O Que Dizer da “Doutrina Correta”?

Um problema com o qual muitos ex-associados de instituições religiosas centralizadoras se confrontam é o desacordo sobre questões doutrinárias que impera no ambiente religioso da atualidade. Uma pessoa que foi criada como Testemunha de Jeová, por exemplo, cresceu sendo ensinada que a unidade cristã significa acordo unânime nas questões doutrinais. As palavras de Paulo na Primeira Carta aos Coríntios 1:10 são citadas com frequência: “Rogo-vos, porém, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos uma mesma coisa, e que não haja entre vós dissensões; antes sejais unidos em um mesmo pensamento e em um mesmo parecer.” Todavia, é comum que pessoas que alegam ser cristãs discordem amplamente nas interpretações ou mesmo em doutrinas importantes. Muitas vezes, a impressão que se tem é que parece não haver “padrão” algum para interpretar a Bíblia. Uma ex-Testemunha de Jeová pode até ter concluído que o Corpo Governante das Testemunhas de Jeová não é o “canal exclusivo” oficial de Deus na terra. Mas, essa Testemunha pode ter passado décadas de sua vida inserida num ambiente onde se fazia presente essa “agência autorizada”, que servia como fonte e detentora de um “conjunto único” de interpretações bíblicas “corretas”. Por isso, no seu íntimo ela ainda pode pensar que deveria haver mais concordância entre os verdadeiros cristãos nas explicações sobre o significado de certos trechos das Escrituras.

Um exame atento revela que esse tipo de expectativa não se baseia na verdadeira situação entre os primitivos cristãos. A principal fonte da unidade deles era a sua aceitação comum de Jesus como o Messias e sua determinação de segui-lo pela obediência aos seus mandamentos. Os cristãos estavam em completo acordo em sua compreensão das profecias hebraicas que identificaram Jesus como seu Messias. Por quê? Porque o próprio Jesus aplicou todas elas a si mesmo. Pouco depois de sua ressurreição, Jesus encontrou dois discípulos confusos na estrada para Emaús. “Começando por Moisés e por todos os profetas, explicou-lhes o que dele se achava dito em todas as Escrituras.” (Lucas 24:27) Aí estava, então, a “interpretação oficial” cristã das Escrituras Hebraicas. Havia pouca necessidade de esclarecimento ou interpretação sobre estas questões. Os apóstolos e outros discípulos passaram adiante o que haviam aprendido com Jesus de maneira completa e correta. As congregações do primeiro século se formaram e floresceram sem qualquer direção centralizada por parte dum grupo de seres humanos, incluindo os apóstolos.

Quando Paulo e Barnabé foram comissionados a começar seu trabalho missionário pelos crentes em sua congregação local em Antioquia (sob a direção divina), nenhuma outra congregação, incluindo a de Jerusalém, estava envolvida ou foi sequer informada (Atos 13:2, 3). As cartas que agora fazem parte das Escrituras Gregas foram enviadas a congregações individuais ou a grupos de crentes em uma determinada região. Estas cartas só foram amplamente distribuídas bem mais tarde. Mas havia outra razão por que os primitivos cristãos não insistiam na uniformidade em assuntos de pouca importância.

Os primeiros cristãos tendiam a permitir uma latitude bastante ampla em relação às diferenças de opinião em se tratando de questões teológicas. Naturalmente, alguns judeus eram dogmáticos (os conceitos dos fariseus e saduceus sobre a ressurreição vêm à mente, neste caso). Mas, o desejo de formular interpretações “exatas” ou “aprovadas”, e usá-las como critério para decidir quem era e quem não era um verdadeiro discípulo não era típico dos primeiros cristãos.

A disposição de se concentrar na conduta justa e evitar ser dogmático em assuntos de especulação teológica é ainda mais evidente nos escritos dos cristãos gentios do segundo e terceiro séculos. Porém, o dogmatismo nesses assuntos por fim se introduziu no pensamento e nos escritos dos cristãos. A tendência para a formulação e uso de opiniões “aprovadas” como base para decidir quem era e quem não era cristão aumentou grandemente no quarto século, especialmente depois que a adesão à igreja cristã tornou-se mais intimamente associada com a cidadania romana. Os “hereges” eram encarados como inimigos do estado e a conformidade forçada com os dogmas se tornou muito mais comum entre pessoas que alegavam ser cristãs. Ao longo dos séculos, a igreja se afastou cada vez mais da teologia simples dos apóstolos e da ênfase deles numa vida virtuosa resultante da união com Cristo.

Vários séculos depois, os reformadores protestantes tornaram a Bíblia mais acessível para muitos crentes. Mas eles foram, por vezes, ainda mais dogmáticos do que os católicos romanos. Em vez de um retorno ao cristianismo apostólico simples, a solução deles para a discordância teológica resultou em se separarem do corpo principal (embora corrupto) dos cristãos e formarem denominações inteiramente novas. Desde então, os cristãos se dividiram vez após vez, formando muitos milhares de denominações. O dogmatismo teológico dividiu, ao invés de unificar os crentes, pois a espada do dogmatismo tem dois gumes: ela tanto pode fazer aqueles que têm opiniões “aprovadas” excluírem os que não compartilham essas opiniões, como pode impedir que aqueles que rejeitam essas opiniões “aprovadas” se associem com os que as aceitam.

Existe uma grande quantidade de informação disponível sobre as crenças e o modo de vida dos primitivos cristãos. Visto que às vezes toda esta evidência mostra estar em conflito com as crenças e práticas das denominações religiosas populares de hoje, a informação não alcançou ampla distribuição, e relativamente poucas pessoas sequer sabem da existência dela. Menos ainda tentam viver com base no que essa evidência aponta. Mas ela é uma excelente fonte de orientação sobre as doutrinas e práticas da congregação apostólica do primeiro século, facilitando que possamos ver o que era original e o que foi acréscimo posterior.1

Se alguém frequentar qualquer uma das muitas igrejas que existem hoje, notará que a maioria dos membros dela provavelmente aceita algumas doutrinas ou práticas que foram adotadas ou estabelecidas muito tempo depois do período apostólico. Além disso, é bem comum que aqueles que sustentam essas opiniões teológicas não estão dispostos a abandoná-las facilmente. Mas isso não quer dizer que você não possa encontrar associação entre essas pessoas, ou que elas não sejam cristãs.

No dias dos apóstolos, os fariseus que se tornaram crentes ainda chamavam a si mesmos de fariseus, apesar das bem conhecidas condenações que Jesus declarou contra alguns deles. Há também evidência de que eles mantiveram pelo menos algumas de suas abordagens das coisas. (Atos 15:5) Portanto, temos precedente apostólico para permitir que pessoas com diferentes conceitos decidam por si mesmas sobre interpretações de assuntos não essenciais (Tito 3:9). Talvez com o tempo eles mudem de opinião, talvez não. Mas é uma boa prática não julgar os outros com demasiada severidade, já que nós também podemos estar agora rejeitando ensinos que antes acreditávamos piamente e defendíamos com muita convicção.

Muitos conceitos teológicos são baseados em opiniões sobre questões metafísicas que não são revelados claramente nas Escrituras. Outros conceitos dependem em grande parte do significado de certas palavras. Em vez de gastar tempo com pequenas questões teológicas ou tentando vencer argumentos, fazemos bem em seguir o exemplo dos apóstolos e manter nosso foco em viver como Deus quer que vivamos, obedecendo aos mandamentos de Cristo que se expressam como os frutos do Espírito de Deus, em piedade e serviço altruísta ao próximo.

Poucas, se é que alguma, das doutrinas amplamente aceitas e ensinadas nas igrejas cristãs contradizem os dois maiores mandamentos de amar a Deus e ao próximo. Na realidade, se qualquer trecho da Bíblia for interpretado e ensinado de uma maneira que o impacto disso em nossa vida contradiga a vontade expressa de Deus em relação à nossa conduta, esta interpretação está necessariamente errada, não importa quão lógica ela pareça.

O fato simples é que as questões teológicas são amplamente irrelevantes para a vida cotidiana dos cristãos. Se você estiver determinado a obedecer aos mandamentos de Jesus sobre o atendimento às necessidades dos outros e viver uma vida moral limpa, provavelmente achará que sua vida é plena e satisfatória, e você não terá necessidade alguma de gastar tempo tentando determinar a exatidão ou inexatidão das convicções teológicas mantidas por outros, ou tentando convertê-los a todo custo para o seu ponto de vista pessoal.

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Traduzido e adaptado de um tópico do artigo Where is the Body of Christ? [Onde Está o Corpo de Cristo?].

NT: No artigo original (em inglês), o autor recomenda as seguintes obras como referência: Will the Real Heretics Please Stand Up – A New Look at Today’s Evangelical Church in the Light of Early Christianity (1989) [Título da versão em português: Que Falem os Primeiros Cristãos – Uma análise da Igreja moderna sob a luz do cristianismo primitivo (2013) – Veja detalhes sobre este livro em nossa seção de Publicações] e Common Sense – A New Approach to Understanding Scripture, [O Senso Comum – Uma Nova Abordagem Para Entender as Escrituras] (1992), sendo ambos os livros da autoria de David W. Bercot. (Scroll Publishing, Tyler Texas – EUA).

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