“Espíritos Desencarnados” Mencionados na Bíblia?
A – Duas questões prévias
A-1: Estão os espíritos de humanos falecidos no Seol (Hades)?
Não. Todas as referências que a Bíblia faz ao “Hades” (ou “Seol”), são em conexão com a “alma” e o “corpo”, jamais com o “espírito”. Não é possível encontrar qualquer referência que associe o espírito de falecidos com este domínio. Aos humanos que falecem aplica-se unicamente esta informação:
Escondes tua face, e ficam desanimados; tira-lhes seu espírito, eles expiram e retornam ao seu pó. Envias o teu Espírito, e são criados; e renovas a face da terra. (Salmos 104:29,30 NAS; MSG, WYC; YLT)
O caso de Jesus não foi exceção:
Aos mártires cristãos aplica-se o mesmo, conforme pode ser visto nas palavras finais do primeiro deles, Estevão:
A-2: Existe alguma referência bíblica a “espíritos” de pessoas falecidas ativos e conscientes?
Em momento algum. A Bíblia faz várias centenas de menções ao termo “espírito(s)”. A totalidade das referências relaciona esse termo com alguém que se encontra vivo (seja no universo físico ou no domínio espiritual). Não há um só caso em que alguma Escritura afirme algo como “o espírito” de um falecido ‘disse’ ou ‘fez’ alguma coisa”. Por mais que os defensores da ‘continuidade da existência da alma ou do espírito após a morte’ apresentem raciocínios elaborados ou façam circunlóquios na tentativa de provar isso, o fato é que a ideia de algum “espírito de fulano” ter ‘dito’ ou ‘feito’ alguma coisa é sempre algo suposto ou presumido; nada mais que uma interpretação. Jamais o texto bíblico, em si, faz essas afirmações.
Pelo contrário, em se tratando de tudo o que se refira a atividade e consciência em conexão com o espírito, é tarefa elementar enumerar exemplos – um após outro – de trechos que associam tais coisas com seres que estão vivos. Eis aqui alguns:
Quando, pois, algum homem ou mulher em si tiver um espírito de necromancia ou espírito de adivinhação, certamente morrerá; serão apedrejados; o seu sangue será sobre eles. (Levítico 20:27, ACR)
Quem sabe se o espírito dos filhos dos homens [= humanidade] vai para cima, e se o espírito dos brutos [= animais] desce para a terra? (Eclesiastes 3:21, ALA)
Depois do pôr-do-sol, o povo levou até Jesus muitas pessoas que estavam dominadas por demônios. E ele, apenas com uma palavra, expulsava os espíritos maus e curava todas as pessoas que estavam doentes. (Mateus 8:16, BLH)
Quando chegaram à fronteira da Mísia, tentaram entrar na Bitínia, mas o Espírito de Jesus os impediu. (Atos 16:7, NVI)
O mesmo Espírito [o de Deus] testifica com o nosso espírito [o dos crentes] que somos filhos de Deus. (Romanos 8:16, ACR)
Que o próprio Deus da paz os santifique inteiramente. Que todo o espírito, a alma e o corpo de vocês [cristãos] sejam preservados irrepreensíveis na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. (1 Tessalonicenses 5:23, NVI)
Então, o que são os anjos? Todos eles são espíritos que servem a Deus, os quais ele envia para ajudar os que vão receber a salvação. (Hebreus 1:14, BLH)
Apesar dos fatos acima, há quem insista que a Bíblia faz, sim, referências a espíritos de pessoas que viveram anteriormente como humanos na terra e continuaram ativos e conscientes em forma “desencarnada” após o momento da morte. Os expositores que defendem isso costumam citar a esmo trechos onde aparece a palavra “espírito(s)” com o fim de induzir à ideia de que esses versículos estão falando de espíritos de falecidos existindo e atuando independentemente, à parte do corpo.
Serão consideradas a seguir algumas declarações bíblicas citadas com este propósito:
B – Análise de algumas referências bíblicas a “espírito(s)”
B-1: Deus, o “Pai dos espíritos”
A TNM usa uma “técnica” semelhante em Hebreus 12:9, trocando “Pai dos espíritos para vivermos” por “Pai da nossa vida espiritual”:
“Além do que, tivemos nossos pais segundo a carne, para nos corrigirem, e nós os reverenciamos; não nos sujeitaremos muito mais ao Pai dos espíritos para vivermos?”. – Almeida Fiel.
Se Deus é Espírito, é coerente supor que seus filhos sejam também espíritos. (Compare com João 3:1-8 e João 4:24). É lamentável ver que existe na TNM uma tendência de obscurecer essa verdade na mente de seus leitores, o máximo que é possível.
Está esse trecho de Hebreus 12:9 falando de “espíritos” que antes eram parte de “pessoas tricotômicas” que faleceram? Quando o trecho diz que Deus é o “Pai dos espíritos”, é a espíritos de falecidos que ele está se referindo? Eis o trecho novamente (sublinhado e na mesma versão citada), em seu devido contexto:
O que está sendo feito aí é simplesmente uma comparação da disciplina de nossos pais humanos com a de nosso Pai celestial, enfatizando o valor superior da disciplina deste “para vivermos”. Os “espíritos” mencionados aí estão associados a pessoas vivas. Eles tanto podem se referir aos filhos de Deus – que estão vivos, na carne, e recebem essa disciplina –como ao próprio Deus que a aplica. O exame do mesmo trecho em outras versões permite a visualização disso com clareza:
Além disso, todos nós tivemos pais humanos que nos treinaram. Nós os respeitávamos por isso. Quanto mais devemos ser treinados pelo Pai de nossos espíritos e viver! (NIRV; também NIV, WNT; Pai de nossas almas, CBC; pai dos dons espirituais, TYN)
O que dizer dessa “verdade”, alegadamente ‘obscurecida na mente dos leitores’ segundo a qual “se Deus é Espírito, é coerente supor que seus filhos sejam também espíritos”?
As Escrituras dizem, de fato, que “Deus é Espírito”, mas será que elas afirmam que para sermos “filhos de Deus” temos de estar em forma de espíritos, à parte dum corpo físico? Eis as palavras iniciais do trecho acima em outra versão:
As pessoas a quem o autor da carta se dirigia – que estavam vivas na carne – foram chamadas não só de “filhos” como também de “filhos legítimos”! Não se diz que eles só passariam a ter essa condição de filhos em algum momento posterior.
A “verdade” apresentada acima está também em desacordo com o que dizem estas referências:
“Porque todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus. Pois vocês não receberam um espírito que os escravize para novamente temer, mas receberam o Espírito que os adota como filhos, por meio do qual clamamos: “Aba, Pai”. O próprio Espírito testemunha ao nosso espírito que somos filhos de Deus.” (Romanos 8:14-16)
De novo, estas menções a “filhos de Deus” aplicavam-se (e aplicam-se) a pessoas vivas, na carne. A segunda referência fala em humanos “guiados pelo Espírito de Deus”, não em “espíritos” existindo independentemente. Estas pessoas são, neste exato momento, filhos de Deus. De forma que, se existe algo “lamentável” aqui não é a redação de alguma versão bíblica e sim a obsessão de obrigar as Escrituras a dizerem algo que elas não dizem.
Foi sugerida a comparação com o que diz João 3:1-8 e João 4:24.
– O primeiro trecho narra o diálogo que Jesus teve com o fariseu Nicodemos, sobre “nascer de novo”, que envolve “nascer da água” e “nascer do Espírito”. Em nenhum caso Jesus relacionou isso com morte física. Este “nascer da água” e “nascer do Espírito” são experiências usufruídas por humanos vivos. (Jesus se referiu aqui ao batismo e a posterior carreira cristã.)
– No segundo trecho, Jesus estava conversando com uma mulher samaritana e falou a ela sobre “adorar a Deus em espírito e verdade”. Antes disso, ele havia dito:
De novo, isto se aplica a humanos vivos. Não é o próprio homem que “é Espírito” e sim a adoração do homem é que deve ser “em espírito”. Isto não requer de modo algum que o homem esteja na forma dum “espírito desencarnado”, para esta adoração poder ser rendida de modo adequado.
B-2: Os “espíritos dos justos que foram aperfeiçoados”
“Mas tendes chegado ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontável hostes de anjos, e à universal assembleia e igreja dos primogênitos arrolados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados”. – Hebreus 12:22-24, Almeida. (Obs.: Nas citações, os negritos não foram usados nas fontes citadas).
Ao se listar quem foi mencionado no texto, percebe-se que todos são pessoas: Deus, Jesus, Anjos, primogênitos e os espíritos dos justos (que viveram na carne e foram aperfeiçoados, conforme descrito em Hebreus 5:7-10). Dentre esses justos certamente estão Abraão, Isaque e Jacó, aqueles que receberiam convidados à mesa deles nos próprios céus (Mateus 8:11). Mas eles só poderiam recebê-los se já vivessem lá antes, o que está de acordo com aquilo que Jesus falou:
“Ele é Deus, não de mortos, mas de viventes, pois, para ele, todos estes vivem [Abraão, Isaque e Jacó]. Em resposta, alguns dos escribas disseram: ‘Instrutor, falaste bem’.”. – Lucas 20:37-39, colchetes acrescentados.
Note-se esta frase, que é típica de muitas argumentações em favor da “imortalidade da alma” e outras crenças sem base bíblica:
De maneira similar, qualquer pessoa poderia afirmar o seguinte:
Ou então:
Ou ainda:
Qualquer ideia, por mais absurda que seja, poderia ser “comprovada” mediante esse tipo de raciocínio! Em se tratando de conceitos tais como “sobrevivência da alma e do espírito depois da morte”, “tormento consciente no inferno” e outras, o raciocínio característico costuma ser expresso dessa maneira:
Uma variação desse argumento é a teoria dos “materiais de construção”, defendida inclusive por alguns teólogos:
Com toda a franqueza: “Argumentos” desse tipo não provam coisa alguma. Especular sobre o que pessoas da antiguidade ‘poderiam estar pensando’ não leva a lugar algum, já que podemos fazer pessoas mortas há muito tempo ‘pensarem’ o que nós quisermos! O que interessa é o que elas disseram. O fato de os defensores da “imortalidade da alma” acharem necessário recorrer a esse tipo de argumentação baseada na “visibilidade pela ausência” (colocado eufemisticamente acima como “o que não foi muito enfatizado nas Escrituras”) indica que eles reconhecem que as ideias que pretendem advogar não estão expressas em parte alguma da Bíblia.
Na realidade, se conceitos tais como “existência independente da alma e do espírito após a morte” eram de tão amplo “amplo conhecimento” assim (e, de fato, isso tem sido uma crença generalizada já por milênios), deveria causar estranheza que eles não estejam refletidos nos pronunciamentos dos escritores bíblicos, ao ponto de os que advogam essas ideias hoje precisarem se esmerar em fazer tantas reformulações dos trechos bíblicos e tantas “comparações com fontes extrabíblicas” para só assim conseguir “provar biblicamente” suas teorias.
Antes disso, o escrito acima havia dito:
Todavia, apesar de ‘não ser preciso consultar as fontes extra bíblicas’, a “comparação” é sempre feita e, via de regra, o procedimento costumeiro dos que defendem essas doutrinas é primeiro citar o que dizem fontes extrabíblicas, e só depois citar as referências bíblicas (fora do seu devido contexto), tentando harmonizá-las de qualquer maneira com as fontes extrabíblicas.
Se é verdade que “a própria Bíblia contém as informações necessárias para o entendimento correto” concentremo-nos então nestas (começando por esta referência de Hebreus 12) e façamos a leitura contextualizada delas, para verificar se existe mesmo base para a ideia de que “quando aspectos relacionados à imortalidade da alma e do espírito surgem no Novo Testamento estão sempre de acordo com outros escritos em voga à época de Jesus”.
Neste trecho, que se encontra no mesmo capítulo da carta aos Hebreus que contém o trecho analisado no Ponto B-1, o autor da carta prossegue fazendo a comparação da situação dos antigos israelitas com a situação dos cristãos da época dele. A questão é: Ao mencionar esses “espíritos dos que são corretos e que foram aperfeiçoados”, estava ele falando de pessoas falecidas?
Ao longo de todo o capítulo anterior (Hebreus 11), o autor alista uma longa série de homens e mulheres de fé na história antiga dos judeus (incluindo Abraão, Isaque e Jacó). Daí, no final do capítulo ele diz:
Ou, conforme diz outra versão:
Aplica-se o termo “aperfeiçoados” àqueles fiéis da antiguidade que já tinham falecido? Não. Pois o autor é bem claro em dizer o contrário: Estes fiéis da antiguidade morreram ‘sem alcançar a promessa’ e não foram aperfeiçoados antes dos destinatários da carta dele!
Conforme foi reconhecido no escrito, “ao se listar quem foi mencionado no texto, percebe-se que todos são pessoas”. Isto é, naturalmente, verdade. Deve-se acrescentar, porém, que todos são pessoas vivas. Em nenhum caso ele está falando de pessoas “que viveram na carne” e já tinham falecido. Quando ele fala sobre os “filhos mais velhos” (“primogênitos”), ele não disse que estes se encontravam no céu, e sim que eles “têm o nome deles escrito” lá. Isto não requer de modo algum que estas pessoas estejam no céu. Quando ele falou sobre os “que foram aperfeiçoados”, ele não disse que este ‘aperfeiçoamento’ ocorre depois da morte, aplicando isso a “espíritos” agora no céu. Que pessoas podem ser aperfeiçoadas na condição humana é evidenciado pelas seguintes palavras de Jesus:
Embora Jesus soubesse muito bem que as pessoas a quem ele se dirigia eram imperfeitas e jamais poderiam atingir o grau de amor e justiça de Deus, ainda assim usou a palavra “perfeitos”, aplicando-a aos homens que o ouviam. Isso mostra que não há obrigatoriedade em entendermos a palavra “perfeito” aqui em sentido absoluto, como é o caso de Deus. Da mesma forma, ninguém é obrigado a entender o ‘aperfeiçoamento’ dos espíritos dos justos, mencionado pelo autor de Hebreus dessa maneira. Este ‘aperfeiçoamento’ aplica-se a humanos vivos, da mesma forma que o ‘alistamento’ dos nomes deles nos céus, apesar de se encontrarem na Terra.
O escrito acima fez também referência a Hebreus 5:7-10. O conteúdo destes versículos é muito útil para confirmar a ideia acima. O trecho diz:
Que Cristo foi concebido como humano perfeito, nenhum cristão questionaria. Mesmo assim, foi a ele aplicado o verbo “aperfeiçoar”. Porém, nada se fala sobre esse ‘aperfeiçoamento’ de Cristo só ter ocorrido depois de sua morte e ressurreição, quando ele já estava na condição de espírito. Não, o aperfeiçoamento foi completado quando ele ainda estava “nos dias da sua carne” e “aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu [na carne, não em forma espiritual]”. Só “depois” de ter sido “aperfeiçoado” – em sua vida humana – foi que ele “tornou-se o Autor da salvação eterna para todos os que lhe obedecem” (por meio de sua morte sacrificial). Hebreus 5:7-10 não dá base alguma para a hipótese de existirem indivíduos “que viveram na carne e foram aperfeiçoados”. Pelo contrário, esse trecho indica que, assim como ocorreu no caso de Cristo, o aperfeiçoamento ocorre na vida dessas pessoas, não após sua morte.
O que dizer de Mateus 8:11, que menciona Abraão, Isaque e Jacó? Quis Jesus dizer que os três patriarcas já se encontravam no céu, “recebendo espíritos de falecidos” fiéis à sua mesa lá? O texto diz:
A leitura contextualizada mostra que Jesus não estava ensinando nada acerca de “sobrevivência da alma e do espírito após a morte”. Ele estava comparando o resultado da falta de fé dos “súditos do reino” (os judeus) com o resultado da fé notável demonstrada por gentios (naquele caso, o centurião romano). Tanto esses judeus que não tiveram fé em Cristo como o centurião que a demonstrou estavam vivos na terra. Foi pensando neles, primariamente, que Jesus disse estas palavras, não nos fiéis da antiguidade. Foi por isso que em ambas as situações, tanto a favorável como a desfavorável, Jesus usou o verbo no futuro. Ele não disse que essa ‘recepção celestial’ já estava em curso; isto era um evento futuro. Se nem ele próprio tinha retornado ao céu, que razão há para crermos que outros fiéis da antiguidade já se encontravam lá? O que dizer destas palavras dele, ditas em outro momento de sua vida na terra: “ninguém jamais subiu ao céu, a não ser aquele que veio do céu: o Filho do homem” (João 3:13)?2 O que dizer das palavras de Pedro, ditas no Pentecostes após a ressurreição de Cristo: “o patriarca Davi [que é outro entre os fiéis mencionados em Hebreus] morreu e foi sepultado, e o seu túmulo está entre nós até o dia de hoje… pois Davi não subiu aos céus”. (Atos 2:29,34)? O que dizer das palavras do autor da carta aos Hebreus, já citadas: “E todos estes [que incluem Abraão, Isaque e Jacó], tendo tido testemunho pela fé, não alcançaram a promessa, provendo Deus alguma coisa melhor a nosso respeito, para que eles sem nós [os cristãos que receberam a carta] não fossem aperfeiçoados. (Hebreus 11:39,40, ARA)? Será que todas estas declarações não significam nada? Devemos ignorá-las para fazer valer alguma ideia de nossa predileção?
“E depois que o meu corpo estiver destruído e sem carne, verei a Deus. Eu o verei com os meus próprios olhos; eu mesmo, e não outro!” – Jó 19:26,27; conforme Mateus 5:8.
“O perverso é destruído por seus próprios pecados, mas o justo tem esperança de uma vida melhor depois da morte”. – Provérbios 14:32, A Bíblia Viva.
“[E Abigail disse a Davi:] Se alguém te perseguir ou conspirar contra a tua vida, a alma do meu senhor permanecerá entre os vivos junto do Senhor, teu Deus, enquanto a vida dos teus inimigos será agitada e lançada para longe, como a pedra de uma funda”. – 1 Samuel 25:29, Missionários Capuchinhos, colchetes acrescentados.
Parafraseando o que Pedro disse, Abraão, Isaque e Jacó morreram somente “quanto à carne, do ponto de vista dos homens”, mas continuam vivos “quanto ao espírito, do ponto de vista de Deus”. – 1 Pedro 4:4-6.
Em primeiro lugar, há aqui uma interpretação equivocada da reação dos escribas ao que Jesus lhes respondeu. Nada há no relato que dê indicação de que essa resposta deles – “Instrutor, falaste bem” – foi por terem se sentido “gratificados” pelo fato de Jesus ter “confirmado” alguma crença deles. De novo, não há necessidade nem margem para especulações sobre a crença dos escribas já que a razão de eles terem respondido dessa maneira é expressa claramente logo no versículo seguinte (Lucas 20:40). Aqueles homens responderam desta maneira
Esta não foi a primeira vez, nem seria a última em que essas pessoas tentaram criar caso contra Jesus, e a resposta deles nada teve de ‘elogiosa’. Longe disso! Era um reconhecimento (a contragosto) de que não havia como rebater a lógica de Jesus defendendo a “ressurreição dos mortos” e a franqueza dele em denunciar a ‘falta de entendimento das Escrituras e do poder de Deus’ por parte daqueles homens. Eles se viram obrigados a ‘jogar a toalha’, e foi esta a razão da resposta deles. Nem Jesus, nem aqueles homens disseram uma só palavra a respeito de “sobrevivência da alma ou do espírito após a morte” nesse episódio, e até agora ninguém provou que quando Jesus falou em Abraão, Isaque e Jacó estarem “vivos do ponto de vista de Deus”, ele quis dizer que os três patriarcas ‘continuavam vivos em outro lugar’ (além de na mente de Deus). Isso nada mais é que desejo dos promotores do conceito da “sobrevivência da alma após a morte”.
E é isso também que os motiva a misturarem as palavras de Cristo com o que Pedro disse. O que também não adianta, já que Pedro nada falou sobre “Abraão, Isaque e Jacó”, nem disse coisa alguma sobre alguém estar ‘morto quanto à carne do ponto de vista dos homens’. Qualquer leitor que verificar esse trecho de 1 Pedro 4:4-6 perceberá imediatamente que ele não foi ‘parafraseado’ e sim distorcido para obrigar o apóstolo a “dizer” o que ele não disse.
Será verdade que as Escrituras Hebraicas mencionam em algum lugar a ‘esperança de que humanos que morrem continuam vivos em outro lugar’? Com o objetivo de “comprovar” isso foram citadas três referências. Examinemos uma a uma:
Trecho 1:
O exame de outras versões em língua portuguesa mostra que esta redação da NVI representa a opção da minoria dos tradutores. A única versão que está de pleno acordo com a citada diz:
As demais versões divergem das duas acima. Algumas dizem que a pele dele é que estaria destruída (ou ‘esfolada’), mas concordam que ele ‘veria a Deus’ sem carne:
E depois que minha pele foi assim lacerada, já sem a minha carne, verei a Deus. (VOZ)
Depois de me arrancarem a pele, já sem carne verei Deus (PER)
E depois de destruída esta minha pele, mesmo fora da minha carne verei a Deus. (SBB, TB)
Há ainda aquelas que dizem que ele ‘veria Deus’ com outro corpo carnal:
Depois do meu despertar, levantar-me-á junto dele, e em minha carne verei a Deus. (BJ)
E que depois do meu corpo se consumir, ainda neste corpo, verei Deus! (LI)
A maioria das versões, porém, transmite uma ideia diferente: A pele apenas, estaria destruída, mas ele veria a Deus estando na carne:
E depois de consumida a minha pele, ainda em carne verei a Deus. (Alf)
Depois que esta minha pele for destruída, de minha carne verei a Deus. (APA)
E serei novamente revestido da minha pele, e na minha própria carne verei a meu Deus. (APF)
Mesmo com a pele aos pedaços e em carne viva, eu verei a Deus. (EP)
Mesmo que a minha pele seja toda comida pela doença, ainda neste corpo eu verei a Deus. (BLH, NTLH)
E mesmo que me tenham destruído a pele, na minha carne, contemplarei a Deus (TEB)
E depois de consumida a minha pele, ainda em minha carne verei a Deus. (THO)
Outras versões vão ainda mais longe: afirmam que ele ainda teria tanto a pele como a carne ao ‘ver Deus’. Exemplos:
E atrás de minha pele eu estarei de pé, e, de minha carne, eu verei Eloá. (BMD)
Então, revestido da minha pele, na minha própria carne verei o meu Deus (MS)3
Afinal, em que situação estaria o patriarca Jó ao ‘ver Deus’: fora do corpo físico (como entendem os proponentes da “imortalidade da alma”) ou ainda na carne (como diz a maioria das versões)? O que o texto diz que sofreria ‘destruição’: O corpo inteiro (como dizem algumas versões ) ou apenas a pele (como está em todo o resto das versões)?
Como evidentemente houve variações na maneira de traduzir, uma boa prática para resolver o assunto é verificarmos como este trecho está no hebraico [As fotocópias que seguem foram extraídas da Bíblia Hebraica Stuttgartensia.]:

Tradução do texto destacado na coluna direita:
E depois que minha pele estiver assim destruída, ainda em minha carne eu verei Deus.
Para os que conhecem o conteúdo do livro bíblico de Jó, esta referência à ‘destruição da pele’ traz à mente o desafio que foi lançado por Satanás, envolvendo esse patriarca:
Toda a questão em torno da qual gira o livro de Jó era a fidelidade dele a Deus em vida. Não estava em questão se Jó poderia ser fiel a Ele ‘depois da morte’ e sim padecendo sofrimentos na vida e sob ameaça de morte. Eis o que Deus respondeu:
Assim como ocorre no caso das versões, os comentários dos eruditos também refletem uma grande diversidade de opiniões. Mas, um detalhe que vale mencionar é que dificilmente algum deles insiste na hipótese de Jó ver Deus na condição de “espírito desencarnado” como sendo o único entendimento possível. As considerações de alguns deles incluem até mesmo a hipótese da ressurreição na carne. Embora Albert Barnes tenha favorecido a tradução ‘sem carne’ em seu comentário, ele diz no final:
(Notes, Critical, Illustrative, and Practical, on the Book of Job [Notas, Críticas, Ilustrativas e Práticas, Sobre o Livro de Jó], Vol. I, Nova Iorque, EUA, 1844, pág. 275. Grifos e sublinhados acrescentados.).
Algo parecido foi dito por Adam Clarke:
(The Holy Bible Containing the Old and New Testaments with a Commentary and Critical Notes, [Bíblia Sagrada, Contendo o Antigo e Novo Testamentos com Comentário e Notas Críticas], Vol. II, Baltimore, EUA, 1836, pág. 53. Grifos e sublinhados acrescentados.).
Já outros eruditos excluem a ideia de ressurreição carnal, chegando mesmo a dizer que tal conceito não está presente no livro de Jó! Na PER há uma nota relativamente extensa ao trecho de Jó 19:25-27. Embora a nota expresse a preferência dos tradutores pela interpretação de que o texto se refere a um momento posterior à morte de Jó (o que se reflete na maneira como esta versão bíblica apresenta o texto), ela diz no parágrafo final:
(PER, edição de 1997, pág. 1097. Grifos e sublinhados acrescentados.).
Levando-se em consideração (1) o tema geral do livro de Jó (a saber, a questão da integridade dele a Deus em vida), (2) o que diz o texto original e (3) o fato de até mesmo eruditos imortalistas serem reticentes em declarar taxativamente alguma coisa sobre ‘espírito desencarnado’, realmente não existe justificativa para insistir que as palavras de Jó 19:25-27 se referem a alguma ocorrência posterior à morte dele (como desejam alguns promotores do conceito da ‘sobrevivência da alma após a morte’ ).
Jó não disse que ‘veria Deus’ depois que seu corpo estivesse destruído e tampouco usou a palavra “espírito” neste trecho. O que ele disse foi que ‘depois que sua pele estivesse destruída, ele o veria ainda neste corpo’. Esta ‘visão de Deus’ ocorreria em vida, não depois da morte. De fato, se o versículo for lido dentro de seu contexto, há margem para a conclusão de que tal ‘visão’ se daria depois que Deus o curasse, sem haver qualquer necessidade duma ressurreição para isso.4
Nem esse trecho do livro de Jó, nem trecho algum do livro inteiro que levou o nome desse patriarca bíblico, sugere alguma coisa acerca de “sobrevivência da alma e do espírito depois da morte”. Esta ideia simplesmente não se encontra lá.
Trecho 2:
Em outras versões onde aparece a palavra “morte” (ou um verbo equivalente):
É por causa de sua própria malícia que cai o ímpio; o justo, porém, até na morte conserva a confiança. (CBC)
O perverso é derrubado pela sua malícia, Mas o justo, ainda morrendo, tem esperança. (SBB)
Pela sua própria malícia é lançado fora o perverso, mas o justo até na morte se mantém confiante. (ACR)
O ímpio será derribado pela sua malícia; o justo porém, mesmo na sua morte, conserva a confiança. (MS)
Quando chega a calamidade, os ímpios são derrubados; os justos, porém, até em face da morte encontram refúgio. (NVI)5
De que momento este trecho fala: antes / por ocasião da morte (como se lê na maioria das versões), ou depois da morte (como diz a versão que foi citada)? Mais uma vez o exame do texto original é útil para esclarecer isso:

Assim, traduções tais como “na morte”, “em face da morte” ou “morrendo” harmonizam-se com a expressão em hebraico. Gramaticalmente falando, traduzir como “depois da morte” representa um afastamento desse sentido.
Contudo, existe outro fator a considerar, mais importante do que a gramática pura e simples: O que este provérbio está fazendo, na realidade, é comparar a postura do justo diante das dificuldades com a postura do ímpio e não necessariamente o que ocorre por ocasião da morte de ambos (ou depois dela). A palavra morte não é mencionada aqui em sentido “cronológico”, ou seja, a discussão não é o que ocorre “antes” ou “depois” dela. O que o provérbio diz é que o justo é firme e constante na maneira correta de agir – até mesmo em face da morte – e isso resulta em bem para ele, enquanto que o ímpio, por outro lado, devido à sua falta de firmeza de caráter, é “derrubado” diante das dificuldades.6 É por isso que um considerável número de tradutores bíblicos modernos, nos mais diversos idiomas, nem sequer utilizou a palavra “morte” nesse contexto. Eis alguns exemplos de traduções que refletem adequadamente o sentido do provérbio:
A maldade leva os maus à desgraça, mas a honestidade protege os bons. (NTLH)
Pela própria malícia o ímpio é derrubado, e o justo acha abrigo na sua integridade (BMD)
O ímpio cai em sua própria maldade, o justo se refugia em sua integridade. (BJ)7
Qualquer que seja o caso, portanto, não existe aqui margem para a ideia de “sobrevivência da alma e do espírito depois da morte”. Não, o trecho trata inteiramente de uma postura, seja a do justo, seja a do ímpio, postura esta que é mantida durante a vida. O provérbio não diz uma só palavra sobre “alma” ou “espírito”, e, como foi constatado, nem todos os tradutores credenciados se sentiram obrigados a usar a palavra “morte” no enunciado dele. É completamente descabido, pois, citar um provérbio assim com o intento de “contradizer” o que dizem dezenas de outros trechos bíblicos que tratam clara e diretamente da “alma”, do “espírito” e da “morte”.8
Trecho 3:
Tudo o que Abigail disse a Davi foi que ele escaparia da morte, qualquer que fosse a perseguição ou conspiração armada contra ele, já que Deus o ampararia, mantendo-o vivo. A morte viria para as pessoas que planejassem essas coisas, os inimigos dele. Eis como o trecho foi traduzido em outras versões:
Mesmo que alguém te persiga para tirar-te a vida, a vida de meu senhor estará firmemente segura como a dos que são protegidos pelo Senhor, o teu Deus. Mas a vida de teus inimigos será atirada para longe como por uma atiradeira. (NVI)
Assim, esta referência não faz qualquer “divisão” da “pessoa tricotômica”, e nada diz em favor da ideia de “sobrevivência da alma (ou do espírito) depois da morte”. Ele trata exclusivamente da preservação da vida por Deus. Para o propósito de tratar de qualquer coisa que seja referente ao que ocorre depois da morte de uma pessoa, é uma citação absolutamente inútil.
“Mas, vós vos chegastes a um Monte Sião e a uma cidade do Deus vivente, a Jerusalém celestial, e a miríades de anjos, em assembléia geral, e à congregação dos primogênitos que foram alistados nos céus, e a Deus, o Juiz de todos, e às vidas espirituais dos justos que foram aperfeiçoados, e a Jesus, o mediador dum novo pacto”.
Foi visto antes, em outra versão da Bíblia, que os espíritos dos justos que foram aperfeiçoados é que recebem os cristãos que vão para o céu, conforme Jesus fez alusão em Mateus 8:11. No entanto, ao invés de dizer “espíritos”, a TNM verte por “vidas espirituais”.
Mas não é isto o que diz o texto grego original. Lá realmente consta “espíritos dos justos”. Que os tradutores da TNM sabem que a tradução que fizeram está errada pode ser constatado na versão grego-inglês que eles mesmos publicaram, chamada “Tradução Interlinear do Reino”, que contém uma tradução literal palavra por palavra do grego para o inglês:
Conforme pode ser visto, o versículo não diz “vidas espirituais”, mas sim “espíritos”, conforme está em todas as outras versões facilmente acessíveis:
“Os espíritos daquelas boas pessoas que foram aperfeiçoadas”. – Contemporary English Version.
“Dos espíritos dos justos que chegaram à perfeição”. – TEB.
“Dos espíritos justos que chegaram à meta final”. – Edição Pastoral.
“Aos espíritos dos que são corretos e que se tornaram perfeitos”. – A Bíblia na Linguagem de Hoje.
Etc.
Ao que parece, os tradutores optaram por essa tradução espúria para dar suporte a uma releitura não autorizada do texto, e para que seus leitores não fossem induzidos a acreditar naquilo que os cristãos já acreditam desde o primeiro século, isto é, que a alma e o espírito sobrevivem à morte. – Mateus 10:28; 1 Pedro 3:18.
Conforme já visto, o exame do que diz o texto original sempre é de grande valia. Porém, ao contemplarmos a iniciativa tomada neste caso, a pergunta que surge é: Por que isso não foi feito nos outros casos e só foi feito aqui? Todos sabem que a palavra original no trecho correspondente a Hebreus 12:23 é “espíritos”, e é por isso que quase a totalidade dos tradutores utilizou esta palavra em suas versões. Embora o exame do texto original seja sempre uma boa prática, num caso como este, em que existe, a bem dizer, unanimidade na tradução, isso não é tão crucial como é nas situações em que há grande variabilidade nas traduções modernas. Todavia, conforme visto nos exemplos até aqui, além de o exame do original não ter sido feito nos casos onde ele seria fundamental para determinar o que o escritor bíblico quis dizer, ainda optou-se naqueles casos por alguma tradução moderna que, não só está longe de representar a opção da maioria dos tradutores como pode até ser considerada como exceção! Mais uma vez a pergunta é: Por que essa gritante desigualdade na maneira de proceder?
Diante disso, todos os comentários do quadro acima, referentes a Hebreus 12:23, caracterizam-se como um “espantalho”, pois passam longe do alvo. A questão não é a palavra usada neste versículo, e sim qual é o significado dessa palavra. Os promotores do conceito da “imortalidade da alma” desejam que a palavra “espíritos” neste trecho signifique ‘espíritos desencarnados’ e tudo fazem para induzir outros a ideias tais como que “os cristãos já acreditam desde o primeiro século que a alma e o espírito sobrevivem à morte” (algo sem apoio das evidências) e que “os espíritos dos justos que foram aperfeiçoados é que recebem os cristãos que vão para o céu” (isto sim uma “releitura não autorizada”, já que Jesus nunca “fez alusão” alguma a isso e, conforme demonstrado acima, esses “justos que foram aperfeiçoados” encontravam-se vivos na terra, não no domínio espiritual.).
Uma coisa é fazer conjecturas. Outra é prová-las. Isso os defensores da “imortalidade da alma” nunca fizeram (nem jamais farão). Pois eles sabem muito bem que a leitura contextualizada das citações bíblicas que fazem contraria as premissas deles em caso após caso. Recorrer a “espantalhos”, tais como esse de transferir a discussão para a palavra usada em alguma versão bíblica é inútil para comprovar as teorias deles.
Pelo contrário, é fácil demonstrar que quando o autor de Hebreus disse que os destinatários de sua carta “chegaram à… congregação dos primogênitos alistados nos céus” (“reunião alegre dos filhos mais velhos de Deus… que têm o nome deles escrito no céu”, NTLH) e aos “espíritos dos justos que foram aperfeiçoados” (“espíritos dos que são corretos e que foram aperfeiçoados”, NTLH), ele estava se referindo a pessoas vivas, que faziam parte da congregação cristã na terra e que tinham sido aperfeiçoadas. Ele não estava falando de pessoas falecidas.
B-3: O “espírito de Jesus” e os “espíritos em prisão”
Quem foram esses espíritos? A resposta mais natural a essa pergunta é que foram os espíritos dos que morreram afogados no Dilúvio, os contemporâneos de Noé, o “pregador da justiça”, como dá a entender a versão acima. (Mateus 24:38,39; 2 Pedro 2:5) É tanto que na sequencia da sua escrita, Pedro fez o seguinte comentário adicional:
“Mas, estas pessoas [as que falam mal dos cristãos] prestarão contas àquele que está pronto para julgar os viventes e os mortos. De fato, com este objetivo se declararam as boas novas também aos mortos, para que fossem julgados quanto à carne, do ponto de vista dos homens, mas vivessem quanto ao espírito, do ponto de vista de Deus”. – 1 Pedro 4:4-6, colchetes acrescentados.
Embora exista na Bíblia uma aplicação da palavra “mortos” em sentido figurado (Lucas 9:60; Romanos 7:4), este não parece ser o caso na carta de Pedro, devido ao contexto do que ele vinha falando (espíritos dos desobedientes / pregar aos espíritos desobedientes da época de Noé / julgamento dos vivos e dos mortos / declarar as boas novas aos mortos).
a) Em que momento, exatamente, Jesus fez essa pregação?
Quando foi que Deus fez isso?
A seguinte é a explicação dada por Paulo sobre a natureza da ressurreição:
E, de novo, o caso de Jesus não foi exceção:
O versículo seguinte (1 Pedro 3:19) complementa esta informação:
em sua existência espiritual ele foi e pregou aos espíritos aprisionados (GNT)
nesse estado [espiritual] ele também foi e fez uma proclamação aos espíritos em prisão (CSB)
no espírito ele foi e pregou aos espíritos em prisão (NCV)
Uma vez que Jesus só foi ressuscitado (“vivificado”) por Deus, o Pai, depois dos três dias, e se ele só veio a estar nessa “existência” / “forma” / “estado” espiritual a partir do momento de sua ressurreição, ele não poderia ter pregado a esses “espíritos em prisão” durante o período em que esteve morto. Nesse intervalo, o espírito dele tinha ‘retornado a Deus’ (estava “nas mãos de Deus”, como diz a referência que expressa a confiança que Jesus tinha.). Jesus não fez essa pregação quando estava no Hades. A pregação foi feita depois que ele saiu de lá.
b) É o Hades algum tipo de “prisão”?
Não. Em nenhuma das muitas referências bíblicas ao Hades (o Seol do Antigo Testamento), este é classificado ou apresentado como uma “prisão”. Embora se diga muitas vezes que os mortos se encontram neste lugar, jamais se fala que eles estão “presos” lá. E é fácil entender a razão da ausência completa dessa ideia: O termo “presos” teria aplicação se os mortos estivessem conscientes no Hades, algo que é negado por todas as referências bíblicas que tratam desse tema. Não há margem para expressões tais como “espíritos aprisionados” (ou “almas presas”) no Hades.
c) Espíritos ‘dos que desobedeceram’ ou espíritos ‘que desobedeceram’?
Ao considerar quem poderiam ter sido esses “espíritos”, o escrito acima disse que “a resposta mais natural a essa pergunta é que foram os espíritos dos que morreram afogados no Dilúvio…”, ou seja, de pessoas que foram anteriormente seres humanos. É verdade que a versão que foi citada ‘dá a entender’ isso, mas será que o mesmo vale para as demais versões? Segue-se o trecho, conforme diversas versões em língua portuguesa, com os pronomes grifados:
Versões que dão margem à conclusão de que esses desobedientes eram os humanos do período antediluviano:
– “espíritos daqueles que, muito tempo atrás … tinham-se recusado” (BV)
Versões que atribuem a desobediência diretamente a espíritos:
– “… espíritos em prisão, os quais, noutro tempo, foram desobedientes” (ARA, SBB)
– “… os quais noutro tempo foram rebeldes” (ALA, ACR, THO)
– “… que há muito tempo desobedeceram” (NVI)
– “… que foram rebeldes outrora” (EP)
– “… que noutro tempo tinham sido incrédulos” (APF)
– “espíritos… detidos…, àqueles que outrora… tinham sido rebeldes” (CBC)
– “…, aos que haviam sido desobedientes outrora” (CNBB)
– “…, aos rebeldes de outrora” (TEB)
– “…, aos que foram incrédulos outrora” (BJ)
– “…, aos que outrora tinham sido incrédulos” (BMD)
A razão de quase todos os tradutores terem optado por esta redação (atribuindo a desobediência a espíritos), é que o texto original dá base para ela. Apresentam-se a seguir duas imagens do trecho correspondente a 1 Pedro 3:18-20, conforme constam em versões interlineares:
Emphatic Diaglott, Benjamin Wilson, 1864 (Biblioteca do Seminário Teológico da Universidade de Princeton, EUA):

Tradução do trecho sublinhado: “…ele pregou aos espíritos em prisão, que anteriormente desobedeceram,…”
Novo Testamento Interlinear Analítico Grego-Português, Paulo S. Gomes e Odayr Olivetti (Baseado no The Greek New Testament According to The Majority Text, Zane C. Hodges e Arthur L. Farstad, 2ª Edição, 1985):

Trecho sublinhado: “… aos espíritos em prisão, pregou a esses que noutra época tinham sido desobedientes,…”
Se o exame das versões fosse o único critério para decidirmos essa questão, a balança penderia definitivamente para a segunda hipótese. A resposta mais natural seria que esses rebeldes (‘desobedientes’) mencionados por Pedro eram espíritos – já na época do Dilúvio.
d) Rebelião na Terra e no domínio espiritual
É certo que os humanos que morreram no Dilúvio do tempo de Noé foram ‘desobedientes’, mas eles não foram os únicos. O relato do Gênesis que trata da época do Dilúvio mostra que houve outros que também se rebelaram contra Deus:
Quem são estes “filhos de Deus”? Esta expressão não se refere a homens. Se fosse assim, o termo usado seria “filhos dos homens”, que, a propósito, é a usada no caso das mulheres, conforme se pode ver acima. Estes “filhos de Deus” não eram seres terrestres. Eles são os mesmos mencionados nos dois trechos que seguem:
Sobre que estão fundadas as suas bases ou quem lhe assentou a pedra angular, quando as estrelas da alva, juntas, alegremente cantavam, e rejubilavam todos os filhos de Deus? (Jó 38:6,7, ALA)
Eles são seres do domínio espiritual. Entre outros nomes, a Bíblia os chama de “anjos”. Em sua outra carta, Pedro fala deles, e dá a informação de que foram eles os lançados na “prisão”:
Mas, qual foi, exatamente, o ‘pecado’ desses seres, que os levou a serem ‘aprisionados’ por Deus? Outro escritor bíblico fornece essa informação:
O que aconteceu, conforme relatado em Gênesis 6 foi que anjos, não homens, tomaram para si mulheres, e até tiveram filhos com elas (o relato do Gênesis chama a tais descendentes de “nefilins”.) Isto de fato ocorreu naqueles “dias de Noé” a que 1 Pedro 3:19 se referiu, “quando Deus esperava pacientemente… enquanto a arca era construída.”
Um detalhe importante que, para variar, costuma ser convenientemente “esquecido” pelos proponentes da teoria da ‘sobrevivência do espírito ou da alma após a morte’ é que o resultado da desobediência a Deus não foi o mesmo para os dois grupos. As referências bíblicas pertinentes são muito claras neste ponto. No caso dos rebeldes humanos, o castigo foi o que Judas chamou de “fogo eterno” na referência dele. Isso se aplica, não só aos que foram mortos na destruição de Sodoma e Gomorra, como também ao caso dos humanos que morreram no Dilúvio. Nenhum escritor bíblico jamais afirmou que estes humanos foram lançados em alguma “prisão”. Ao fazer referência a estes relatos, Jesus nada disse sobre aquelas pessoas terem sido ‘aprisionadas’. As palavras dele esclarecem perfeitamente o que é esse “fogo eterno”:
Porém, isso que Jesus falou não se aplica aos “anjos que pecaram” naqueles dias de Noé. Estes não foram destruídos. Conforme Judas nos informa, eles foram lançados numa “prisão”, para ficarem “esperando o dia do julgamento” por Deus.
e) O ‘aprisionamento’ dos anjos rebeldes e a natureza da ‘pregação’ de Cristo a eles
O trecho de 2 Pedro 2:4,5, conforme a versão citada acima, diz que Deus “os jogou no inferno”. A palavra grega que é traduzida nesta versão por “os jogou no inferno”, porém, não é a palavra grega “hades”, e sim o verbo “ταρταρόω” (tartaroo). Sobre este verbo, uma obra de referência faz o seguinte comentário:
Após considerar os diversos significados da palavra traduzida como ‘pregou’ (kerusso), a mesma obra de referência citada acima fornece a seguinte informação complementar:
B-4: Os “espíritos” que os cristãos devem ‘examinar’
“Caríssimos, não deis fé a qualquer espírito, mas examinai se os espíritos são de Deus, porque muitos falsos profetas se levantaram no mundo.” – 1 João 4:1.
Mais uma vez, a verdadeira questão aqui não é a palavra usada em alguma versão bíblica moderna, e sim esta: Quando João falou em “espírito”, referia-se ele a “espírito desencarnado”?
Eis a redação do texto em outras versões:
Queridos amigos, não acreditem em todas as pessoas que dizem ter o Espírito. Em vez disso, testem-nas. Vejam se o espírito que elas têm é de Deus, porque há muitos falsos profetas no mundo. (GWT)
Meus queridos amigos, não acreditem em tudo que vocês ouvem. Pesem cuidadosamente e examinem o que as pessoas dizem a vocês. Nem todos os que falam sobre Deus vêm de Deus. Há muitos pregadores mentirosos vagando pelo mundo. (MSG)
Queridos amigos, não acreditem em todos os que dizem falar pelo Espírito. Vocês devem testá-los para ver se o espírito que eles têm vem de Deus. Pois há muitos falsos profetas no mundo. (NLT)
Meus queridos amigos, não acreditem em todos os que dizem que têm o Espírito de Deus. Ponham à prova essas pessoas para saber se o espírito que elas têm vem mesmo de Deus; pois muitos falsos profetas já se espalharam por toda parte. (NTLH)
Caríssimos, não acrediteis em qualquer pessoa, mas examinai os que se apresentam, para ver se são de Deus, porque muitos falsos profetas têm vindo a este mundo. (BMD)
Amados, não deem crédito a todos os que se dizem inspirados; antes, examinem os espíritos, para saber se vêm de Deus, pois no mundo já apareceram muitos falsos profetas. (EP)
Meus queridos, não creiam em qualquer espírito, só porque alguém diz que está trazendo uma mensagem de Deus. Examinem primeiro os espíritos, para ver se realmente são de Deus. Porque há muitos falsos mestres saindo pelo mundo. (NBV)
Fica bem claro, portanto, que esse trecho da primeira carta de João não está se referindo a algum “espírito desencarnado” e sim a pessoas na terra que alegam falar sob a inspiração de Deus. É precisamente por isso que na segunda frase do texto João faz referência a ‘falsos profetas saindo pelo mundo’ (“falsos mestres”, “enganadores”, “pregadores mentirosos”, etc.). Se João estivesse falando pura e simplesmente de “espíritos desencarnados”, esta segunda frase não teria o menor nexo. Pois quem tem saído ‘pelo mundo afora’ pregando toda sorte de falsidades não são “espíritos desencarnados” e sim humanos que alegam estar falando sob inspiração ou orientação divina.
Não, esta recomendação foi dada de maneira indiscriminada. Todos os cristãos têm condições de fazer esta avaliação, já que tais ‘pronunciamentos’ não são provenientes de “espíritos desencarnados” e sim de seres humanos, que podem ser ouvidos por qualquer um.
B-5: Os “espíritos dos profetas”
“Estas palavras são fiéis e verdadeiras, e o Senhor Deus dos espíritos dos profetas enviou o seu anjo para mostrar aos seus servos o que deve acontecer em breve.” – Apocalipse 22:6.
Quando fala sobre “espíritos dos profetas”, está esse trecho se referindo a “espíritos de profetas desencarnados”? Esta interpretação é decorrente de se ignorar o que diz a seguinte referência:
A expressão “espíritos dos profetas” não é uma referência a “espíritos de falecidos”, e, aliás, nem mesmo a espírito de homens vivos. Todo o foco do trecho é no espírito santo de Deus, que inspira os profetas verdadeiros. Isso fica claro à base do exame deste mesmo trecho em outras versões:
O anjo disse-me: “Estas palavras são fiéis e verdadeiras. O Senhor, o Deus que inspira os profetas, enviou o seu anjo para mostrar aos seus servos as coisas que devem ocorrer em breve.” (TNIV)
Daí, o anjo disse-me: “Estas palavras são fiéis e verdadeiras: ‘O Senhor Deus, que diz aos seus profetas que o futuro reserva, enviou o seu anjo para dizer a você o que vai ocorrer em breve.” (NLT)
E disse-me: Estas palavras são fiéis e verdadeiras; e o Senhor, o Deus dos santos profetas, enviou o seu anjo, para mostrar aos seus servos as coisas que em breve hão de acontecer. (ARC, KJV, TYN, TMB, WBT, YLT)
B-6: O “espírito” que parou diante de Elifaz
Os capítulos 4 e 5 do livro bíblico de Jó registram um pronunciamento feito por um dos amigos dele, chamado Elifaz. Neste chamado “primeiro discurso” de Elifaz aparece a seguinte declaração:
Em virtude de o termo hebraico no trecho correspondente a Jó 4:15 ser ruach, a maior parte dos tradutores utilizou a palavra “espírito” no versículo.9
Estava Elifaz referindo-se aqui a um “espírito desencarnado”? Um exame dos comentários dos eruditos mostra que eles são bem reticentes em afirmar isso. A maioria optou pela hipótese de que este texto se refere, não a um “espírito de falecido” e sim a um anjo (materializado, obviamente, caso contrário Elifaz não poderia ter visto sequer um “vulto” dele).10
Alguns eruditos evitam assumir qualquer posicionamento. A razão disso é óbvia: O próprio Elifaz disse que ‘não pode identificá-lo”. Nada há no relato que permita uma conclusão definitiva quanto à identidade desse espírito. A informação dada por ele simplesmente não fornece dados suficientes para isso. Em harmonia com este fato, Albert Barnes disse:
(Notes on the Book of Job [Notas Sobre o Livro de Jó], Volume I, London Gall & Inglis, 1851, pág. 195. Grifo e sublinhado acrescentados.).11
E quanto ao estado do próprio Elifaz quando recebeu esta informação? Após considerar as possibilidades, outro comentário diz o seguinte sobre isso:
(Pulpit Commentary, H. D. M. Spence e Joseph S. Exell – Comentário ao Livro de Jó (Volume 16), pág. 69 – Grifos e sublinhados acrescentados.).
Complementando este raciocínio, outro comentário diz:
(An Old Testament Commentary for English Readers [Comentário ao Antigo Testamento Para Leitores de Língua Inglesa], editado por Charles John Ellicott, Cassell, Petter, Galpin & Co., Londres, Paris e Nova Iorque, Vol. 4, 1884, pág. 12. Grifo e sublinhados acrescentados.).
Levando-se em conta que a primeira informação que Elifaz deu sobre sua experiência foi que ela ocorreu “em meio a sonhos perturbadores da noite, quando cai sono profundo sobre os homens”, a ideia expressa nos comentários acima faz sentido. Uma fraseologia bem semelhante foi usada no próprio livro de Jó, por Eliú, outro homem que estava presente nas discussões. Dirigindo-se a Jó, ele disse:
As declarações dos eruditos e o trecho acima dão forte base para a sugestão de que esta revelação foi transmitida a Elifaz em meio a um sonho noturno, e não quando ele se encontrava desperto. Uma argumentação imparcial admitiria essa possibilidade. Se esta informação de Elifaz sobre o momento em que recebeu a revelação não for ignorada (ou pior ainda: mal usada, com o objetivo de sugerir que os “espíritos dos mortos” só costumam se manifestar no período da noite ou na escuridão!)12, a hipótese de tal revelação ter sido por meio de um sonho de origem divina pode até ser considerada como a mais provável.
Mas, independentemente da situação em que Elifaz se encontrava (consciente ou imerso em “sono profundo”), não haveria pelo menos a possibilidade de a informação ter sido transmitida por uma “sombra” [rephaim] procedente do “mundo dos mortos” em vez de sê-lo por um anjo? Não, se forem levados em conta os seguintes fatos:
(1) Elifaz não identificou o espírito como um anjo, é verdade, mas ele também nada mencionou relacionado com os mortos ou com o Seol em conexão com esse “espírito”. Qualquer afirmação nesse sentido não passa de conjectura; decorrente de um simples desejo de acreditar nisso.
(2) Embora haja muitos exemplos de transmissão de informação divina por meio de anjos, visões ou sonhos (sendo que “anjos” é a hipótese mais defendida pelos eruditos neste caso envolvendo Elifaz), não existe um só precedente bíblico de Ele ter transmitido informações desse tipo a alguém por meio de “espíritos de falecidos”;
(3) Não há também referência bíblica a pessoas mortas terem inspirado sonhos de pessoas vivas, para transmitir-lhes informações. Conforme foi visto na discussão sobre os Salmos 88:10 e Salmos 115:17 (sendo que no primeiro o termo “sombras” aparece em algumas versões bíblicas), os mortos (“sombras”) ‘não se levantam’ para louvar a Deus’. Esse “não se levantam” é no Seol. A evidência conjunta fornecida por estes dois salmos mostra que as “sombras” (“mortos”, conforme a maioria das versões) estão imóveis, impotentes e silenciosas no Seol. Elas jamais dizem ou fazem coisa alguma relacionada com Deus lá – muito menos no mundo dos vivos. E o Eclesiastes deixa claro que ‘os mortos não têm mais parte em nada do que se faz debaixo do sol [neste mundo].’ Se pessoas vivas se sentissem motivadas a dizer ou fazer – e dissessem e fizessem mesmo – determinadas coisas em decorrência de informações transmitidas por pessoas falecidas – seja por meio de sonhos ou por qualquer outro meio que seja – indivíduos mortos estariam tendo alguma influência no que acontece “debaixo do sol”. O autor do Eclesiastes teria declarado uma falsidade aqui.
Logo, a hipótese de a palavra “espírito” em Jó 4:15 se referir a um “espírito desencarnado” pode ser descartada com toda a segurança. Uma vez que nenhuma evidência dá base para essa possibilidade (pelo contrário, as evidências estão na contramão dela), o apoio que este versículo fornece para a ideia de “espírito desencarnado” é nulo. O contexto bíblico, juntamente com o consenso dos eruditos, dá apoio para a ideia oposta: independentemente de Elifaz ter recebido a informação num estado consciente ou não, a informação procedeu de alguém vivo, não de alguém do “mundo dos mortos”.
Por isso, o que já foi declarado antes neste artigo vale também para esta referência de Jó 4:15:
E o mesmo se aplica a todos os demais livros da Bíblia.
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Com base em todos os exemplos analisados acima, pode-se afirmar com segurança que a Bíblia não dá apoio algum para a hipótese de ‘almas ou espíritos existindo independentemente’. Esta ideia está ausente de todas as referências ao assunto nos Testamentos judaico e cristão.
Porém, levando-se em conta a insistência dos proponentes de ideias tais como ‘sobrevivência da alma após a morte’ e ‘tormento consciente’, em procurar evidências destas coisas lá, é de se esperar que prossigam as tentativas de encontrar alguma comprovação da existência de “espíritos desencarnados” em outros trechos bíblicos. Caso alguma matéria com esse propósito seja trazida à nossa atenção no futuro e os argumentos apresentados pareçam ter alguma força, poderemos analisá-los e incluir informações adicionais nesta consideração.
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Notas
1 Como em todos os outros casos, a releitura que os defensores da ‘sobrevivência da alma após a morte’ fazem de Eclesiastes 12:7 envolve uma série de acréscimos ao texto, tornando difícil que um “leitor desavisado” consiga distinguir o que foi acrescentado daquilo que é realmente declarado no texto. Uma mensagem que foi encaminhada ao Mentes Bereanas continha links para algumas matérias relacionadas com a discussão deste artigo. Uma dessas matérias incluía a seguinte declaração:
Note-se que não é o versículo do Eclesiastes que é usado para explicar o que Cristo disse sobre os três patriarcas, e sim uma reformulação dele. Se o leitor verificar o que se diz lá, bem como nas referências relacionadas, não encontrará nada disso que foi declarado acima.
Temos a informação simples de que “Deus é Espírito”, sendo Ele a fonte do espírito. Nada se fala sobre espíritos “individuais”, dos quais Ele seria o ‘proprietário’. Sabemos que quem ‘dá’ ou ‘tira’, ‘envia’ ou ‘recebe’ o espírito é Deus; todas estas ações são iniciativa exclusiva dele. Nada se diz sobre o próprio espírito ‘sair do corpo’ ou ‘retornar’ para algum domínio por conta própria. O trecho diz que “o espírito retorna a Deus que o deu”, não diz que o espírito “retorna para a realidade própria de Deus”. Aliás, a própria frase ‘o espírito retorna para a realidade espiritual’ é retórica vazia, uma redundância que não diz nada. Somos informados de que os três patriarcas morreram. Não há informação alguma sobre eles terem morrido “apenas para nós”. Existe a promessa de que eles serão ressuscitados; esta ressurreição é um evento futuro. Não há informação alguma sobre eles estarem ativos e conscientes agora mesmo como “espíritos glorificados”. Se fosse assim, não haveria qualquer cabimento em se falar em ressurreição; a ressurreição seria, na verdade, um desserviço a essas pessoas.
O objetivo de toda essa reformulação não é outro a não ser dar suporte ao conceito inventado de “tricotomia”, o qual inclui a ideia de que o “espírito” ou a “alma” são entidades com “personalidade própria” e existem independentemente depois da “divisão” da “pessoa tricotômica” (que eles alegam ocorrer por ocasião da morte). Não é à-toa que, logo em seguida à declaração acima, o escrito conclui dizendo:
Conforme o próprio escrito reconhece, esta ideia (bem como tudo o que se deriva dela) é proveniente do raciocínio de teólogos. O próprio texto bíblico não diz uma palavra – e nem dá a menor sugestão – sobre isso.
2 No esforço de contornar a dificuldade gerada por estas palavras de Cristo sobre ‘ninguém ter ido ao céu’, alguns promotores do conceito da “sobrevivência da alma e do espírito” apresentam sua teoria da “região do Seio de Abraão”, argumentando que no momento em que Cristo disse isso, ‘ninguém tinha ido ao céu realmente; os fiéis estariam temporariamente nessa “região do Seio de Abraão” e só ascenderam ao céu após a ressurreição de Cristo’. O problema é que não há como apelar para essa “escapatória” nos casos das declarações sobre homens fiéis feitas após a ressurreição de Jesus (como a do apóstolo Pedro em Atos 2:34). Além disso, como vimos, a alegação feita acima foi: “eles [Abraão, Isaque e Jacó] só poderiam recebê-los se já vivessem lá [no céu] antes, o que está de acordo com aquilo que Jesus falou [sobre o Pai ser ‘Deus de viventes, não de mortos’]”. Ou seja, segundo essa teoria, quando Cristo disse isso – antes de sua ressurreição – ele quis dizer que esses fiéis já viviam no céu (antes de ele próprio ter voltado para lá!). O objetivo dessa alusão ao que Cristo disse em Mateus 8:11 não foi outro a não ser “comprovar” isso. Esta é mais uma das evidências do total descuido com que os promotores do conceito da “imortalidade da alma” lidam com as referências bíblicas: Além de ignorarem sistematicamente todo e qualquer trecho do contexto que contradiga suas ideias, eles citam a esmo qualquer trecho que lhes pareça “confirmá-las”, só para cair o tempo todo em contradições criadas por suas próprias teorias.
3 Entre as versões em língua inglesa a situação é idêntica. Há aquelas que dizem que o corpo de Jó estaria ‘destruído’. Outras, como a WYC e a YLT vão ao outro extremo: dizem que ele estaria tanto em seu corpo físico como também revestido com pele. Mas, a maioria das versões diz que apenas a pele seria ‘destruída’ (ou ‘esfolada’), mas Jó ‘veria Deus’ “ainda na carne”. Entre elas estão: CEB, CSB, ESV, EXB, GW, HCSB, HNV, ICB, ISV, LEB, MEV, MSG, NOG, NABRE, NAS, NCV, NET, NIRV, NKJV, NLV, NRS, OJB, RSV, TLV, VOI e WEB. A versão GNT diz: “Até depois que minha pele estiver consumida pela doença, enquanto ainda neste corpo eu verei Deus.” JUB transmite uma ideia semelhante: “e depois disto, a minha pele ferida e de minha própria carne, deverei ver Deus.” Um detalhe significativo é que a própria New International Version (NIV), a correspondente em inglês da NVI, também apresenta esta mesma fraseologia. Seus tradutores verteram o versículo 26 desse modo: “E depois que minha pele estiver destruída, ainda em minha carne eu verei Deus.” Já a NLT não faz referência à “pele”, porém diz: “E depois que meu corpo tiver se deteriorado, ainda em meu corpo eu verei Deus!”. A mesma ideia é transmitida pela TLB. Essa maneira de traduzir mostra que, mesmo em se tratando do corpo, não é obrigatório restringir o verbo “destruir” ao seu primeiro sentido, entendendo-o ao pé da letra (ou seja, destruição completa). Não, a ‘destruição’ aqui pode perfeitamente significar “deterioração”, “desgaste”, ou qualquer termo equivalente. Todos estes fatos foram desconsiderados na citação desse texto, que foi feita para induzir os leitores à ideia de que Jó quis dizer que seu corpo estaria completamente destruído e ele só veria Deus depois da morte, em forma de “espírito desencarnado”.
4 Aos leitores que tiverem interesse numa discussão erudita sobre este versículo, sugerimos o artigo A New Interpretation of Job 19 : 26 [Uma Nova Interpretação de Jó 19:26], Aron Pinker, Journal of Hebrew Scriptures [Revista das Escrituras Hebraicas], Volume 15 – Artigo 2, 2015 (disponível online: http://www.jhsonline.org). O autor aborda de modo abrangente a diversidade das traduções, as diferentes interpretações que foram propostas pelos exegetas, aponta os problemas de cada uma delas, e defende a interpretação de que Jó estava expressando a confiança de que o “Redentor” [Deus] sararia suas feridas e o vindicaria ainda nesta vida (as bases para esta interpretação são discutidas nas págs. 12-17).
Certa matéria que nos foi indicada afirmou taxativamente que a razão de muitas outras versões não apresentarem a redação da NVI (e da NBV) e, em vez disso, verterem o texto com redação similar à da Bíblia Hebraica Stuttgartensia é o fato de este versículo estar mal preservado nos manuscritos hebraicos. Nada mais longe da verdade! Conforme mostrado acima, são poucas as versões que apresentam o texto com essa redação da NVI; tal redação pode até ser classificada como “fora do padrão”. E que os manuscritos hebraicos estão mal conservados ninguém duvida (aliás, o mesmo se aplica a muitos manuscritos existentes das Escrituras, por razões óbvias.). Mas, não é por isso que existem leituras diferentes de Jó 19:26. Apesar da má conservação, os eruditos não têm dúvida alguma quanto à redação em hebraico do versículo em questão. De acordo com isso, Pinker diz na página 2 de sua análise:
Na página seguinte ele diz:
(Uma Nova Interpretação de Jó 19:26, págs. 2, 3. Grifos e sublinhados acrescentados.)
Desta forma, a discussão entre os eruditos não é o que diz o texto, e sim o sentido dele. A redação correta do texto original é a que consta na Bíblia Hebraica Stuttgartensia e o que ocasiona as leituras diferentes é o fato de que “muitos comentaristas”, por terem achado essa frase ‘estranha’, concluíram que o texto estava ‘corrompido’, e daí modificaram a frase por conta própria, para fazê-la dizer algo que lhes pareceu ‘mais coerente’ com sua interpretação (fazendo, para tanto, rearranjos das palavras, ou até emendas no texto hebraico para ‘corrigi-lo’). Não é porque as palavras do versículo em hebraico estão de alguma maneira ‘ilegíveis’ ou pelo fato de o significado de cada uma delas não ser claro. Conforme disse Pinker, o texto original é bem atestado, e o confronto mostra que a proporção majoritária das versões modernas (em todos os idiomas) está de acordo com o original, apresentando uma redação similar a esta: “E depois que minha pele estiver assim destruída, ainda em minha carne eu verei Deus”. De fato, se o texto hebraico não fosse tão claro nesses pontos, a única explicação para essas consistentes referências à ‘pele destruída’ e ‘ver Deus ainda na carne‘ seria que os tradutores da Bíblia para todos os idiomas modernos da atualidade fizeram um “conluio” entre si, ou foram acometidos por algum tipo de “delírio coletivo” em nível mundial!
Com o objetivo de defender que ‘a esperança expressa nas Escrituras Hebraicas’ é que os ‘humanos que morrem continuam vivos em outro lugar’, o procedimento usado em conexão com Jó 19:26 na matéria que nos foi indicada envolveu:
(1) citar seletivamente uma ou duas dentre as poucas versões modernas nas quais o tradutor ‘reformulou’ o texto deste versículo (omitindo dos leitores que todo o resto das versões segue fielmente o original),
(2) induzir os leitores a pensar que a discussão sobre a interpretação deste versículo gira em torno da ‘como seria a ressurreição’ (desconsiderando que Jó não estava falando sobre isso, e muitos eruditos nem dão crédito a esta hipótese quando discutem Jó 19:25-27) e
(3) induzir os leitores a pensar que a referência é duvidosa (apelando à falácia do “envenenamento do poço”: mesmo que alguém vá conferir o versículo na Bíblia e constate que a maioria das versões dizem ‘pele destruída’ e ‘ver Deus na carne’, isso não quer dizer nada, já que o texto original do versículo estaria ‘mal conservado’).
Infelizmente, assim como alguém que está se afogando e se agarra desesperadamente a qualquer “tábua de salvação” (real ou imaginária), da mesma maneira certos imortalistas modernos se comportam ao defenderem as “evidências bíblicas” deles. Falar em ‘má preservação dos manuscritos originais’ neste contexto não tem qualquer outro objetivo a não ser tentar desqualificar o que diz o texto original (bem como a maioria das versões que o refletem fielmente), e com isso colocar em dúvida que o patriarca Jó disse “pele destruída” (não “corpo destruído”) e que ‘ainda na carne verei Deus’ (e não ‘verei Deus sem carne’). Além de isto ser entendimento equivocado do que os eruditos disseram (sobre a má preservação dos originais), é apelo a um “argumento do desespero”, para neutralizar de qualquer maneira a evidência de que o texto original de Jó 19:26 não admite de jeito nenhum a conclusão de que o patriarca estava falando alguma coisa sobre ‘ver Deus’ como “espírito desencarnado”.
5 É significativo que entre as principais versões em língua inglesa não há uma sequer que verta este versículo da maneira que faz a Bíblia Viva. Em todos os casos, quando a palavra “morte” é usada o texto diz “in death” (na morte), “at death” (à morte / no momento da morte) ou “when dies” (quando morre). Jamais alguma versão diz (ou sugere) “after death” (depois da morte).
6 Entre os comentários sobre Provérbios 14:32 que constam numa publicação que nos foi enviada, inclui-se este:
Esta declaração inverte a realidade.
Em primeiro lugar, nenhum tradutor bíblico ‘parafraseia’ o material que traduz; isso não é função de tradutor. Pelo contrário, todo tradutor sério se esforça conscientemente em converter o mais fielmente possível o que diz o original para a linguagem de seu idioma materno. De forma que nenhuma tradução literal da Bíblia poderia transmitir o sentido que se pretende defender acima, já que o texto em hebraico desse versículo do livro de Provérbios não diz coisa alguma sobre o momento posterior à morte. É precisamente por esta razão que quando a palavra “morte” é incluída no contexto, todos os tradutores bíblicos credenciados (e não só “alguns”) usaram expressões tais como “em face da morte”, “à morte”, “na morte”, etc. ― e nunca “depois da morte”.
Dentre todas as versões que foram consideradas aqui, a única que se afasta desse padrão é a Bíblia Viva, justamente pelo fato de ser – admitidamente – uma versão livre, e não uma tradução literal. Publicada no Brasil em 1981, ela é a correspondente em português da The Living Bible, Paraphrased, [A Bíblia Viva, Parafraseada] da autoria de Kenneth N. Taylor. The Living New Testament, Paraphrased [O Novo Testamento Vivo, Parafraseado] foi publicado originalmente em inglês em 1967, e a versão completa, com os dois Testamentos, foi publicada em 1971. O Prefácio ao Novo Testamento (da 1ª Edição, 1967) contém a seguinte informação dos editores:
Assim, na própria versão está a admissão de que ela não é produto duma tradução dos textos originais hebraico e grego, e sim duma paráfrase de outra versão já consagrada em inglês. (Há quem afirme, inclusive, que Taylor nem era proficiente em hebraico e grego.)
Além de ter sido afirmado na “Observação” acima que os tradutores cuja versão por acaso esteja em desacordo com a interpretação imortalista ‘claramente parafrasearam’ o versículo de Provérbios (um desrespeito ao trabalho deles, diga-se de passagem), ainda foi citado o versículo duma Bíblia parafraseada para “comprovar” que “o justo tem um refúgio garantido depois que morre … aquele lugar chamado de ‘Seio de Abraão’ na Parábola do rico e Lázaro.” Em consequência, todas as versões literais que não se ajustam a essa ideia foram rebaixadas à condição de ‘paráfrases’, enquanto que a versão parafraseada foi “promovida” à categoria de tradução literal! Este procedimento é mais um instrutivo exemplo da maneira como alguns proponentes da “imortalidade da alma” lidam com as evidências para obrigá-las se ajustar de qualquer maneira com suas teorias.
7 Entre as versões em língua inglesa, esta mesma maneira de traduzir o texto foi usada em BBE, GNT, MSG, NRS, RSV. Estas usam as palavras “justiça” ou “integridade”, em vez de “morte”. A LXX diz: “O ímpio será derrubado em sua iniquidade; mas o que é seguro em sua própria santidade é o justo.” Já as demais versões que incluem a palavra “morte” no contexto, transmitem as mesmas ideias das versões em português exemplificadas acima: “confiança”, “esperança” ou “fé em Deus” por parte do justo, mesmo em face da morte; elas não focalizam a própria morte em algum sentido “cronológico”. A TNIV, por exemplo, diz: “Quando a calamidade chega, o ímpio é derrubado, mas até na morte o justo busca refúgio em Deus.” A Tanakh (Jewish Publication Society) diz: “O ímpio é derrubado em seu infortúnio; mas o justo, mesmo quando é levado à morte, tem esperança.”
8 Deve-se mencionar ainda que, embora a expressão ‘depois da morte’, que aparece na Bíblia Viva não esteja de acordo com o original, ela não comprova necessariamente alguma ideia de “sobrevivência da alma e do espírito depois da morte”. Todos os cristãos que creem na ressurreição dos mortos bíblica têm de fato a “esperança de uma vida melhor depois da morte”. Mas, os cristãos sabem que, biblicamente falando, esta ‘vida melhor depois da morte’ não ocorre imediatamente após a morte. Ela é futura; virá no momento determinado por Deus, tendo início a partir da ressurreição. De modo que até esta paráfrase da Bíblia Viva pode ser usada para defender o ensino da “ressurreição dos mortos” não o da “imortalidade inerente da alma”.
9 Entre as versões em língua portuguesa, um número expressivo de tradutores usou as palavras “sopro” ou “vento” no texto principal de Jó 4:15. É o caso das versões BJ, EP, TEB, SBB, BMD, CBC e BLH. A palavra “espírito” é usada em ACR, NVI, AIB, THO, Alf, NBV, APF e MS. No caso das versões em inglês a situação é diferente. São comparativamente poucos os tradutores para este idioma que utilizaram outras palavras no versículo. A grande maioria traduziu a palavra ruach por “espírito”.
10 Nem mesmo eruditos que apresentam este versículo como “prova” da ‘imortalidade da alma ou do espírito’ conseguem evitar esta hipótese. Daniel Denison Whedon (um metodista do século 19), por exemplo, fez as seguintes declarações em seu comentário:
(Whedon’s Commentary on the Bible [Comentário Bíblico de Whedon]. Comentário a Jó 4: 15. Sublinhados acrescentados.)
Apesar destas declarações categóricas (grifadas acima), Whedon não conseguiu apresentar um só trecho que “mostra inquestionavelmente” alguma dessas coisas que ele disse. Nenhum dos versículos citados por ele (1 Reis 22:21, Jó 32: 8 e 1 Samuel 16:15,23) comprova isso. Conforme ele se sentiu obrigado a reconhecer honestamente no mesmo comentário,
Se o texto bíblico, em si, não admite qualquer declaração taxativa, cabe ao leitor decidir se concordará com a opinião dos ‘eruditos em geral’ (de que se tratava dum anjo) ou se aceitará sem questionar a opinião de alguém que procura negar isso a todo custo com o fim de apresentar o versículo como “prova bíblica” da manifestação de algum “espírito desencarnado” a Elifaz.
11 Aqui Barnes raciocinou sobre hipóteses. A questão não é se Deus ‘poderia’ ou ‘não poderia’ comunicar sua vontade por qualquer meio que Ele quiser. Nenhum cristão crente na Bíblia contestaria o fato de que ‘para Deus todas as coisas são possíveis’. A verdadeira questão é se Deus fez ou não fez tal coisa. Pode-se comprovar facilmente que o verdadeiro Deus usou (e muitas vezes) um “mensageiro delegado de sua presença imediata” para comunicar sua vontade aos homens. Todavia, nem Barnes, nem comentarista bíblico algum até agora conseguiu “demonstrar” biblicamente que Deus tenha feito isso uma única vez por meio de pessoas mortas. Como erudito imortalista que era, Albert Barnes provavelmente não hesitaria nem por um instante em apresentar esta referência de Jó como “exemplo bíblico” da manifestação dum “espírito desencarnado” a uma pessoa viva. Mas ele não pôde fazer isso, já que não há como extrair essa ideia do enunciado do texto.
12 O único objetivo dessa sugestão de que a expressão “debaixo do sol”, usada no Eclesiastes, poderia significar ‘à luz do dia’ ou ‘na claridade’ é tentar anular o que diz Eclesiastes 9:6. Este é outro argumento improcedente, já que o significado desta expressão não é esse.
Imagem: Saul e a Feiticeira de Endor. Benjamin West, 1777.