Os Cristãos e o Mundo

“Adúlteras, não sabeis que a amizade com o mundo é inimizade com Deus? Portanto, todo aquele que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus.” (Tiago 4:4, TNM)

No que se refere à atitude do cristão para com o “mundo” há muito a dizer. Aqui se fazem apenas alguns breves comentários sobre os artigos “Os Primitivos Cristãos e o Mundo”, e “Os Cristãos e a Sociedade Humana Hoje em Dia” na revista A Sentinela de 1º de julho de 1993.

Os artigos foram, sem dúvida, inteligentemente escritos. O método utilizado consiste – com a ajuda de trechos selecionados de escritos patrísticos e obras da história da igreja moderna – em tentar apresentar uma imagem dos primitivos cristãos que seja tão semelhante quanto possível à das Testemunhas de Jeová de nossos dias. Em seguida, depois de ter estabelecido essa semelhança, o autor pergunta: “Que organização cristã, mundial, corresponde em todos os sentidos à descrição histórica dos primitivos cristãos?” (página 13). Para as Testemunhas de Jeová, a resposta é óbvia. O problema é que para “provar” isso, recorre-se a um conjunto bem selecionado de citações sobre as Testemunhas de Jeová, tiradas de vários jornais, livros e enciclopédias, incluindo a Nova Enciclopédia Católica, que juntas fornecem uma imagem das Testemunhas que é aparentemente muito idêntica à que foi apresentada sobre os primitivos cristãos. A similaridade que se consegue estabelecer com este método é impressionante — porém muito enganosa.

Em primeiro lugar, os “primitivos cristãos” não tinham conceitos tão uniformes assim, como a revista A Sentinela tenta dar a impressão. No estágio inicial, havia uma variedade de pontos de vista e posições divergentes sobre várias questões, como se reflete já nas Escrituras Gregas (o “Novo Testamento”). Existem vários estudos eruditos sobre a diversidade do cristianismo primitivo, como por exemplo, o livro de Walter Bauer Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity [Ortodoxia e Heresia no Cristianismo Primitivo] (Fortress Press, 1971). Já durante os primeiros séculos, a igreja apostólica havia se fragmentado numa variedade de seitas e denominações, e havia cerca de 80 ou mais delas no início do quarto século. Citar trechos de vários pais da igreja, como os escritos de Tertuliano, para “provar” o que quer que seja sobre o que os “primitivos cristãos” acreditavam e como eles agiam em diferentes situações e contextos pode ser muito enganoso. Tertuliano se juntou a um amigo montanista, uma seita cristã carismática que surgiu durante a segunda metade do segundo século DC. Outra seita que surgiu ainda antes disso, o marcionismo, difundiu-se por muitas regiões do mundo conhecido já em meados do segundo século AD.

Quanto ao termo “mundo” (kosmos, em grego), é importante deixar claro também como é que a Bíblia realmente coloca o significado desta palavra. Isso pode significar coisas diferentes em contextos diferentes. “Deus amou o mundo [kosmos] de tal maneira que deu o seu Filho unigênito…” (João 3:16) mas a Bíblia diz também aos cristãos: “Não ameis o mundo [kosmos]…” (1 João 2:15) É óbvio que a palavra “mundo” (kosmos) nestes dois versículos têm significados diferentes. Quando Tiago diz que o cristão deve “guardar-se isento da corrupção do mundo [kosmos]” (Tiago 1:27), é, portanto, necessário saber o que ele entendia por “mundo”. É o “mundo” o mesmo que a sociedade humana, com sua política, comércio e vida social? É o “mundo” o equivalente a todas as pessoas que não são cristãos? É o “mundo” equivalente a todos, inclusive os chamados “cristãos”, que estão fora da igreja ou organização religiosa que porventura sigamos? Ou será que o “mundo” constitui todas as formas de interações e atividades humanas que são um produto da natureza decaída do homem, de seu orgulho e do egoísmo? (Veja 1 João 2:16).

É preciso levar em consideração também que o “mundo” depois do primeiro século não se manteve como algo estático. Em nível mundial, a história foi marcada em alto grau por diferentes tipos de cultos pagãos, incluído o culto a líderes políticos. Os cristãos foram enviados a este mundo, não para evitá-lo, e sim para influenciá-lo de maneira positiva. Eles seriam a “luz do mundo” e o “sal da terra”. E conforme o cristianismo conquistou o Império Romano, os cultos pagãos perderam a força, de modo que a sociedade humana passou a ser cada vez mais caracterizada por valores cristãos. (Compare com Mat. 13:31-33) Naturalmente, não devemos tentar apresentar uma imagem caiada ou adocicada da forma que a sociedade humana tomou sob a influência do cristianismo, como se não existisse problema algum. O joio também cresceu durante o mesmo período e deixou uma profunda marca. (Mateus 13:24-30, 36-42) Ainda assim, não se pode ignorar o fato de que o “mundo” de hoje nos países “cristianizados” ainda está fortemente influenciado pelos valores cristãos. O “mundo” em que vivemos não é inteiramente mau. Se fosse assim, o cristianismo teria falhado completamente. O Cristianismo inclui hoje cerca de dois bilhões de pessoas ou aproximadamente um terço da humanidade. Esta área cristianizada, foi descrita pelo próprio Jesus em sua parábola profética do trigo e do joio no campo como seu “reino” (Mat. 13:41, TNM), e não consiste apenas de apóstatas, ou maus cristãos. Não haveria apenas “filhos do Diabo”, mas também “filhos do Reino”. (Mateus 13:38, TNM) Seria permitido aos dois tipos de cristãos ‘crescerem juntos até a colheita’, que seria a “terminação de um sistema de coisas.” (Mat. 13:30,39) Só então é que o “joio”, ou os “filhos do Diabo” seria arrancado e queimado no fogo.” (Mateus 13:40-42) Uma vez que o “joio” do “reino” de Cristo ainda não foi arrancado e queimado, ainda vivemos num mundo onde os dois tipos de “cristãos” convivem “juntos” lado a lado.

É em relação a este “mundo” que os cristãos de hoje devem decidir se ‘guardarem isentos da corrupção’ (Tia 1:27). Admite-se que o que é bom ou mau, puro ou corrupto e verdadeiro ou falso dentro do “mundo” nem sempre é fácil de discernir, mas ainda assim é algo que cabe a cada cristão avaliar pessoalmente e analisar, usando a Palavra de Deus e o melhor de suas faculdades mentais e consciência. Esta responsabilidade não pode ser transferida para outros. A escolha não pode ser simplesmente deixada a cargo duma autoridade religiosa que afirme ser o “vigário de Cristo” na terra, ou o único “canal de comunicação” entre Deus e a humanidade, seja o Papa católico romano, Joseph Smith dos Mórmons, Ellen G. White dos Adventistas, o “escravo fiel e discreto” (Torre de Vigia) das Testemunhas de Jeová, ou qualquer outro grupo ou indivíduo que se apresente ou seja considerado como uma liderança espiritual entre os cristãos.

A revista A Sentinela de 1º de julho de 1993 começa descrevendo os primeiros cristãos zelosos como “testemunhas”. (Página 13) Mas o texto a que se faz referência, Atos 1:8, fala deles como “testemunhas de Cristo”, algo que a revista A Sentinela evita enfatizar, porque a impressão que se deseja transmitir no artigo é que os primitivos cristãos eram “Testemunhas de Jeová”. Todavia, conforme sabemos, não há a menor evidência de que os primitivos cristãos chamassem a si mesmos de “Testemunhas de Jeová” e, verbalmente ou por escrito usassem o nome de Deus em hebraico. Eles provavelmente tinham o maior respeito por este nome. Porém, o peso enorme que a organização Torre de Vigia atribui ao uso do nome hebraico de Deus – uso este que se apresenta como crucial para determinar a salvação de alguém e para determinar qual é a religião verdadeira – está completamente ausente entre os primitivos cristãos, tanto no Novo Testamento como nos escritos dos Pais Apostólicos. Em meio a toda esta vasta quantidade de matéria sobre os primitivos cristãos não existe o menor vestígio do nome divino em hebraico sendo usado! Esta importante diferença entre as Testemunhas de Jeová e os primitivos cristãos é completamente omitida no artigo de A Sentinela. Obviamente, nada há de errado em usar uma palavra equivalente ao nome hebraico de Deus. O que está errado é fazer do uso desta palavra um critério do que é o verdadeiro cristianismo, colocar isso como uma condição para a salvação, e depois descrever as centenas de milhões de cristãos que não usam este nome com frequência como falsos e apóstatas.

A descrição que A Sentinela faz da atividade dos primitivos cristãos visa a torná-los tão semelhantes às Testemunhas de Jeová de hoje quanto possível. Nas páginas 6 e 7 fala-se a respeito da pregação zelosa deles. E naturalmente é verdade que os primitivos cristãos divulgaram zelosamente sua fé de diferentes maneiras e em diferentes contextos. Mas, foram eles sistematicamente de porta em porta, conforme as Testemunhas fazem hoje? Não há qualquer evidência concreta de que eles usaram esse método, seja no Novo Testamento, seja nos escritos extrabíblicos. Na página 6, A Sentinela diz que “no segundo século EC, o filósofo romano Celso criticou os métodos de pregação dos cristãos.” Qualquer Testemunha de Jeová que ler isso fica imediatamente com a impressão de que Celso estava criticando o método deles de espalhar a mensagem de porta em porta, o que é também reforçado pela imagem na página 7 dessa edição de A Sentinela. Porém, quando verificamos o escrito, para ver o que Celso estava realmente criticando (Orígenes, Contra Celsus [Contra Celso], Livro III, capítulo XLIX), não encontramos indício algum de que os primitivos cristãos iam de porta em porta. A acusação de Celso era que os cristãos se concentravam nas pessoas sem instrução e que poderiam ser enganadas facilmente. Foi este o “método de pregação” criticado por Celso, uma crítica que Orígenes refutou em sua resposta.

Mais uma vez, é óbvio que não há nada errado em ir de porta em porta com a mensagem cristã. Mas não é honesto fingir que este foi o principal método de pregação usado pelos cristãos primitivos quando não há qualquer evidência histórica concreta disso. A razão de o artigo de A Sentinela tentar impor a ideia de que os primitivos cristãos pregavam dessa maneira é, obviamente, o desejo de provar que a organização das Testemunhas de Jeová hoje “corresponde em todos os sentidos à descrição histórica dos primitivos cristãos”. É difícil imaginar que Cristo esteja disposto a elogiar uma falsificação da história desse tipo como uma virtude cristã.

A Sentinela alega também que as Testemunhas de Jeová imitam os primitivos cristãos porque “se negam a participar no movimento ecumênico.” (Página 16) Como “prova” disso cita-se o historiador Latourette, o qual escreveu que “eles [os cristãos] eram hostis às outras religiões… Em contraste com a tolerância bastante ampla que caracterizava os outros cultos, declaravam que tinham a derradeira verdade.” (Página 6) A palavra “ecumenismo”, no contexto cristão não significa trabalhar em prol duma fusão entre o cristianismo e as religiões não-cristãs. Bem poucas igrejas cristãs estão dispostas a uma coisa semelhante a essa. O ecumenismo, propriamente dito, refere-se à comunidade cristã em geral. O objetivo do ecumenismo cristão é a aproximação, a cooperação, a busca fraterna da superação das divisões entre as diferentes igrejas cristãs. Será que os primitivos cristãos eram hostis a isso? Não é verdade que já nos tempos apostólicos houve esforços para evitar a divisão e superar as diferenças? A reunião sobre a questão da circuncisão em Jerusalém em 49 DC foi, nesse sentido, um encontro ecumênico. O próprio apóstolo Paulo trabalhou arduamente para estabelecer a unidade entre os diferentes grupos cristãos, e ele estava disposto a fazer grandes esforços nesse intento (Atos 21:20-26, 1 Cor 9:19-23). Em suas relações com os judeus, os cristãos viviam de acordo com a lei para impedir a fragmentação desnecessária. E para lidar com os gregos, Paulo viveu como um grego. Tanto ele como os outros apóstolos toleravam muitas diferenças de crenças e práticas entre os cristãos a bem da unidade. (Veja Romanos 14:1-10) Só quando as verdades cristãs fundamentais eram ameaçadas é que eles estavam dispostos a defendê-las contra a corrupção. Por exemplo, um “cristão” que “não confessasse Jesus Cristo vindo na carne” não poderia ser aceito como uma associação apropriada, nem era admitido nas reuniões que ocorriam nos lares dos cristãos. (2 João 7-11).

Durante o período pós-apostólico houve continuidade nessas tentativas de solucionar as divergências sobre várias questões, num espírito ecumênico. No segundo século surgiu a famosa “Controvérsia da Páscoa”, que ameaçou dividir a igreja, pois Vítor, bispo das igrejas de Roma, quis seguir uma política de linha dura e excluir as igrejas da Ásia Menor devido aos seus conceitos particulares e divergentes.

Mas outros líderes cristãos da época conseguiram convencer Vítor a seguir um caminho diferente – o ecumenismo. Embora as conversações feitas em torno desse assunto em vários sínodos e cartas não tenham superado as diferenças de opinião, pelo menos ajudaram a evitar uma grave perturbação e manter a unidade cristã entre as igrejas que estavam envolvidas nessa controvérsia.

Naturalmente, o cristianismo é Cristo no centro da verdade final de um cristão. Isso não se aplica às religiões e cultos não cristãos. Para o cristão há apenas uma forma de salvação – a fé em Cristo. Todavia, qualquer grupo de cristãos que proclame o seu próprio grupo e as suas próprias interpretações e posições particulares como a verdade única e final, e rejeitam todos os demais cristãos, embora estes também tenham aceitado a Cristo como seu salvador, então esse grupo na verdade estabeleceu um novo caminho de salvação além de Cristo. Eles transformaram a aderência aos seus ensinos e a suas próprias comunidades numa condição essencial para a salvação.

As pessoas e os grupos primariamente responsáveis pela divisão na Igreja primitiva foram justamente os que não estavam dispostos a qualquer diálogo, encaravam suas interpretações e crenças especiais como a verdade final que deveria ser aceita por todos, e consideravam todos os demais cristãos como apóstatas. Esses indivíduos e grupos que afirmam ter o monopólio da verdade cristã sempre foram a principal causa das divisões religiosas da cristandade. Eles se recusaram a ter qualquer coisa que ver com outras denominações e associações cristãs, colocaram-se à parte delas, apontando para elas e dizendo: ‘Vejam essa divisão que existe entre os cristãos, enquanto que nós somos unidos e temos a mesma opinião sobre todas as coisas! Por isso, nós somos os verdadeiros cristãos!’ Essas pessoas não se dão conta de que esta atitude é a própria raiz da divisão, e que a organização ou seita particular que elas estabeleceram e advogam, rejeitando todos os demais, é só mais uma contribuição para as divisões no cristianismo. Não, a atitude dos líderes das Testemunhas de Jeová em relação ao ecumenismo não é uma característica cristã original. É possível encontrar paralelos da atitude da Torre de Vigia no cristianismo primitivo, sim, mas daí teremos de procurar esses paralelos entre as seitas heréticas que Irineu e outros pais descreveram e denunciaram em seus escritos.

Estes exemplos são suficientes. Muito mais poderia ser dito sobre outras supostas “semelhanças” entre as Testemunhas de Jeová e os primitivos cristãos que a revista A Sentinela menciona, mas isso levaria muito tempo. Na página 16, por exemplo, A Sentinela diz que os primitivos cristãos, assim como as Testemunhas de Jeová de hoje, recusavam-se a ‘aceitar Cristo como Deus.’ Embora a doutrina da Trindade, como tal, possa parecer difícil de aceitar, não pode haver dúvida de que os primitivos cristãos num estágio muito inicial encaravam Jesus como Deus, e não é difícil alistar citações de escritos patrísticos ao longo de todo o segundo século para confirmar isso. Depois há a questão de se eles fizeram isso no mesmo sentido que muitos fazem hoje. Não existe evidência bíblica de que eles igualaram Jesus com o Deus Todo-Poderoso. O apóstolo João declarou que “o Verbo era Deus” (João 1:1). Ainda que essa frase seja mudada para “a Palavra era um deus”, como se fez na Tradução do Novo Mundo, isso não muda o fato de que Cristo era conhecido como “Deus”. Se os primitivos cristãos escreveram a palavra “deus” neste texto com letra minúscula, como a Torre de Vigia fez em sua tradução, não sabemos, mas isso não altera em nada o fato de que Cristo era encarado como uma divindade. Conforme se sabe, o Novo Testamento foi escrito originalmente em letras maiúsculas. Tanto o Novo Testamento, como os primeiros escritos extrabíblicos mostram que os primitivos cristãos falavam em nome de Jesus e invocavam o nome dele. (Atos 7:59, 1 Cor. 1:1, 2, e diversos outros textos) Isso já é evidência suficiente e deveria nos mover a evitar fazer comentários muito taxativos, num sentido ou no outro, sobre as questões acerca da natureza de Jesus e sobre a essência do debate que se intensificou em alguns concílios ecumênicos do quarto século em diante.

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Tradução do artigo Avskilda från Världen – Kristen Frihet

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