Em Que os Cristãos Creem?

[Reflexões de Um Ex-Ateu Sobre o Cristianismo]

As Concepções Rivais Sobre Deus

Foi-me pedido para falar sobre o que os cristãos creem, e vou começar falando sobre algo em que os cristãos não precisam acreditar. Se você é cristão, não tem de acreditar que todas as outras religiões estão simplesmente erradas por completo. Se for um ateísta, tem de acreditar que o conceito principal de todas as religiões do mundo não passa de um enorme erro. Se você é cristão, tem a liberdade para achar que todas as religiões, mesmo as mais estranhas, contêm pelo menos algum fundo de verdade. Quando eu era ateu, tentei me convencer de que a maior parte da humanidade sempre estivera errada sobre o assunto que mais a interessava; quando me tornei cristão, pude adotar um conceito mais liberal. Porém, é claro que por sermos cristãos, nós achamos que onde o Cristianismo difere das outras religiões, o Cristianismo está certo e elas erradas. É como na aritmética – há uma única resposta certa para determinada soma, e todas as outras respostas estão erradas, embora algumas respostas erradas estejam mais próximas da certa do que outras.

A primeira grande divisão da humanidade é entre a maioria, que acredita em alguma espécie de Deus ou deuses, e a minoria que não acredita nisso. Nesse ponto, o Cristianismo está alinhado com a maioria – juntamente com os gregos e romanos da Antiguidade, os selvagens da era moderna, os estóicos, os platonistas, os hindus, os muçulmanos, etc., e contra os materialistas modernos da Europa Ocidental.

Passarei agora à próxima grande divisão. Todas as pessoas que acreditam em Deus podem ser divididas de acordo com o tipo de Deus em que acreditam. Há duas concepções bem diferentes neste ponto. Uma delas é a de que Ele está acima do Bem e do Mal. Nós, humanos, dizemos que uma coisa é boa e outra é má. Segundo alguns, porém, isso é meramente nosso ponto de vista humano. Essas pessoas diriam que, quanto mais sábio você se torna, menos propensão terá de classificar alguma coisa como boa ou má, e o máximo que dirá é que tudo é, de certa maneira bom, e de certa maneira mau, e que nada poderia ser diferente do que é. Conseqüentemente, essas pessoas acham que, muito antes de nos aproximarmos do conceito divino, essa distinção já terá desaparecido completamente. Consideramos o câncer mau, diriam elas, porque ele mata um homem; mas poderíamos igualmente chamar um cirurgião competente de mau porque ele mata um câncer. Tudo depende do ponto de vista. A outra idéia, oposta a esta, é que Deus é definitivamente “bom” ou “justo”, um Deus que toma partido, que ama o amor e odeia o ódio, que deseja que nos comportemos de uma determinada maneira e não de outra. O primeiro destes conceitos, o que vê Deus como acima do Bem e do Mal, é chamado de panteísmo. Foi defendido por Hegel, um grande filósofo prussiano, e, tanto quanto posso entendê-los, pelos hinduístas. O outro conceito é defendido pelos judeus, muçulmanos e cristãos.

E junto com essa grande diferença entre o panteísmo e a idéia cristã de Deus, usualmente aparece outra. Os panteístas geralmente creem que Deus, por assim dizer, anima o universo como você anima seu corpo: o universo é quase Deus, de maneira que se o universo não existisse, Ele também não existiria, e tudo o que você encontra no universo faz parte de Deus. A idéia cristã é bem diferente. Os cristãos entendem que Deus inventou e criou o universo  – como um homem que pinta um quadro ou compõe uma música. Um pintor não é o quadro, e ele não vai morrer se o quadro dele for destruído. Você até poderia dizer que “ele colocou um pouco de si mesmo no quadro”, mas isso significaria apenas que toda a beleza e fascínio do quadro vieram da cabeça dele. O talento dele não está no quadro, do mesmo modo como está em sua cabeça ou mesmo em suas mãos. Espero que vocês tenham entendido até que ponto essa diferença entre os panteístas e os cristãos está relacionada com a outra. Se você não leva muito a sério a distinção entre o Bem e o Mal, fica fácil dizer que qualquer coisa que vê no mundo é uma parte de Deus. Porém, é claro que se você acha que certas coisas são realmente más e Deus é realmente bom, então não pode falar desse modo. Tem de acreditar que Deus está separado do mundo e que algumas coisas que vemos são contrárias à vontade dele. Diante dum câncer ou duma favela, o panteísta pode dizer: “Se você pudesse ver as coisas do ponto de vista divino, perceberia que isso também é Deus.” O cristão replica: “Não diga essa maldita bobagem!”” 1Um ouvinte reclamou da palavra “maldita” por ser uma imprecação frívola. Mas eu quis dizer exatamente isso, uma bobagem condenada, que está sob a maldição de Deus, e (uma vez apartada da graça de Deus) leva aqueles que acreditam nela à morte eterna. Pois o cristianismo é uma religião combativa. Esta religião entende que Deus criou o mundo – que o espaço e o tempo, o calor e o frio, todas as cores e sabores e todos os animais e vegetais saíram “da cabeça dele”, assim como um escritor elabora uma história. Mas o cristianismo também defende que muitas coisas criadas por Deus decaíram no erro, e Deus insiste, e de maneira ruidosa, que nós corrijamos isso.

E, naturalmente, isso levanta uma grande questão. Se um Deus bom criou o mundo, por que o mundo não deu certo? E por muitos anos eu simplesmente me recusei a ouvir as respostas dos cristãos a esta pergunta, pois eu mantinha a opinião de que “o que quer que vocês digam, e por mais hábeis que sejam seus argumentos, não é muito mais simples e mais fácil dizer que o mundo não foi criado por um poder inteligente? Não são as argumentações de vocês apenas uma complicada tentativa de evitar o óbvio?” Mas, daí, isso me jogou de novo dentro de outra dificuldade.

Meu argumento contra Deus era o de que o universo parecia muito cruel e injusto. Mas, com que base eu tinha chegado a esse conceito de justo e injusto? Um homem não tem como dizer que uma linha é torta se ele não tiver alguma ideia do que é uma linha reta. Com o que eu estava comparando o universo quando eu o chamava de injusto? Se o espetáculo inteiro, por assim dizer, era ruim do princípio ao fim, como poderia eu, que faço parte dele, ter uma reação tão violenta assim contra ele? Um homem se sente molhado quando cai na água porque ele não é um animal aquático; já um peixe não se sente molhado. E claro que eu poderia ter desistido de minha ideia de justiça, assumindo que ela não passava de uma ideia da minha cabeça. Mas se eu fizesse isso, então meu argumento contra Deus também desmoronaria – pois o argumento dependia da afirmação de que o mundo era realmente injusto, e não de que ele por acaso só não agradava aos meus desejos pessoais. Assim, no próprio ato de tentar provar que Deus não existia – em outras palavras, que a realidade não tinha sentido – vi-me forçado a admitir que uma parte da realidade – ou seja, meu conceito de justiça – estava repleto de sentido. Portanto, o ateísmo revela-se simplista. Se o universo inteiro não tem sentido, jamais descobriríamos que ele não tem sentido – da mesma maneira que se não houvesse luz no universo e nenhuma criatura com olhos, nunca saberíamos que está escuro. A escuridão não teria qualquer significado.

A Invasão

Muito bem, então o ateísmo é simplista. E falarei sobre outro conceito que é também simplista. É o conceito daquilo que chamo de “cristianismo infantil”, o qual diz simplesmente que existe um Deus bondoso no céu e tudo está muito bem – desconsiderando todas as complicadas e terríveis doutrinas sobre o pecado, o inferno, o Diabo e a redenção. Estes dois conceitos são filosofias infantis.

Não é bom querer uma religião simples. Afinal de contas, as coisas no mundo real não são simples. Parecem simples, mas não são. A mesa diante da qual estou sentado parece simples; mas peça a um cientista que diga do que ela é realmente feita, tudo sobre os átomos e como as ondas luminosas se refletem neles e chegam até meu olho e de que modo elas impressionam o nervo óptico e qual é o efeito que este provoca no cérebro – e, naturalmente você perceberá que o que chamamos de “ver uma mesa” nos conduz a mistérios e complicações aparentemente sem fim. Uma criança fazendo uma oração infantil parece simples. Se você estiver satisfeito em parar por aí, tudo bem. Mas, se você não se contentar com isso – e geralmente o mundo moderno não se contenta – e quiser saber o que está realmente acontecendo, então tem de estar preparado para uma tarefa difícil. Se quisermos algo mais do que a simplicidade, é bobagem nos queixarmos de que esse “algo mais” não é simples mesmo.

Todavia, com muita freqüência esse procedimento tolo é adotado por pessoas que não são tolas, mas que, de modo consciente ou não, querem destruir o cristianismo. Essas pessoas se concentram numa versão da religião cristã própria para uma criança de seis anos e fazem dessa versão o objeto de seu ataque. Daí, quando você tenta explicar a doutrina cristã da maneira como deve ser entendida por um adulto instruído, elas reclamam que estamos confundindo a cabeça delas, que isso tudo é muito complicado e que se Deus realmente existisse, Ele teria feito a “religião” simples, porque a simplicidade é tão bela, etc. Estejam sempre alertas contra essas pessoas, porque elas mudam de argumento a cada minuto e só lhe fazem perder sua paciência. Perceba também o absurdo dessa idéia que elas têm de Deus “fazer uma religião simples” como se “religião” fosse alguma coisa inventada por Deus, e não a própria revelação dele para nós, acerca de certos fatos inalteráveis sobre sua própria natureza.

Minha experiência mostra que além de complicada, a realidade geralmente é estranha. Não é clara, nem óbvia, nem o que você espera que ela seja. Por exemplo, quando você descobre que a Terra e os outros planetas giram em torno do sol, seria natural esperar que todos os planetas sigam um padrão – todos à mesma distância um do outro, talvez separados por distâncias que aumentam na mesma proporção, ou que todos são do mesmo tamanho, ou pelo menos que aumentem ou diminuam de tamanho à medida que se afastam do sol. No entanto, você não verá qualquer harmonia nem lógica (compreensível para a pessoa mediana) nos tamanhos ou nas distâncias; e alguns deles têm uma lua, um tem quatro, um tem duas; alguns não têm lua; e um deles tem anéis.

A realidade, com efeito, é algo que você não poderia ter adivinhado. Esta é uma das razões pelas quais eu acredito no Cristianismo. É uma religião que não poderia ter sido inventada. Se ela nos oferecesse exatamente o tipo de universo que sempre esperávamos, eu acharia que fomos nós mesmos que a criamos. Porém, ela não é o tipo de coisa que alguém poderia ter criado. Esta religião apresenta todos os traços estranhos que as coisas reais têm. Então, deixemos de lado todas as filosofias infantis e suas respostas simplistas. A questão não é simples, e a resposta também não vai ser simples.

Qual é a questão? É que existe um universo que contém muitas coisas que são evidentemente más e aparentemente sem sentido, mas contém também criaturas como nós, que sabem que elas são más e sem sentido. Existem só dois conceitos que encaram todos esses fatos. Um deles é o conceito cristão, que ensina que este é um mundo bom que se perdeu, mas ainda conserva a memória de como deveria ser. O outro conceito chama-se dualismo. Dualismo é a crença de que há por trás de tudo duas forças iguais e independentes, uma delas boa e outra má e que este universo é o campo de batalha no qual elas travam uma guerra sem fim. Acredito pessoalmente que, ao lado do cristianismo, o dualismo é a crença mais viril e sensata que existe no mercado. Porém, ela tem um embaraço.

As duas forças, ou espíritos, ou deuses – o bom e o mal – são supostamente independentes um do outro. Ambos existem por toda a eternidade. Nenhum deles criou o outro, nenhum dos dois tem mais direito do que o outro de chamar a si mesmo de Deus. Cada um deles, presumivelmente, considera-se o Bem, e acha que o outro é o Mal. Um deles aprecia o ódio e a crueldade; o outro, o amor e a misericórdia; e cada um defende sua própria visão das coisas. Mas, o que queremos dizer quando chamamos um deles de Poder do Bem, e o outro de Poder do Mal? Ou estamos simplesmente dizendo que preferimos um ao outro — assim como uma pessoa pode preferir uma cerveja a um vinho espumante; ou então estamos dizendo que não importa o que cada um deles pense a seu respeito, e independentemente de qual dos dois gostemos ou não no momento, um deles está realmente errado e enganado em se considerar bom. Ora, se só estamos dizendo que preferimos a primeira força, então temos de desistir da conversa sobre Bem e Mal. Isso porque o Bem é aquilo que deveríamos preferir, não importando quais sejam os nossos sentimentos num dado momento. Se “ser bom” significasse apenas juntar-se ao lado que por acaso nos agrada, o Bem não mereceria ser chamado de Bem. Então, o que queremos dizer é que um dos poderes está errado, enquanto o outro está certo mesmo.

Porém, a partir do momento em que você diz isso, está inserindo no universo uma terceira coisa em adição aos outros dois poderes: uma lei, padrão, ou regra à qual um dos poderes se submete e o outro não. Mas já que os dois poderes são julgados por esse padrão, então este padrão ou o Ser que o criou está por trás e acima de qualquer um dos poderes, e é Ele quem será o Deus verdadeiro. Na realidade, o que queremos dizer quando chamamos um poder de bom e o outro de mau, é que um está em relação harmônica com o Deus verdadeiro e definitivo, e o outro está em desarmonia com Ele.

O mesmo assunto pode ser apresentado de ou­tra maneira. Se o dualismo é verdadeiro, o Poder do Mal deve ser alguém que ama a maldade pela própria maldade. Na realidade, po­rém, não encontramos ninguém que aprecie a maldade só porque ela é má. O mais próximo disso seria a crueldade. Mas, na vida real as pessoas são cruéis por uma de duas razões: ou porque são sádicas, ou seja, porque elas têm uma perver­são sexual que faz da crueldade um objeto de prazer sensual para elas, ou então por estarem querendo ganhar alguma coisa – dinheiro, poder ou segurança. Mas o prazer, o dinheiro, o poder e a se­gurança, em si mesmos, são coisas boas. A maldade consiste em tentar obtê-los por métodos errados, ou da maneira errada, ou em excesso. É claro que não estou querendo dizer, de modo algum, que as pessoas que agem dessa forma não são terrivelmente per­versas. Quero dizer apenas que a perversidade, quando examinada, revela-se como um modo de conseguir alguma coisa boa de maneira errada. Você pode ser bom por amar a própria bondade, mas não po­de ser mau pelo simples amor à maldade. Você pode fazer uma boa ação mesmo quando não está se sentindo bondoso e esta ação não lhe dá qualquer satisfação, e sim apenas porque a bonda­de é certa; mas jamais alguém praticou uma ação cruel só porque a crueldade é errada, e sim porque ela foi recompensadora ou útil para essa pessoa. Em outras palavras, a maldade não consegue nem mesmo ser má como a bondade é boa. A bondade, por assim dizer, é ela mesma; a maldade é só a corrupção da bondade. E é necessário que exista algo bom primeiro, antes que possa haver uma corrupção. Nós dizemos que o sadismo é uma per­versão sexual, mas, para chamá-lo assim, temos primeiro de saber o que é uma sexualidade normal; e você pode ver o que é a perversão porque a perversão pode ser explicada pela normalidade, mas a normalidade não pode ser explicada por meio da perversão. Segue-se que este Poder do Mal, que supostamente está em pé de igualdade com o Poder do Bem e ama a maldade pela maldade, da mesma maneira que o Poder do Bem ama a bondade, é um mero espantalho. Para ser mau, ele tem de querer boas coisas e buscá-las da maneira errada: tem de ter impulsos que originariamente eram bons e depois foram pervertidos. Mas, se ele é mau, não pode fornecer a si mesmo nem as coisas boas que deseja, nem os bons impulsos passíveis de perversão. Tem de receber essas duas coisas do Poder do Bem. E, se é assim, ele não é independen­te. Faz parte do mundo do Poder do Bem: ou foi gerado pelo Poder do Bem, ou por um poder superior a ambos.

Coloquemos o assunto de forma ainda mais simples. Para que seja mau, esse Poder do Mal tem de existir e ter inteligência e vontade. Mas a existência, a inteligência e a vontade são, em si mesmas, coisas boas. Logo, ele deve ter obtido essas coisas do Poder do Bem: mesmo para ser mau, ele tem de emprestá-las ou roubá-las do seu opositor. Vocês começam a entender agora por que o Cristianismo sempre ensinou que o Diabo é um anjo caí­do? Isto não é apenas uma historinha para crianças. É o reconhecimento real do fato de que o Mal é um para­sita, não uma coisa original. Os poderes que fazem com que o Mal subsista foram dados pelo Bem. Todas as coisas que fazem com que um homem mau seja efetiva­mente mau são, em si mesmas, boas coisas: resolução, inteligência, boa aparência, a própria existência. É por isso que o dualismo, em sentido estrito, não funciona.

Mas admito voluntariamente que o verdadeiro cristianismo (não o cristianismo infantil, bem entendido) está bem mais próximo do dualismo do que as pessoas pensam. Uma das coisas que me surpreenderam quando li pela primeira vez o Novo Testamento com seriedade foram as menções freqüentes a uma Força Negra no universo — um poderoso espírito maléfico que está por trás da morte, da doença e do pecado. A diferença é que o cristianismo entende que essa Força Negra foi criada por Deus e era boa quando foi criada, tendo caído no erro depois. O cris­tianismo concorda com o dualismo em que este universo está em guerra, mas não acha que seja uma guerra en­tre forças independentes. Ele ensina que esta é uma guerra civil, uma rebelião, e que nós vivemos numa parte do universo ocupada pelo rebelde.

Um território ocupado pelo inimigo é o que este mundo é. O cristianismo é a história de como o verdadeiro rei desembarcou, e poderíamos dizer que desembarcou disfarçado, e nos cha­ma a participar duma grande campanha de sabota­gem. Quando você vai à igreja, na verdade vai escutar na rede sem fio secreta de nossos amigos, e é por isso que o inimigo fica tão ansioso em nos impedir de freqüentá-la. O inimigo apela à nossa vaidade, preguiça e esnobismo intelectual. Eu sei que alguém vai me perguntar: “Você quer mesmo, nessa época em que vivemos, reapresentar-nos nosso velho amigo, o Diabo, com chifres, rabo e tudo o mais?” Bem, o que a época em que vivemos tem que ver com isso, eu não sei. E não sei nada sobre chifres e rabo. No mais, minha resposta é “sim”. Não tenho a pretensão de saber coisa alguma sobre a aparência pessoal dele. Se alguém quer mesmo conhecê-lo melhor, eu diria a essa pessoa: “Não se incomode. Se você quer isso mesmo, vai conseguir. Se vai gostar ou não da experiência, é outra história.”

A Alternativa Chocante

Os cristãos creem, portanto, que um poder maléfico se constituiu em Príncipe des­se mundo no presente momento. E é claro que isso levanta algumas questões. Essa situação das coisas está de acordo com a vontade de Deus ou não? Se estiver, Ele é um Deus bem estranho, dirá o leitor. Se não está, como pode acontecer algo contrário à vontade de um Ser que tem poderes absolutos?

Mas qualquer pessoa que tenha um posto de auto­ridade sabe que alguma coisa pode estar de acordo com sua vontade de certo modo e em desacordo de outra maneira. É bem sensato que uma mãe diga aos filhos: “Não vou continuar arrumando vocês para a escola toda noite. Vocês têm de aprender a fazer isso sozinhos.” Daí, certa noite, ela encontra o ursinho de pelúcia, as canetinhas coloridas e o livro de gramá­tica espalhados. Isso está contra a vontade dela. Ela preferiria que os filhos se mantivessem organizados. Por outro lado, foi a vontade dela mesma que deu liberdade aos filhos para serem desorgani­zados. A mesma coisa ocorre em qualquer regimento, sindicato ou escola. Se você torna alguma coisa opcional, metade das pessoas não fará o que você quer. Não era isso o que você queria, mas foi a sua vontade que tornou essa situação possível.

Provavelmente, o mesmo ocorre no universo. Deus criou coisas que têm vontade própria. Ou seja, criaturas que po­dem fazer tanto o bem quanto o mal. Algumas pessoas conseguem imaginar uma criatura dotada de livre-arbítrio que não teria possibilidade alguma de fazer o mal. Eu não consigo. Se uma coisa é livre para ser boa, é livre também para ser má. E foi o livre-arbítrio que tornou possível a existência do mal. Por que, então, Deus concedeu vontade própria a essas criaturas? Porque o livre-arbítrio, embora possibilite o mal, é também aquilo que torna possível qualquer tipo de amor, bondade e alegria. Um mundo composto de autômatos – de criaturas que agissem como máquinas – dificilmente valeria a pena ter sido criado. A felicidade que Deus quis para suas criaturas superiores é a fe­licidade de estarem, livre e voluntariamente, unidas a Ele e entre si, num êxtase de amor e deleite, em comparação com os quais os maiores arroubos de paixão entre um ho­mem e uma mulher nessa terra são uma mera sombra. É por isso que essas criaturas têm de ser livres.

É claro que Deus sabia o que poderia acontecer se eles usassem sua liberdade da maneira errada. Evidentemente Ele achou que valeria a pena se arriscar. Talvez estejamos inclinados a discordar dele. Existe, porém, uma dificuldade em se discordar de Deus. Ele é a fonte da qual provém toda a nossa faculdade de raciocínio: não há como você estar certo e Ele errado, assim como não haveria maneira de um rio estar numa posição mais alta do que sua nascente. Quando você discute com Deus, está na verdade discutindo contra o próprio poder que lhe deu a capacidade de discutir: é como se você cortasse o galho da árvore onde está sentado. 2N.T.: Certos trechos do livro bíblico de Jó podem ser citados como exemplos do que ocorre quando um homem tenta fazer isso.

Se Deus acha que esse estado de guerra no universo é um preço válido a pagar pelo livre-arbítrio – ou seja, por Ele ter criado um mundo vivo no qual as criaturas podem fazer um verdadeiro bem ou um verdadeiro mal, e no qual pode acontecer algo de real importância, em vez de um mundo composto de mario­netes que só se movem quando Ele puxa as cordinhas – então temos de assumir que o preço a pagar é realmente justo.

A partir do momento em que compreendemos o livre-arbítrio, veremos quão tolo é perguntar o que uma pessoa certa vez me perguntou: “Por que Deus fez uma criatura de qualidade tão podre, que não deu certo desse jeito?” Quanto melhor for a matéria da qual uma criatura é feita – quanto maior for sua inteligência, força e liberdade – tanto me­lhor ela será se agir certo, e tanto pior se agir da maneira errada. Não há como uma vaca ser muito boa, nem muito má; um cão pode ser melhor ou pior; uma criança pode ser um pouco melhor ou pior; um homem comum, ainda melhor ou pior; um homem de gênio, melhor ou pior ainda; e um espírito sobre-humano pode ser muito melhor – ou muito pior – do que todos estes.

Como foi que o Poder das Trevas caiu no erro? Sem dúvida esta é uma pergunta para a qual os humanos não podem dar uma resposta com algum grau de cer­teza. Porém, com base em nossas próprias experiências de cair no erro, podemos dar um palpite razoável (e tradicional). A partir do momento em que você tem um ego, há a possibilidade de se colocar num pedestal – querendo ser o centro – querendo ser Deus na verdade. Esse foi o pecado de Satanás, e foi esse o pecado que ele ensinou à raça humana. Algumas pessoas acham que a queda do homem teve algo que ver com o sexo, mas isso é um erro. (A história contada no Livro do Gênesis sugere, em vez disso, que alguma corrupção em nossa na­tureza sexual veio depois da queda, e foi uma conseqüência desta, e não a causa.) O que Satanás colocou na cabeça de nossos ancestrais remotos foi a idéia de que eles poderiam “ser como deuses” — poderiam ser auto-suficientes, como se tivessem criado a si mesmos; poderiam ser senhores de si, inventando algum tipo de felicidade à parte de Deus. E dessa ten­tativa vã, veio quase tudo o que chamamos de história humana – dinheiro, miséria, ambição, guerra, prostituição, classes, impé­rios, escravidão – a longa e terrível história da tenta­tiva do homem de encontrar a felicidade em outra coisa que não Deus.

A razão pela qual isso nunca poderia ter êxito é a seguinte: Deus nos criou, como um ho­mem inventa uma máquina. Um carro é feito para ser movido a gasolina, e ele nunca andaria com outro combustível. Ora, Deus determinou que a máquina humana fosse conduzida por Ele. Ele próprio é o com­bustível que nossos espíritos devem queimar, ou o alimento designado a sustentar nossos espíritos. Não existe outro. Essa é a razão pela qual não há cabimento em querermos que Deus nos faça felizes e ao mesmo tempo não darmos a menor importância à religião. Deus não pode nos dar uma felicidade e uma paz à parte dele, porque essas coisas não podem ser encontradas à parte dele. Isso não existe.

Essa é a chave da história. Gasta-se uma energia tremenda, erguem-se civilizações, excelentes instituições são criadas, mas toda vez alguma coisa dá errada. Alguma falha fatal sempre coloca no poder as pessoas mais egoístas e cruéis, e tudo se desmorona em miséria e ruína. A máquina enguiça. Ela parece funcionar bem e rodar por uma boa distância, e daí quebra. As pessoas tentam fazê-la funcionar com o combustível errado. Foi isso o que Satanás fez para nós, humanos.

E o que Deus fez? Em primeiro lugar, Ele nos deu consciência, o sentido do certo e do errado. Ao longo de toda a história existiram pessoas tentando obedecê-la (algumas muito arduamente). Nenhuma delas conseguiu fazer isso totalmente. Em segundo lugar, Ele enviou à raça hu­mana o que eu chamo de “bons sonhos”: aquelas histórias excêntricas divulgadas por todas as religiões pagãs sobre um deus que morre e ressuscita e que, por meio de sua morte, dá nova vida ao homem. Em terceiro lugar, Ele escolheu um determinado povo e passou vários séculos martelando na cabeça desse povo que tipo de Deus Ele era, que não havia ou­tro além dele e que Ele exigia a conduta correta. Esse foi o povo judeu, e o Antigo Testamento nos dá um relato de como foi esse processo de martelamento.

Daí vem o verdadeiro choque. Entre estes judeus aparece de repente um homem que se põe a falar como se ele próprio fosse Deus. Alega per­doar pecados. Diz que sempre existiu. 3N.T.: Certas declarações de Lewis refletem claramente a influência do pensamento trinitarista (ensinado por muitos teólogos da igreja dele). Nossa tradução e apresentação desse texto aqui não devem ser entendidas como um endosso ao ensino da Trindade, do qual discordamos. Mas, mesmo desconsiderando-se esta doutrina, a argumentação dele é válida. No caso aqui, rigorosamente falando, Jesus nunca afirmou que “sempre existiu”. O máximo que ele declarou foi que existira antes de vir à terra, mas não especificou a quantidade de tempo dessa sua existência pré-humana. (Veja João 8:58.). E diz que virá para julgar o mundo no fim dos tempos. Agora vamos deixar claro o seguinte: entre panteístas, como os hinduístas, qualquer pessoa pode dizer que é uma parte de Deus, ou é uno com Deus, e não há nada muito es­tranho nisso. Este homem, porém, sendo judeu, não estava se referindo a esse tipo de divindade. Deus, na língua deles, significava um Ser que vive fora do mundo, que criou o mundo e é infinitamente diferente de qualquer outra coisa. Quando compreendemos isso, vemos que as coisas ditas por esse homem foram simplesmente as mais chocantes já pronunciadas por lábios humanos.

Uma parte das alegações dele tende a passar despercebida, porque temos ouvido isso com tanta freqüência que já não percebemos as implicações: Refiro-me à alegação dele de perdoar pecados, quaisquer que sejam eles. Ora, a me­nos que a pessoa que afirma isso seja Deus, isso é realmente tão absurdo que chega a ser cômico. 4N.T.: Não necessariamente. Os cristãos não-trinitaristas entendem que Deus pode delegar essa autoridade a outra pessoa, conforme a vontade dele. No mais, apesar de não crermos que Jesus seja o Todo-Poderoso, não questionamos que ele tenha natureza divina e que Deus, o Pai tenha lhe confiado responsabilidades de importância capital. Todos nós podemos entender que um ho­mem perdoe ofensas cometidas contra ele próprio. Você pisa no meu pé, ou rouba meu dinheiro, e eu o per­dôo. O que dizer, porém, de um homem que não levou pisões nem foi roubado, declarar que lhe perdoa por ter pisado ou roubado o dinheiro de outros homens? Pre­sunção tola é a descrição mais gentil que podemos dar a essa pretensão. Todavia, foi isso o que Jesus fez. Ele disse ao povo que os pecados deles estavam perdoados, e nunca se deu ao trabalho de consultar as pessoas que tinham sido claramente prejudicadas por esses pecadores. Sem hesitar, ele agiu como se fosse ele o principal interessado, ou seja, a pessoa que tinha sido lesada pelos pecados. Isso só faz sentido se ele fosse realmente o Deus cujas leis são trans­gredidas e cujo amor é magoado a cada pecado cometido. Vindas da boca de qualquer pessoa além de Deus, essas pa­lavras significariam algo que só posso considerar uma im­becilidade e uma presunção não igualadas por nenhum outro indivíduo na história. 5N.T.: Vale a mesma observação da nota anterior. Levando-se em conta a delegação da autoridade divina a Cristo, ele pode afirmar perdoar pecados, ou violações das leis de Deus. Porém, esta afirmação não nos obriga a considerá-lo como o Autor dessas leis. Da mesma maneira que seria errado afirmar que um juiz humano (encarregado de decidir o que é e o que não é violação das leis, e até condenar ou absolver pessoas com base em suas decisões) é a mesma pessoa que o legislador (elaborador das leis) ou o governador ou rei (que sancionou essas leis).

No entanto (e isso é uma coisa estranha e notável), nem mesmo os inimigos de Cristo costumam ter essa impressão de imbeci­lidade ou presunção quando lêem os evangelhos. Muito menos os leitores sem pre­conceitos. Cristo afirma ser “humilde e manso”, e cremos nele, deixando de perceber que, se ele fosse só um homem, a humildade e a mansidão seriam as últimas qualidades que poderíamos atribuir a alguns de seus pronunciamentos.

Estou aqui tentando impedir que alguém diga a tolice completa que muitos dizem a respeito dele: “Estou dispos­to a aceitar Jesus como um grande mestre de moral, mas não aceito a alegação dele de ser Deus.” Essa é a úni­ca coisa que não devemos dizer. Um homem que fosse só um homem e dissesse o tipo de coisas que Jesus dis­se não seria um grande instrutor de moral. Ou ele seria um lu­nático – do mesmo nível dum homem que diz ser um ovo cozido – ou então o Diabo. Você escolhe. Ou este homem era, e é, o Filho de Deus, ou então um louco ou coisa pior. Você pode silenciá-lo por ser louco, pode cuspir nele e matá-lo co­mo um demônio; ou pode cair aos pés dele e chamá-lo de Senhor e Deus. Mas que ninguém venha dizer, com tolice paternalista, que ele era um grande instrutor humano. Ele não deixou essa opção, e nem pretendeu isso.

O Penitente Perfeito

Somos confrontados, então, com uma alternativa chocante. Ou esse homem de quem estamos falando era (e é) o que dizia ser, ou ele era um lunático ou coisa pior. Ora, parece-me óbvio que ele não era nem lunático nem demônio; sendo assim, por mais estra­nho, atemorizante ou insólito que possa parecer, tenho de aceitar a ideia de que ele era, e é, Deus. 6N.T.: A palavra “Deus” pode ser facilmente substituída nesta ocorrência (e em outras a partir deste ponto) pela expressão “Filho de Deus” (aplicando-se a Cristo), e toda a argumentação que o autor expõe aqui continua sendo válida. Deus veio ao seu território, que estava ocupado pelo inimigo, em for­ma humana.

E qual foi o propósito disso tudo? O que ele veio fazer aqui? Ora, ensinar, naturalmente. Porém, assim que você começa a examinar o Novo Testamento ou qualquer outro escrito cristão, descobre que eles estão falando constan­temente sobre uma coisa bem diferente – falam da morte e ressurreição dele. É óbvio que os cristãos julgam estar aqui o âmago da história. Eles acreditam que Jesus veio à Terra especificamente para sofrer e ser morto.

Ora, antes de me tornar cristão, eu tinha a impres­são de que a primeira coisa em que os cristãos tinham de acreditar era em alguma teoria particular sobre o motivo principal dessa morte. Segundo essa teoria, Deus queria punir os homens por terem abandonado a Ele e se juntado ao Grande Rebelde, mas Cristo se ofereceu voluntariamente para ser puni­do em nosso lugar, e Deus nos livrou da punição. Agora eu admito que nem mesmo essa teoria me parece mais tão imoral e infantil quanto me parecia antes, mas não é esse o ponto que vou discutir. O que vim a perceber depois é que o Cristianismo não é essa teoria, nem qualquer outra. A crença cristã central é que a morte de Cristo de algum modo acertou nossas contas com Deus, e nos deu a oportunidade de um novo começo. As teorias so­bre como isso foi feito são outro assunto. Muitas boas teorias diferentes para explicar isso foram defendidas; mas o que todos os cristãos têm em comum é a crença de que funcionou. Vou dizer o que penso sobre isso. Toda pessoa sensata sabe que quando você está cansado e faminto, uma refeição lhe fará bem. Mas a teoria moderna da nutrição, tudo sobre vitaminas e proteínas, é uma coisa bem di­ferente. As pessoas já comiam suas refeições para se sentirem bem muito antes de se ouvir falar em teorias sobre vitaminas. E se algum dia a teoria das vitaminas for abandonada, elas continuarão comendo do mesmo jeito. As teorias a respeito da morte de Cristo não são o cristianismo: são explica­ções de como ele funciona. Os cristãos não precisam estar de pleno acordo sobre a importância dessas teorias. Minha própria igreja, a Anglicana, não estabelece nenhuma delas como a certa. A Igreja Católica Romana vai um pouco além. Mas eu creio que essas igrejas concordam que a coisa em si é infinitamente mais importante do que qualquer explicação que os teólogos deram. Os líderes dessas igrejas provavelmen­te admitiriam que nenhuma explicação se ajusta perfeitamente à realidade. Como eu disse no prefácio deste livro, porém, sou apenas um leigo, e nesse ponto estamos adentrando em águas profundas. Para o propósito aqui, só posso dizer como eu, pessoalmente, encaro o assunto.

Do meu ponto de vista, o que se pede que aceite­mos não são as teorias. Muitos de vocês com certeza já leram obras de Jeans ou de Eddington. O que eles fazem quando querem dar explicações sobre o átomo, ou qualquer coisa desse gênero, é dar uma descrição a partir da qual você pode criar uma imagem mental. Mas daí eles avisam que não é nessas imagens que os cientistas realmente creem. O que os cientistas acreditam é numa fórmula matemática. As imagens só estão lá para lhe ajudar a entender a fórmula. Essas imagens não são verdadeiras como a fórmula é; elas não são a realidade, e sim apenas algo que é mais ou menos parecido com a realidade. Têm a função de ajudar; se não ajudam, podem ser deixadas de lado. A realidade em si não pode ser desenhada, ela só pode ser expressa matematicamente. Estamos no mesmo barco aqui. Acredi­tamos que a morte de Cristo é o ponto exato da história em que alguma coisa absolutamente inimaginá­vel se manifestou em nosso mundo, vindo do exterior. Se não somos capazes nem mesmo de fazer uma imagem dos átomos que compõem esse mundo, é claro que não conseguiremos fazer uma imagem dessa coisa vinda do exterior. Na verdade, se achássemos que somos capazes de compreendê-la totalmente, esse fato mostraria que ela não é o que afirma ser – o inconcebível, o incriado, alguma coisa que está além da natureza, e que a atinge como um raio. Você talvez pergunte qual é a vantagem dessa coisa, se não podemos compreendê-la. Mas isso é fácil de responder. Um homem pode jantar sem saber exatamente de que maneira os alimentos o nutrem. Um homem pode aceitar o que Cristo fez, sem en­tender como isso funciona; na verdade, ele nem saberia como funciona enquanto não aceitá-lo.

Dizem que Cristo morreu por nós, que a mor­te dele nos purificou de nossos pecados e que, ao morrer, ele derrotou a própria morte. Essa é a fórmula. Esse é o Cris­tianismo. É nisso que se deve acreditar. Quaisquer teorias que possamos elaborar para explicar como a morte de Cristo conseguiu fazer tudo isso são, no meu modo de ver, totalmente dispensá­veis: nada mais são que esquemas ou diagramas que podem ser dei­xados de lado se não nos ajudarem, e mesmo quando são úteis, não devem ser confundidos com a própria realidade. Todavia, algumas dessas teorias são dignas de consideração.

A ideia que a maioria das pessoas já ouviu falar é a que eu já mencionei – a ideia segundo a qual fomos livrados por­que Cristo se prontificou a ser punido em nosso lugar. Ora, superficialmente, parece uma teoria bastante tola. Se Deus estava disposto a nos perdoar, por que não nos perdoou logo? E qual seria o objetivo em punir uma pessoa inocente? Absolutamente nenhum que eu possa ver, se pensarmos em punição no sentido judicial do termo. Por outro lado, se pensarmos numa dívida, é natural que uma pessoa que possua recursos use-os em favor daquela que não os possui. Ou, se você tomar a expressão “pagar a penalidade” não no sentido de ser punido, e sim no sentido mais geral de “arcar com as conseqüências” ou “pagar a conta”, então, é do senso comum que quando uma pessoa cai num buraco, o problema de tirá-la de lá geral­mente recai sobre um bom amigo.

Ora, em que tipo de “buraco” o homem tinha se enfiado? Ele tinha tentado ser auto-suficiente, agindo como se fosse o dono do próprio nariz. Em outras palavras, o homem decaído não é simplesmente uma criatura imperfeita que precisa ser melhorada; é um rebelde que precisa depor suas armas. Depor suas armas, render-se, pedir perdão, admitir que tomou o caminho errado, e se dispor a começar uma vida nova do início — isso é a única coisa que pode nos tirar do “buraco”. Esse processo de rendição, movimen­to de marcha a ré a toda velocidade, é o que os cristãos chamam de arrependimento. Só que o arre­pendimento não é nada agradável. E bem mais difícil do que só engolir um sapo. Isso significa desapren­der toda a presunção e obstinação que nos caracterizaram por milhares de anos. Signifi­ca matar uma parte de si mesmo, sofrer uma espécie de morte. Na verdade, é necessário que um bom homem se arrependa. E aqui está o problema: Só uma pessoa má precisa de arrependimento, mas só uma pes­soa boa pode arrepender-se perfeitamente. Quan­to pior você é, mais precisa do arrependimento e me­nos é capaz de arrepender-se. A única pessoa capaz de arrepender-se perfeitamente seria uma pessoa perfeita – e ela não precisaria fazer isso.

Lembre-se que este arrependimento, essa submissão vo­luntária à humilhação e a uma espécie de morte não é algo que Deus exige de você antes de aceitá-lo de volta ou algo do qual ele pode nos livrar, se assim decidir. É simples­mente uma descrição de como é o processo de retorno a Deus. Se você pedir a Deus que Ele o aceite de volta sem esse arrepen­dimento, está na verdade pedindo a Ele para deixá-lo voltar sem voltar. Isso não pode ser desconsiderado. Pois muito bem, temos de passar por isso. Mas, a mesma maldade que nos faz precisar disso nos torna incapazes de fazê-lo. Conseguiríamos fazer isso se Deus nos ajudar? Sim, mas o que queremos dizer quando falamos em ajuda de Deus? Significa que Deus, por assim dizer, co­loca um pouco de si mesmo em nós. Ele nos empresta um pouco de sua capacidade mental e nós passamos a pensar dessa maneira; Ele coloca um pouco do seu amor dentro de nós, e passamos a nos amar uns aos outros desse jeito. Quando você ensina uma crian­ça a escrever, segura a mão dela, ajudando-a a dese­nhar as letras. Ou seja, ela desenha as letras por­que você as está desenhando. Nós amamos e raciocinamos porque Deus ama e raciocina e segura a nossa mão enquanto fazemos essas coisas. Se não tivéssemos caído, tudo correria maravilhosamente bem. Mas, infelizmente, precisa­mos no momento da ajuda de Deus para fazermos coisas que Ele, pela sua pró­pria natureza, jamais faz: render-se, sofrer, subme­ter-se e morrer. Coisa alguma na natureza divina corresponde a esse processo. Assim, a única estrada na qual precisamos ser guiados por Deus e uma estrada em que Deus, por sua própria natureza, nunca andou. Deus só pode partilhar conosco o que Ele tem; mas essa coisa Ele não tem, devido à sua própria natureza.

Mas suponhamos que Deus se torne homem. Suponhamos que nossa natureza humana seja amalgamada com a divina sob a forma de uma pessoa. Então essa pessoa pode­ria nos ajudar. Ela poderia submeter-se à vontade de Deus, sofrer e morrer, porque seria um homem, e poderia fazer tudo isso perfeitamente, porque seria Deus. Você e eu só podemos passar por este processo se Deus o fizer ocorrer em nós; mas Deus só pode fazê-lo se Ele se tornar um homem. Nossas ten­tativas de sofrer esse tipo de morte só teriam sucesso se participássemos da morte de Deus, assim como nosso pensamento só pode ser eficaz por que é uma gota tirada do oceano da inteligência divina. Mas só podemos tomar parte nessa morte se ele morrer; e isso só pode ocorrer se ele for um homem. É nesse sentido que ele paga nossas dívidas e sofre por nós aquilo que, por sua própria natureza, Ele não precisa­ria sofrer de modo algum.

Eu tenho ouvido certas pessoas reclamarem que, se Jesus foi ao mesmo tempo Deus e homem, seus sofrimentos e sua morte não têm tanto valor “porque isso deve ter sido fácil para ele”. Outras pessoas podem (e com toda a razão) repreender a ingratidão e a descortesia dessa objeção. O que me deixa estarrecido é a falta de entendimento que ela mostra. É claro que, em certo sentido, os que fazem isso estão certos. Eles até reconheceram sua própria condição. A submissão perfeita, o so­frimento perfeito e a morte perfeita não foram só mais fáceis para Jesus porque ele era Deus. Estas coisas só foram possíveis porque ele era Deus. Mas não é essa uma ra­zão muito estranha para não aceitá-los? O professor consegue formar as letras para a criança porque ele é adulto e sabe es­crever. Isso naturalmente torna as coisas mais fáceis para ele, e é essa facilidade que o habilita a ajudar a crian­ça. Se a criança rejeitasse a ajuda porque essa ta­refa “é fácil para adultos”, e ela quisesse aprender a escrever com outra criança que não sabe escrever (e que, portanto, não tivesse qualquer vantagem “injusta”), o progresso dela não seria muito rápido. Se eu estivesse me afo­gando numa correnteza, um homem que tivesse um dos pés plantado na margem do rio poderia estender a mão e salvar minha vida. Será que eu deveria (entre os engasgos) gritar: “Não! Isso não é jus­to! Você tem uma vantagem! Está com um dos pés na margem!”? Essa vantagem — chame-a de “injus­ta”, se quiser — é a única razão pela qual ele pode me ajudar. A quem você vai apelar por ajuda, se não quer confiar em alguém que é mais forte do que você?

Essa é minha própria maneira de ver o que os cris­tãos chamam de Expiação. Mas lembre-se que esta é só mais uma imagem. Não confunda isso com a realidade. Se esta representação não lhe ajudar em nada, pode desconsiderá-la.

A Conclusão Prática

A submissão e humilhação per­feitas foram efetivadas por Cristo: perfeitas porque ele era Deus; submissão e humilha­ção porque era um homem. Ora, a crença cristã é que, se compartilharmos de algum modo da humil­dade e do sofrimento de Cristo, compartilharemos também do triunfo dele sobre a morte e encontraremos uma nova vida depois de nossa morte, e nela seremos criaturas perfeitas e completamente felizes. Isso vai bem além de tentar se­guir seus ensinamentos. Freqüentemente as pessoas querem saber quando virá o próximo passo da evolução — um passo para algo além do homem. Porém, segundo o conceito cristão, isso já ocorreu. Em Cristo, um novo homem surgiu; e o novo tipo de vida que começou nele é implantado em nós.

Como isso pode ser feito? Ora, vamos lembrar como adquirimos a nossa velha forma comum de vida. Nós a recebemos de outros, nosso pai e mãe e todos os nossos ancestrais, sem o nosso consentimento e por um processo muito curioso, que envolveu o prazer, a dor e o perigo. Um processo que nunca teríamos imaginado. A maioria de nós passa vários anos da infância tentando adivinhar como a vida se originou, e quando a resposta é dada pela primeira vez a algumas crianças, não acreditam nela. E não sei se devo culpá-las por isso, pois é realmente muito estranho. Ora, o Deus que elaborou esse processo é o mesmo que pla­neja como o novo tipo de vida — a vida de Cristo — será multiplicada. Nós devemos estar preparados para achar esse processo estranho também. Deus não nos consultou quando Ele inventou o sexo. Ele também não nos consultou quando criou essa vida nova.

Há três coisas que implantam a vida de Cristo em nós: o batismo, a fé e essa ação misteriosa que os cristãos conhecem por vários nomes — Santa Ceia, Eucaristia ou Ceia do Senhor. Pelo menos esses são os três métodos comuns. Não digo que não haja casos especiais em que a vida de Cristo possa ser dada a nós na ausência de um ou mais destes métodos. Não tenho tempo para tratar dos casos especiais, nem tenho conhecimento suficiente para isso. Se você tentar explicar a algum homem, em poucos minutos, como chegar até uma cidade, dirá a ele quais os trens ou ônibus que deve pegar. É claro que ele pode chegar lá de navio ou de avião, mas dificilmente você mencionará estes métodos. E também não estou dizendo coisa alguma sobre qual dos três métodos citados é o mais essencial. Meu amigo metodista queria que eu falasse mais sobre fé e menos (proporcionalmente) sobre os outros dois. Mas não farei isso. Qualquer um que pretenda en­sinar a vocês a doutrina cristã dirá, na verdade, que os três meios devem ser usados, e isso é suficiente para o nosso propósito aqui.

Eu mesmo não entendo como essas coisas podem nos conduzir para o novo tipo de vida. Porém, se ninguém tivesse explicado, eu jamais teria visto qualquer conexão entre o prazer sexual e o aparecimento de um novo ser humano no mundo. Temos de aceitar a realidade como ela é: não há sentido em falatórios vãos sobre como as coisas deveriam ser ou como esperaríamos que elas fossem. Mas, mesmo sem entender por que as coisas são assim, eu posso dizer a vocês por que eu acredito nisso. Já expliquei por que tenho de acreditar que Jesus era (e é) Deus. E parece tão claro quanto qualquer fato histórico o fato de ele ter en­sinado a seus seguidores que a nova vida é transmitida dessa maneira. Em outras palavras, eu acredito nisso com base na autoridade dele. Não tenham medo da palavra “autorida­de”. Acreditar em algumas coisas por causa da autoridade de alguém significa apenas que você acredita nessas coisas porque elas lhe foram ditas por alguém que você julga ser confiável. Noventa e nove por cento das coisas em que acreditamos são baseadas na autoridade de alguém. Acredito, por exemplo, que exista um lugar chamado Nova Iorque. Eu nunca vi esse lugar por mim mesmo. Eu não poderia provar por abstração que deve existir um lugar com esse nome. Acredito porque pessoas confiáveis me disseram. O ho­mem comum acredita no sistema solar, nos átomos, na evolução e na circulação do sangue com base na auto­ridade – porque os cientistas dizem essas coisas. Toda declaração históri­ca do mundo é aceita com base na autoridade. Nenhum de nós viu a conquista da América ou a derrota da Invencí­vel Armada. Nenhum de nós poderia provar estes acontecimentos pela lógica pura, da mesma maneira que se pode pro­var alguma coisa no campo da matemática. Acreditamos que eles ocorreram simplesmente porque algumas testemunhas oculares deixaram relatos escritos sobre eles: ou seja, acreditamos com base numa autoridade. Um homem que rejeite a autoridade em outros as­suntos, como certas pessoas fazem em relação à reli­gião, teria de se contentar em não saber absolutamen­te nada durante toda a sua vida.

Não pensem que estou estabelecendo o batismo, a fé e a Santa Ceia como coisas que vocês podem fazer em lugar do próprio esforço de imitar a Cristo. A vida natural é recebida de nossos pais; isso não quer dizer que permaneceremos vivos sem fazer nada. Vocês podem perdê-la por negligência ou tirando-a, por cometer suicídio. Nós temos de alimentá-la e cuidar dela, mas sempre lembrando que não a criamos, estamos simplesmente conservando uma vida que recebemos de outra pessoa. Do mesmo modo, o cristão pode perder a vida de Cristo que foi colocada nele, e tem de fazer esforços para mantê-la. Mas, nem mesmo o melhor cristão que já existiu age por sua própria força – ele só nutriu ou pro­tegeu uma vida que jamais poderia ter adquirido pelos seus próprios esforços. E isso tem conseqüên­cias práticas. Enquanto a vida natural está em nosso corpo, ela faz muito para conservar esse corpo. Se lhe fizermos um corte, ele vai cicatrizar com o tempo, mas isso não ocorrerá com um corpo morto. Não é que um corpo vivo nunca sofra ferimentos, mas ele pode, até certo ponto, curar-se sozinho. Do mesmo modo, um cristão não é um homem que nunca erra, mas é um homem capaz de se arrepender, de se levantar e recomeçar depois das quedas, por­que a vida de Cristo está dentro dele, recuperando-o todas as vezes, habilitando-o a imitar (até certo ponto) o tipo de morte voluntária que o próprio Cristo sofreu.

É por isso que o cristão está numa situação diferente da de outras pessoas que tentam ser boas. Es­tas pessoas esperam, por serem boas, agradar a Deus, caso creiam na existência dele; ou, se não creem, esperam pelo me­nos merecer a aprovação dos homens bons. Mas o cristão crê que todo bem que ele faz é proveniente da vida de Cristo que está dentro dele. O cristão não acha que Deus nos amará mais por sermos bons, mas que Deus nos fará bons porque nos ama, do mesmo modo que o teto de uma estufa não atrai o sol por ser brilhante, mas fica brilhante porque o sol irradia sobre ele.

Permitam-me deixar bem claro que quando os cris­tãos dizem que a vida de Cristo está neles, não estão se referindo simplesmente a algo mental ou moral. Quan­do eles dizem que estão “em Cristo” ou que o Cristo está “neles”, isso não é só um modo de dizer que estão pen­sando em Cristo ou imitando-o. Eles querem dizer que Cristo está realmente agindo por meio deles; que todo o conjunto dos cristãos é o organismo físico por meio do qual Cristo trabalha — que nós somos seus dedos e músculos, as células de seu cor­po. E talvez isso explique uma ou duas coisas. Isso explica por que essa nova vida é difundida não só por meio de atos puramente mentais, como a crença, mas também por meio de atos físicos, como o batismo e a Ceia do Senhor. Não é simplesmente a difusão duma ideia; é mais parecida com a evolução — um fato biológico ou superbiológico. 7N.T.: Não endossamos a teoria da evolução orgânica, juntamente com todas as suas implicações. Este exemplo é totalmente dispensável, sem comprometer o entendimento do que o autor está dizendo aqui. Não é bom tentar ser mais espiritual do que Deus. Ele nunca teve a intenção de que o homem fosse uma criatura puramente espiritual. Esse é o mo­tivo pelo qual ele usa coisas materiais como o pão e o vinho para implantar a nova vida em nós. Podemos achar isso um tanto cru e nada espiritual. Deus não acha: Ele inventou o ato de comer. Ele gosta da matéria. Foi Ele quem a inventou.

Há outra coisa que costumava me deixar intrigado: Não é terrivelmente injusto que essa vida nova só seja destinada às pessoas que ouvi­ram falar de Cristo e puderam acreditar nele? A verdade, porém, é que Deus não nos contou quais são os seus arranjos referentes a outras pessoas. O que sabemos é que nenhum homem pode ser salvo a não ser por meio de Cristo; não sabemos se só os que o conhecem é que podem ser salvos. Nesse ínterim, se você está preocupa­do com as pessoas que estão fora do arranjo, a coisa menos sensata a fazer seria permanecer fora também. Os cristãos são o corpo de Cristo, o organismo por meio do qual ele trabalha. Cada acréscimo a esse corpo permite que ele faça mais. Se você quer ajudar aqueles que estão fora, precisa acres­centar sua pequena célula ao corpo de Cristo, o único que pode ajudá-los. Cortar os dedos dum homem se­ria uma estranha maneira de ajudá-lo a realizar mais trabalho.

Outra possível objeção é a seguinte: Por que Deus entrou disfarçado neste mundo ocupado pelo inimigo e deu início a uma espécie de sociedade secreta para sabotar o demônio? Por que Ele não desembarcou com força total, invadindo-o? Será que isso indica que Ele não é poderoso o suficiente? Bem, os cristãos acreditam que Ele virá com força total; não sabemos quando. Mas podemos deduzir a razão dessa espera. Ele quer nos dar a chan­ce de passarmos para o lado dele livremente. Não creio que vocês e eu teríamos em alta consideração um francês que es­perasse até os aliados marcharem para dentro da Alemanha para só então dizer que estava do nosso lado. 8N.T.: O autor se refere à situação político-militar na época em que escreveu isso (Segunda Guerra Mundial). Naquele momento a França encontrava-se ocupada pelo exército alemão, mas os componentes da Resistência Francesa apoiavam a Grã-Bretanha (pátria do autor) na luta contra a Alemanha Nazista. Deus vai invadir. Mas eu me pergunto se as pessoas que pedem que Deus intervenha aberta e diretamente em nosso mun­do percebem claramente o que acontecerá quando Ele fizer isso. Quando isso acontecer, será o fim do mundo. Quando o autor sobe ao palco, é porque a peça teatral já acabou. Tudo bem, Deus vai invadir. Mas qual é vantagem se só então dissermos que estávamos do lado dele? Quando virmos todo o univer­so material se dissolvendo como um sonho ou algo mais até então incon­cebível para nossa mente – tão bonito para alguns de nós e tão terrível para outros – de que isso nos servirá se não tivermos mais a chance de escolher? Dessa vez será Deus se apresentando sem disfarce; algo tão sobrepujante que acometerá cada criatura com um irresistível amor ou um irresistível horror. Então será tarde demais para escolher um dos lados. De nada adianta dizer que você de­cidiu ficar deitado quando não é mais possível ficar de pé. Esse não será o tempo da esco­lha, e sim o tempo para descobrirmos qual dos lados nós tínhamos escolhido, independentemente de termos percebido isso antes ou não. Hoje, agora, nes­te momento, é a nossa oportunidade de escolher o lado certo. Deus está dando um tempo para nos dar essa chance, mas isso não durará para sempre. É pegar ou largar.

Imagem: Sermão da Montanha , Károly Ferenczy (1896).

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