‘Viver é Cristo e Morrer é Lucro’

A minha expectativa e a esperança é de que em nada serei confundido, mas  com toda a ousadia, agora como sempre, Cristo será engrandecido no  meu corpo, pela vida ou pela morte. Pois para mim o viver é Cristo e o morrer é lucro. Mas, se o viver na carne  me dá ocasião de trabalho frutífero, não sei bem o que escolher. Sinto-me num  dilema: o meu desejo é partir e ir  estar com Cristo, pois isso me é muito melhor, mas o permanecer na carne é mais necessário por vossa causa. Convencido disso, sei que ficarei e continuarei com todos vós, para proveito vosso e para alegria de vossa fé, a fim de que, por mim — pela minha volta entre vós — aumente a vossa glória  em Cristo Jesus. (Filipenses 1:20-26, Bíblia de Jerusalém)

Este texto é muitas vezes usado para apoiar a ideia de que o apóstolo Paulo desejava morrer para que pudesse ir imediatamente para o céu e estar com Cristo. Acredita-se que ele é um “texto difícil” para os que crêem que a Bíblia ensina que os mortos estão dormindo e só estarão com Cristo a partir do momento da ressurreição, na vinda dele.

A alegação de alguns de que Paulo desejava ir para o céu no momento da morte representa o apóstolo confrontado com uma de duas opções: vida ou morte. A segunda das opções, como se vê, permitiria a ele “partir e estar com Cristo” (v. 23). Entretanto, quando todos os ensinamentos de Paulo sobre a vida futura são estudados e comparados, surge uma séria questão quanto a esta interpretação popular do que Paulo diz aqui.

Por exemplo, por que ele ensinou em 1 Tessalonicenses 4, que a maneira como os cristãos podem “estar com o Senhor” (versículo 17) é por serem ressuscitados em sua “vinda” (v. 15) e por serem arrebatados para encontrá-Lo depois que ele desce do céu (vers. 16 e 17)? Não há nada aqui sobre ir para estar com o Senhor, quando se morre, ou sobre pessoas indo uma por uma para os céus quando morrem. Não, Paulo descreve a reunião de um grupo inteiro de uma só vez à presença do Salvador, reunião essa que ocorre no retorno dele! Será uma grande e gloriosa reunião de todos os fiéis, tanto das eras do Antigo como do Novo Testamento – a “coisa melhor” que o escritor de Hebreus visualizava à frente (11:39,40).

O mesmo cenário é descrito em 1 Coríntios 15, onde Paulo diz que a ressurreição dos mortos em Cristo ocorre “na sua vinda” (v. 23). Afirma-se que antes disso os mortos “dormem” (versos 18, 20, 51). Afirma-se que o próprio Cristo dormiu na morte, sendo as “primícias dos que dormem” (versículo 20). O trecho em 1 Tessalonicenses 4 também descreve os mortos em Cristo como “os que dormem” (versículos 13-15). Nada em qualquer trecho quer dizer que os mortos estão conscientes ou que eles estão vivos “com Cristo”, durante um suposto “estado intermediário” entre a morte e a ressurreição.

Devemos crer, então, que Paulo se contradiz em Filipenses 1:20-26, ou que ele havia recebido uma “nova luz” sobre a condição dos mortos no tempo em que ele escreveu essa carta? Alguns escritores têm até afirmado ou sugerido isso. Todavia, parece estranho tentar harmonizar os escritos de Paulo com essas interpretações. Pelo contrário, parece mais sensato indagar se as idéias aparentemente conflitantes podem de fato ser harmonizadas de maneira consistente!

Quando examinamos o texto em Filipenses descobrimos, por exemplo, que Paulo não está realmente dizendo que não “sabe” se iria escolher a vida ou a morte. A maior parte das versões modernas traduz a palavra grega usada aqui (gnorizo) como “saber” ou algum sinônimo com o mesmo sentido. Mas se gnorizo ​​significa “saber” aqui, é o único caso em todo o Novo Testamento, onde é traduzido dessa maneira! Este verbo ocorre 25 vezes no Novo Testamento, e em qualquer outro texto é traduzido por “tornar conhecido” ou “declarar”. A obra padrão de Moulton e Milligan, Vocabulário do Novo Testamento Grego, analisa o sentido e o uso desta palavra nos papiros em grego koiné e afirma que “ela tem, definitivamente, o significado “tornar conhecido”, como em todas as suas ocorrências no NT (incluindo Fil. 1:22)” (página 129 em inglês).

Isso deveria nos alertar para o fato de que algo questionável pode estar ocorrendo na mente dos tradutores que vertem gnorizo ​​como “saber” em vez de “tornar conhecido” ou “declarar”. Será que é porque este verbo não pode ter o seu significado normal aqui, ou é porque os tradutores estão impondo um conceito de sua própria autoria sobre o que Paulo está dizendo? Devemos assumir que Paulo não sabia qual das duas escolhas ele faria, ou que ele não disse aos seus leitores que opção ele preferia?

Na realidade, ele disse a eles de modo bem claro o que ele desejava: “partir e estar com Cristo.” Mas ele já tinha afirmado que não disse qual das duas alternativas específicas ele escolheria – continuar vivo ou morrer. Qualquer uma das duas envolveria certas vantagens e desvantagens para ele e para seus leitores.

Se ele continuasse a viver, isso significaria “trabalho fecundo” (v.22 NVI) para ele e resultaria em “progresso e alegria na fé” (v.25) para seus leitores. Permitiria também que Paulo exaltasse Cristo em quaisquer circunstâncias que sua vida traria (v.20). Se, por outro lado, ele morresse, seu martírio enalteceria Cristo. Sua fidelidade até a morte granjearia para ele uma coroa de mártir (Rev. 2:10) no dia em que as coroas serão concedidas (2 Tim. 4:8). O exemplo dele, como mártir fortaleceria outros cristãos a ser fiéis, apesar da perseguição e do martírio. Para os leitores de Paulo, a desvantagem da morte dele seria perdê-lo, bem como a interrupção do seu ministério em benefício deles.

Isso nos conduz ao fato de que Paulo não descreve qual é o seu verdadeiro desejo, o que descobrimos ser uma terceira alternativa: “Partir e estar com Cristo”. Paulo diz que isto “é muito melhor” (v.23, NVI) . Nesse ponto, ele se esmera nos superlativos para expressar quão fortemente ele deseja esta terceira alternativa. Ela é melhor do que qualquer uma das outras duas opções, pois é melhor do que qualquer coisa! Ele já nos informou que não vai dizer se escolheria a morte ou a vida mortal. Se “morrer” significasse que ele, por meio de morte, conseguiria partir para estar com Cristo, ele obviamente teria nos dito o que ele disse que não iria nos dizer! Podemos crer que Paulo se contradisse dentro de dois versículos seguidos (22 e 23)?

No versículo 23, Paulo diz que está “pressionado” [ou num “dilema”] pelas duas coisas que ele já mencionou – viver ou morrer. Arndt e Gingrich traduzem: “Sinto-me fortemente pressionado (a escolher) entre os dois” (página 797). É na frase imediatamente anterior a esta declaração que ele diz: “E o que hei de escolher não darei a conhecer.” Devemos concluir, então, que quando ele diz que quer partir e estar com Cristo, ele não está dizendo que quer morrer, para que  possa partir dessa forma!

O que é, então, que ele está realmente dizendo? Paulo já havia escrito que na vinda de Cristo, quando ele descer do céu, os santos ressuscitados e glorificados, de fato, partirão (da superfície da Terra) para “encontrar o Senhor nos ares” (1 Tessalonicenses 4:17. ). Eles serão “tomados” ou “arrebatados” (grego, harpazo) nas nuvens, para o grande e glorioso encontro com o seu Senhor – e “assim (grego, houtos , “por tais meios”) estarão para sempre com o Senhor”. (Quando o Espírito do Senhor “arrebatou a Filipe”, [Atos 8:39, grego, harpazo] Filipe saiu da presença do eunuco etíope e foi levado para outro local!).

Paulo magnifica consistentemente a ressurreição dos crentes no retorno de Cristo como a “bendita esperança” (Tito 2:13), a ser realizada diante de seus olhos. Ele nunca exalta a morte (ela é um inimigo! – 1 Coríntios. 15:26) nem quer dizer que ela é um meio pelo qual se entra na presença de Cristo! Filipenses 1:20-26 é interpretado de maneira errada, gerando uma contradição dentro do próprio texto e um conflito com os próprios ensinamentos de Paulo em outros lugares.

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