do superintendente de distrito foi: “Sim”.

Depois de sua carta para a irmã XXXXXX estamos de novo confusos e apreciaríamos que esclarecessem plenamente o assunto. Aguardamos ansiosos sua resposta enquanto prosseguimos em manter limpa a organização de Jeová.

Enviamos nosso caloroso amor cristão e saudações,

                                 Seu irmão,

                            [Fotocópia da assinatura]

Estes anciãos alemães admitiam estar confusos com a norma da organização. Por um lado, era lícito que uma Testemunha ensinasse matéria não religiosa numa escola pertencente a uma organização religiosa, mas não que ensinasse a mesma matéria numa escola para filhos de militares, se a escola fosse mantida ou dirigida por militares.

Já que a liderança das Testemunhas de Jeová considera todas as organizações religiosas, fora ela própria, como parte de “Babilônia, a Grande”, a grande meretriz do Apocalipse, e, portanto opositoras de Deus e Cristo, é difícil entender por que uma posição tão diferente é tomada com respeito a uma escola mantida pelo Departamento da Defesa, em contraste com outra mantida por uma organização eclesiástica. Todavia, por alguma razão indecifrável, um emprego é lícito e o outro traz expulsão da congregação.

Mesmo que uma Testemunha não compreenda, deve submeter-se, e esta é a atitude cultivada na mente de todas as Testemunhas. Note que a Testemunha envolvida é citada dizendo que “aquilo que os irmãos em Brooklyn [a sede mundial da organização na época] decidissem ela queria fazer”. Isto é visto como a atitude correta, a atitude “teocrática”, de lealdade à organização de Deus. É, porém, exatamente contrária aos princípios publicados nas revistas A Sentinela e Despertai! já citadas, com seus incentivos contra permitir a doutrinação autoritária e deixar que outros pensem pela pessoa.

Quando os anciãos dizem na carta que continuarão a “manter limpa a organização de Jeová”, o que significa realmente isto? Significa que esses homens continuarão a aplicar com o devido rigor qualquer norma que se ponha em vigor, e que removerão qualquer um que não acate essa norma (por exemplo, alguém que trabalhe em algo que antes era classificado como na “área indefinida”, mas que, por decreto da organização, foi agora transferido para a “área proibida”). Os anciãos podem sentir-se “confusos”, conforme eles mesmos dizem, mas não deixam que isto os impeça de remover a pessoa e jogá-la fora como não-cristã. A maior preocupação é ser obediente à norma da organização. Cria-se o sentimento de que ‘se a organização nos diz para fazer isso, não seremos responsabilizados por Deus se estiver errado’. Essa mesma mentalidade prevaleceu em muitos países e em muitos períodos, entre homens que se isentaram de culpa por sérias injustiças alegando que “estavam simplesmente seguindo ordens superiores”. Até os tribunais do mundo rejeitaram essa desculpa. Quanto mais devem os cristãos rejeitá-la!

Essa preocupação com a submissão à organização pode ter sobre a mente das pessoas um efeito que subjuga e restringe. Isto foi ilustrado numa experiência que me foi contada por Robert Lang, então superintendente assistente do Lar de Betel na sede internacional. Ele tinha sido transferido para outra congregação na área da cidade de Nova York e contou que numa das primeiras reuniões que assistiu ali, os anciãos vieram a ele em busca de conselho. Parece que uma jovem, irmã de um servo ministerial, estava desassociada e ainda assistia às reuniões. Ela tinha um bebê e o trazia ao Salão do Reino num carrinho. O Salão ficava no segundo andar de um edifício e a escada era longa e íngreme. A jovem subia a escada de costas, puxando para cima o carrinho do bebê, com o bebê dentro, à medida que subia. A pergunta feita pelos anciãos era se seria correto que o irmão da desassociada a ajudasse a subir a escada! Uns achavam que sim, outros diziam que não, que sendo desassociada ela tinha de ser considerada como se nem estivesse ali. Para crédito de Lang, este disse: “Não sei qual é a regra a respeito disto, só sei de uma coisa: se eu estiver por perto quando ela começar a puxar esse carrinho, vou ajudá-la! Quando penso no que poderia acontecer se ela tropeçasse e soltasse o carrinho…”

O mais assustador de tudo isto é que homens adultos não sintam que podem se guiar pelo próprio coração e mente numa situação que tão obviamente requer a bondade humana. A preocupação primária deles não era o perigo para a vida da criança, mas o que a norma da organização permitia em tais casos. Deram evidência de que se tinham tornado homens emasculados em questão de ética, com respeito ao que é certo e errado.

Isto não foi um caso raro. No livro Crise de Consciência, faz-se menção de artigos de A Sentinela escritos em 1974, que moderavam bastante a atitude para com os que estavam na “condição de desassociados”. (Crise de Consciência, capítulo 11, debaixo do subtítulo “O Crime e a Sentença”, inclusive a nota de rodapé 7) Esses artigos foram decorrência de casos de desassociados que queriam assistir às reuniões mas não tinham transporte para chegar ao local. Um era de uma moça que fora desassociada quando adolescente. Depois, mudou-se para a zona rural. Ela pediu “readmissão”, mas os anciãos a informaram de que para se habilitar ela precisava assistir às reuniões no Salão do Reino. Não havia transporte público e ela não tinha carro. A mãe dela escreveu à sede mundial, mostrando-se preocupada com o perigo que a filha jovem corria caminhando sozinha em estradas rurais, e apelando para que lhe dessem alguma “dispensa” de modo que os anciãos pudessem ajudá-la.

Na mesma época, tinha chegado outra carta, vinda dos anciãos de uma congregação do meio-oeste dos Estados Unidos. Contava o caso de uma mulher que tinha sido desassociada e que estava então num centro de reabilitação de drogas. Ela também queria assistir às reuniões, mas só podia deixar o centro se alguém assinasse um termo de responsabilidade por ela, provendo-lhe o transporte necessário. Os anciãos disseram que estavam fazendo isto e apressaram-se a explicar que quando assinavam o termo eles não falavam com ela, que ela simplesmente entrava no carro, ia com eles em silêncio até o Salão do Reino, sentava-se na parte de trás do salão e após a reunião entrava no carro e voltava para o centro. Por que escreveram a carta? Porque estavam profundamente preocupados com o que estavam fazendo, de não estarem agindo de acordo com a norma organizacional em vigor!

Na reunião do Corpo Governante, decidiu-se permitir esta ajuda, e, escrevi artigos na revista, anunciando a mudança da norma. (Veja A Sentinela de 15 de novembro de 1974, páginas 680-692.) No domingo seguinte a esta reunião, fui a Nova Jersey fazer um discurso público. Enquanto estava lá, um dos anciãos locais aproximou-se para fazer uma pergunta. Contou a situação de uma desassociada que morava a vários quilômetros do Salão do Reino e que tinha pedido ajuda para vir às reuniões. Disse que sua situação pessoal não lhe permitia pagar um táxi todas as semanas, e que sem ajuda ela seria forçada a caminhar toda aquela distância. Ele disse que nesse mesmo domingo, algumas das “irmãs” da congregação tinham vindo juntas de carro e tinham passado por ela na estrada. Afirmou que quando chegaram ao Salão, elas estavam em lágrimas por terem se sentido obrigadas a passar por ela sem parar. Fiquei especialmente feliz de informar a ele que fora tomada a decisão ― por aquilo que servia de “Supremo Tribunal” para ele e todas as Testemunhas ― de que esta ajuda estava agora permitida.

Mais uma vez, o aspecto trágico de tudo isto é o modo como boas e belas emoções humanas são sufocadas, amarradas e paralisadas pelo domínio e doutrinação da organização. Na realidade, nos artigos de 1974, fui bem além da questão de apenas prover transporte e praticar outros gestos de costumeira cortesia para com os desassociados, moderando a posição em muitos outros setores, especialmente com respeito às relações familiares. Os artigos foram aprovados pelo Corpo Governante antes de publicados. Indicativo da real atitude de coração de muitos, talvez da maioria das Testemunhas, é que os artigos foram, de modo geral, recebidos com muito apreço, como algo que refletia mais corretamente a atitude misericordiosa de Deus e Cristo.

A revista A Sentinela de 15 de dezembro de 1981 retomou uma norma para com os desassociados muito parecida com a de antes de 1974. Em alguns pontos, agora era até mais rígida que a anterior. Alguns anciãos e superintendentes viajantes, lamentavelmente, expressaram satisfação pelo que viram como um “endurecimento” da norma organizacional. E, durante décadas, homens e mulheres deixaram-se controlar estritamente por essa norma no seu modo de tratar outros seres humanos. Ao fazerem isso, permitiram que sua consciência fosse anulada por homens, que sua compaixão fosse ligada e desligada à vontade por decreto da organização. Depois que a organização mudou as normas (Nota do editor: na revista A Sentinela – Edição de Estudo, de agosto de 2024), os seguidores da organização mudaram seu procedimento. Esta é uma das piores formas de doutrinação.

O que ocorre com a aceitação das normas organizacionais aplica-se também à doutrina e à interpretação bíblica da organização. É a aceitação quase incondicional destas que de fato antecede e reforça a aceitação relacionada das normas. Ocorre também que a vasta maioria das Testemunhas, inclusive os anciãos, se considerassem só a própria Bíblia, teriam sérias dificuldades para apresentar evidência em apoio de grande parte desses ensinos. Os anciãos, todavia, estão dispostos a tomar medidas para remover qualquer membro da congregação que faça questionamentos sérios ou expresse discordar conscienciosamente de quaisquer desses ensinos.

O que faz com que pessoas deixem que uma organização suplante sua consciência com o próprio conceito dela, ou que, no mínimo, sobreponha sua “consciência” coletiva à delas? O que motiva os anciãos a remover pessoas, quando eles próprios podem não estar plenamente convencidos na mente e no coração de que a posição da organização é a necessariamente correta, genuinamente bíblica? Quão diferente é essa atitude daquele que prevaleceu durante o regime nazista na Alemanha, quando muitos indivíduos eximiram-se de seus atos como simples obediência a autoridades superiores, descartando-se assim da responsabilidade pessoal?

Apesar desses fatos, a maior parte das Testemunhas de Jeová busca consistentemente defender e explicar todas as normas e ensinos da organização. Muitas são inteiramente dedicadas a apoiar tudo o que a organização publica. Como é possível que isso aconteça com milhões de pessoas, muitas das quais inteligentes e articuladas? Há diversos fatores. Consideremos um exemplo:

Os métodos utilizados

Determinado homem estava muito deprimido e foi atraído à religião por diversos fatores. Sobre a primeira reunião a que assistiu, ele relata:

Apreciei a conversa estimulante e a atmosfera dinâmica da reunião. Estas pessoas se relacionavam tão facilmente umas com as outras como irmãos e irmãs, e se sentiam claramente como parte de uma só família global. Pareciam muito felizes com sua vida. Depois de minha depressão no mês anterior, fui revigorado por toda essa energia positiva. Fui para casa naquela noite sentindo a sorte de ter conhecido pessoas tão boas…. estava radiante com a idéia de que… o rumo da minha vida estava agora na única “trilha verdadeira”… o pensamento de que Deus estava trabalhando ativamente para restaurar o Jardim do Éden. Nada mais de guerras, nada mais de miséria, nada mais de destruição ecológica. Só amor, verdade, beleza e bondade. . .

Identificávamo-nos verdadeiramente com os primeiros cristãos: quanto mais se opunham a nós, mais comprometidos nos sentíamos. Era como se fôssemos o exército de Deus no meio de uma guerra espiritual ― os únicos que podiam ir à linha de frente e lutar contra Satanás todos os dias.

Logo ele foi incentivado a partilhar com outros aquilo que tinha aprendido. Sobre os que responderam ao seu testemunho, ele diz:

Vemos os crentes como pessoas em busca de Deus, que procuram um sentido espiritual para suas vidas…. Era sempre incrível observar quantas pessoas nesta categoria nos diziam que estavam exatamente orando a Deus para que lhes mostrasse o que Ele queria que fizessem de suas vidas. Muitos acreditavam que foram “espiritualmente” levados a conhecer um de nossos membros.

Estas palavras podem ser facilmente ouvidas dos lábios de muitas Testemunhas de Jeová. Podem ser facilmente lidas nas experiências publicadas nas revistas A Sentinela e Despertai! Porém, não são palavras de uma Testemunha de Jeová. São palavras de Steve Hassan, ex-membro da Igreja da Unificação, chefiada pelo líder coreano Reverendo Moon, movimento muitas vezes chamado de “moonies”.1 Em dois anos e meio de associação, ele tornou-se defensor ardente e líder respeitado desse movimento, completamente leal e dedicado à sua missão. Resistiu a todos os esforços de sua família e de outros para tirá-lo daquilo de que ele estava convencido que era “a verdade”.

Depois que um acidente lhe abriu caminho para uma total mudança de opinião, ele resolveu dar a outros o benefício da visão que teve dos meios pelos quais os seres humanos podem ser levados a entregar a mente e a consciência a um sistema religioso. O livro que ele depois escreveu não trata das Testemunhas de Jeová. Trata principalmente de movimentos que recorrem a métodos óbvios e extremos de doutrinação, inclusive isolamento físico, rituais, cantoria e práticas similares. Há, porém, certos elementos que ele descreve como básicos para o controle da mente e que certamente merecem séria reflexão. Consideremos o seguinte:

Aqueles que se tornam candidatos ao controle da mente não são, na maioria, pessoas “estranhas”. Dos milhares de pessoas a quem falou ou aconselhou, Hassan afirma: “A grande maioria era de pessoas estáveis, inteligentes e idealistas”, “o grande número de membros sinceros e comprometidos que o recém-chegado encontra, provavelmente atraem muito mais um prospectivo converso que qualquer doutrina ou estrutura”. (Combatting Cult Mind Control, páginas 42, 76.) Por que permitem, então, que outros dominem seu modo de pensar?

A essência do controle da mente é que este estimula a dependência e o conformismo, e desestimula a autonomia e a individualidade…. [ele busca] minar a integridade do indivíduo para tomar suas próprias decisões.2

A religião das Testemunhas de Jeová as treina para encarar o “pensamento independente” como pecaminoso, indício de deslealdade a Deus e a seu “canal designado”. Apontando para um elemento adicional do controle da mente, o “controle da informação”, Hassan diz:

….a ideologia é internalizada como “a verdade”, o único mapa da realidade. Tudo o que é bom está corporificado no grupo…. Tudo o que é mau está do lado de fora… nunca há razão legítima para sair…. Diz-se aos membros que as únicas razões pelas quais as pessoas saem são fraqueza, tentação, insanidade, lavagem cerebral… orgulho, pecado e assim por diante. (Combatting Cult Mind Control, páginas 61, 62, 84.)

Não aprovamos o uso leviano da palavra “seita”. Como disse alguém, para muitos o termo é um rótulo que aplicam a qualquer religião de que não gostam. Cremos, de fato, que há religiões que, sem serem “seitas”, podem manifestar muitas características sectárias. Dos elementos acima apresentados como traços fundamentais das religiões que exercem controle da mente, o fato é que cada um deles está claramente presente entre as Testemunhas de Jeová.

No caso das Testemunhas de Jeová, não há isolamento físico como o praticado por alguns movimentos religiosos (bem como por oficiais encarregados de doutrinar prisioneiros políticos). Porém,  um isolamento de espécie bem definida.

A organização toma a exortação bíblica de ‘não fazer parte do mundo’ (João 17:14-16) e a aplica no sentido de que as Testemunhas de Jeová devem restringir ao mínimo associar-se com os que não são de sua fé, o que, no final das contas, significa todos os que não apoiam os ensinos vigentes da organização. Essas pessoas “não estão na Verdade”, o que é o mesmo que dizer que estão todas “na mentira”. Todos os que não são Testemunhas, não importa quão boas suas qualidades pessoais, não importa quão elevados seus padrões, não importa quão profunda sua fé em Deus, em Cristo e na Bíblia, são “mundanos”. O contato social é aceitável se o objetivo for criar oportunidades de “dar testemunho” aos “mundanos”; por qualquer outro motivo isto é desencorajado.

Uma Testemunha pode, em conversa com um vizinho “mundano”, colega de trabalho ou sócio comercial, iniciar palestra sobre tópicos religiosos mas a idéia é sempre “como dar testemunho à pessoa”. Interessa que a direção da conversa seja uma via de mão única, só mão única. Não é para que a Testemunha aprenda algo com a outra pessoa ou tenha um genuíno intercâmbio de pensamento e ideias. Isso, afinal de contas, seria inútil, já que a outra pessoa “não está na Verdade”! Quando a pessoa contatada não se mostra inclinada a concordar com o “testemunho” dado, seja quanto ao significado de 1914 ou qualquer outro tópico, a Testemunha geralmente acha que a conversa está improdutiva e pode encerrá-la. Ergue-se uma barreira mental contra qualquer comentário que não se harmonize com os ensinos vigentes na organização. Qualquer evidência que contradiga algum desses ensinos faz geralmente a Testemunha reagir de modo programado: ela fecha rapidamente as portas de sua mente a essa evidência.

O mesmo se dá com a matéria de leitura. Embora as publicações da organização das Testemunhas de Jeová citem com frequência, e às vezes liberalmente, todo tipo de publicações “mundanas”, inclusive obras sobre sociologia, psicologia e religião, cria-se a sensação de que só a liderança da organização pode fazer isto de modo seguro, e que, especialmente com relação a publicações religiosas, inclusive os comentários bíblicos, é perigoso que as Testemunhas medianas leiam essas fontes de informação. Inculcam-se não só a mera cautela mas também a desconfiança e a aversão. Evidentemente, a fé desenvolvida pela organização não é vista como forte o bastante para resistir aos efeitos dessa leitura.

De novo, nesta área, há nas publicações das Testemunhas de Jeová duas mensagens distintas, uma dirigida aos de fora da organização e outra, oposta, aos que nela estão. Os de fora são exortados a questionar suas crenças religiosas, não importa há quanto tempo as tenham. Artigos intitulados “Mente Aberta ou Fechada ― Qual Delas Possui?” e “A Mente Aberta Granjeia a Aprovação de Deus” apareceram na Despertai! de 22 de março de 1985, e outro intitulado “Aceita Novas Idéias”?, na Sentinela de 15 de janeiro de 1989. Todos são totalmente dirigidos aos que não são Testemunhas. O primeiro artigo, na página 3, define preconceito como:

Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia preconcebida… julgamento ou opinião formada sem levar em conta o fato que os conteste.

Admitindo que decisões feitas “sem maior ponderação” ou “julgamento formado” sem “levar em conta o fato que o conteste” são evidências de mente fechada, o artigo incentiva uma “mente aberta” que seja “receptiva a novas informações e ideias”, “dispor-se a examinar e avaliar informações sem atitude preconceituosa”. Mais adiante afirma:

A mente fechada pode ser indício de falta de conhecimento. Talvez saibamos tão pouco sobre certo assunto, ou tenhamos informações tão deturpadas ou incompletas, que nos faltem os fatos necessários a conclusões acertadas…

A mente fechada talvez revele falta de interesse no assunto, ou relutância em examinar a questão. Com efeito, poderia ser até sinal de incerteza ou de dúvida. Para exemplificar, se não pudermos defender nossos conceitos religiosos, talvez verifiquemos que atacamos implacavelmente os que questionam nossas crenças, não com argumentos lógicos, mas com termos depreciativos ou com insinuações. Isto sabe a preconceito e a uma mente fechada…. Até mesmo algumas pessoas muito religiosas têm mente fechada. Só estão interessadas em “sua” religião, não mostrando disposição alguma de sequer escutar os conceitos dos outros.

…O que torna uma religião certa é seu total apego à Palavra de Deus. Só podemos determinar se nossa religião se enquadra neste critério ou não por a compararmos, com mente aberta, com a Bíblia.

Parece incrível que os redatores da organização não vejam a óbvia inconsistência entre estas exortações a ter mente aberta, feitas aos “de fora” e o incentivo exatamente oposto dado aos de dentro da organização. A seção “Perguntas dos Leitores”, em A Sentinela de 1º de novembro de 1984, página 32, argumenta que é correto que as Testemunhas de Jeová, ao irem às pessoas de porta em porta oferecendo sua literatura, recusem-se a aceitar literatura religiosa que os moradores visitados ofereçam em troca. Entre outras coisas, diz:

Portanto, as Testemunhas não se dirigem à porta das pessoas em busca da verdade ou de esclarecimento. Em vez disso, já devotaram inúmeras horas para aprender a verdade da Palavra de Deus…

…as Testemunhas de Jeová não desconhecem as crenças das outras pessoas. Adquiriram conhecimento básico das crenças doutrinais das religiões comuns em sua região.

Portanto, seria imprudente, bem como um desperdício de tempo precioso, as Testemunhas de Jeová aceitarem publicações religiosas falsas, que visam enganar, e se exporem ao perigo delas…

Visto que somos cristãos leais, apeguemo-nos às normas de Deus, nutrindo a mente com o que é verdadeiro e justo, e apegando-nos com apreço e lealdade ao instrumento por meio do qual originalmente aprendemos a verdade bíblica.

A mente aberta que se espera dos leitores não Testemunhas, fazendo-os examinar literatura que oferece conceitos contrários às suas crenças religiosas, é paradoxalmente desencorajada entre as Testemunhas. Os artigos de A Sentinela e Despertai! criticam a mente fechada e a “atitude exclusivista”, mas em parte alguma esta atitude é mais evidente que entre as próprias Testemunhas de Jeová. As Testemunhas talvez digam que ‘estão informadas sobre outras religiões e suas crenças’. Mas para a vasta maioria, a informação que têm é só aquela que a sua própria organização religiosa acha que deve dar. É uma informação previamente embalada, cuidadosamente editada, geralmente com as conclusões já definidas para elas.

O autor do artigo parece não notar que, se as pessoas cujos lares as Testemunhas visitam para oferecer literatura forem membros de uma religião na qual creem firmemente e da qual receberam todo o conhecimento bíblico que possuem, estes moradores podem usar argumento idêntico para recusar a literatura das Testemunhas de Jeová, rejeitando-a como publicações falsas “que visam enganar”, algo cuja leitura seria “desperdício de tempo precioso”.3 Podem também ter lido publicações da sua igreja sobre as Testemunhas de Jeová, e assim dizer que “não desconhecem” as crenças delas. Seriam, é claro, encaradas pelas Testemunhas como pessoas “de mente fechada”, preconceituosas. Decerto se aplicam aqui as palavras de Jesus, quando disse:

Por que reparas no cisco que está no olho do teu irmão, quando não percebes a trave que está no teu? Ou como poderás dizer ao teu irmão: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu olho’, quando tu mesmo tens uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então verás bem para tirar o cisco do olho do teu irmão. (Mateus 7:3-5, BJ)

A revista Despertai! de 8 de setembro de 1987 traz artigos dirigidos primariamente aos da fé luterana. Um deles foi escrito com base em citações de sermões de Dietrich Bonhoeffer, teólogo protestante executado pelos nazistas. Supostamente, se uma Testemunha na porta de um morador alemão recebesse um panfleto com os sermões de Bonhoeffer, deveria lealmente rejeitá-lo como algo cuja leitura seria “imprudente, bem como um desperdício de tempo precioso”. Na sua revista Despertai!, porém, as citações dos sermões deste pastor protestante, segundo a definição da Torre de Vigia, um membro de “Babilônia, a Grande”, tornam-se algo aceitável, “santificado” para a leitura das Testemunhas leais.

O artigo fez várias colocações válidas sobre o conceito crítico que alguns teólogos protestantes têm da Bíblia, e outros aspectos em que muitos membros de igrejas se mostram relapsos. Considere, porém, estes pontos vistos nas páginas 8, 10 e 11 (as palavras grifadas são as que o redator da Despertai! cita dos sermões de Bonhoeffer):

Para alguém de outra religião, fixa-se o critério da verdade absoluta: Tudo deve ser “realmente verdadeiro”. Deve estar “100 por cento certo” quanto à sua religião. E se não ficar “satisfeito diante do que vê”, deve fazer “mais do que simplesmente queixar-se”, porque partilha da responsabilidade por “tudo que [sua] igreja diz e faz”. Com base em tudo que até agora foi apresentado nas publicações das Testemunhas de Jeová sobre lealdade e submissão à organização teocrática, imagine só o que aconteceria se uma Testemunha seguisse esta exortação de sua religião! Ao invés, ela deve concluir que estas palavras enérgicas aplicam-se apenas a eles e não a nós. Muitas das críticas que o artigo da Despertai! faz ao luteranismo são válidas. Mas essas falhas não tornam certas as posições das Testemunhas de Jeová, seus erros não apagam os erros da organização delas ou os tornam menos repreensíveis. Incrivelmente, o redator da Despertai! pode citar fontes protestantes, inclusive luteranas, pois elas próprias fazem essas críticas. Estas pessoas podem fazer isso sem ser excomungadas por suas igrejas. Uma Testemunha de Jeová não poderia fazer o mesmo. Quando uma Testemunha vê clara evidência de erro, de normas não-bíblicas em sua religião, não deve queixar-se, e certamente não deve sair (como se sugere que os luteranos façam em relação à religião deles). Em vez disso, ela deve calmamente ‘esperar que Jeová corrija isso no seu tempo devido’. O que é necessário e correto da parte dos luteranos é ao mesmo tempo errado e desnecessário da parte das Testemunhas. E o mais incrível é que a maioria das Testemunhas (inclusive o autor do artigo da Despertai!) não vejam em tudo isto um critério duplo, não vejam nada de impróprio em dar aos outros um incentivo que não podem aplicar a si mesmas.

A já citada seção “Perguntas dos Leitores” garante aos leitores de A Sentinela que sua recusa de ler ou mesmo aceitar literatura que os moradores oferecem não é ser “tacanho”, que ― longe disso ― é “por usar de sabedoria e de respeito para com o conselho de Deus” que tomam esta atitude. Mas o raciocínio jamais toca na verdadeira questão. Embora se refira a Paulo e sua atitude de falar a verdade intrepidamente, nunca demonstra que ele se recusou a discutir pontos de vista opostos ou defender-se das críticas. Pelo contrário, Paulo estava disposto a ser “todas as coisas para pessoas de toda sorte”.(1 Coríntios 9:19-23) Em vez disso, A Sentinela, para dar força a suas afirmações, apoia-se no preconceito, no pré-julgamento e no uso de “apelidos desabonadores” (“publicações religiosas falsas, que visam enganar”, “escritos venenosos” distribuídos “por causa de ganho desonesto”, comprá-los seria ‘financiar a iniqüidade’). Mas, por meio deste artigo, disseram às Testemunhas leais que elas não são tacanhas quando incentivam outros a olhar de modo crítico sua religião, enquanto elas próprias recusam-se a fazer o mesmo ― e elas aceitam. O “canal de Deus” falou e isso basta.

A soma da evidência, pois, é que embora não exista isolamento físico extremo, gera-se um isolamento mental muito eficaz por meio da interpretação que a organização dá às palavras de Jesus sobre não fazer parte do mundo. A comunidade dos crentes fica bastante isolada e intelectualmente lacrada em relação a toda fonte de matéria bíblica que não seja a dessa única voz, a da organização. Dizem-lhes continuamente que este é o único modo de evitar ser enganados. O  objetivo evidente é criar um ambiente estéril no qual os conceitos e interpretações da organização possam circular livremente, sem ter de se confrontar com qualquer desafio.

De modo geral, quanto mais tempo na organização, mais concentrados ficam os contatos sociais da pessoa, mais restritas ficam as amizades àqueles da organização. Até os parentes “mundanos”, isto é, os parentes não-Testemunhas, são muitas vezes gradualmente relegados a um relacionamento um tanto frio e distante.

O fato de a pessoa tornar-se parte de uma comunidade exclusiva, só com contatos limitados, “necessários” com os de fora, é o fator que dá este poder enorme a qualquer decreto de remoção emitido pela organização. Toda a vida social da pessoa está na organização. Quando se está nela há muitos anos, ser removido significa perder praticamente todas as amizades que a pessoa tem. Especialmente para os de idade avançada, isto pode apresentar uma perspectiva deprimente, devastadora. A situação equivale de perto à das pessoas dos tempos bíblicos que eram ‘expulsas da sinagoga’, visto que a sinagoga era o centro de todo contato social na comunidade judaica. (Veja João 12:42.)

Duvido muito que a maioria das pessoas, lendo a própria Bíblia, entenderia as palavras de Jesus sobre não fazer parte do mundo do modo extremo veiculado nas publicações das Testemunhas de Jeová. Não é que não exista na Bíblia este conceito exclusivista. Existe. Mas era o ponto de vista assumido pelos fariseus, não o ensinado por Jesus Cristo ou seus apóstolos. O próprio nome “fariseu” significa “separado” ou “exclusivo”. Com seus conceitos extremistas, esse grupo religioso buscava separar e excluir de sua associação todas as pessoas que não aceitavam seus ensinos tradicionais particulares e padrões de santidade, vendo a todas elas como “impuras”. (Mateus 15:1-9; João 9:16; veja também “Fariseus”, na publicação Estudo Perspicaz das Escrituras.

Jesus Cristo deu um exemplo bem diferente do destes extremistas e isto os enfureceu. Eles condenaram Jesus e o modo como se associava com outros. Lendo as palavras de Jesus, não só no Sermão do Monte mas em todos os seus ensinamentos, vemos que seu foco principal não era uma série elaborada de interpretações doutrinais, mas um alvo real estabelecido nas Escrituras, seu verdadeiro objetivo e direção, a saber, o amor a Deus e o amor ao próximo. Suas palavras destacam a conduta e as ações que manifestam este amor, e seus apóstolos pediam o mesmo em todas as suas cartas. Quando tratam da necessidade de ser criteriosos quanto a associações, é com respeito a coisas essenciais, e não diferenças em coisas mínimas, e definitivamente não em razão de normas, regras, raciocínios e interpretações extra-bíblicos, frutos do pensamento sectário.

Em sua carta aos Gálatas, o apóstolo Paulo toca de fato na questão dos ensinos, dizendo:

Admiro-me que tão depressa abandoneis aquele que vos chamou pela graça de Cristo, e passeis a outro evangelho. Não que haja outro, mas há alguns que vos estão perturbando e querendo corromper o Evangelho de Cristo. Entretanto, se alguém ― ainda que nós mesmos ou um anjo do céu ― vos anunciar um evangelho diferente do que vos anunciamos, seja anátema. Como já vo-lo dissemos, volto a dizê-lo agora: se alguém vos anunciar um evangelho diferente do que vos anunciamos, seja anátema.(Gálatas 1:6-9, BJ).

Incrível como pareça, essas palavras são hoje aplicadas pela liderança das Testemunhas de Jeová a todos os que deixam de concordar e que expressem discordar ― não da mensagem apostólica que Paulo pregava no primeiro século ― mas dos próprios ensinos atuais dela. Assim, após primeiro citar exatamente estas palavras de Paulo na resposta a uma das “Perguntas dos Leitores”, A Sentinela de 1º de abril de 1986 disse na página 31:

O artigo argumenta que os que não aceitassem seriam justamente excomungados. Isto significa tirar as palavras de Paulo do contexto, fazendo-as, de fato, significar exatamente o oposto do que dizem. O que Paulo mostra é que há apenas UM evangelho (boas novas), conforme pregado no primeiro século, não algo que apareceu pela primeira vez numa publicação ou revista de 20 séculos depois. São as boas novas que qualquer pessoa pode achar em qualquer Bíblia, sem depender de uma publicação da era moderna que a transmita para ela, não algo que não se possa entender sem esta publicação. Não se trata de uma “mensagem especial” de elaboração pós-apostólica, sem a qual a Bíblia é insuficiente, como insinuou um antigo presidente da organização das Testemunhas de Jeová em seus comentários para o pessoal da sede mundial.4

Segundo o apóstolo, existe uma única mensagem para divulgar, a já pregada por ele e outros naquela época, registrada pelos escritores inspirados da Bíblia, e ninguém, anjo ou homem, tem o direito de trazer outra mensagem senão a que já foi dada, a qual Paulo chama de “boas novas a respeito do Cristo”. (2 Coríntios 2:12; 4:4; 9:13) São as “boas novas eternas”, a “fé que de uma vez para sempre foi entregue aos santos”, e portanto não precisa ser ajustada, modernizada ou atualizada por homens não inspirados de nossa época. (Apocalipse 14:6; Judas 3.)

Os primeiros estágios do processo de doutrinação

Não há dúvida que a submissão incondicional entre as Testemunhas de Jeová desenvolve-se gradualmente. É inquestionável também que uma pessoa adquire considerável conhecimento das Escrituras por sua associação ativa com a organização das Testemunhas. Ao mesmo tempo, porém, a organização faz as pessoas progredirem só até certo ponto. As Testemunhas aprendem a localizar textos específicos na Bíblia, recebem algum conhecimento da história bíblica, e leem por si mesmas certos ensinos fundamentais diretamente nas Escrituras, e trazem a Bíblia à atenção de pessoas que antes pouco ou nada sabiam dela. Neste ponto específico, a obra das Testemunhas de Jeová merece elogios, e a falha de muitas organizações religiosas em edificar o interesse na Bíblia merece preocupação. Ao conduzir as pessoas à Palavra de Deus conforme está nas Escrituras, as Testemunhas de Jeová prestam um serviço útil.

Se pelo menos esse impulso inicial fosse mantido e aprimorado continuamente ― mas é aí que reside o problema.

Após este progresso inicial no nível de conhecimento, a vasta maioria das Testemunhas de Jeová fica num “platô”. Conforme passam os anos de associação, mais os ensinos da organização predominam sobre o estudo e a meditação nas próprias Escrituras. Em consequência, depois de vinte, trinta ou quarenta anos de associação, o conhecimento que muitas, talvez a maioria das Testemunhas, têm da Bíblia, é relativamente um pouco maior que quando tinham um ano de associação. Permanecem como crianças, numa grande dependência da “mãe” organização, e sentindo-se inseguras sem a direção dela em suas mentes e vidas. Seu progresso espiritual estanca ― a menos que elas tomem a iniciativa de ir além do “programa” da organização e por meio do esforço pessoal adquiram maior conhecimento e compreensão das Escrituras. Por deixarem que a organização atue como sua consciência, sua força espiritual, em alguns aspectos, é menor na fase posterior da vida do que no período inicial de associação. Podem suportar sofrimentos e até sacrifícios para serem leais à organização, aparentando assim firmeza espiritual. Mas não têm força para tomar decisões genuinamente pessoais de consciência e aceitar as consequências dessas decisões.

De início muitas Testemunhas são atraídas pelo apelo ao raciocínio feito em muitas publicações da organização. Visto que estas publicações procuram estimular as pessoas de outras religiões a reexaminar, reavaliar e até questionar a validade dos ensinos de suas religiões, é imperativo que estas publicações enfatizem a necessidade de a pessoa pensar por si mesma, pensar de modo independente. No início, as pessoas são regularmente incentivadas a não aceitar ensinos sem primeiro examiná-los cabalmente segundo as Escrituras. Mas o exame se restringe quase totalmente às crenças anteriores da pessoa, e só algumas destas crenças são submetidas a exame. Ensinos como a imortalidade inerente da alma, a crença no inferno de fogo literal e tormento físico ou tópicos semelhantes são o alvo de grande parte do “exame”. A argumentação é geralmente muito bem elaborada nestes tópicos. Por causa disto, a pessoa fica sempre tão impressionada que, à medida que outras doutrinas da organização são apresentadas ou ensinadas, ela tende a aceitá-las mais ou menos à base da confiança, sem exigir a mesma evidência.

A maioria das Testemunhas fica tão impressionada pelos ensinos abordados de início, sobre a mortalidade da alma, do inferno como sinônimo do domínio da sepultura ou da condição dos mortos, e pontos similares, que elas pensam e falam deles como “doutrinas básicas” das Escrituras, ensinos que constituem o critério para identificar a única religião verdadeira.

Todavia, não se consegue achar na Bíblia um capítulo sequer dedicado a esses assuntos. Não é que as pessoas dos tempos bíblicos não tivessem crenças sobre a imortalidade da alma ou um lugar de tormento para os maus. A maioria dos povos e religiões as tinham. Mas os escritores da Bíblia não foram inspirados para fazer do debate ou da refutação destas questões os assuntos destacados, fundamentais de seus escritos. Os textos e declarações que se relacionam com estes são apenas casuais dentro da consideração de outros tópicos.

A Testemunha mediana, então, pode sentir-se muito bem equipada para discutir a alma ou o inferno de fogo, mas sente-se bem perdida se lhe pedem para falar, por exemplo, da carta de Paulo aos Romanos e seus fortes argumentos sobre a salvação pela fé, não pelas obras. Além de certo número de “textos-chave”, usados em apoio aos principais ensinos das Testemunhas, a maioria dos membros teria grande dificuldade para explicar de modo inteligente a maior parte das cartas apostólicas.

Uma abordagem catequética

Embora se incentive muito o “estudo pessoal”, este é cuidadosamente programado. Espera-se que as Testemunhas leiam publicações específicas em preparação para suas reuniões semanais. Apesar de uma destas reuniões incluir a leitura de um ou mais capítulos da Bíblia, isto representa apenas uma pequena parte de toda a matéria designada. As publicações da organização são mais enfatizadas do que as próprias Escrituras. As reuniões em que se considera a matéria designada são também cabalmente programadas, sem espaço para discussão aberta. São em grande parte sessões de perguntas e respostas, com perguntas já preparadas pela organização e as respostas encontradas na publicação designada. Esta é uma abordagem “catequética” que não estimula o genuíno esforço mental ou o debate franco, mas a mera repetição (mesmo que nas próprias palavras da pessoa) do pensamento dos homens na sede mundial da organização.

Além desta programação rígida, outra razão pela qual raramente se suscitam perguntas sérias, como indicam os artigos de A Sentinela e Despertai!, é que a maioria das pessoas acha que “refletir é trabalho árduo”. (Despertai!, 22 de fevereiro de 1979, página 3.) Querem que outros pensem por elas, ainda que, como também dizem os artigos, elas gostem de acreditar “que pensam por conta própria” e que aquilo que adotam como verdade é fruto do uso de sua própria capacidade mental. (A Sentinela de 15 de junho de 1961, página 360.) A informação contida nas publicações da organização é apresentada de modo muito positivo e poucos se sentem motivados a questionar se está correta ou a fazer esforço mental para comprovar seus argumentos.

Assim, embora as perguntas sejam permitidas, espera-se sempre que os que perguntam aceitem qualquer resposta dada nas publicações da organização. O indivíduo deve se deixar “reajustar” pelo que a publicação diz. Dizer que a resposta da publicação não é francamente satisfatória, que o argumento não parece sólido, que o raciocínio e a interpretação humanos parecem prevalecer sobre as Escrituras, é expor-se a ser rotulado como “obstinado”, “sem humildade”, “presunçoso”. As dúvidas são vistas como falta de fé, evidência de fraqueza espiritual, espírito orgulhoso, tendência para a apostasia.

É verdade que periodicamente as publicações admitem que os escritores são todos, afinal de contas, “homens imperfeitos”, e que a organização “nunca afirmou ser infalível”. Na prática, é bem diferente. Descobre-se que isso se aplica apenas ao passado, não ao presente. Embora a organização tenha de admitir que mudou um número considerável de seus ensinos passados ― o que evidencia que estavam errados ― ela não se sente motivada à modéstia por causa desses erros, de modo a lembrar a seus leitores que aquilo que está ensinando agora pode também sofrer alterações devido à mesma imperfeição. Ao contrário, apela-se às Testemunhas de Jeová para que aceitem qualquer coisa que lhes ensinem no momento como se fosse infalível. É como se dissessem: “Vocês devem aceitar tudo o que for publicado como verdade absoluta, até nós dizermos que não é mais”. Isto se chama, pura e simplesmente, controle da mente.

Em tudo isto, a organização não se empenha em algo de novo ou diferente. Ela simplesmente segue um padrão, padrão comum no passado e no presente.

Intimidação intelectual

Para que os seguidores da organização abram mão do próprio processo de reflexão, é que se fazem aos membros da congregação constantes alegações de que a organização tem apoio e autoridade divinos, como “escravo fiel e discreto” (atualmente chamado de “escravo fiel e prudente”). Para dar só um exemplo, A Sentinela de 15 de dezembro de 1964, na página 749, dizia:

Entendemos que Deus “revelou suas verdades” na época da congregação cristã do primeiro século por inspiração divina, por comunicação e orientação divinas aos apóstolos e outros, resultando em discursos e escritos inspirados que são tão verazes hoje como eram vinte séculos atrás. Dizer que Deus também “o faz, atualmente, por meio da atual congregação cristã” significa, para todos os efeitos, alegar inspiração divina. Fazem de Deus o responsável por “toda ela”, e que servo de Deus desejaria resistir a Ele? Como observou um antigo superintendente viajante da organização, Ron Frye:

A Sociedade não alega ser inspirada, mas fala com o mesmo grau de autoridade como se o fosse, e exige ser levada a sério como se fosse inspirada, nem sequer permitindo que as pessoas questionem ou tenham dúvidas ou reservas quanto a qualquer coisa que ensine. Depois, pede que a eximam da responsabilidade quando algo tem de ser mudado ou corrigido ou quando alguma profecia não se cumpre.

Em vez de informação “inspirada”, as publicações falam regularmente que só a organização possui verdade “revelada”. Sobre isto, Frye comentou:

O uso do termo “revelada” em lugar de afirmar ter inspiração é mera questão de semântica ― uma distinção que não representa diferença alguma ― e à qual só se recorre quando é preciso explicar mudanças, contradições e desapontamentos. Se considerarmos que eles são simplesmente um grupo de homens religiosos, sinceros, mas sem nenhuma orientação divina especial, então as experiências deles fazem sentido, porque ilustram o fator humano ― erros de cálculo, sectarismo e assim por diante. Por outro lado, porém, argumentar que Jeová está por trás de tudo isto não faz sentido.

O conceito de “verdade revelada” é empregado repetidamente. Se é revelada quem a revelou? Afirma-se que Deus a revelou. Como pode, então, não ser algo inspirado e infalível? O contraste, contudo, entre a revelação da verdade aos apóstolos e outros no primeiro século e a história de mudanças e ensinos instáveis e flutuantes da organização das Testemunhas de Jeová nos tempos modernos é enorme.

A posição de profeta de Deus

Com um jogo de palavras similar, a organização afirma que não faz profecias originais, que apenas proclama as que já estão nas Escrituras.5 Isto, é claro, não está em plena harmonia com os fatos, visto que no passado ela publicou predições baseadas em certas datas que a Bíblia de modo algum menciona.6 Não obstante, esta explicação permite que ela alegue ter um cargo profético ao mesmo tempo em que se exime da responsabilidade e da prestação de contas que com justiça acompanham esse cargo. Após citar as palavras de Deus ao povo rebelde da época de Ezequiel, de que teriam de “saber que foi um profeta que veio a estar no meio deles”, o livro “As Nações Terão de Saber que Eu Sou Jeová”, escrito por Frederick Franz e publicado em 1973, afirmou estes pontos (página 66):

Depois, na página 270, o livro leva a coisa mais adiante, dizendo:

Portanto, a “classe do escravo fiel e discreto” é chamada de “classe de Ezequiel” (como também “classe de Jeremias” e “classe de Elias” ― usadas como se aplicando a eles antes da época do Juiz Rutherford e até sua morte em 1942, e “classe de Eliseu” ― que acreditam se aplicar a partir daquele evento).7 O livro fala de Jeová “ter suscitado um ‘profeta’ genuíno dentro de nossa geração.” Que servo de Deus não se sentiria compelido a atender as palavras deste “profeta genuíno” de Deus? A matéria citada, de fato, adverte sobre os terríveis resultados para os que hesitam e têm dúvidas, deixando consequentemente de aceitar o que este “profeta” diz.

Frequentemente citado é o texto de Amós 3:7, que diz:

Pois o Soberano Senhor Jeová não fará coisa alguma sem ter revelado seu assunto confidencial aos seus servos, os profetas.

O que aí se diz sobre os profetas é arbitrariamente transferido para os tempos modernos, e afirma-se às Testemunhas que o “significado profético das Escrituras nos é revelado mediante ‘o escravo fiel e discreto’, o grupo de cristãos ungidos, que o Amo, Jesus Cristo, usa agora”, e que “Jeová fornece aos seus servos leais conhecimento antecipado sobre o fim deste sistema”. (A Sentinela de 15 de janeiro de 1985, páginas 21, 22).

Exemplos deste “conhecimento antecipado” acham-se em vários artigos de A Sentinela dos anos 70 e 80 (Por exemplo, A Sentinela de 15 de janeiro de 1985, páginas 22-24; 15 de abril de 1981, páginas 17-23; 15 de julho de 1977, páginas 424-428.). Estes utilizam noticiários da época como evidência de que “os acontecimentos que levam à destruição dela [Babilônia, a Grande] já estão em andamento,… sim, e mesmo  agora [lá em 1981!] ocorrem eventos que estão preparando o caminho para essa execução” (com os “poderes políticos militarizados” e os “elementos radicais da ONU” apontados como os iminentes destruidores), e que os “prenúncios desse iminente confronto são ouvidos com frequência nas notícias do dia”. Em apoio, foram feitas citações sobre a hostilidade do comunismo para com a religião. Isto era um “óbvio sinal, persistente”. Dizia-se que o “rebaixamento das águas do rio Eufrates” que precedeu a destruição da antiga Babilônia teria um cumprimento moderno por meio do rebaixamento do apoio do povo às religiões do mundo e particularmente da cristandade. Dizia-se que a “tendência geral” era “inconfundível” e, novamente, itens noticiosos da época foram apresentados como “a escrita na parede”, evidenciando que a iminente destruição ocorreria “dentro em breve”.

Agora, no século 21, o cenário mundial alterou-se dramaticamente, a animosidade comunista para com a religião dissipou-se (não com o fim da religião no mundo, mas com o fim do próprio comunismo) e há indícios do ressurgimento do interesse religioso em grande parte do globo. Todavia, garantiu-se às Testemunhas que as predições feitas com base nos noticiários da época eram todas evidências de que Deus revela seus “assuntos confidenciais” a uma organização-profeta da era moderna e que todos os que ouviram essas predições tinham uma ótima razão para corajosa e confiantemente proclamar este “conhecimento antecipado” da parte de Deus.

Aquele que lê a Bíblia pode ver que os profetas de Deus jamais foram inspirados a falar uma mistura de verdade e erro, suas declarações nunca precisaram de “edições posteriores”, corrigidas para varrer ou encobrir raciocínios falsos. Onde, então, há algum paralelo verdadeiro?

A organização tenta revestir-se do impressionante manto de profeta de Deus e exige o respeito que este cargo profético confere. Porém, não aceita a responsabilidade de acertar que o cargo traz.

Se confrontada com as palavras de Deus em Deuteronômio 18:20-22 acerca da infalibilidade profética, ela ousa descartá-las como não se aplicando a ela em seu papel de “profeta genuíno” e “autêntica classe profética”. Com que direito faz isso? Será que por simplesmente dizer, “Bem, somos todos imperfeitos”, exime-se a organização de que este padrão bíblico do profeta genuíno seja aplicado a ela? Pede a seus seguidores para não levar em conta seus caminhos passados, semeados de predições não-cumpridas e interpretações erradas agora rejeitadas, e para continuar a depositar fé quase reverente no que ela publica, concedendo-lhe a dignidade, a honra e o crédito devidos a um profeta de Deus. Em vez de sentir-se humilde em face da clara evidência de sua trajetória errática, sinuosa, ela se torna mais estridente em suas pretensões, mais dogmática em seus pronunciamentos. Será este o proceder de um “profeta genuíno” de Deus?

Autoridade apostólica

Ela também proclama ter poder e autoridade apostólicos. Por um lado, a organização rejeita o ensino católico da “sucessão apostólica”. No entanto, pede a seus membros para encará-la como se tivesse uma posição similar. A Sentinela de 1º de dezembro de 1982, na página 13, no artigo “Sujeite-se Lealmente à Ordem Teocrática,” dizia:

A organização alega, na declaração acima, que assim como o apóstolo Paulo recebeu revelações de Deus, isso também ocorre com o “alimento espiritual” que hoje a organização publica por meio de seu Corpo Governante, que “É a nós que Deus as tem revelado por intermédio de seu espírito.” Que cristão desejaria ser culpado de rejeitar uma informação divinamente revelada vinda do apóstolo Paulo? Quem, então, desejaria ser culpado de rejeitar informação vinda desta organização que afirma cumprir uma função paralela? Com raciocínios deste tipo, que necessidade há de declarações abertas de infalibilidade ou inspiração divina?

Do mesmo modo como descreve a si própria como “classe de Jeremias”, “classe de Ezequiel”, e “classe de Elias e Eliseu” nas atribuições do cargo profético, a publicação de 1988, intitulada Revelação ― Seu Grandioso Clímax Está Próximo! refere-se regularmente à organização como “a classe de João” nas atribuições de um suposto cargo apostólico.8 O cargo é igualmente auto-designado, sem evidência alguma de autorização divina.9

Quem nos vê, vê o Cristo celestial

Na página 19, o mesmo número  já citado de A Sentinela exalta mais adiante a posição da organização desta maneira:

Nisto a organização faz mais que cumprir o papel de profeta e apóstolo. Ela afirma aqui que o que as pessoas veem nela é o mesmo que observar o próprio Cristo invisível dando sinais. De fato, parafraseiam as palavras de Jesus, “quem me tem visto, tem visto  o Pai”, pois dizem claramente: ‘quem nos observa, observa o Filho’. (João 14:9)10 Todos sabem o que acontece com o soldado que falha em obedecer as ordens e sinais de seu oficial comandante. Assim, quem pensaria em desobedecer à organização para a qual se pode olhar como se olhasse o “líder e comandante” predito por Jeová? (Isaías 55:4) Parece quase inacreditável que alguém possa conceber Jesus, como oficial comandante, mandando orientações de forma errática, contraditória e instável, como emanaram da organização ao longo de sua história. Mas nos dizem que o conceito que recebemos da organização é o conceito do próprio Cristo, ‘estrategicamente cronometrado’ por ele. Se a organização fica se apegando a uma posição errada durante décadas, temos de estagnar com ela; se toma a direção errada, temos de segui-la. As palavras de Revelação 14:4, “Estes são os que estão seguindo o Cordeiro para onde quer que ele vá”, na verdade se convertem em: “Estes são os que estão seguindo a organização para onde quer que ela vá.”

Mediação e intervenção sacerdotais

Isto não termina aí. Este e outros artigos incentivaram as Testemunhas a ter para com a organização uma atitude semelhante à que se tinha para com Moisés e o sacerdócio de Israel. Os artigos comparam os que divergem da organização aos que se rebelaram contra estes representantes especiais de Deus. (Veja, por exemplo, A Sentinela de 1º de dezembro de 1982, páginas 17, 18 e a de 1º de março de 1983, página 13). Parece não importar se a Bíblia mostra que  Jesus Cristo, e não um grupo de homens, é o Moisés Maior, o predito profeta semelhante a Moisés a quem todos devem escutar para obter a salvação. (Atos 3:20-23) Tampouco se leva em conta o fato de que Ele aboliu a divisão entre classe sacerdotal e classe não-sacerdotal, de modo que ninguém precisa da intercessão de sacerdotes, exceto aquele que é o grande Sumo Sacerdote de Deus, Cristo Jesus. (1 Pedro 2:7-9; Hebreus 3:1; 8:1; 10:19-22.)

A organização reivindica uma analogia com Moisés e o sacerdócio aarônico, mas a analogia mostra-se falsa. Ela afirma isso mas não pode fornecer credenciais. Deus fez com que sua escolha de Moisés como porta-voz e mediador fosse clara e inegavelmente manifesta a todos por meio de atos milagrosos relacionados com a escolha e nomeação de Moisés. Deus nomeou diretamente o sacerdócio, acompanhando a investidura deles com atos divinos de poder, a fim de estabelecer além de dúvida a validade da nomeação deles. (Êxodo 4:1-9, 20, 21; 33:7-11; Levítico 8:1-13; 9:22-24; Números 16:1-35; 17:1-10.) Em contraste, a designação e a legitimação da liderança das Testemunhas de Jeová para merecer o posto de autoridade indiscutível que alega ter, provém unicamente deles mesmos.

Quando se considera que a organização atribui a si própria os papéis de profeta, apóstolo, porta-voz de Deus, representante sacerdotal, encarregado-mor de comunicações do Rei dos Reis e Superintendente de nossas almas, administrador de todos os interesses de Cristo na terra, diretor de toda a sua família ou congregação, parece quase engraçado ― se não fosse tão trágico ― ler este parágrafo no artigo da Sentinela de 1º de dezembro de 1982, página 15:

Como é admitido agora, a verdadeira “organização”, o “canal”, é, em última análise, o Corpo Governante. Tudo o que se diz ser da “classe do escravo fiel e prudente” e da autoridade a ela atribuída relaciona-se principalmente ao pequeno grupo de homens que formam o Corpo Governante. Eles são os beneficiários finais de toda a exaltação de posição e dos apelos de submissão. Os membros do Corpo Governante ocupam entre as Testemunhas uma posição altamente exclusiva, têm prerrogativas e poderes que certamente implicam numa grande “relação especial com Jeová, que não é usufruída por nenhum outro irmão ou irmã da família”, e atuam como principal corpo executivo, legislativo e supremo tribunal para todas as congregações da terra. Considerando tudo isso, é incompreensível como estes homens permitem que declarações como as acima citadas sejam publicadas sem que sintam o mínimo embaraço. Como é possível que um grupo de pessoas tenha “sobre si mesmo um conceito mais elevado” do que o evidenciado por atribuírem a si próprios todas as elevadas funções e a autoridade já declaradas? O parágrafo já citado, quando analisado, diz na verdade a todos os “membros comuns”: “Como podem vocês imaginar que podem ter uma relação com Deus igual à que nós temos?”

Vivendo no isolamento

A matéria adverte sobre o efeito do isolamento. De todas as Testemunhas de Jeová, ninguém está mais “isolado” da vida levada pelas pessoas comuns, mais vulnerável à síndrome da “torre de marfim”, mais protegido de ter suas afirmações e decisões questionadas, de ter de enfrentar e responder diretamente e com provas a seus questionadores, ninguém está mais isolado dos problemas e pressões comuns aos homens de família, assalariados, donas de casa, membros comuns das congregações, do que o pequeno grupo de homens que formam o Corpo Governante das Testemunhas de Jeová. As decisões que tomam, muitas vezes depois de apenas uma hora de debate, têm geralmente pouco impacto nas próprias vidas deles, mas podem ter efeito enorme na vida das Testemunhas medianas. Tomam claramente a posição de que estão acima de correção ou instrução por outros além de Deus e Cristo. Conforme disse A Sentinela de novembro de 1952, página 164:

Jeová e Cristo dirigem e corrigem o escravo conforme a necessidade, não nós como indivíduos. Se não entendemos um ponto no princípio, devemos tratar de apreendê-lo, em vez de nos opor a ele, rejeitando-o e assumindo a posição presunçosa de que provavelmente temos mais razão do que o escravo discreto. Devemos prosseguir andando mansamente com a organização teocrática do Senhor e aguardando esclarecimento adicional…

Eles se colocam assim bem acima de correção ou instrução por parte de concristãos comuns, “por nenhum outro irmão ou irmã da família”. Todavia, advertem presunçosamente outros dos perigos de um conceito isolado, auto-importante! É quase cômico que ― em artigos tão cheios de auto-aprovação, auto-louvor e auto-glorificação ― a organização ao mesmo tempo chama de orgulhosos os que creem conscienciosamente que este louvor e reverência dados a homens devem ser corretamente dados só a Deus e a Cristo, e que se assustem com a ideia de humanos assumirem sobre os concristãos uma posição de exaltada superioridade, que a organização taxativamente confere a si mesma.

Isto não quer dizer que outros na organização não exerçam certo grau de poder devido a estas alegações. Quando o Corpo Governante da organização alega falar por Deus e Cristo, torna-se claro que os que falam por ele ― pessoas da sede mundial com uma posição administrativa, representantes de filial, superintendentes viajantes, e até anciãos ― todos recebem também uma espécie de aura radiante de autoridade, que os coloca como distintos e numa relação especial com Deus (por meio do Corpo Governante), não usufruída pela Testemunha comum. Com frequência, estes homens são rápidos em lembrar aos que não respondem à sua orientação, que eles representam o Corpo Governante e que assim ‘exercem autoridade sobre eles’. (Mateus 20:25.)

Vale a pena rever os métodos utilizados pelos homens do segundo e terceiro séculos para intimidar outros com a importância de sua posição superior, de sua relação superior com Deus e Cristo, como tratado no artigo O Processo de Institucionalização do Cristianismo. Essa revisão deve deixar evidente que o Corpo Governante das Testemunhas de Jeová não só foi tão longe quanto aqueles primeiros “bispos”, como em muitos aspectos foi até mais longe. Foi só com o surgimento do papado que se fizeram alegações de autoridade eclesiástica exclusiva iguais às publicadas na revista A Sentinela. As alegações do papado relacionam-se à autoridade conferida a um só homem; as alegações da organização das Testemunhas de Jeová relacionam-se à autoridade conferida a um pequeno grupo de homens. O papado se apresenta como “vigário de Cristo na terra”, de fato, gerente designado ou administrador substituto de Cristo. A liderança da organização das Testemunhas de Jeová não usa o termo “vigário”, mas descreve-se como o único “mordomo” a quem Cristo, desde 1919, designou a “direção e administração de todos os seus interesses na terra”. É uma distinção sem diferença, pois só muda a terminologia. A alegação é a mesma.

Combinado com o programa de doutrinação constante, o resultado final de toda esta postura da organização é a intimidação intelectual. As Testemunhas são sutilmente treinadas para achar que devem desconfiar do próprio raciocínio e discernimento quando leem a Bíblia, que devem desconfiar do próprio coração e de sua motivação, e que, por mais que procurem conscienciosamente aplicar a Palavra de Deus, devem desconfiar de que sua consciência seja um guia seguro. Devem ter confiança “na organização”. Devem marchar alinhados com ela. Deixar-se conduzir por Cristo e pelo Espírito santo numa outra direção seria correr na frente de Deus.

Notas

1 – As citações são do livro de Steve Hassan, Combatting Cult Mind Control (Combatendo o Controle Mental das Seitas), Park Street Press, 1988, páginas 13, 19, 24, 42.

2 – Combatting Cult Mind Control, página 55. Um artigo na Despertai! de 8 de fevereiro de 1966, página 18, diz similarmente: “Contrário à crença comum, é a pessoa ‘normal’, ‘mediana’, que pode ser doutrinada com mais facilidade. Tal pessoa é ‘normal’, porque já está influenciada pela comunidade até o ponto que se adapta a todos os seus padrões sociais, e se comporta somente de maneira ‘aceitável’. Suas opiniões fixas freqüentemente são copiadas e não provêm de raciocínio intelectual independente.” O artigo afirma que as Testemunhas de Jeová são diferentes nestas áreas. Na maioria dos casos, todavia, elas dão exemplos exatamente do tipo descrito de pessoa.

3 – O artigo da revista Despertai! sobre ter a mente aberta traz a ilustração de um homem expressando, no rosto e na mão, uma rejeição decidida. A gravura poderia ser de um católico ou de um protestante rejeitando a literatura das Testemunhas de Jeová que discorda de suas crenças. Poderia igualmente ser uma Testemunha de Jeová rejeitando firmemente a literatura que discorde de suas crenças.

4 – As palavras de Frederick Franz foram: “O único propósito de nossa existência como uma Sociedade é anunciar o Reino estabelecido em 1914 e fazer soar o aviso da queda de Babilônia, a Grande. Temos uma mensagem especial a divulgar.”

5 – O termo grego original para “profetizar” tem de fato o sentido básico de simplesmente “proclamar” ou “anunciar” e pode incluir predições ou não.

6 – E pode-se dizer que mesmo quando a organização cita profecias diretamente das Escrituras, geralmente é sua interpretação das profecias que ela proclama ― uma interpretação que muitas vezes se mostra equivocada.

7 – Veja o livro “Santificado Seja o Teu Nome,” páginas 335-338. O livro Revelação ― Seu Grandioso Clímax Está Próximo!, página 166, fala em tom similar que as “ardentes mensagens de julgamento” proclamadas pelos representantes da organização no período de 1914-1918 foram “prefiguradas pela obra profética de Moisés e de Elias”. Apesar disto, essas “ardentes mensagens de julgamento” não são atualmente encaradas como importantes. As publicações da organização onde elas apareciam já não são nem mesmo impressas.

8 – A Sentinela de 1º de junho de 1968, página 332, pedindo submissão à organização visível, declara que “temos de estar em pleno e completo acordo com toda fase de suas normas e seus requisitos apostólicos”.

9 – Como bem explicou John R. Scott em seu comentário aos Gálatas: “[Os apóstolos] foram escolhidos, chamados e comissionados pessoalmente por Jesus Cristo, e autorizados a ensinar em seu nome…. Não pode, portanto, haver sucessão apostólica, senão a lealdade à doutrina apostólica do Novo Testamento. Os apóstolos não tiveram sucessores. Dada a natureza da questão, ninguém poderia sucedê-los. Eles foram únicos.” (John R. Scott, Only One Way [Intervarsity Press, Leicester/Downers Grove, 1968], página 13.)

10 – É verdade que em Lucas 10:16, Jesus diz: “Quem vos escuta, escuta a mim.” Essas palavras, contudo, foram dirigidas aos setenta discípulos que levavam a mesma mensagem do evangelho que ele tinha pregado, não uma mensagem elaborada por eles próprios. Uma coisa é falar fielmente as palavras e a mensagem de Cristo conforme preservadas para nós nas Escrituras. Bem diferente é alegar que, por meio de uma determinada liderança religiosa que atua como Corpo Governante, Cristo está agora revelando coisas além das que foram escritas, afirmando ter o apoio dele para todas as diversas regras, as predições relacionadas com certas datas, e as interpretações sempre mutáveis de profecias, aplicando estas a certos períodos ou certos eventos da história da organização. O resultado final é tornar as Escrituras insuficientes, incompletas, precisando da organização para fornecer os elementos necessários.

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Imagem em destaque: Freep!k

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