Conceitos Sobre o Inferno

Através dos séculos, poucos ensinos têm incomodado mais a consciência humana do que o conceito tradicional do inferno como um lugar onde os perdidos sofrem punição ardente e consciente, no corpo e na alma, por toda a eternidade. A perspectiva de que algum dia um vasto número de pessoas serão destinadas ao tormento eterno do inferno é muito perturbadora e aflitiva para os cristãos sensíveis. Afinal, quase todos têm amigos ou familiares que morreram sem firmar um compromisso com Cristo. A perspectiva de algum dia vê-los agonizando no inferno por toda a eternidade pode facilmente levar as pessoas pensantes a dizer a Deus: “Não, obrigado Deus. Não estou interessado nesse seu tipo de paraíso!”

Não surpreende que hoje raramente ouvimos sermões sobre “fogo e enxofre”, mesmo de pregadores fundamentalistas, os quais teoricamente ainda estão comprometidos com essa crença. A relutância deles em pregar sobre o fogo do inferno mui provavelmente não se deve à falta de integridade em proclamar uma verdade impopular, e sim à aversão deles em pregar uma doutrina que acham difícil de acreditar. Algo instintivo dentro deles diz que o Deus que amou o mundo ao ponto de enviar seu único Filho unigênito para salvar os pecadores não pode ser também um Deus que tortura pessoas (mesmo os piores pecadores) por um período infindável. Este paradoxo inaceitável tem inspirado eruditos bíblicos de todas as confissões a reexaminarem os ensinos bíblicos sobre a punição final.[1]

A questão fundamental que deve ser abordada é: Sofrem os pecadores impenitentes uma punição consciente no corpo e na alma, por toda a eternidade; ou eles são aniquilados por Deus na segunda morte, depois de sofrer um castigo temporário? Em outras palavras: O fogo do inferno atormenta os condenados eternamente, ou consome a tais permanentemente?

O Conceito Metafórico do Inferno

As respostas a esta questão fundamental variam consideravelmente. Duas interpretações recentes, que têm o objetivo de tornar o inferno mais “humano”, merecem uma breve menção. A primeira é a interpretação metafórica do inferno como um lugar onde o tormento é eterno, mas o sofrimento é mais mental do que físico. O fogo não é literal, e sim metafórico, e a dor é causada mais pelo sentimento de separação de Deus do que por tormentos físicos.[2]

Billy Graham, que conduziu dezenas de milhares de pessoas a Cristo, expressa o conceito metafórico do fogo do inferno, ao dizer: “Eu me perguntei muitas vezes se o inferno é um terrível incêndio dentro de nossos corações em busca de Deus, da comunhão com Deus — um fogo que nunca podemos apagar.”[3] A interpretação que Graham faz do fogo do inferno como “um terrível incêndio dentro de nossos corações em busca de Deus” é muito inventiva. Infelizmente, esta interpretação não leva em consideração que o “incêndio” ocorre, não dentro do coração, mas do lado de fora, onde os ímpios são consumidos. Se os ímpios tivessem um incêndio em seus corações por causa de Deus, para começar eles não passariam pela experiência da punição final.

William Crockett conclui sua defesa do conceito metafórico do inferno dizendo: “De modo que o inferno não deveria ser descrito como um lugar que vomita fogo como a fornalha ardente de Nabucodonosor. O máximo que podemos dizer é que os rebeldes serão banidos da presença de Deus, sem qualquer esperança de restauração. Assim como Adão e Eva, eles serão expulsos, mas desta vez para a ‘noite eterna’, na qual a alegria e esperança estarão perdidas para sempre.”[4]

O problema deste conceito do inferno é que só se deseja substituir o tormento físico por uma angústia mental mais suportável. Alguns poderiam perguntar se uma aflição mental eterna é realmente mais humana do que o tormento físico. Ainda que isto fosse verdade, a redução da dor consciente num inferno não literal não muda substancialmente a natureza do inferno, já que ele ainda continua sendo um lugar de tormento infindável.

A solução se encontra, não na humanização ou no branqueamento da visão tradicionalista do inferno, ainda que se consiga provar no final que ele é um lugar mais tolerável para os ímpios passarem a eternidade; e sim na compreensão da verdadeira natureza da punição final que é, conforme veremos, o aniquilamento permanente, e não o tormento eterno.

O Conceito Universalista do Inferno

Uma segunda e mais radical revisão conceitual do inferno foi tentada pelos universalistas, os quais reduzem o inferno a uma condição temporária de castigos em vários graus que, por fim levam ao céu. Os universalistas crêem que no final Deus conseguirá trazer todos os seres humanos à salvação e à vida eterna, de modo que no juízo final ninguém será condenado ao tormento eterno ou ao aniquilamento.[5]

Ninguém pode negar que o universalismo apela à consciência cristã, porque qualquer pessoa que tenha sentido o amor de Deus almeja vê-lo salvando a todos, e odeia pensar que Ele seja tão vingativo ao ponto de punir milhões de pessoas com tormentos eternos, principalmente aqueles que viveram em ignorância. Porém, nossa apreciação pela preocupação dos universalistas em defender o triunfo do amor de Deus e em refutar, com razão, o conceito não-bíblico de sofrimento eterno, não deve nos cegar para o fato de que esta doutrina é uma séria distorção do ensino bíblico. A salvação universal não pode ser verdadeira só porque o sofrimento eterno é falso.

O alcance universal do propósito divino de salvação não deve ser confundido com o fato de que aqueles que rejeitarem sua provisão de salvação perecerão. Esta verdade é expressa aptamente no texto mais conhecido sobre o amor de Deus: “Porque Deus tanto amou o mundo que deu o seu Filho Unigênito, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna.” (João 3:16). O destino daqueles que se recusarem a crer é a destruição (“perecer”), e não a salvação universal.

Ainda que os conceitos metafórico e universalista do inferno representem tentativas bem intencionadas de “tirar o inferno do inferno”, eles falham em lidar com as informações bíblicas de maneira correta e, deste modo, acabam deturpando a doutrina bíblica do castigo final dos que não são salvos. A solução sensata para os problemas da visão tradicionalista é encontrada, não por reduzir ou eliminar o tormento consciente de um inferno literal, e sim por aceitar o inferno pelo que ele é, ou seja, o castigo final e o aniquilamento permanente dos ímpios. Conforme diz a Bíblia: “Os ímpios não mais existirão” (Salmo 37:10), porque “o seu destino é a perdição.” (Filipenses 3:19).

O Conceito Aniquilacionista do Inferno

A crença no aniquilamento final dos condenados baseia-se em quatro considerações bíblicas principais: (1) a punição pelo pecado é a morte, (2) a linguagem referente à destruição dos ímpios, (3) as implicações morais do tormento eterno e (4) as implicações cosmológicas do tormento eterno.

1. A Punição Pelo Pecado é a Morte

O aniquilamento final dos pecadores impenitentes é indicado, antes de tudo, pelo princípio fundamental declarado em ambos os Testamentos, de que a punição final pelo pecado é a morte: “A alma que pecar, essa morrerá” (Ezequiel 18:4, 20, Sociedade Bíblia Britânica); “O salário do pecado é a morte” (Romanos 6:23). Naturalmente, o castigo do pecado engloba não só a primeira morte pela qual todos passam em resultado do pecado de Adão, mas também o que a Bíblia chama de “segunda morte” (Revelação 20:14; 21:8), que é a morte final e irreversível reservada para os pecadores impenitentes. Este princípio básico é fundamental para o entendimento da natureza do castigo final, porque ele nos informa, logo de início, que o salário final do pecado não é o tormento eterno, e sim a morte permanente.

Na Bíblia, a morte é a cessação da vida. Se não fosse pelo fato de haver a ressurreição (1 Cor. 15:18), a morte pela qual passa todo ser humano seria o término de sua existência. É a ressurreição que transforma a morte de um fim definitivo da vida em um sono temporário. Mas não há ressurreição da segunda morte, porque aqueles que a experimentam são consumidos no que a Bíblia chama de “lago de fogo” (Revelação 20:14). Esse será o aniquilamento final.

Esta verdade fundamental foi ensinada no Antigo Testamento, principalmente através do sistema sacrificial. A penalidade para o pecado mais grave era sempre e unicamente a morte da vítima substituta, e nunca uma tortura ou aprisionamento prolongado da vítima. A consumação da oferta pelo pecado tipificava de modo dramático a destruição final do pecado e dos pecadores.

A disposição final do pecado e a destruição dos pecadores foi revelada especialmente por meio do ritual do Dia da Expiação, que tipificava a execução do julgamento final de Deus sobre os fiéis e os infiéis. Os israelitas que tinham se arrependido dos seus pecados eram declarados ‘purificados perante o Senhor’ (Levítico 16:30, Almeida), quando se completavam os rituais de purificação. Mas os israelitas impenitentes, que pecavam desafiadoramente contra Deus (compare com Levítico 20:1-6) e não se arrependiam, eram “extirpados” do povo de Deus no Dia da Expiação. “Porque toda a alma, que naquele mesmo dia se não afligir, será extirpada do seu povo. Também toda a alma, que naquele mesmo dia fizer algum trabalho, eu a destruirei do meio do seu povo.” (Levítico 23:29, 30, Almeida).

A separação que ocorria no Dia da Expiação, entre os israelitas penitentes e os impenitentes, tipifica a separação que ocorrerá na Segunda Vinda. Jesus comparou esta separação com aquela que se faz entre o trigo e o joio na colheita. Os malfeitores serão lançados “na fornalha ardente”, e os “justos brilharão como o sol no Reino do seu Pai” (Mat. 13:42, 43).

As parábolas de Jesus e o ritual do Dia da Expiação ensinam a mesma verdade importante: os cristãos falsos e os genuínos coexistirão até a vinda dele. Mas, no juízo final ocorre uma separação permanente, quando o pecado e os pecadores serão erradicados para sempre, e um novo mundo será estabelecido. Assim como no serviço típico do Dia da Expiação os pecadores impenitentes eram “cortados” e “destruídos”, no cumprimento antitípico do juízo final, os pecadores “sofrerão a pena de destruição eterna” (2 Tessalonicenses 1:9).

2. A Linguagem Bíblica Referente à Destruição

A segunda e mais forte razão para crermos no aniquilamento dos condenados no juízo final é o rico vocabulário rico, e o panorama de “destruição”, usados freqüentemente no Antigo e no Novo Testamento para descrever o destino dos iníquos. Os escritores do Antigo e do Novo Testamento parecem ter esgotado os recursos das línguas hebraica e grega à disposição deles para declararem a destruição completa dos pecadores impenitentes.

Segundo Basil Atkinson, mais de 25 substantivos e verbos são usados no Antigo Testamento para descrever a destruição final dos ímpios.[6] Uma lista detalhada de todas as ocorrências nos levaria além do escopo deste artigo. Apenas uma amostra de textos significativos será considerada aqui.

Vários Salmos descrevem a destruição final dos iníquos de maneira dramática (Sal 1:3-6; 2:9-12; 11:1-7; 34:8-22; 58:6-10; 69:22-28; 145:17,20). No Salmo 37, por exemplo, lemos que os ímpios “cedo serão ceifados como a erva” (v. 2), “serão desarraigados … e o ímpio não existirá” (v. 9 e 10), “perecerão … e em fumaça se desfarão” (v. 20); os “transgressores, serão à uma destruídos” (v. 38). O Salmo 1, amado e memorizado por muitos, contrasta o caminho dos justos com o dos iníquos. Destes últimos, ele diz: “os ímpios não subsistirão no juízo” (v. 5). Eles são “como a moinha que o vento espalha” (v. 4). “O caminho dos ímpios perecerá” (v. 6). No Salmo 145, Davi diz novamente: “O SENHOR guarda a todos os que o amam; mas todos os ímpios serão destruídos.” (v. 20). [As citações deste parágrafo são todas da Versão Almeida Revisada.] Esta amostra de referências sobre a destruição final dos ímpios se harmoniza completamente com o ensino do resto da Bíblia.

3. A Destruição do Dia do Senhor

Os profetas anunciam com freqüência a destruição final dos iníquos em conexão com o Dia do Senhor escatológico. Em seu capítulo de abertura, Isaías proclama que “os rebeldes e os pecadores serão destruídos, e os que abandonam o Senhor perecerão.” (Isaías 1:28). O cenário de destruição total é retratado mais adiante pela imagem dos pecadores queimando como mecha, sem ninguém para apagar o fogo: “O poderoso se tornará como estopa e sua obra, como fagulha; ambos serão queimados juntos sem que ninguém apague o fogo.” (Isaías 1:31).

Descrições similares podem ser encontradas em Sofonias (1:1-5,15,18) e Oséias (13:3). Este último compara o destino dos ímpios com “o orvalho que bem cedo evapora, como palha que num redemoinho vai-se de uma eira, como a fumaça que sai pela chaminé.” (Oséias 13:3), os quais sugerem todos que os pecadores finalmente desaparecerão da criação de Deus.

A última página do Antigo Testamento oferece-nos uma descrição mais vívida do contraste entre o destino final dos fiéis e o dos infiéis. Para os crentes que temem ao Senhor, “o sol da justiça se levantará trazendo cura em suas asas.” (Malaquias 4:2). Mas, para os incrédulos “certamente vem o dia, ardente como uma fornalha. Todos os arrogantes e todos os malfeitores serão como palha, e aquele dia, que está chegando, ateará fogo neles”, diz o Senhor dos Exércitos. “Nem raiz nem galho algum sobrará.” (Malaquias 4:1).

A mensagem transmitida por estes quadros simbólicos é clara. Enquanto os justos se rejubilam na salvação de Deus, os ímpios são consumidos como “palha”, de modo que não sobre nem “raiz ou ramo”. Este é, claramente, um cenário de total eliminação pelo fogo destruidor, e não um cenário de tormento eterno.

4. Jesus e a Linguagem Relacionada com Destruição.

O Novo Testamento segue rigorosamente o Antigo Testamento em descrever o destino dos iníquos com palavras e imagens que denotam aniquilamento total. Jesus comparou a completa destruição dos ímpios com coisas tais como as ervas que são atadas em feixes para serem queimadas (Mateus 13:30, 40), os peixes ruins que são jogados fora (Mateus 13:48), as plantas que são arrancadas pelas raízes (Mateus 15:13), as árvores infrutíferas que são cortadas (Lucas 13:7), os ramos secos que são queimados (João 15:6), os lavradores arrendatários desleais que são mortos (Lucas 20:16), o servo mau que é cortado pelo meio (Mateus 24:51, Almeida Revisada), os galileus que pereceram (Lucas 13:2, 3), as dezoito pessoas que foram esmagadas pela torre de Siloé (Lucas 13:4, 5), os antediluvianos que foram destruídos pelo dilúvio (Lucas 17:27), o povo de Sodoma e Gomorra que foi destruído pelo fogo (Lucas 17:29) e os servos rebeldes que foram mortos quando seu senhor retornou (Lucas 19:14, 27).

Todas estas ilustrações usadas pelo Salvador descrevem de forma bem vívida a destruição final dos iníquos. O contraste entre o destino dos salvos e o dos condenados é o contraste da vida versus a destruição. Jesus disse: “Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão.” (João 10:28). “Entrem pela porta estreita, pois larga é a porta e amplo o caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram por ela. Como é estreita a porta, e apertado o caminho que leva à vida! São poucos os que a encontram” (Mateus 7:13, 14). Dentro do contexto destas passagens, não há razão para torcermos a palavra “perecer” ou “perdição” [destruição] para fazê-las significar tormento eterno.

Os que apelam para as referências de Cristo ao fogo do inferno-geena (Mateus 5:22, 29, 30; 18:8, 9; 23:15, 33; Marcos 9:44, 46, 47, 48) para apoiar sua crença no tormento eterno, deixam de compreender, como John Stott indica corretamente, que “o próprio fogo é que é mencionado como ‘eterno’ e ‘inextinguível’, mas seria muito estranho aquilo que é lançado dentro dele se mostrar indestrutível. Deveríamos esperar o contrário: que as coisas lançadas nele seriam consumidas para sempre, e não atormentadas para sempre. Este é o motivo da fumaça (evidência de que o fogo fez seu trabalho) que ‘sobe para todo o sempre’ (Apocalipse 14:11; compare com 19:3).”[7]

Nenhuma das alusões de Cristo ao inferno-geena indica que o inferno seja um lugar de tormento sem fim. O que é eterno e inextinguível não é o castigo e sim o fogo que, assim como no caso de Sodoma e Gomorra, resulta na completa e permanente destruição dos ímpios, uma condição que dura para sempre. O fogo é inextinguível porque ele não pode ser apagado até que tenha consumido todo o material combustível.

5. A “Punição Eterna”

A declaração solene de Cristo: “E estes irão para o castigo eterno, mas os justos para a vida eterna” (Mateus 25:46) é geralmente considerada como a prova mais clara do sofrimento consciente que os condenados sofrerão por toda a eternidade. Esta interpretação ignora a diferença entre punição eterna e punir eternamente. A palavra “eterno-aionios”, que em grego significa literalmente “que dura uma eternidade”, com freqüência se refere à permanência do resultado, em vez de se referir à continuidade do processo. Por exemplo, Judas versículo 7 diz que Sodoma e Gomorra foram submetidas ao “castigo do fogo eterno [aionios]”. É evidente que o fogo que destruiu as duas cidades é eterno, não por causa de sua duração, e sim por causa de seus resultados permanentes.

Outro exemplo pertinente se encontra em 2 Tessalonicenses 1:9, onde Paulo, ao falar daqueles que rejeitam o Evangelho, diz: “Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder.” É evidente que a destruição dos ímpios não pode ser eterna em termos de sua duração, porque é difícil imaginar um processo eterno e inconclusivo de destruição. A destruição pressupõe aniquilamento. A destruição dos iníquos é eterna, não porque o processo de destruição continua para sempre, e sim porque os resultados são permanentes. Do mesmo modo, a “punição eterna” de Mateus 25:46 é eterna porque seus resultados são permanentes. É uma punição que resulta na eterna destruição e aniquilação das pessoas iníquas.

6. A Segunda Morte

A terminologia de destruição está presente especialmente no livro de Revelação (Apocalipse), porque a destruição representa a maneira de Deus subjugar a oposição do mal contra Ele mesmo e contra seu povo. João descreve em linguagem bem vívida o envio do Diabo, da besta, do falso profeta, da morte, do Hades e de todos os iníquos para o lago de fogo, que ele define claramente como “a segunda morte”: “o lugar deles será no lago de fogo que arde com enxofre. Esta é a segunda morte.” (Revelação 21:8; compare com 20:14; 2:11; 20:6).

A expressão “segunda morte” era usada com freqüência pelos judeus para descrever a morte final e irreversível. Numerosos exemplos podem ser encontrados no Targum, que é a tradução e interpretação do Antigo Testamento em aramaico. Por exemplo, o Targum sobre Isaías 65:6 está bem de acordo com Revelação 20:14 e 21:8. Ele diz: “A punição deles será na Geena, onde o fogo arde todos os dias. Eis que está escrito diante de mim: ‘Não lhes darei repouso durante (sua) vida, mas aplicarei a eles o castigo por suas transgressões e entregarei seus corpos à segunda morte.”[8] De novo o Targum sobre Isaías 65:15 diz: “O Senhor Deus vos matará com a segunda morte, mas aos seus servos, os justos, ele chamará por um nome diferente.”[9] Aqui, a segunda morte é explicitamente igualada à matança dos ímpios pelo Senhor, uma imagem clara de destruição definitiva e não de tormento eterno.

Para os salvos, a ressurreição marca o começo de uma segunda vida, de natureza superior; para os que não são salvos, porém, ela marca o fim de uma segunda morte mais profunda. Assim como não há mais morte para os redimidos (Revelação 21:4), não há mais vida para os condenados (Revelação 21:8). A “segunda morte” é, portanto, a morte final e irreversível. Interpretar essa expressão de outra maneira, atribuindo-lhe o significado de tormento eterno consciente ou separação de Deus, significa negar o conceito bíblico da “morte” como cessação da vida.

As Implicações Morais do Tormento Eterno

Uma terceira razão para a crença no aniquilamento final dos condenados é o conjunto de implicações morais inaceitáveis da doutrina do tormento eterno. A noção de um Deus que tortura pecadores deliberadamente por toda a eternidade, é totalmente incompatível com a revelação bíblica de Deus como sendo amor infinito. Um Deus que aplica torturas intermináveis sobre suas criaturas, não importa quão pecadoras elas possam ter sido, é bem mais parecido com Satanás do que com o Pai amoroso revelado a nós por Jesus Cristo.

Será que Deus tem duas faces? É Ele ilimitadamente misericordioso de um lado e insaciavelmente cruel do outro lado? Pode Deus amar tanto os pecadores ao ponto de ter enviado seu Filho amado para salvá-los, e contudo odiar os pecadores impenitentes ao ponto de sujeitá-los a um tormento cruel sem fim? Podemos legitimamente louvar a Deus por sua bondade, se Ele atormenta os pecadores por toda a eternidade?

Gostaríamos de ser como Deus no impiedoso tratamento que Ele dá aos condenados? Não é de admirar que um conceito como esse sobre Deus tenha inspirado a Inquisição para que prendesse, torturasse e depois queimasse na estaca os chamados “hereges” que se recusavam a aceitar os ensinos tradicionais da igreja. Se Deus é impiedoso em punir os pecadores com tormentos infindáveis no mundo futuro, por que não deveria a igreja agir da mesma maneira neste mundo atual, torturando e queimando os “hereges”?

A intuição moral que Deus implantou dentro de nossas consciências não pode justificar a crueldade insaciável de uma deidade que sujeita os pecadores a um tormento infindável. A justiça divina nunca poderia exigir a penalidade infinita do sofrimento eterno como pagamento por pecados finitos, porque o tormento infindável não serve para qualquer propósito de correção, precisamente porque nunca termina.

Ademais, o tormento eterno e consciente é contrário à visão bíblica de justiça, porque um castigo como esse criaria uma séria desproporção entre os pecados cometidos durante o período de uma vida e a punição resultante, a vigorar por toda a eternidade. Conforme John Stott pergunta de maneira perceptiva: “Não haveria, então, uma grave disparidade entre os pecados cometidos conscientemente num período de tempo e o tormento sofrido conscientemente por toda a eternidade? Eu não minimizo a gravidade do pecado tal como a rebelião contra Deus, nosso Criador, mas questiono se o ‘tormento eterno consciente’ é compatível com a revelação bíblica da justiça divina.”[10]

Em última análise, qualquer doutrina sobre o inferno deve passar no teste moral da consciência humana, e a doutrina do tormento interminável literal não pode passar nesse teste. O aniquilacionismo, por outro lado, pode passar no teste, pois ele reconhece que a punição final de Deus sobre os iníquos não é vingativa, exigindo um tormento eterno, e sim racional, resultando na aniquilação permanente deles.

As Implicações Cosmológicas do Tormento Eterno

Uma quarta e última razão para acreditar na aniquilação dos condenados é o fato de que o tormento eterno pressupõe um eterno dualismo cósmico. Céu e inferno, felicidade e sofrimento, bem e mal continuariam a existir lado a lado para sempre. É impossível harmonizar este conceito com a visão profética do novo mundo em que não haverá mais “pranto, nem clamor, nem dor; porque já as primeiras coisas são passadas” (Revelação 21:4). Como poderiam o clamor e a dor ser esquecidos se a agonia e a angústia dos condenados estivessem ao alcance da vista, como na parábola do rico e Lázaro (Lucas 16:19-31)?

A presença de incontáveis milhões sofrendo para sempre um tormento excruciante, ainda que estivessem bem distantes do campo dos salvos, só serviria para destruir a paz e a felicidade do novo mundo. A nova criação voltaria a ser imperfeita desde o primeiro dia, já que os pecadores continuariam a ser uma eterna realidade no universo de Deus, e Deus nunca seria “todas as coisas para com todos” (1 Coríntios 15:28).

O objetivo do plano de salvação é erradicar definitivamente a presença do pecado e dos pecadores deste mundo. Só quando os pecadores, Satanás e os demônios forem finalmente consumidos no lago de fogo e extintos pela segunda morte, é que realmente poderemos dizer que a missão redentora de Cristo foi incontestavelmente vitoriosa. O tormento eterno lançaria uma sombra permanente de trevas sobre a nova criação.

Em suma, a nossa era precisa desesperadamente aprender a temer a Deus, e esta é a única razão para pregar sobre o julgamento e a punição final. Precisamos avisar as pessoas de que os que rejeitam os princípios de vida e a provisão de salvação feita por Cristo, por fim passarão por um terrível julgamento e “sofrerão a pena da destruição eterna.” (2 Tessalonicenses 1:9). Precisamos proclamar corajosamente as grandes alternativas do Evangelho, a vida eterna ou a destruição permanente. A restauração do conceito bíblico sobre o juízo final pode desatar as línguas dos pregadores, pois eles podem pregar esta doutrina vital que a humanidade precisa desesperadamente ouvir, sem terem medo de representar Deus como um monstro.

NOTAS:


[1] Para um levantamento da recente pesquisa sobre a natureza do Inferno feita por destacados eruditos, veja o livro Imortalidade ou Ressurreição? – Um Estudo Bíblico sobre a Natureza e o Destino do Homem, de Samuele Bacchiocchi, págs. 193-248 em inglês.

[2] Para uma apresentação concisa, porém bem feita da visão metafórica do inferno, confira “A Visão Metafórica” em Quatro Conceitos do Inferno, editado por William Crockett (Grand Rapids, 1992), págs. 43-81 em inglês.

[3] Existe um Inferno Verdadeiro, Billy Graham, Revista Decisão nº 25 (Julho-Agosto de 1984), pág. 2 em inglês. Em algum lugar, Graham pergunta: “Poderia ser que o fogo sobre o qual Jesus falava fosse uma eterna busca por Deus, que nunca é saciada? Isso, sem dúvida, seria um inferno. Estar longe de Deus para sempre, separado da Sua Presença” (em O Desafio: Sermões do Madison Square Garden [Garden City, Nova Iorque, 1969], pág. 75 em inglês).

[4] William V. Crockett (nota 2), pág. 61 em inglês.

[5] O primeiro a sugerir esta crença foi Orígenes, no terceiro século, e ela conseguiu firme apoio em tempos modernos, especialmente por meio dos escritos de homens tais como Friedrich Schleiermacher, C. F. D. Moule, J. A. T. Robinson, Michael Paternoster, Michael Perry e John Hick. Os argumentos apresentados por estes e outros escritores em apoio ao universalismo são tanto teológicos como filosóficos. Para uma análise, confira Imortalidade ou Ressurreição? – Um Estudo Bíblico sobre a Natureza e o Destino do Homem, de Samuele Bacchiocchi, págs. 220-223 em inglês.

[6] Basil F. C. Atkinson, Vida e Imortalidade. Um Exame da Natureza e do Significado da Vida e da Morte, Conforme Reveladas nas Escrituras (Taunton, Inglaterra, n.d.), págs. 85, 86 em inglês.

[7] John Stott e David L. Edwards, Princípios Básicos: Um Diálogo Evangélico-Liberal (Londres, 1988), pág. 316 em inglês.

[8] M. McNamara, O Novo Testamento e o Targum Palestino ao Pentateuco (Nova Iorque, 1958), pág. 123 em inglês.

[9] Ibid.

[10] John Stott (nota 7), págs. 318, 319 em inglês.

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Imortalidade ou Ressurreição? – Um Estudo Bíblico sobre a Natureza e o Destino do Homem, Capítulo 6 (trecho). As citações bíblicas são da NVI, a menos que haja outra indicação.

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